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JORNAL DA UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES / NÚMERO 131 - ABRIL DE 2013

Alguma ruminação sobre a verde pétala da poesia Ensaio de Marco Aqueiva sobre o futuro da produção poética. Páginas 8 e 9

Ruth Guimarães fala de literatura e brasilidade Páginas 14 e 15

Mestre Graça, 60 anos Texto de Roniwalter Jatobá lembra a vida de Graciliano Ramos. Nesta mesma edição, crônicas de Ricardo Ramos e de Ricardo Ramos Filho. Páginas 3, 4, 5 e 6


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CONVERSA COM O ESCRITOR

Dinheiro para quem já tem A dificuldade de publicar é o grande obstáculo para os escritores, e a UBE tem questionado seguidamente as políticas de fomento dos governos para a edição de obras literárias. Recentemente, graças à interferência da diretoria da UBE, obtivemos do secretário da Cultura do Estado de São Paulo a reabertura de editais para apoio à publicação de livros de poesias, quase extinta nos editais anteriores. Mas há uma distorção que ainda precisa ser corrigida, e que o editorial do jornal O Estado de S. Paulo, de 3 de dezembro de 2012, analisa com muita seriedade. Vou reproduzir os trechos mais importantes. “O Itaú Cultural, instituto privado ligado ao Itaú Unibanco, recebeu permissão do Ministério da Cultura para captar R$ 29.898.227,71 por meio da Lei Rouanet, que concede incentivos fiscais para empresas que investem em cultura. O valor é um dos maiores da lista de 2012 e chama a atenção pelo fato de envol-

ver o banco mais lucrativo do Brasil. Ou seja: uma entidade cultural ligada a um grupo privado com formidável poder financeiro conseguiu generoso aval para obter o dinheiro necessário para seus projetos em 2013, oferecendo a parceiros igualmente poderosos – alguns deles integrantes do próprio Itaú – o direito de abater do Imposto de Renda parte de seu investimento. Não se trata de condenar o Itaú Cultural nem seus eventuais sócios, porque eles estão agindo estritamente dentro da lei. O problema é, justamente, a lei, cujas óbvias distorções demandam urgente reforma. Prometida reiteradas vezes pelo governo nos últimos anos, essa reformulação ainda repousa nos escaninhos do Congresso. Ainda que tenha falhas, a Lei Rouanet, de 1991, trouxe benefícios evidentes e tronou-se o principal meio de incentivo cultural no Brasil, graças à quase inexistência de mecenato e à esqualidez orçamentária do Ministério da Cultu-

ra. Para medir esse sucesso, basta observar os números: em 2003, foram movimentados R$ 430 milhões; no ano passado, os recursos atingiram R$ 1,3 bilhão; Mas voltando às falhas, para começar, mais de 70% dos produtores culturais que se candidatam ao benefício são deixados de fora do bolo – muitos por evidente limitação artística, mas outros porque são incapazes de competir, em condição e igualdade, com organizações culturais fortes e conhecidas do mercado. (...) Outra distorção importante da Lei Rouanet é que as empresas que aceitam investir nesses projetos culturais, muitas vezes financiando fundações privadas, não só abatem integralmente o valor do Imposto de Renda, como também podem associar sua marca ao evento, sem que o uso de recursos públicos fique suficientemente claro para a plateia. Trata-se de marketing gratuito, geralmente com grande visibilidade, uma vez

que boa parte dos projetos aprovados é protagonizada por artistas renomados e por grandes produções.” A UBE tem acompanhado a tramitação, na Câmara dos Deputados, de um projeto chamada Procultura, que prevê justamente que projetos considerados “viáveis” do ponto de vista comercial, isto é, que possam obter recursos e atrair público sem a necessidade de incentivos fiscais, sejam excluídos do mecanismo de fomento cultural. A decisão sobre essa viabilidade seria tomada pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, entidade do Ministério da Cultura, responsável atualmente por aprovar os projetos encaminhados. Vamos continuar acompanhando. O Estado precisa apoiar a literatura, a leitura e os escritores. Mas a lei atual parece estar destinada a apoiar empresas, e não a cultura. Joaquim Maria Botelho Presidente

EXPEDIENTE Diretoria da UBE (2012/2014): Jornal O Escritor – edição n° 131, abril de 2013 Publicação de distribuição dirigida para os associados da União Brasileira dos Escritores. Todas as informações podem ser reproduzidas, desde que citada a fonte. ISSN: 1981-1306 Conselho Editorial: Daniel Pereira Gabriel Kwak Joaquim Maria Botelho Luís Avelima Editoração: Luís Fernando Zeferino União Brasileira de Escritores Rua Rego Freitas, 454 - 12º andar, Vila Buarque. Cep: 01220-010 São Paulo - SP. Telefones: (11) 3231-4447/3231-3669 Site: www.ube.org.br

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Há 60 anos morria Graciliano Ramos, o autor alagoano que será o homenageado da Flip 2013, 11ª edição da Festa Literária de Paraty, que acontece de 3 a 7 de julho Roniwalter Jatobá

Em 20 de março de 1953, há 60 anos, morria Graciliano Ramos no Rio de Janeiro, vítima de câncer no pulmão. Nascido em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, Alagoas, Velho Graça, ou Mestre Graça, como o chamavam carinhosamente, é um dos mais importantes escritores da moderna prosa brasileira. Era o mais velho dos 15 filhos de um casal sertanejo de classe média. “Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buíque, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos”, lembrou o escritor anos mais tarde. “Ali a seca matou o gado — e seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrança de Amaro Vaqueiro e de José Baía. Na vila conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre José Ignácio, Filipe Benício, Teotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Marocas, minha professora, mulher de seu Antônio Justino, personagens que utilizei anos depois”. Graciliano fez os estudos secundários em Maceió, capital alagoana, mas não cursou nenhuma faculdade. Em 1910, foi morar em Palmeira dos Índios, onde seu pai era comerciante. Em 1914, após uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor, voltou à cidadezinha. A partir daí, começou a vida política e jornalística. Foi prefeito do município entre 1928

