Matéria Prima 2022.1 - Criatividade Desterritorializada

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Revista laboratório dos alunos do curso de Jornalismo do Centro Universitário 7 de Setembro

#23 2022.1 2019.1


DEPOIS DE 2 ANOS VAMOS FINALMENTE NOS REENCONTRAR DA MELHOR FORMA., COM MUITO FORRÓ.

DIA 10/06 17H Rua Agerson Tabosa, ao lado da UNI7.

ATRAÇÕES

Banda + DJ CONFIRA AQUI

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Caro leitor, REITOR Ednilton Soárez VICE-REITOR Ednilo Soárez PRÓ-REITOR ACADÊMICO Adelmir Jucá PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO Henrique Soárez COORDENADOR DO CURSO DE PUBLICIDADE & PROPAGANDA E JORNALISMO Magela Lima

p issuu.com/npjor/docs EDITORES CHEFES Eulália Camurça

PROJETO GRÁFICO Humberto de Araújo DIREÇÃO DE ARTE Nila Bandeira EDITORIAL Eulália Camurça COLABORARAM NESTA EDIÇÃO texto Emily Menezes, Isabela Queiroz, Keyss Morais, Leonardo Costa, Letícia Marques, Monike Lima, Natali Brandão, Victor Dutra, Victória Borges diagramação Emanuelle Nascimento, Hugo Eduardo, Ingrid Narciso, Lucas, Nadine Lima, Renan Nunes COL AGEM Victor Dutra

Qual lugar ocupa a criatividade de uma cidade ? A partir desta inquietação, percorremos diversas paragens para encontrar pessoas com suas histórias e sua vontade de despertar novos olhares, novas formas de se relacionar consigo e com seus vizinhos. Somos todos vizinhos numa cidade de mais de dois milhões de habitantes, mas, vem a pergunta de novo: onde está a criatividade da nossa gente? Victor fez uma reflexão sobre a chancela que a Unesco deu à Fortaleza como cidade criativa do design. Ele visitou esta cidade escolhida pela Unesco, mas percebeu que ela está num trecho pequeno da Praia de Iracema. Que para visitá-la, precisa percorrer oito bairros de ônibus para chegar à orla porque o bairro dele não tem um resquício do que é descrito pela chancela. Então resolvemos sair em busca da criatividade que está para além da Praia de Iracema para contar histórias inquietantes. Saímos da orla e ganhamos a cidade: Barrra do Ceará, Pirambu, Curió, Cais do Porto, José Bonifácio, Bairro Ellery, Sapiranga, Passaré, Parangaba, José de Alencar, Poço da Draga, Mucuripe e Messejana. Neste roteiro, Letícia encontrou Glaucyelen, uma mulher que quebrou tabus ao fazer uma sobremesa em forma de desejo sexual. Isabela encontrou as Debby e Déborah, mães que criam para tornar o mundo mais bonito para suas crias. Emily foi encontrar os moradores do Farol do Mucuripe, que buscam saídas para manter a memória e a história da cidade vivas. Victória encontrou Alberto que percorre a Barra do Ceará para um encontro com a plenitude da criatividade encontrada na natureza. Monike desbravou um bairro estigmatizado pela violência, mas que preenche a vida dos jovens com novas narrativas da literatura mundial. Keyss acompanhou a rotinha de contadores de histórias e de gente que acredita na capacidade de se comunicar mesmo da vida avançada. Leo encontrou Beatriz, Cau e Isabele, que se pautam numa moda engajada, que fortalecem a pele negra e os cabelos crespos. Natali entrou na batalha de rap do Peixe e do Tonhão MC para mostrar como a arte muda a cidade e a vida ao redor. No final, encontramos sim, uma criatividade que se espraia pela inventividade de gente que inventa a vida para sobreviver e fortalecer esta grande comunidade chamada Fortaleza.

NOSSA C APA Publicidade e Propaganda

Concepção Victor Dutra Montagem Aldemir Neto Colagem Victor Dutra

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06 Fortaleza Criativa

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Entre o ser e o sentir-se: a juventude como estado de espírito

18 Herança da terra: as belezas e

desafios do ativismo ambiental

22 Erotismo que dá liga à gastronomia

26 Uma teia familiar: a história da

Mancuda, a marca que veste a favela de Fortaleza

30 Nos fios do cabelo: a história da

Nzinga Trancismo, um espaço de resistência e redescoberta

32 Batalha de vida rimada:

pluralidade de ideias e a arte de improvisar para resistir

36Voz da Periferia 42O fazer artístico de mãos maternas

46 Entre becos e vielas: o Farol que verbaliza histórias e momentos memoráveis

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Entrevista com Léo Silva [FOTO: Victor Dutra]

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FORTALEZA

CRIATIVA A jornada do povo fortalezense para acessar a própria cidade Texto Victor Dutra Diagramação Aldemir Neto

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Uma cidade que reúne os elementos da natureza para despertar a inventividade de um povo que precisa criar para sobreviver. Esta definição deu à Fortaleza o título Cidade Criativa do Design, em 2018, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO). Mas qual a distância entre o que está na definição da chancela, que foi pautada pelo entorno da beira mar, e as pessoas que vivem a criar para dar sentido à vida? Em busca destas respostas, conversei com Alberto Gadanha, representante local da chancela das Cidades Criativas. Se muita gente tem dúvida qual o lugar do design na cidade, ele explica como o povo cearense recorre à atividade para sanar problemas e questões do seu dia a dia, por exemplo. Alberto afirma que a chancela foi o resultado de inúmeros trabalhos reunidos em um edital que a UNESCO abre anualmente para selecionar novas cidades ao redor do mundo. Fortaleza se destacou pelas formas que a população encontra de inovar economicamente utilizando a criatividade. “O objetivo da chancela é fomentar/incentivar ações e práticas que ajudem o fortalezense a se reconhecer como povo criativo e consiga, a partir disso, fomentar a economia criativa na cidade.” explicou o representante. Mas será que quem mora em Fortaleza entende o significado do título e se sente parte dele? Embora autenticada internacionalmente, percebe-se o desconhecimento do povo sobre o título ↑

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Set de gravação do filme Pedro, dirigido por Léo Silva [F oto : Victor Dutra]

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que assola um dos principais pilares da chancela: o autorreconhecimento. Alberto admite que este é um dos maiores desafios do projeto. O representante da chancela afirma que não é fácil tornar uma marca conhecida tão rápido, visto que houve uma pausa devido ao período de isolamento social. “Tivemos que parar nossos planos de eventos, feiras, palestras e ações que envolvessem o fortalezense, mas estamos investindo em comunicação para sanar essa questão”, justificou. Lembrei de Léo Silva, artista e cineasta do Grande Jangurussu, bairro periférico de Fortaleza. Léo não se considera uma pessoa criativa, que não se vê com tempo e recurso suficiente para “fazer algo criativo”. Fiquei surpreso com a resposta, levando em consideração os produtos que produzia no bairro. “Às vezes a nossa realidade não condiz com o que encontramos nas telonas, conheço pessoas da periferia que nunca pisaram em uma sala de cinema. Por isso produzo aqui na periferia, para que as pessoas se vejam também”, disse em entrevista. A declaração de Léo me faz pensar na falta de acesso do fortalezense a movimentos e espaços criativos, tornando distante o conceito da prática. A criatividade beiramalizada

Participei de um evento apoiado pelo movimento que trabalha com a chancela, na rua dos Tabajaras, na Praia de Iracema, para exibir produtos de micro empreendedores. Aproveitei o mo-

mento para desfrutar um pouco desta zona turística da cidade, afinal não eram todos os dias em que eu estava disponível a fazer o trajeto Messejana - Praia de Iracema. Foi quando me deparei com paredes grafitadas, calçadas largas e jovens nas ruas livremente. Um sentimento bom e expansivo me invadiu naquele momento. Pensei: “Meu Deus! Deve ser ótimo morar aqui!”

“Às vezes a nossa realidade não condiz com o que encontramos nas telonas, conheço pessoas da periferia que nunca pisaram em uma sala de cinema. Por isso produzo aqui na periferia, para que as pessoas se vejam também Léo Silva ↑

Placa de comércio criativo reconhecido pela chancela [Foto : Victor Dutra]

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Daí lembrei do meu bairro e do quão inacessível era sair de casa e caminhar tranquilamente sem se deparar com a desigualdade social e pobreza que domina o restante da cidade, é um privilégio imenso, que não era o meu caso. O sentimento bom e expansivo se tornou desconfortante. O mesmo sentimento veio ao assistir o próprio vídeo de apresentação da chancela de Fortaleza como cidade criativa. Imagens lindas de uma Fortaleza “Beiramalizada”, rodeada dos seus grandes monumentos históricos e esquecidos pelo poder público, como o farol do Mucuripe, símbolo de nosso brasão, prestes a desabar, soterrando boa parte da história local com ele. É preciso mais que uma chancela

A Fortaleza criativa se encontra centralizada. Enxergar espaços periféricos como merecedores dos incentivos criativos também são formas de incluir a participação de seu povo na chancela. “Nos preocupamos com a descentralização das atividades de fomento criativo, mas precisávamos de uma ‘zona de experimentação’, um local para testar e no futuro, expandir. Um processo de acupuntura urbana”, explicou Alberto. Entre as iniciativas para estimular novos projetos, existe o “Cria Juventude”,

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Apresentação circense na feira criativa [FOTO: Victor Dutra]


projeto desenvolvido nos mesmos centros culturais, que tem como principal objetivo incentivar a economia criativa nas comunidades periféricas da cidade. O representante da chancela fala que todas as ações miram o resultado que o plano “Fortaleza 2040”, projeto que prevê estratégias que alcancem os objetivos de desenvolvimento social em curto, médio e longo prazo. Mas será

preciso esperar 18 anos até que nós, fortalezenses periféricos consigamos enxergar nossos bairros e espaços como criativos e bem desenvolvidos? Percebe-se que, enquanto nossa cidade é reconhecida mundialmente por nossas ações, forjadas na necessidade de sobrevivência, nós continuaremos tendo que atravessá-la para viver a Fortaleza chancelada pela UNESCO.

“Nos preocupamos com a descentralização das atividades de fomento criativo, mas precisávamos de uma ‘zona de experimentação’, um local para testar e no futuro, expandir. Um processo de acupuntura urbana Alberto Gadanha ←

Feira criativa [Foto: Victor Dutra]

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Entre o ser e o sentir-se: a juventude como estado de espírito Diante da falta de acessibilidade e de políticas públicas para a terceira idade, a vitalidade dos idosos de Fortaleza faz da arte sua principal forma de resistência TEXTO Keyss Morais DIAGRAMAÇÃO Renan Nunes

A arte é algo que independe da idade. Alguns dizem se tratar de um dom, outros afirmam ser questão de prática. Provavelmente, os dois estão certos, mas a sabedoria adquirida com o passar dos anos parece deixar o artista mais sensível à criatividade. Essa matéria é um convite para conhecermos dois projetos de Fortaleza onde os idosos são protagonistas de suas criações. Nossa jornada começa à esquerda do aquário nunca inaugurado, por trás dos muros da Caixa Cultural, onde uma comunidade resiste há 116 anos. Localizada entre prédios luxuosos, o Poço da Draga faz da arte sua principal arma contra a selvageria da especulação imobiliária.

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Todas as segundas quintas do mês, uma cantoria simpática ecoa entre as ruas estreitas. Se você se deixar guiar pela canção vai acabar sendo levado para a área da casa de dona Francisca Pereira, chamada carinhosamente de dona Iolanda pelos moradores do Poço. Iolanda é a matriarca e em sua casa ela reúne a comunidade do Poço para o sarau. São suas filhas, as sogras de suas filhas, irmãs e amigas que ela também chama de família. Com a sala já lotada, Rodrigo Bezerra, o professor de música que atravessa a cidade para cantar com as jovens senhoras, saca seu violão e começa a afinar o instrumento. Minutos depois todas já estão envolvidos em cantar “Espumas ao Vento”.


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“Tem muitas delas, minha mãe é uma, que pede para cantar as músicas do tempo de namoro, sabe? Então elas relembram o tempo de juventude, uma música que marcou a infância, adolescência Ivoneide Góis, 57 anos, filha de Iolanda Ao fim do encontro dona Ivoneide serve orgulhosamente um bolo de laranja com suco de abacaxi que ela mesma fez. As senhoras aproveitavam do aconchego de um lanche feito com carinho para palpitar no repertório do próximo encontro. Foi consenso geral que um forrozinho não pode faltar. Reza a lenda que o Sarau do Poço da Draga é uma fonte da juventude. Todo aquele que visita os encontros rejuve-

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nesce ao ouvir a cantoria daqueles jovens corações, guardados em corpos senis, sustentados por uma vida de arte e sabedoria. Aprender, criar e colher

Do outro lado da cidade, após pegar o ônibus 92: Antônio Bezerra / Papicu, ao passar pelo segundo terminal para pegar a linha 53: Grande Circular, indo até o fim da Whasigton Soares, chegamos a Casa José de Alencar. Ao entrar na sala de Inclusão Digital, se ouve uma pergunta: “O que é tecnologia?”.