Heloísa, Graciliano e Pablo Neruda, durante almoço em casa do advogado Letelba Rodrigues de Brito. Foto de Zélia Gattai, Rio de Janeiro, 1952. (Imagem cedida por Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano e ex-diretor da UBE).

e 1930 e ali escreveu seu primeiro romance, Caetés. De 1930 a 1936, morou em Maceió, onde era responsável pela direção da Imprensa e Instrução do Estado. Foi nesse período que produziu os romances São Bernardo e Angústia. O primeiro é marcado pelo sentimento de propriedade que move seu personagem principal, Paulo Honório, cuja obstinação é tornar-se fazendeiro. Depois de alcançar seu objetivo, Paulo propõe-se a escrever um livro, narrando sua experiência, e, por outro lado, não consegue encontrar uma

justificativa para o desmoronamento de seu casamento com Madalena, que se mata. Já em Angústia conta-se a história de Luís da Silva, que é fruto de uma sociedade rural em decadência e carrega consigo nojo pelos outros e por si mesmo. Tímido, aproxima-se de sua vizinha, Marina, e pede-a em casamento. No entanto, surge Julião Tavares, o oposto de Luís da Silva, rico e ousado. Resultado: Marina é seduzida por Julião e Luís estrangula o rival. De acordo com os críticos, o clima de opressão do romance e o drama vivido por

Luís da Silva fazem do romance um estudo sobre a frustração. Em 1936, devido a suas posições políticas contrárias ao governo de Getúlio Vargas, Graciliano foi preso e deportado para o Rio de Janeiro. O escritor narra essa experiência no seu livro testemunho: “Memórias do Cárcere”. Solto, permaneceu no Rio, onde continuou o seu trabalho literário. Em 1938, escreveu sua obra-prima, Vidas Secas, onde se narra a história de uma família e sua cachorra Baleia perambulando pelo sertão nordesti-


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MEMÓRIA no, numa tentativa de fugir da miséria da caatinga tórrida e agreste. No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Graciliano Ramos já era considerado um dos maiores romancistas brasileiros. Nesse mesmo ano, ingressou no Partido Comunista Brasileiro. Segundo o escritor e professor Dênis de Moraes, Graciliano fez parte de uma geração de intelectuais que, após a derrocada do Estado Novo, mergulhou de corpo e alma na militância política, muitos deles filiando-se ao PC. A ideia de que, com a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, o mundo poderia ser repensado em bases mais igualitárias passou a identificar-se com as propostas socialistas. A missão social do artista consistiria em produzir obras e reflexões comprometidas com as causas populares. Dessas convicções partilhavam escritores como Graciliano, Jorge Amado, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Álvaro Moreyra, Dalcídio Jurandir, Dionélio Machado, Moacir Werneck de Castro e Caio Prado Júnior; e artistas plásticos como Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Scliar, Djanira, José Pancetti, Israel Pedrosa e Bruno Giorgi. Em 1951, Graciliano Ramos foi eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores - ABDE. Um ano depois, viajou para a então URSS (União Soviética) e visitou outros países socialistas, o que resultou no livro Viagem. Faleceu de câncer em 20 de março de 1953, aos 61 anos de idade, no Rio de Janeiro. Observação e vivência são presenças marcantes nos livros de Mestre Graça. A preocupação com os problemas sociais do povo brasileiro, especialmente do nordestino, foi sempre o traço primordial de sua obra. Assim, o escritor definiu a sua literatura à irmã Marili Ramos de Oliveira, aprendiz de ficcionista, em novembro de 1949: “Só conseguimos

Graciliano Ramos fundou a ABDE, entidade da qual a UBE se originou.

deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso, não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos” . Para o crítico Tristão de Athayde, Graciliano era “um homem íntegro e ficará na história de nossas letras como a imagem do escritor em sua mais pura expressão. Isto é, de homem e de obra incorporados numa mensagem e num exemplo em que a beleza estética da obra e a pureza moral do homem constituem um monumento perene em nossa cultura de todos os tempos”. O mandamento do escritor “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.

Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.” Exemplo de político sério Durante os anos de 1929 e 1930, Graciliano Ramos enviou dois relatórios sobre a sua atuação à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios ao governador do Estado. Ao ter conhecimento destes relatos, o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt suspeitou que o autor devia ter um romance na gaveta e manifestou desejo de editá-lo. Seduziu-o a linguagem nada burocrática, mas criativa e com “o fel da ironia”. Incluídos no livro Viventes das Alagoas, seus balanços administrativos (veja trechos abaixo) são exemplos de como o administrador deve ser honesto com o dinheiro público. “Exmo. Sr. Governador: Trago a V. Ex.ª um resumo dos trabalhos realizados pela prefeitura de Palmeira dos Índios (...). Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto,

quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o município se achava, muito me custaram. O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. (...) Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. (...) Não sei se a administração do município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior. Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram de inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.

Roniwalter Jatobá foi diretor da UBE em várias gestões. Um dos criadores deste jornal O Escritor.


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Segunda geração Ricardo Ramos, ex-presidente da UBE, é filho de Graciliano Ramos. O texto abaixo, O Nobel e o Cuco, foi publicado originalmente na Folha da Tarde, em 18 de outubro de 1984. Confesso que já fui torcida, mas agora não sou mais. Também assim não há quem aguente. O sujeito acompanha, se interessa, de certo modo participa, e não acerta uma, nem chega perto. Desisti: nunca mais vou tomar conhecimento de Prêmio Nobel. Vejam o que me aconteceu na semana passada e digam, com a seriedade que o assunto pede, se não é para cortar o barato de qualquer um. Eu lia o meu jornal da manhã quando vi a lista dos possíveis, ou dos candidatos, e logo parei na matéria, naturalmente querendo avaliar possibilidades, arriscar um palpite. Examinei os nomes, consciencioso feito membro de colégio eleitoral, e me decidi por Doris Lessing. Estava satisfeito com a minha escolha, porque admiro a inglesa (e tendo mulher eu prefiro), aí entra meu filho para discordar. Ele estuda na USP, claro que aderiu a Jorge Luís Borges. Argumentei que o argentino tinha tempo, podia esperar. Civilizadamente, naquele seu jeito ponderado de petista, ele parlamentou e chegou a Octavio Paz. Achei ótimo, saí em pleno clima de realismo fantástico. Na portaria do prédio, o funcionário de plantão me chamou às falas. Fiquei lá e cá, meio anglo-latino, mas o homem, um pernambucano afrancesado, foi taxativo: “Eu sou mais a Marguerite Yourcenar”. Considerei um voto bastante bom e fui comprar cigarros, certo de que o diálogo no bar seria difícil, pois o dono não se conforma com a ausência portuguesa do rol dos notáveis. Não deu outra: “Se não me premiaram o Fernando Pessoa, eu