forma que ela tem de matar a saudade da filha e neta que moram na Itália. “Mãe não chora não, a senhora vai ver como vai aprender bem direitinho. Todo dia a senhora tenta para não esquecer”. - Relembra dona Socorro as palavras da filha ao lhe ensinar a usar o celular. Após um tutorial de como ligar, desligar o notebook e fazer pesquisas no google é hora do tao esperado lanche. Empadinhas com suco de maracujá são servidos com zelo por Mariana Migliari, 40 anos, coordenadora do Núcleo Casa José de Alencar do Instituto. Entre uma empada e outra, se torna perceptível como os encontros do Instituto Ser Amado vão além da inclusão digital. São nestes momentos de troca que os idosos se sentem acolhidos por outros idosos, ao dividir problemas que seus filhos e netos jamais entenderiam. Mariana conta que a grande reclamação de muitos membros é a falta de apoio e carinho da família. Muitos deles encontram no Instituto Ser Amado uma corrente, onde podem fazer amizades, aprender coisas novas e expressar suas emoções por meio do artesanato e cuidado com a natureza. “Uma forma de ajudar os mais necessitados” - responde uma das senhoras reunidas no círculo. A resposta atípica pega de surpresa dona Naná, gerontóloga e voluntária do Instituto Ser Amado, instituição sem fins lucrativos que combate o etarismo (preconceito contra a terceira idade) e busca resgatar a autoestima de pessoas idosas. A senhora não estava errada, afinal de que serve a tecnologia senão como forma de acessibilidade? Dona Maria do Socorro, de 59 anos, foi a aluna aplicada que deu tal resposta. Semianalfabeta, ela não mede esforços para se alfabetizar digitalmente, já que a tela do celular é a única

“Eu conheci gente que tinha 70 anos e nunca tinha ouvido falar um ‘Eu te amo’ Relembra Mariana

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Por conta disso, o Instituto oferece inúmeras oficinas artísticas, onde os idosos podem bordar, fazer toalhas de fuxico e bonecas de pano. Após a produção, os itens são vendidos em uma feirinha. Parte do lucro vai para o artesão que produziu aquela peça e parte é destinada à manutenção do Instituto. No entanto, o artesanato não é a única expressão de arte do Instituto. Tem ainda a horta, “Flor de Cactos”, onde os idosos plantam e cuidam das mudinhas, assim sempre que precisam

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podem levar verduras, ervas medicinais e qualquer planta que precisarem. Não só os membros, mas qualquer pessoa que passar pelo local pode fazer sua feira e levar o que for necessário. Arte para quem?

Ao ser questionada se considerava Fortaleza uma cidade com arte inclusiva para a terceira idade, Mariana discorda. Segundo ela, os idosos de baixa renda não possuem acessibilidade sequer para andar pelas ruas esburacadas de Fortaleza, quem dirá para acessar a arte.


“Quantas delas foram para o cinema? De 10, talvez duas ou três. São coisas bem simples mas que não têm acesso

Entre poesias, músicas, artesanato, jardinagem e claro, sem faltar uma boquinha feita com carinho no final, a vitalidade dos idosos de Fortaleza faz da arte sua principal forma de resistência.

SERVIÇO

Doações Instituto Ser Amado . Av. Washington Soares, 6055 W (85) 98826-1606 W @institutoseramado

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HERANÇA DA TERRA: as belezas e desafios do ativismo ambiental A criatividade de um homem para mudar a realidade e impactar futuras gerações Texto: Victória Borges Diagramação: Ingrid Narciso e Hugo Eduardo

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No extremo oeste de Fortaleza, quase na divisa com Caucaia, nos deparamos com a imensidão do rio Ceará e de Alberto de Souza, um barqueiro, morador da Barra desde 1964, que mantém um trabalho histórico: o de viver do que a natureza pode lhe oferecer. O passeio aconteceu em um dia que sucedeu um longo período chuvoso. Ao seguir viagem no barco, podemos nos deixar levar pela beleza do encontro do rio com o mar, além dos encantos do mangue, ganhando um tom poético. A companhia do Seu Alberto e do seu riso fácil nos levam a 1960, quando muitas mudanças irregulares começaram no lugar. Alberto conta como foi sua chegada ao bairro e como viu o crescimento populacional da região: “Nós chegamos aqui ainda com a Barra em dunas, vindo aqui à beira do rio Ceará, um espetáculo maravilhoso, belíssimo. Claro que durante esses anos a Barra se transformou muito e houve degradação, muitas ocupações irregulares, por causa da necessidade de moradia das pessoas. Também porque não tem um projeto de moradia, portanto quando as pessoas veem oportunidades, vão se apoderando de alguns lugares.” Alberto também é presidente da Associação dos Barqueiros Barra Unida, instituto que tem como objetivo combater o descaso na região e reivindicar direitos das famílias da comunidade. O barqueiro tem uma vida dedicada à natureza e há 10 anos investe em educação ambiental no bairro, com o apoio do Sesc Ceará, por meio do projeto “ Conversas flutuantes”. O trabalho vai além. Alberto ainda é voluntário de outras entidades não governamentais, e faz a função de limpeza do rio mensalmente.

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“Pouco aconteceu, pouco foi o resultado, mas a gente não desiste, nós nunca desistimos de lutar pela barra do ceará

comenta Sr. Alberto de Souza, sobre as irregularidades e descasos do poder público.

A Barra carrega a importância histórica de ter sido o marco zero da cidade, é considerada berço histórico do Estado e um dos bairros mais populosos de Fortaleza. Apesar de passar por dificuldades em relação à sua preservação, a falta de planejamento dos governantes e o apoio às causas ambientais, o bairro é símbolo de resistência. Para Alberto, o bairro se destaca pela importância do santuário natural para diversas espécies e sobrevivência para muitos pescadores. Por isto, preza por seu reconhecimento de forma consciente, acalenta a esperança de que a Barra seja ouvida e que a juventude esteja disposta a preservar sua memória e suas riquezas naturais.