pode confiar num bicheiro. Em acadêmico sueco, aquele tipo sombrio que atravessa filme de Bergman, já não estou seguro. Faz política, politiquice, e descaradamente. Remember Soljenitzyn. Eu, hem? Estou com um amigo, meio destrambelhado, mas que diz as coisas:  Se júri de Nobel fosse relógio de cuco, o passarinho saía de costas e perguntava as horas. Em inglês. cá não quero saber de pessoa nenhuma”. Procurei ser amável, afinal Pessoa estava numa excelente companhia: Joyce, Proust, Kafka. Mas ele, patrioticamente, ficou duro como beira de sino. Cumprimentei e fui embora. O meu trabalho me daria uma boa amostragem, ia pensando, a antecipar tendências e eventuais partidarismos. No entanto, por mais que me alargasse em imaginação, o resultado excedeu toda expectativa. O ascensorista declarou que seria um crime não homenagear Graham Greene, o contínuo pendeu fortemente para Norman Mailer, a faxineira revelou-se muito pelo terceiro mundo ao nomear Kamala Daz. Minha secretária, que é mulher previsível, ficou com Joyce Carol Oates, e a nova arquivista, loura e de óculos, com Nadine Goldimer. Só o meu chefe, mineiramente, não se resolveu. Limitou-se a lembrar que era fissurado em literatura russa, não podiam ter esquecido Tolstoi, Tchecov, Gorki e Babel. Escandaloso. Ainda passei no clube, conversei com a turma da bocha. O pessoal estava embalado, todo mundo ia de Moravia. Houve

um que veio de zebra, podia dar Buzzati. “Pode não, que ele morreu”, avisou um velho soturno. O depressivo acontece, mesmo nos círculos esportivos: alguém recordou o fato de que a Itália nunca foi lá muito cotada, principalmente na ficção. Onde estavam Silone, Pavese, Vittorini? Aí desceu uma baxeiração geral. Assim preparado, aguardei o veredito da Academia Sueca. E foi o que se viu. Jaroslav Seifert, tcheco, poeta. Dissidente na cabeça, de todos nós. Comentando a escolha, Jorge Luís Borges disse que o Nobel procura “não honrar as glórias, mas sim descobrir talentos”. O talento de Seifert esperou 83 anos para ser descoberto, no momento oportuno, como foi o caso de outros dissidentes dos governos do Leste europeu, russos, poloneses ou húngaros. O nosso Ferreira Gullar, perguntado, respondeu curto e grosso: “Jaroslav Seifert foi escolhido porque é anticomunista”. Eu, conforme declarei no começo, parei com o Prêmio Nobel. Creio que júri de escola de samba é melhor. Sofre menos pressão, está sujeito a injunções mais amenas. A gente

(A crônica acima pode ser considerada inédita. Faz parte de um livro de crônicas publicadas na Folha de Tarde, que deve ser lançado pela Editora Globo, com quem a família está em entendimentos)

Ricardo Ramos é filho de Graciliano Ramos. Foi membro da Academia Paulista de Letras e presidente da União Brasileira de Escritores.


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TRIBUTO

Terceira geração Ricardo Ramos Filho, ex-diretor da UBE, é neto de Graciliano Ramos. O texto abaixo, Blue, foi escrito especialmente para esta edição. A segunda amanheceu carrancuda. Não gosto de chuva, fico cinzento. Tomei o café em silêncio na padaria e sorri amarelo para a Margareth. No metrô, irritado com o aperto, escureci mais ainda. Muito também pela mulher empurrada. Berreiro de desaforos. Gritos me deixam roxo. O grotesco se aproximou. Um homem de uma perna só, muletas, tentou andar com o vagão em movimento. Não pode. Caiu em cima de mim, quebrou-me o guarda-chuva. Vermelhei. Cheguei ao ponto final. Blue. Almoço em silêncio mastigando sozinho as ideias. Senta-se em minha frente um senhor grisalho também desacompanhado. Apoia a bandeja sobre a mesa. Aperta os olhos franzindo o cenho e coloca as mãos na testa. Talvez esteja mal, cansado, alguma coisa doendo. Engano-me. Fica um tempo naquela posição. Os lábios movendo-se vagarosamente emitem pequenos e suaves estalos, delicados muxoxos. Termina a prece com um sinal da cruz distraído. Suspira profundamente livrando-se de boa quantidade de ar. Abre espaço para atacar o prato, subitamente interessado no feijão, talheres em punho. Abaixo a cabeça, olho desconfiado para a escarola refogada, carne assada ao molho, arroz integral, batatas coradas. Falta pimenta. Nós dois envelhecemos mal, São Paulo. Você acostumou-se a me chantagear e eu deixei. Fui ficando em troca do oferecido. Trabalho, família, amigos, sabe o quanto dependo deles. Mas estou cansado. Detesto andar por suas ruas com medo, gastar-me no trânsito, ter o ar me arranhando a gar-