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Erotismo que dá liga à gastronomia A loja de crepes em formatos de órgãos sexuais que está fora da rota criativa da cidade TEXTO Letícia Marques DIAGRAMAÇÃO Nadine Lima e Renan Nunes

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Comer e ser comido. A ligação entre sexo e alimento está presente desde o surgimento da vida, segundo os escritos bíblicos. Entre Adão e Eva existia a maçã, fruta que pode ser considerada símbolo introdutório à liberdade humana para alguns, para outros, o início da libertinagem na terra. As conexões entre esses são variadas e, de acordo com Francisco, o Papa, o prazer proporcionado por ambos é divino. Para a arte e a internet, o alimento sempre foi o ingrediente certo para a personificação dos desejos e do erotismo. Exemplo disso, é o sentido atribuído aos emojis de pêssego e berinjela nas redes sociais. Ou os versos


Minha intenção sempre foi ser um ponto turístico de Fortaleza, mas há meses atrás tudo isso era apenas um sonho. - Glaucyelen Gomes [FOTO: Letícia Marques]

“O homem é muito movido pelo tamanho da sua genitália. É um nome que gera uma discussão, toca em uma ferida da sociedade Glaucyelen Gomes

da canção pop “Watermelon Sugar”, do ex-One Direction Harry Styles, em alusão ao sexo oral feminino. Difícil de esquecer é a repercussão de uma das cenas de “Me Chame Pelo Seu Nome”, quando o protagonista ejacula em um pêssego, e seu parceiro come a fruta. Desde então, presenciamos como a comida pode ser algo a ser sexualizado por nós. Metaforizamos em cima dela, personificamos as nossas ideias e vontades. Mas e o caminho inverso, o sexo em forma de comida, ele existe? Localizada no subúrbio da capital alencarina, na Avenida Leste Oeste, região central do Pirambu, eis uma lojinha rosa de nome nada convencional, que prova sim que o caminho contrário não só

foi feito, como fez sucesso. Xibata16cm foi o nome escolhido pela profissional de saúde e empreendedora, Glaucyelen Gomes, para nomear a primeira loja de crepes em formato de órgãos sexuais do Brasil. Nome esse, que na cultura de Fortaleza pode ser interpretada de duas formas: agressão física violenta ou membro masculino. “Nem a chibata de couro, mole, o povo quer. Quem dirá a de comer. ‘Se eu for vender xibata tem que ser algo duro, firme, que tenha um sabor que os clientes voltem’, pensei”, explica. “A massa da xibata foi desenvolvida justamente para ser uma ‘chibata’, algo sólido. A massa do crepe tradicional não serve pra ela tomar forma, você faz e ele

murcha. Passei dois meses para desenvolver uma receita que desse certo, que ficasse em palito e dura. Não é um crepe simples, é exclusivo, algo que você não vai encontrar em outro lugar”, afirma a empreendedora. A intenção da loja sempre foi a de empoderar as mulheres e trazer o debate sobre sexo e corpos humanos para a sala de casa. O nome escandaloso foi propositalmente escolhido para gerar discussões. A proposta de Glaucyelen sempre foi a de questionar a padronização do órgão sexual masculino. “O homem é muito movido pelo tamanho da sua genitália. É um nome que gera uma discussão, toca em uma ferida

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da sociedade. Ainda tem um tabu a ser quebrado. Eu gosto de mostrar isso, essa normalidade. A sociedade está tão tóxica dentro de um padrão, mas não seremos iguais, nem que seja cirurgicamente falando. Vamos seguir em uma realidade tão perversa assim que ninguém vai se aceitar?”, questiona. A realidade perversa a qual a empresária destaca, no entanto, não está apenas nos estereótipos corpóreos humanos. Ela também reflete a forma na qual Fortaleza, batizada como uma das Cidades Criativas da Unesco, cria um cenário onde a expansividade de ideias e inovação está concentrada exclusivamente em um roteiro dos bairros burgueses da capital. Em uma das principais avenidas da zona oeste, a Xibata16cm só não passa despercebida pois se ilumina por si própria. Os postes apagados, sem explicação visível para a falta de iluminação pública, é só um vislumbre tímido, mas marcante de que a criatividade que não está nos polos econômicos da cidade está não apenas esquecida, como trapaceada. Não existem oportunidades justas para quando se está fora do roteiro de gastronomia, e principalmente, em uma zona marginalizada e às escuras. Ao ser questionada sobre o assunto, Glaucyelen desabafa: “eu acredito Fortaleza pode ser mais inclusiva, e é deixando o preconceito de lado. Algumas pessoas pensam 'não vou sair da minha casa para ir em uma favela', mas os turistas que vêm à cidade têm muito mais coragem de vir na loja do que pessoas que moram aqui no bairro”.

SERVIÇO

Xibata16cm . Av. Presidente Castelo Branco, 2794, Pirambu . Seg. a sex.; De: 13:00 às 23:00h t (85) 3101 9847 W (85) 9 9636-4344 I @xibata16cm

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“Eu venho de um meio conservador, cresci em igreja evangélica mas não cabe na minha mente o pensamento de que quem trabalha com erotismo vai para o inferno” Glaucyelen Gomes


O cearense é criativo. O brasileiro em si é criativo, a gente consegue desenvolver coisas sem ter tanta condição financeira. [FOTO: Letícia Marques]

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LINHAS QUE COSTURAM

NA CIDADE: duas histórias Texto Leonardo Costa da Silva Diagramação Emanuelle Nascimento e Lucas

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UMA TEIA FAMILIAR: a história da Mancuda, a marca que veste a favela de Fortaleza ↑

A marca já participou de grandes eventos em Fortaleza como o Festival Negruras e o Desfile Realeza [Foto: Léo Costa]

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Os amigos, Nair Beatriz e Carll Souza, fundadores da marca Mancuda [Foto: Léo Costa]

Um cachorro vira-lata encara a câmera, que rapidamente muda seu foco para uma mulher de estatura baixa vestindo uma camisa amarela com detalhes em verde, lembrando a bandeira brasileira. Um short branco, óculos escuros pretos e tranças loiras completam suas vestimentas. Calçando um par de chinelos, ela passeia pelos becos de cimento gastos que revelam casas de dois e três andares, emoldurados por um pedaço de mar. Durante sua caminhada, é possível ouvir ao fundo “Orgulho da Favela”, música do cantor carioca Bob Rum. Ao final do vídeo de 30 segundos, somos então convidados para o Baile da Mancuda. Os bailes fazem parte da história pessoal e profissional de Carll Souza e Nair Beatriz. Há mais de 20 anos, quando os bailes funk viviam uma explosão de popularidade em Fortaleza, os pais do designer Carll se conheceram. Anos depois, a família se juntaria a de Nair, segunda metade da Mancuda. Esse passado foi revisitado na coleção exibida em novembro de 2021 no Festival Negruras, quando a dupla usou acervos

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Com peças coloridas que remetem aos bailes funk dos anos 2000, a Mancuda vem deixado sua marca na moda local [Foto: Léo Costa]

fotográficos pessoais e relatos familiares para desenhar e confeccionar suas peças. Carll e Nair nasceram em famílias onde a costura se configurava não apenas como uma habilidade artística, mas também uma fonte de renda. Desde a infância, brincavam com retalhos caídos no chão e acabaram envolvidos na profissão que viria a ser a deles também. Foi durante os primeiros meses de 2020 que tornaram realidade o desejo de construírem seu próprio negócio: uma marca com pertencimento, memória e representatividade. Durante a pandemia do COVID-19, ao esboçar a primeira ideia de uma roupa autoral, uma camisa de botões, Carll pediu a ajuda de Nair que o ensinou como recortar a peça. A partir de então, o processo de produção da Mancuda tem se constituído em uma teia familiar. A mãe de Nair, dona Rosângela, conseguiu tempo depois do trabalho para ensinar alguns macetes de costura para os dois. Do outro lado, a tia de Carll, Angélica, foi quem deu a ideia inicial da produção