ganta. Se eu pudesse, soubesse ser livre, estaria longe. As pessoas não mais são amáveis, perderam o humor, também se gastaram. Do que me adiantam pratos refinados, música de qualidade, ruas cheias de ipês coloridos? Nada disso vale se envelhecemos tão mal. Eu triste, você violenta. Manobra o carro. Estacionamento do supermercado lotado. Antes de descer observa-se no espelho retrovisor, aprova o que vê. Estica o braço e pega a bolsa. Enfrenta o burburinho com calma, poderosa, ignorando as filas. Para o carrinho aqui e ali. Abastece sem pressa. Atende o celular, conversa. Veste-se jovialmente, jeans e blusa curta, barriga quase à mostra. Jóias, perfume francês. Cabelos aloirados tingidos de forma profissional, maquiagem discreta na pele esticada por bisturi competente. O andar elegante equilibra-se sobre saltos de plataforma. Na seção dos dietéticos gasta mais tempo. Pão, adoçante, gelatina e barrinhas de cereais. Os olhos pintados passeiam confiantes e interessados, de rapina. Sorriem para o rapaz que corta os frios. Creme para o corpo todo e bronzeador fator de proteção trinta. Continua. O anel prateado faísca no polegar, dedos finos e esmaltados, vermelhos. Enquanto aguarda a carne no açougue atende outra ligação. Pequena borboleta no peito do pé direito tatuada. Latinhas de cerveja para completar. As filas espicharam mais um pouco. Apenas uma tem tamanho razoável, a dos idosos. Ergue a cabeça abrangendo todo o cenário. Um brilho estranho passeia por seu olhar, suspira profundamente, escolhe a menor.

Um casal de idosos aproximou-se e escolheu a mesa próxima. O senhor ajudou a companheira a sentar-se. Pegou um prato, dirigiu-se ao bufê. Solitária, quieta, olhar fosco, desinteressada do entorno, ela apoiava a mão esquerda de forma peculiar sobre a toalha. Parecia querer equilibrar-se, como se tudo ao redor pudesse mover-se a qualquer instante. Praticamente agarrava-se ao tampo de madeira, em um gesto tenso e pouco confortável. O homem, cabelos brancos bem aparados, retornou. Colocou, encurvado, o alimento em frente à senhora. Novamente retirou-se para servir a si próprio. Voltou logo. Então ela pegou com a mão direita, sem descuidar-se da outra, sempre rigidamente apoiada, um bonito pastel. Comeu vagarosamente, empertigada, sem demonstrar prazer. Quando terminou ficou imóvel, esperando. O velho interrompeu a própria refeição, cortou o bife em pedaços pequenos, abasteceu o garfo e levou até a boca da mulher. Discretamente observei aquele penoso ritual. Havia carinho entre os dois. Em dado momento percebi um quase sorriso acendendo os olhos opacos. Perdi o apetite. Levantei-me, paguei a conta e afastei-me dali. Apavorado. Ainda não conversara com o rapaz. No dia anterior parara em frente à porta do quarto. Ouvira o som vindo lá de dentro. Pesado como já não gostava. Preferia agora as guitarras chorando com mais harmonia. Baladas. A idade o aproximara do pop. Raramente ouvia os rocks antigos. Acabava sentindo aperto no peito, agonia sem explicação. Angustiava-se. Aqueles gritos cheios de ódio, o rufar

da bateria e os socos remetidos pelo baixo atingiam-no tirando-lhe o sossego, minando-lhe a paz interior, deprimindo-o. Pena. Certamente envelhecia. Dizer o quê? Ouvira a voz acompanhando o vocal. Voz de homem cantando em inglês. Cheio de erros. Palavras inventadas, simples imitação sonora do que mal conseguia entender. Nenhuma preocupação com o sentido do que era dito. Certamente não aproveitava o curso de línguas que estava pagando. Encheu-se de ternura e raiva. Parado, cerrou os punhos. Preparou-se para a batalha. A música vinda de dentro, porém, interrompeu o gesto de bater, fazendo com que estremecesse o corpo. De forma automática balançou-se sobre as pernas e fechou os olhos. Relaxando os membros superiores, deixou os braços formarem uma guitarra imaginária. Amplos movimentos cortaram o ar desenhando arcos de baixo para cima. Solista no palco dedilhou cordas invisíveis. Movendo a cabeça de um lado para o outro. Memória. Brown Sugar. Sussurrou baixinho cantando. Brown Sugar. Em silêncio. Para dentro. Indeciso. Tímido. De um lado para outro. Lembrando cada palavra da letra. O pescoço curvado para frente. Os cabelos que não tinha, e que já teve, cobrindo-lhe os olhos. Revoltos. Rebeldes. O transe esquecido recuperado. Marcado. O mesmo som que ouvia quando jovem. Brown Sugar. Tal pai, tal filho. Ricardo Ramos Filho é neto de Graciliano Ramos. Foi diretor da União Brasileira de Escritores.


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CRÔNICAS

O eleitor do político canalha FERNANDO JORGE

Eu ia atravessando o Largo de Moema quando ouvi: - Fernando Jorge, ó Fernando Jorge, venha cá! Olhei para o lado e vi numa calçada o cidadão que erguendo um braço me chamava. Ele é um advogado, meu ex-colega na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Pertencíamos à mesma turma. Achava-se ali, com vários amigos, a tomar chope. Aproximei-me e o cumprimentei. Esse ex-colega me disse: - Tome um chope, enquanto lhe faço uma pergunta. Respondi: - Não, obrigado, estou com pressa. - Mas posso fazer a pergunta? - À vontade. E o meu ex-colega quis conhecer a minha opinião a respeito de um político nordestino da Câmara Federal. Após citar o seu nome, ficou aguardando a minha resposta. Fui incisivo: - É um deputado desonesto. O meu ex-colega sorriu e afirmou: - Pois saiba de uma coisa, Fernando, eu sei que ele é desonesto, safado, ladrão, corrupto, mas mesmo sabendo disso, se na próxima eleição ele se candidatar outra vez, terá o meu voto! - Você está brincando. - Não, juro, e me sinto bem lúcido. Olhe, não pense que estou bêbado. De fato ele não estava no porre, só alegre. Resolvi despedir-me: - Até logo, divirta-se. Sentado na sua cadeira, segurou o meu braço e fez outra pergunta: - Antes de ir embora, diga o que pensa dessa minha atitude. Repito, sei que esse político é um canalha, um ladrão, mas se