“Como duas pessoas negras, faveladas e LGBTs, nós sempre sentíamos a necessidade de buscar referências. Nós não crescemos tendo referências de pessoas parecidas com a gente, quando nós víamos era uma em um milhão.” Nair Beatriz da Mancuda ←

de fashion films, ou vídeos de moda, que vieram a se tornar um grande diferencial na divulgação e construção da marca. Participam também do processo o irmão de Carll, Caio, que auxilia nas modelagens. E Mateus, primo de Nair, na criação audiovisual. A primeira coleção, inspirada pelo movimento cultural do reggae, foi lançada no mesmo ano de 2020 e iniciou o que se tornaria uma trajetória de grande impacto em Fortaleza. Apresentando corpos que não estão comumente representando marcas, a Mancuda responde a uma lógica excludente que contamina a história da moda desde seus primórdios. Corpos negros, gordos, LGBTQIA+ não são a exceção no escopo da marca,

Instagram da marca Mancuda [Foto: Acerto pessoal]

mas a regra. Carll e Nair afirmam que procuram através do seu trabalho reconstruir referências, transformando a realidade em que viveram até agora onde pessoas como eles não estavam em evidência. O processo de produção das roupas começa na pesquisa de materiais, passa então para o design, recorte e venda. As peças vão dos tamanhos P ao XG. Durante a fabricação, exista ainda preocupação ambiental. Para ter mínimo de descarte possível, todos os retalhos viram novas peças, tornando o trabalho cíclico e responsável. Ao refletirem sobre o legado que estão construindo, Carll e Nair ainda se impressionam com a repercussão e es-

tranham serem reconhecidos durante as filmagens dos vídeos de divulgação da marca. Segundo Nair, moradores do bairro demonstram orgulho em dividirem espaço com eles. Ela revela que alguns chegam a perguntar, em tom de brincadeira: “E eu, não sou bonito para ser modelo não?”. Entre cortes e retalhos, as peças coloridas e chamativas revelam uma fortaleza, no sentido de força, que não quer apenas resistir, mas trabalhar com criatividade, amizade e na favela. As linhas temporais que costuram a Mancuda se entrelaçam entre passado e presente, construindo um futuro possível para muitos.

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NOS FIOS DO CABELO: a história da Nzinga Trancismo, um espaço de resistência e redescoberta Texto Leonardo Costa da Silva Diagramação Emanuelle Nascimento e Lucas

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O penteado mais longo e demorado feito por Isabelle demorou três dias [Foto: Léo Costa]

Trancista, Isabelle Galeazzi em seu local de trabalho, o nzinga trancismo [Foto : Léo Costa]


Nzinga Mbandi Ngola Kiluanji. Nascida em 1582 no Ndongo, hoje parte da Angola, a rainha Nzinga é celebrada e lembrada por historiadores por sua resistência à dominação portuguesa no continente africano. Ao travar batalhas com inteligência e coragem, a guerreira se tornou um ícone para a comunidade negra mundial. Mais de quatro séculos separam Nzinga de Isabelle Galeazzi, mas foi através da história da governante que a trancista entendeu seu propósito. Para ela, o trancismo é hoje: “Uma ferramenta extremamente potente de imposição contra essas atualizações do pensamento colonial”. E assim surge a Nzinga Trancismo. A história de Isabelle com o trabalho começou ainda no colégio, quando iniciou a transição capilar, processo de abandono de químicas feitas nos fios. Ela se incomodava com as diferenças de textura que restavam em seus fios e, para lidar melhor com a mudança, começou a fazer tranças embutidas nas partes do seu cabelo que continuavam lisas. O trabalho chamou atenção dos seus colegas, que a aconselharam a tornar o talento em fonte de renda. Foi o que fez, tirando daí meios para encaminhar sua graduação. Desde então seu ofício tem ajudado pessoas a acreditarem na potencialidade e beleza dos seus traços. Isabelle conta que é comum ouvir histórias semelhantes a sua no dia a dia, e como as tranças ajudam a recuperar algo há muito tempo perdido. Refletindo sobre a questão, ela fala sobre como as táticas de embranquecimento e desvalorização da cultura negra atuam no cotidiano e se mostra feliz em estar lutando contra essa lógica com seu talento. Desde 2021, Isabelle tem construído uma relação de amizade e troca com sua aprendiz, Luz. Em sintonia, as duas constroem redes de apoio entre conversas com clientes e, também, movimentam a economia local.

Apesar de gratificante, o trabalho de uma trancista também encontra dificuldades que estão principalmente relacionadas aos limites físicos do corpo. Isabelle aconselha que novas trancistas estabeleçam folgas e respeitem seus horários livres. Também reforça a importância de uma boa relação comunitária com outras trancistas, além da prática de algum exercício físico.

O penteado mais longo e demorado feito por Isabelle demorou três dias [Foto: Leo Costa]

Com o crescimento dos debates em torno do cabelo de pessoas negras, o trancismo encontrou espaço em desfiles, campanhas e em materiais audiovisuais, tornando necessário o constante estudo de tendências, sem desvalorizar o aspecto ancestral que o acompanha. Em seu Instagram, Isabelle compartilha seus estudos, apontando penteados que estão fazendo sucesso fora do Brasil e mostrando testes que, muitas vezes, faz em seu próprio cabelo. Para Isabelle, a história de Nzinga e as histórias de seus clientes a fizeram entender qual seria seu objetivo enquanto trancista, o de resistir e transformar com os fios. A fala da trancista encontra eco nos versos do paraibano Chico César. Na música “Respeitem Meus Cabelos, Brancos” de 2002, o cantor diz que seu cabelo pode ser pixaim, enrolado, colorido ou assanhado, o importante é deixar a madeixa balançar.