ele se candidatar mais uma vez, terá o meu voto. - Vote em quem você quiser – repliquei – e com licença, já vou indo. - Imploro, não se vá sem me dar a sua opinião. - Eu já disse, vote em quem você quiser. Vote num camelo, ou num macaco, ou num papagaio, ou num poste de luz, ou numa lata de lixo... - Tenha paciência, Fernando, tenha paciência, apenas quero ouvir sua opinião. Olhei a cara do meu ex-colega. Ele exibia um cínico ar de desafio. Veio à minha cabeça este raciocínio: preciso dar uma lição neste fulano, da qual ele nunca mais se esqueça, nem que chegue a viver mil anos. Depois de pensar um pouco, soltei estas palavras: - Você me contou, há dois meses, que mora numa casa enorme, luxuosa, com oito quartos, e que em cada quarto você colocou um aparelho moderníssimo de televisão. - É verdade. E daí? - Você também me contou que no seu lar estendeu cinco tapetes persas muito raros. - Sim, é verdade, e daí? - Você me disse que tem lá uma adega com centenas de vinhos da melhor procedência. Vinhos franceses, espanhóis, portugueses, húngaros, italianos, alemães, todos bem velhos e caríssimos. - Tenho, e daí? Mas aonde você quer chegar? - Você me informou que pôs na parede de sua sala de visita um desenho de Portinari e uma pintura do Di Cavalcanti. - É isto mesmo, e daí? Caramba, que diabo, aonde você quer chegar? Fiz uma pausa, olhei gelidamente a cara do meu ex-colega, e conclui: - Agora preste atenção. Se em frente de sua casa parar um caminhão cheio de assaltantes, e se esses bandidos invadirem o seu lar, apropriando-se dos seus oito moderníssimos aparelhos de televisão, dos seus cinco tapetes persas muito raros, de

todos os vinhos bem velhos e caríssimos da sua adega, do seu desenho de Portinari e da sua pintura do Di Cavalcanti, você não poderá achar ruim ou protestar. Pelo contrário, você deverá até cumprimentar os ladrões e sentir-se feliz. Surpreso, o meu ex-colega indagou: - Por quê? - Você não pegou ainda? Então ouça: quem apoia um político ladrão, como você apoia, é a favor do roubo, e portanto se for vítima de um assalto, deverá até aplaudir esse assalto. Os amigos do meu ex-colega caíram na gargalhada e bateram palmas. Ele esbugalhou os olhos, meio tonto. Dei um tapinha no seu ombro e me despedi: - Adeus. Gravou na sua memória a minha lição? Fernando Jorge é jornalista, escritor e associado histórico da UBE

Castor ou Leandro? JOÃO BATISTA DE ANDRADE

O patrão teimava em chamá-lo de Leandro. E Castor corrigia, corrigia, corrigia. E de novo lá vinha o homem: “Leandro!”. Um dia Castor resolveu por fim àquele incômodo. Enfrentaria o patrão, mesmo sob o risco de perder o emprego. Quando pensou que o patrão reagisse com fúria, deu-se o inusitado. O homem ficou silente, sentou-se sobre uma pedra e, com dificuldade, os olhos lacrimejando, definiu a situação. Sim, Leandro era outro, um ex-empregado. E despencou os elogios: era simples, trabalhador, hones-

to, de confiança. Tanto que o patrão foi aumentando seu salário para acabar propondo a ele que se tornasse seu... sócio! - Mas o pobre do verdadeiro Leandro não resistiu: tombou ali mesmo, na hora, vitima de uma overdose de emoção. Pobre verdadeiro Leandro. Castor escutou, tentando decifrar as lágrimas do patrão. O homem era miúdo, a cara também miúda e sem graça. Mas era o patrão. E queria que ele substituísse o empregado perdido. “Chamar você de Leandro é uma honra para você, Castor”. Castor esperou, sabia que atrás dessa generosidade receberia uma proposta. “Seu coração, como é?”- “Meu coração é ótimo...”- “Então lá vai: quer ficar meu sócio?” Castor olhou em volta, tanto para fugir ao olhar insistente do patrão quanto para medir as consequências. Sócio de que? - o negócio não lhe parecia atraente, consertar velhos aparelhos de TV, muitos dos quais ultrapassados e que os donos nem apareciam mais para buscar. O salário lhe parecia melhor, mais garantido. Mesmo que o patrão continuasse a chamá-lo pelo outro nome. E depois, mudar de nome? - o nome que sua mãe escolhera com tanto carinho, depois de ver uma reportagem na TV sobre aqueles animais construtores... Não... Estava decidido a recusar. Até que seus pensamentos foram interrompidos por um grito irado do patrão: “E aí, Leandro, vai aceitar ou não?” Castor sentiu o peso da oferta. O homem agora parecia crescido, um gigante à sua frente. Talvez fosse melhor aceitar. E foi o que fez, achando até que “Leandro” não era um nome ruim.

João Batista de Andrade é cineasta, escritor e atual presidente do Memorial da América Latina.


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ENSAIO

Alguma ruminação sobre a verde pétala da poesia Uma resposta, inquieta, que provavelmente nem chegará até nosso futuro MARCO AQUEIVA

“Poeta, esporadicamente leio os seus livros”, registra Ferreira Gullar – provavelmente hoje o poeta vivo cuja reputação efetivamente transcende os limites da Poesia – as palavras de um mendigo que a ele se dirigiu. Ao contrário da figura pública, que é Gullar, há pouco tempo compartilhava-se a forte impressão de que poetas seriam apenas uma invenção verbal, reduzidos exclusivamente à dimensão do livro. Mas até onde o poeta pode reinar sem reino? Até a inanição absoluta? Outrora um poeta como Victor Hugo podia insuflar com versos o espírito de sua época, o século XIX, tão marcado por convulsões. Aqui entre nós, ao início do século XX, Olavo Bilac pôde gabar-se de dar ao poeta o status de profissão. Hoje há quem sustente que o poeta está inelutavelmente destinado a perecer e nem mesmo merece ser salvo, pois tem extrema dificuldade de dar uma finalidade à sua arte. Talvez não seja tão evidente assim a inexistência de salvação para o poeta nesta sociedade em que as consciências são domesticadas pelo mercado. A morte da Poesia já foi anunciada tantas vezes que, a menos que as leis da gravidade tenham de fato sido suprimidas, é bastante compreensível o desaparecimento dos poetas na trajetória da espécie humana. Dizer que a Poesia vem cada vez mais definhando a ponto de estar fadada ao de-

saparecimento, pois não tem lugar hoje, em nossa sociedade, etc. etc., seria o mesmo que afirmar que a humanidade prescinde da experiência artística. Em grande medida é uma burla dizer que a Poesia resiste solitária tanto no poeta publicado quanto naquele inédito que, invisível ao mercado, faz uso da tecnologia que o mercado proporciona, publicando seus poemas em blogues e revistas literárias virtuais. Parafraseando o autor de Poema sujo, a poesia existe vária e múltipla porque a vida não basta. É muito frequente ouvir que a Poesia é uma expressão literária restrita e que está sempre fora do alcance do leitor – fenômeno diferente daquele que ocorre com a prosa (ficcional ou não), em que determinados títulos alcançam hoje tiragens elevadas, da ordem de milhares de exemplares. Está certo: a Poesia rende acanhadas edições. Poucas chegam a quinhentos exemplares. São muito comuns hoje as edições de cem ou cento e cinquenta exemplares, custeadas pelo próprio autor. Indigno, como já ouvi de outro bom poeta. E tão mais evidente se torna a selvageria do fato quanto mais se observam as milhões de “protuberâncias” que se chamam livros circulando por aí, completou ele. Mas nada do que se reputa à História escapa à Poesia. Nesta, hoje se veem os resultados de tantos processos históricos, tantas tradições em conjunção, que a pluralidade de poéticas, linguagens e formas comprova que a Poesia existe e continuará existindo. A Poesia resiste,

Obus Furtivo, ilustração de autoria de Leonardo Mathias, capista de talento.

reinventando-se na carne viva da música popular brasileira. Polêmicas à parte, não consigo pôr simplesmente porta afora os compositores da MPB, aedos modernos, muitos deles poetas vigorosos, não apenas legítimos herdeiros dos trovadores medievais, mas também daquela tradição que se consolidou na lírica ocidental e que terminou por priorizar a dimensão lógico-representativa. “Onde queres o sim e o não, talvez // E onde vês, eu não vislumbro razão”,

como diria Caetano. Não, não sou Platão para excluir poetas, pois o que entendemos por real é ponto de encontro de tantas realidades que aquelas consciências dotadas de sensores auditivos e mentais mais sensíveis e afinados com a Poesia tendem a incluir nos paradigmas do poético manifestações linguísticas de alto valor expressivo. A despeito da censura dos censores de plantão, brota em canções a fina flor da Poesia, como nos dão provas Paulinho Moska e


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Jorge Mautner, Rodrigo Garcia Lopes e Vinicius de Moraes, Zeca Baleiro e Paulo Leminski, arriscando-me a citar apenas uns poucos exemplos que nesse momento me (s)ocorrem. A Poesia resiste, presente em gêneros textuais os mais distintos, não necessariamente literários. Na propaganda, ao fazer uso de determinados procedimentos e recursos linguísticos, a linguagem poética é instrumentalizada pelo publicitário. A prosa ficcional aproxima-se tanto da Poesia que a ousadia de alguns ficcionistas não é apenas recorrer à linguagem poética, é indagar pela linguagem nos limites do poder dizer e admitir entre o vivo e o vivido, a percepção da ausência para além de si, as palavras e o silêncio, que o que vemos é a Poesia resistência, sendo reinventada, reinterpretada e reincorporada na multipolaridade dos discursos que se constroem mais ou menos poéticos. Nesse sentido, dizer que a Poesia resiste enquanto fenômeno estrita e exclusivamente literário talvez seja negar que a palavra poética tem uma existência no mundo e que encarna demandas próprias e específicas não apenas da Poesia. Por outro lado, o leitor pode objetar que este raciocínio conduz à ideia de que a Poesia não é um domínio específico, sobretudo se esse leitor imbuir-se da condição de autoridade legisladora no assunto e detentor do saber institucional sobre o objeto que domina. Sociedade acostumada a superdimensionar o conhecimento científico e a especialização, não é de espantar que seja habitual o desprezo da universidade pela atividade crítica exercida por escritores e poetas. O que é espantoso mesmo é a dificuldade de encontrar leitores de poesia contemporânea entre doutores, especialistas em literatura, no meio acadêmico. Em texto recentemente publicado1, o professor e poeta Paulo Franchetti manifesta seu “desconcerto” diante do cons-

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trangimento de colegas – igualmente doutores em literatura, intelectuais com larga experiência de estudo e ensino – por não compreenderem a poesia contemporânea. Segundo Franchetti, enquanto a chave “mimética” dá em geral bem conta da compreensão da prosa e do teatro, a tonalidade “afetivo-expressional” da poesia costuma repelir o viés representativo, impondo ao especialista a necessidade de conhecer os parâmetros específicos do gênero lírico, notadamente os vetores da evolução da lírica, o que resultaria enfim na exigência insofismável de identificar no presente as marcas das diversas

A Poesia resiste, presente em gêneros textuais os mais distintos, não necessariamente literários. Na propaganda, por exemplo.

tradições à disposição e vivificadas pelo texto literário. Façamos justiça. Em época como a nossa, que reivindica a Liberdade, o campo eletromagnético da Poesia parece repelir quaisquer teorias e imposições, o que terminaria por resultar na equivalência “democrática” de todas as poéticas, formas e tendências poemáticas existentes se o direito ao exercício da Poesia neste emaranhado de agentes líricos cordatos fosse precedido pelo direito à diferença. Sim, a Liberdade que postula a pluralidade de vozes – vastidão e validade de todas as poéticas – é uma dessas boutades que não resistem à prova da realidade. Pois bem, a Poesia existe per se ou enquanto relacionada a um objeto? De um lado, a Poesia acolhendo errante um processo histórico formado por tantos veto-