“O processo de autoconhecimento de pessoas negras muitas vezes vem repleto de adversidades que nos distanciam dessa identificação. Isabelle Galeazzi

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Batalha

de vida rimada: Pluralidade de ideias e a arte de improvisar para resistir Texto Natali Brandão Diagramação Aldemir Neto

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As b atalhas de rima fazem parte do movimento do hip-hop e são uma competição na qual os Mc´s improvisam em cima de uma batida de rap. Os praticantes dessa arte convivem com o preconceito, mas seguem resistindo em meio aos obstáculos e à opressão da polícia. Mateus Rodrigues, 27, também conhecido como Peixe, é um Mc, poeta e educador social que mora na Parangaba e atua como organizador da batalha de rima Cururu Skate e Rap. O evento, que ocorre toda quarta-feira, às 18h, na Av. Osório de Paiva, existe para dar voz aos jovens do bairro. No local, eles retratam suas realidades enquanto moradores de uma Fortaleza criativa, artística e turística, mas também perigosa, com poucas oportunidades e muitos desafios. O primeiro contato de Peixe com o hip-hop foi ainda na adolescência, período decisivo para a sua vida: “Conheci o hip-hop quando eu tinha quatorze quinze anos mais ou menos, escutando na comunidade mesmo em que eu morava. Após alguns episódios, fui recluso em uma casa de menores e li um livro do Poeta Sérgio Vaz. Esse livro mudou minha cabeça (...) me apaixonei pela cultura do hip-hop”, conta.

Batalha de rima [Foto: Zona Imaginária]

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A Cururu Skate e Rap existe há quatro anos e iniciou quando Peixe e seus amigos buscavam por um lugar onde pudessem se encontrar, andar de skate e rimar. A procura por um novo local aconteceu após pararem de frequentar uma praça do bairro devido à intimidação policial. Foi então que passaram a se reunir ao lado do Ginásio da Parangaba, porém a pista de skate que havia lá estava abandonada. A partir desse acontecimento, Peixe sugeriu que as rimas deixassem de ser “distração de amigos” e se tornassem um evento organizado e com um objetivo. “Os obstáculos, alguns estavam quebrados, outros o pessoal tinha levado, a pista estava deteriorada. E eu tive a ideia de fazer de novo. Tipo, ‘ galera se eu fizer a batalha de novo aqui, mas a gente colocar umas águas, uns vinhos para vender e fazer um evento de rap, arrecadar dinheiro e fazer os obstáculos? ’ (…) E conseguimos no primeiro evento construir um obstáculo, comprar um corrimão e colocar lá para o pessoal andar”, afirma. Mais do que um rolê: um serviço à comunidade

Depois do sucesso do primeiro evento, Peixe percebeu a necessidade de um ambiente de cultura, onde as pessoas da comunidade pudessem se expressar por meio da arte e se sentirem acolhidas. Foi então que a Cururu Skate e Rap deixou de existir apenas para reformar a pista de skate e passou a ser um espaço de inclusão, um movimento social

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para além da batalha que hoje dá voz a qualquer pessoa que queira chegar e fazer suas rimas. O movimento acontece numa cidade que já foi eleita a sétima cidade mais violenta do mundo em 2018, de acordo com a ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz. Este cenário se mostra ainda mais desafiador para quem tem que driblar essa realidade. Afinal, as atitu-

des de violência muitas vezes podem vir daqueles que deveriam proteger os cidadãos, a polícia. O que, segundo Peixe, aconteceu na finalização de uma das batalhas, quando duas viaturas dispersaram os participantes com tiros: “A batalha já estava para acabar e chegaram duas viaturas da Polícia Militar, já desceram da viatura atirando na direção da população. Foi muita


correria, gente se machucou. Graças a Deus, ninguém foi atingido por nenhum tiro, apesar de terem atirado na direção da população. Em um momento de desespero, me joguei na frente da arma do policial e pedi pelo amor de Deus para ele não fazer aquilo, tinha criança, tinha idoso. ” Após a abordagem, eles conseguiram um alvará para poder realizar a Cururu

Skate e Rap. A cada semana, o movimento se reafirma como projeto social. O crescimento da batalha se deu pelo esforço dos organizadores, mas também pela dedicação dos participantes. Prova disso é Anthony Gabriel, 21, conhecido como Tonhão MC. O jovem, que faz parte da equipe de organização do evento, se destaca nos principais campeonatos de batalhas de rima do país. Com os títulos de Campeão Regional, em 2019 e Representante do Ceará em grandes batalhas como o Red Bull Francamente e o campeonato Nacional.

“Sou o único fortalezense a ir para o nacional Anthony Gabriel, 21 ↑

Organizadores das batalhas [Foto: Zona Imaginária]

Batalha de rima [Foto: Zona Imaginária]

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VOZ DA PE

Projeto comunitário muda a vida de mora Texto: Monike Lima

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ERIFERIA

adores em bairro marcado pela violência Diagramação: Aldemir Neto

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“Para a burguesia a periferia não tem voz, não tem escolha, direitos, saúde, e nem educação. A cultura, arte e literatura é para quem pode, quem tem poder e condição; Usam do golpe mais baixo que é o medo O medo de ser cidadão, Medo de ser artista, De se expressar, De criar e recriar, De ser quem é de verdade. Eles dizem que da periferia não vem nada de bom, Quem é filho de peixe sempre peixinho será de ser. Mas não lembram que é da periferia que nasce a resistência, a coragem e a luta diária; Que é usando da arte e da criatividade todos os dias como um bote de salva vidas, e fazendo dela a sua única saída. Mostrando ao resto da sociedade que não importa onde você mora e sim o que você faz daquele lugar” - Monike Lima O Livro Livre Curió nasceu de uma criança que amava o universo da literatura. A brincadeira preferida era ler. Entendia os livros como um refúgio e tinha um sonho em seu coração: montar a própria biblioteca para compartilhar o mundo da leitura e mostrar como ela pode transformar vidas. O menino era o Talles Azigon, poeta e produtor cultural, que montou a biblioteca com a amiga, Anita Moura, criadora do Livro Livre Ceará, projeto que compartilha livros em toda Fortaleza. Tudo começou como brincadeira de criança na casa da avó, e, no aniversário de 29 anos, o grande sonho se tornou realidade. A sala da casa de sua mãe, Rita de Cássia, foi o local escolhido para tornar tudo possível. O único pedido ↑

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Portfólio do Livro Livre Curió [Foto: Monike Lima]


de Talles era que os presentes fossem livros. Para surpresa dele, vizinhos e outros moradores do bairro, ajudaram e seguem se mobilizando para manter o projeto que recebe visitas diárias de inúmeras crianças e adolescentes. A biblioteca fica localizada no bairro Curió, na grande Messejana. Um lugar que ficou estereotipado por uma tragédia ocorrida em novembro de 2015

e leva consigo as dores de 11 famílias que perderam seus filhos numa ação violenta da polícia. Para Lígia Soares, gestora e mediadora, o projeto mostra que, apesar da violência, há importantes manifestações no Curió. “Nosso intuito é mostrar que existe sim cultura, leitura,poetas, rimadores, desenhistas e vários outros tipos de artista”, afirma.