res em conflito e orientações em conjunção: a forma mais convencionalizada das trovas confabulando com aquela mais conforme as raízes do lirismo mais autenticamente luso-brasileiro, junto à poesia participante na proporção inversa da experiência surrealista, perplexa travessia em que não se costumam esbarrar formalistas e repentistas, os “concretos” trafegando na mídia interativa e alternativa, haicaiistas e os “autênticos” líricos no fogo e fog do momento. De outro, o pesquisador, desnutrido das proteínas animais e carboidratos das teorias, temendo os desafios impostos pela leitura da poesia contemporânea. Sim, há mais: não deveríamos nos esquecer de culpabilizar a insuficiência das políticas públicas na área educacional, pois a educação é cúmplice da indigência do pesquisador, e assim talvez fôssemos levados a cair na perpétua lamentação dos feixes neuronais atrofiados e chegar à matriz de todo o problema: a corrupção... Mas não nos desviemos tanto! Por quanto tempo mais deveremos vergar o nojo pela morte da crítica universitária? Nos grandes veículos de comunicação, a crítica é coisa de espectros à espera da escuta do silêncio final. Mas se a responsabilidade da Escola é fator objetivo a considerar-se na identificação das causas da inópia da crítica universitária, é também ela Educação responsável pela formação dos leitores que, despreparados, se rendem ao Mercado com suas publicações relacionadas a receitas de saúde e felicidade barata. (E não é preciso esclarecer que o Mercado certamente não é um criminoso que age sozinho!) O leitor despreparado é sempre uma entidade acomodada que finge admitir o poeta, mas nega o poema (vide Facebook). Mas não nos voltemos contra o leitor: o poeta é o único termo da equação que no fundo sabe que o resultado da leitura de Poesia é o poema e que todo esse processo é uma ca-

deia de forças necessariamente associadas, admitindo-se ainda – como foi sugerido acima – a força do elo político, tão determinante é ele quando se trata da cultura. Talvez seja por isso que alguns poetas sentem mais profundamente que outros que exercer a poesia é uma “loucura”: além de ingressar em uma busca obscura na qual a experiência com a linguagem é muitas vezes não mais que circundar o oco às voltas de si mesmo, eles percebem-se convocados ao exercício de uma prática supostamente desnecessária às demandas do humano. Em consequência disso é que são ora solipsistas sem cura, deixando-se escorregar em direção à audiência solitária das sombras; ora reivindicadores da seriedade de toda a ação poética nas guildas e corporações de auxílio mútuo, algumas vezes póstumo. Fora e dentro destas duas posições, ainda restam estes e aqueles poetas vivos, músicos ou não, mera ficção de mortos vivos, confraria de fantasmas que se dão as mãos, seguindo o cortejo de vozes que, pela manhã ou à tarde, naqueles dias de indigência íntima, nos estendem suas vozes para nos levar a nenhuma parte onde possamos obter certa resposta por sua expressão. Um eco, inquieto, que provavelmente não chega – nem chegará até nós no futuro: a poucos, e tantos, metros, eis um abafado rumor que se fará nome: Poesia. Amanhã, talvez haja mais de que falar. NOTA: 1- Paulo FRANCHETTI. Notas sobre Poesia e Crítica de Poesia. Disponível em: <http://www.cronopios. com.br/site/ensaios.asp?id=5557>. Acesso em: 18 mar. 2013.

Marco Aqueiva é professor e escritor.


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QUEM PERDEMOS

O adeus a Scantimburgo, decano dos jornalistas GABRIEL KWAK

E partiu na madrugada de 22 de março o refinado jornalista, escritor e cientista social João de Scantimburgo (1915-2013), imortal da Academia Brasileira de Letras e nosso associado de número 46. Agora sim, acabou o velho São Paulo. Nascido em Dois Córregos (SP), titular de vasta cultura filosófica, sua vida é a história do “Correio Paulistano”, da extinta TV Excelsior, dos Diários Associados, do periódico “Digesto Econômico” (veículos que dirigiu), da Associação Comercial de São Paulo, da Academia Paulista de Letras, da Ordem dos Velhos Jornalistas... Grão-senhor de uma São Paulo que não existe mais...O recheio de muitos dos artigos assinados pelo todo-poderoso Assis Chateaubriand eram de João de Scantimburgo, segundo o próprio me segredou. Perguntei a ele em um dos muitos depoimentos que ele me prestou, porque Assis Chateaubriand e José Ermírio de Moraes brigavam tanto. E ele, que foi homem de confiança dos dois: “Porque eles eram dois cangaceiros!” Estive com ele algumas vezes na sua sala envidraçada no “Diário do Comércio”.... Era viúvo da condessa polonesa Anne Therese Lubowiecka, filha adotiva do príncipe Jorge Lubomirski e da princesa Anna Lubomirski. Esta era tia de Anna Theresa. “Eu me casei só depois que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a sentença do divórcio dela. Sentença de tribunal estrangeiro só o Supremo Tribunal Federal pode homologar”, contou-me Scantimburgo. Mesmo alquebrado pela avançada idade, o aristocrático Scantimburgo escrevia

diariamente seu artigo de fundo para o “Diário do Comércio” e por muito tempo foi o editor responsável pela “Revista Brasileira”, da ABL. Polímata, chegou a incursionar pela ficção publicando o romance “Os Olivais do Crepúsculo”, saudado com entusiasmo por Fábio Lucas. Foi o principal intérprete, no Brasil, do sistema filosófico do pensador católico francês Maurice Blondel (1861-1949), ao qual dedicou o livro “A filosofia da ação – síntese do blondelismo”. Era um um simpatizante do monarquismo e um apaixonado pela Côte d’Azur, na França, que frequentava com a esposa. Seu livro, “Memórias da Pensão Humaitá” é um dos livros mais charmosos que me foi dado conhecer. Ele se orgulhava: “É um livro lírico, nostálgico...” O historiador, bibliófilo e bon vivant Yan de Almeida Prado (João Fernando de Almeida Prado, no registro civil, 1898-1987) reunia em almoços aos sábados um grupo de amigos (entre os quais Scantimburgo) no seu casarão conhecido como Pensão Humaitá para cultivar a boa conversa, a boa mesa e a enofilia. Essa seleta confraria se manteve por mais de 40 anos, enquanto viveu Yan, dono de uma das adegas mais invejáveis de São Paulo, que chegava aos 3 ou 4 mil itens de alta casta. Quase todos os “pensionistas” eram versados em eno-gastronomia e tinham gosto refinadíssimo. Entre esses amigos contavam-se os irmãos Roger e Paul Arbusse Bastide, cientistas sociais franceses apelidados de “Bastidinho” e “Bastidão”; Monteiro Lobato, o colunista social Marcelino de Carvalho, o historiador Afonso de Taunay, o político e orador Alexandre Marcondes Filho, o editor de livros Octales Marcondes Ferreira, o alfarrabista Olynto de Moura, o “morgado da Villa Fortunata” René Thiollier, o prefeito Prestes Maia, o industrial Ciccillo Matarazzo, o jurista Miguel Reale, o crítico literário Leonardo Arroyo e o industrial Paulo Ayres Filho. João de Scantimburgo também é bastante lembrado por ter sido um dos sabatinadores do médium Chico Xavier numa célebre entrevista no programa “Pinga-Fogo”, da extinta TV Tupi. Não deixou filhos. Em vida, o acadêmico doou sua biblioteca à cidade de Rio Claro, onde viveu sua infância e parte da adolescência.