Banner de identificação da biblioteca [FOTO: Monike Lima]

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Wagner, 15 anos, frequentador da biblioteca [Foto: Monike Lima]

“Nosso intuito é mostrar que existe sim cultura, leitura,poetas, rimadores, desenhistas e vários outros tipos de artista Lígia Soares

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Novas estações

Após um ano de Livro Livre Curió, surgiu a necessidade de ampliar o espaço, aumentar a capacidade do acervo e levar outras atividades além do empréstimo de livros. Foi então que nasceu a CasaVoa. O espaço já realizou inúmeros eventos como Festival de música e artes Tárárá, PerifaGeek que acontece todos os anos, sarau e exposição de fotografias. A criançada atendida adora a “tia Ritinha” e o seu lanche. Tem ainda o clube de leitura das mulheres, que inclui pessoas analfabetas, e o clube de leitura das crianças e adolescentes, cine clube e a capoeira. O espaço também recebe

jovens do Instituto Cuca de outros projetos da Secretaria Juventude de Fortaleza, que moram na comunidade e desenvolvem trabalhos no espaço. Lá são oferecidas oficinas, cursos de fotografia, desenhos e colagem. As atividades realizadas na CasaVoa foram suspensas durante a pandemia de Covid-19. Apenas o aluguel de livros permanece. A dificuldade para a retomada ainda é grande, inclusive, por não receberem nenhum tipo de ajuda governamental. Aos poucos a CasaVoa volta a ser usada para os pequenos estudarem e o clube da leitura acontecendo uma vez por semana.


Espaço da CasaVoa [Foto: Monike Lima]

“A maior parte da renda da biblioteca sai do bolso do meu irmão Talles e alguns colaboradores e amigos. Na pandemia nós recebemos dois anos de cestas básicas para doar para as crianças que fazem parte do clube de leitura. A ajuda que a gente recebe da comunidade é sempre voluntário, sempre vem algumas pessoas de fora do bairro da oficina aqui. Nunca com a ajuda financeira, até porque a gente não aceita” diz Lígia. Assim, o Livro Livre Curió se tornou um espaço que mudou completamente a vida da comunidade. Crianças e adolescentes caminham com a cultura e educação, promovendo um bem maior no bairro. Exemplo disso, é o jovem Wagner, de 15 anos, frequentador da biblioteca. Ele conta que toda semana, após a aula, marca presença no local em busca de uma nova história. “Já li alguns mangás, os clássicos do José de Alencar e agora tô apaixonado por Harry Potter”, afirma o adolescente com o brilho nos olhos de que ainda há uma esperança.

SERVIÇO

Livro Livre Curió I @livrolivrecurio W (85) 98768-8316 -Lígia Soares U www.livrolivrecurio.com.br CasaVoa . R. Leonice Aguiar, 330 - Lagoa Redonda . Segunda - 9h às 19h . Terça à sabado - 9h às 21h . Domingo - 9h às 18h W (85) 98154-3909

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O fazer artístico de mãos maternas Artesãs de Fortaleza realizam a difícil arte de conciliar o empreendedorismo e a maternidade Texto Isabela Queiroz Diagramação Emanuelle Nascimento e Lucas

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Déborah Marques produz velas artesanais. [FOTO: Camilla Albano]

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A arte é uma forma de expressão muito particular. Por meio dela, o artista se revela, expõe suas ideias e inspirações. Também é subjetiva, pois cada um cria e interpreta de sua maneira. Foi no artesanato que duas mulheres, mães e profissionais de Fortaleza, encontraram meios de se revelarem e re-existirem. “Tudo começou nos tempos de Fotolog, os mais velhos vão lembrar”, diz Deby Teixeira, 35. A designer de moda, que não chegou a ser estilista, sempre amou as palavras. Então uniu duas paixões, passou a escrever sobre moda e outras coisas mais. O projeto, que nasceu no antigo blogue, veio realizar o desejo de falar sobre tudo de uma forma leve e desobrigada. O “Por estas e outras”, que hoje conta com cerca de 700 seguidores no Instagram, é a vitrine onde Deby exibe suas colagens, bordados, ilustrações e o que mais surgir, já que sua arte é ilimitada. Foi em decorrência da pandemia de Covid-19 que o trabalho de Deby passou a ser rentável, segundo ela. A partir disso, vieram também os trabalhos colaborativos com outras marcas e profissionais. Apesar de não ter referências bem definidas, a cultura pop é, sem dúvida, a maior influência da artesã. Como referência teórica, ela cita o movimento Dadaísta, e, no cotidiano, está sempre de olho nas atualidades, mas gosta mesmo é da espontaneidade. Dentro desse processo, a artista prefere sempre trazer elementos funcionais. No caso das colagens, por exemplo, o gasto de papel diverge com seus valores, segundo ela. Portanto, é mais interessante que não seja apenas uma obra. “Se eu vou produzir um presente, fico pensando em como a pessoa vai aplicar aquilo na sua casa. Tenho a preocupação de ser algo que possa ser guardado ou exposto”, explica.

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Déborah está à frente da Thiê velas artesanais [FOTO: Camilla Albano]

“A minha arte é o processo criativo. Eu gosto de criar Deby Teixeira A arte de criar as crias

O contato com a arte esteve sempre presente na sua vida de forma empírica. Para Deby, a maternidade foi um marco do seu empoderamento como artista. O nascimento ocorreu com junto com

“Sempre flertei muito com a arte, mas me tornei artista quando os meus filhos nasceram Deby Teixeira o seu primogênito Manoel, quando relançou o projeto “Por estas e outras”, e renasceu junto com Teresa, quando se profissionalizou. Em um momento de autocrítica, a artesã revela que não incentivava seus filhos artisticamente. Apesar de ter a arte sempre presente em sua casa, ela mantinha um certo distanciamento entre o trabalho e as crianças, o que mudou nos últimos dois anos, com o aumento do convívio devido à pandemia. “Venho me policiando para que a artista dê mais espaço para a mãe”, explica. Manoel, 8, e Teresa, 4, têm muita


influência na arte da mãe. “Todos os meus desabafos são na minha arte. O meu trabalho é muito autobiográfico. Apesar de não tratar da maternidade como um tema central, sempre estou falando dela dentro de algum campo, seja no empreendedorismo, seja no apoio, indicando outras mães”, afirma.

ral, feito com cera vegetal e óleos essenciais. “As velas com óleos essenciais são mais intimistas, trazem os benefícios terapêuticos das plantas”, explica Déborah. Após quase dois anos de lançamento, e já consolidada, a marca já realizou trabalhos em parceria com outras pequenas e grandes marcas locais.

Reexistir e reacender

O empreendimento de maternar

Foi com o início da pandemia de covid-19 e em meio a crises de ansiedade devido ao início do confinamento, que a gestora em Marketing, Débora Marques, começou a buscar algo que a tirasse um pouco da rotina em casa. Tentou o crochê, mas ainda não era isso. Passou a estudar, descobriu várias coisas, dentre elas, a possibilidade de unir o conhecimento que já tinha em aromaterapia com a produção de velas naturais. “Comecei a produzir e presentear pessoas próximas, da família, e todos amaram. Três meses depois, a marca já estava montada”, lembra. Débora fez testes de aromas, desenhou o logotipo, fez também uma pesquisa de mercado, mas, como não encontrou nada parecido, imaginou que ninguém ia querer comprar. Para sua surpresa e felicidade, na semana de lançamento vendeu 50 velas e abriu uma lista de espera. A Thiê velas artesanais nasceu com a proposta de oferecer um produto natu-

Desde a primeira reunião da Thiê, Déborah tem a companhia do filho Bento, 8. Sem uma rede de apoio presente, a empreendedora conta com a presença do pequeno capricorniano que vibra com cada nova encomenda recebida. A maternidade tem influência muito forte no processo criativo da Thiê. Isso

porque Bento é muito participativo, segundo a mãe. “Ele gosta de dar sua opinião desde o momento de criar até a produção”, afirma Déborah. Fora dos grandes centros comerciais e do mundo corporativo, produzindo em casa, duas mulheres e mães encontraram, além de uma fonte de renda, uma forma de expressar suas cratividades. Diretamente do bairro Passaré, Deby Teixeira cria suas colagens enquanto cria suas crias. No bairro Sapiranga, Déborah Marques produz suas velas e ilumina a vida do filho Bento. É assim que a criatividade nasce e ocupa os lares de duas famílias fortalezenses, para depois adentrar e embelezar outros lares.

Déborah conta com a companhia atenta do filho Bento durante sua produção de velas. [Foto: Camilla Albano]

“Empreender hoje é uma honra, por poder participar da infância do meu filho Débora Marques

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Duna do Farol do Mucuripe - antes do Conjunto São Pedro. [FOTO: Arquivo Nirez década de 1940]

Entre becos e vielas: o Farol que verbaliza histórias e momentos memoráveis O Farol do Mucuripe cai em esquecimento e é palco de resistência, luta e espera Texto: Emily Menezes Diagramação: Ingrid Narciso e Hugo Eduardo

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Fortaleza não é bela

somente por seus lugares, gostos e sabores. O que a torna forte, de fato, são suas histórias materializadas em uma arquitetura única. O Farol do Mucuripe ou ‘Velho Farol do Mucuripe’, como também é conhecido, estimulou diversas narrativas de resistência e luta ao longo da história. Com muitas especulações e promessas feitas de revitalização, o espaço é abrigo de momentos marcantes na vida de diversos fortalezenses. Entre 1840 e 1846, a torre foi edificada prometendo abrigar o farol da Província do Ceará, localizada no bairro Mucuripe. Na década de 1980, o Farol foi restaurado e recuperado por meio do projeto

da Divisão do Patrimônio Artístico, da até então Secretaria de Cultura e Desporto do Estado. O trabalho não prometia somente a revitalização do espaço físico, mas também cultural e arquitetônico, unindo memórias históricas e únicas. O Farol foi tombado como patrimônio estadual em 1983 e serviu de espaço para a instalação do Museu Jangadeiro, de 1996 a 2007. Ele abrigava fotografias e desenhos que retratavam a Fortaleza Antiga e, com o passar do tempo, o projeto foi passado para outra sede.Em dezembro de 1958, uma nova torre do farol foi inaugurada no bairro Vicente Pinzon, que continua iluminando a cidade até hoje. A partir de então, a velha

construção virou espaço de ocupação de moradores do entorno e é ameaçada pela especulação imobiliária.

“A partir daqui começa um debate importante para entender o porquê do abandono do local e escape desses moradores

Farol Velho de Mucuripe [FOTO: Arquivo Nirez - década de 1940]

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Cinema In(ter)venção: Cine Ser Ver Luz. [FOTO: Acervo do Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas | LAMUR | CNPq]


O lugar da memória

Para guardar a história de contradições, Diêgo di Paulo, pesquisador com formação técnica em turismo cultural e comunitário, e morador do bairro, criou o Acervo Mucuripe. “O nosso papel é explicar para a comunidade a importância do nosso espaço”, diz o pesquisador. Diêgo também faz parte do Conselho Gestor da Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) do Mucuripe, que tem como objetivo viabilizar projetos de melhoria para a comunidade e para o bairro. Para di Paulo, muitos projetos criados para revitalizar a região não apresentam compromisso em melhorar as condições de vida do entorno nem criar oportunidades para os projetos sociais do lugar.

“Todo o investimento da cidade é feito para Beira Mar, e aqui é esquecido comenta Diêgo.

de arte como shows, rodas de música, projeção de filmes, exposições em geral, entre outras atividades. O trabalho é feito como ato político para ocupação de espaços urbanos da cidade, principalmente no Farol e bairros adjacentes. O projeto amplia as escutas dos moradores do entorno e mostra como eles vivem, residem e resistem no espaço mesmo com o abandono e descaso por parte do governo, além das constantes ameaças de remoção. “A gente potencializa eventos como pontos de encontro no Farol, e mesmo ele em ruínas, nós o ocupamos”, diz Pedro Fernandes, membro da Associação de Moradores e do Coletivo AudioVisual do Titanzinho. A importância do Farol vai além da memória afetiva das pessoas. É um marco sólido da cidade que traz bene-

fícios significativos para elas. “O Farol é um ponto de encontro da comunidade, um lugar de contemplação [...] conversas, além de ajudar na saúde mental dos moradores.”, completa Pedro.

QUESTIONAMENTOS

Se a Fortaleza que conhecemos hoje é criativa e bela como dizemos, ela é oriunda de lutas, cansaços, dores e frustrações, e continua sendo. Todos os dias. Sem cessar. Com isso deixo a seguinte pergunta: Fortaleza é criativa pra quem?

Desde 2013, o Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes – PPGArtes da UFC, também desenvolve ações para manter viva a esperança de bons ventos na busca de um espaço mais saudável e criativo para todos. Os integrantes discutem temáticas que envolvem processo de criação em artes e micropolíticas urbanas. Entre as manifestações, destaca-se o projeto Farol Ocupações. A iniciativa é um desdobramento da Coletiva Audiovisual do Titanzinho: Cine Ser Ver Luz, projeto pensado para estreitar a relação entre moradores, pesquisadores, estudantes e artistas do Serviluz, que baseia-se em intervenções

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