Marigê Quirino Marquini

A autora, que atuou como diretora da UBE entre os anos de 1990 e 1992, morreu no dia 20 de fevereiro, aos 77 anos. Poeta e ensaísta, trabalhava como advogada e como tradutora. Tem traduções publicadas em revistas literárias da Itália e outros países. Pertenceu ao Clube de Poesia de São Paulo. Escreveu, entre outros, “Balada dos Quatro Ventos”, “Diário de Bordo”, “Hierofanias: O Religioso na Lírica Feminina”.

Stella A. Rodopoulos

Djalma Bulhões

Cecília Blumberg Valente


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QUEM GANHAMOS

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LIVROS (Esta coluna foi integralmente preparada pela estagiária da UBE pelo convênio com o CIEE, Beatriz Esteves)

Marcos Mairton - 4258

Beti Martins - 4259

O zelador do céu e seus comparsas - Fábio Lucas - Editora Sarau das Letras. É um apanhado de tipos que o autor, ex-presidente da UBE, conheceu ou inventou. São personagens comuns, com histórias comuns, mas contados com uma verve e uma qualidade de linguagem que mostram por que o autor pertence às academias Paulista e Mineira de Letras. Velho comunista, exilado - nessa condição atuando em universidades dos Estados Unidos como professor -, Fábio Lucas traz um saboroso relato do que é a vida, na rua e na alma. Encontros com a crítica - Rodolfo Konder - RG Editores. O livro reúne artigos, comentários e depoimentos sobre as obras do autor, que Konder usa como pretexto para agradecer e homenagear os amigos e críticos literários.

Sirlene Cristófano - 4260

José Carlos Sibila - 4261

Dias de folclore e de cordel – Dias Scortecci. O livro de Dias trata das questões populares do folclore nordestino e enfatiza o capeta e a mulher como seus personagens centrais. “Falam do diabo, mas ele nunca fez nada de errado comigo, e a mulher dispensa comentário porque é simplesmente extraordinária.”, diz o autor. A lira de Orso Cremonesi – Mafra Carbonieri – Edições Haz. “ Muitos ainda lembram o seu nome: Orso Cremonesi. (...) Andava com giz no bolso do paletó e acreditava na análise sintática. Anchieta dos muros e das calçadas riscava no chão e nas paredes a lógica ou a magia das palavras.(...) A Lira é,a reunião de seus poemas dedicados a Maria de Povos, mulher de Gregório de Matos.”

Ricardo Viveiros - 4262

Newton Novaes Barra 4264

Zanoni Neves - 4263

Mônica de Souza Lopes - 4264

Cantoria de Conrado Honório – Mafra Carbonieri - Edições Haz. Para Mafra Carbonieri, “Conrado Honório espalha as suas letras na pauta de canções reais ou inexistentes, não importa, mas imaginadas para evocar - nas cordas afinadas - os ritmos do mundo. Decassílabos trôpegos, versos livres, outros nem tanto, ponteios, sugestões medievais, cadências que se supunham esquecidas. Aqui as epígrafes sempre se assemelham a placas de ruas. Caminha-se cantando, e é bom fazer isso.” O Homem E A Palavra - Alaor Barbosa – Editor Kelps. O livro se compõe de estudos literários, ricos em informações e reflexões sobre livros, autores e questões pertencentes a outras artes. Portanto, além de trazer úteis contribuições à compreensão dos assuntos que focaliza, ajuda a explicar a elevada qualidade das criações literárias desse respeitado autor. Imanências – Maria de Lourdes Alba - All Print Editora. Imanências é um conjunto de poemas cujo tema se volta para o cotidiano da vida do ser humano. Desde a estrutura do poema, a autora utiliza a palavra com perfeição, para estabelecer uma empatia entre a obra e o leitor.

Eduardo C. Manhães (Mestre Dado)-4265

Maria Ap. de Rezende Gaiofatto - Gaiô - 4266

O Menino e o Trio Elétrico – Cyro de Mattos - Editora Atual. A história do autor baiano trata pela primeira vez, na literatura infantil brasileira, do tema que aborda o carnaval baiano com seus famosos trios elétricos (que viraram hoje

coisa para turista e rico), e dos que não podem participar da festa. A Menina das Flores – Arine de Mello Jr – L. P. Books. Para Caio Porfíro Carneiro, “a originalidade primeira deste livro nasce do plano formal. A história vem ao vivo em surpresas inesperadas. Aproxima-se da vertente policial, do alegórico, do psicológico, do fantástico. Aproxima-se apenas. A realidade está presente, latejante, em enigmas vívidos e pulsantes ao correr de cada página”. Intorno alle ore – Maria de Lourdes Alba – All Print Editora. É uma versão para o italiano de poemas selecionados de vários livros da autora. Com o prefácio de Elio Giunta e posfácio de Caio Porfírio Carneiro, o livro trata de temas variados: cotidiano, amor, tempo e solidão, em versos suaves e carregados de sentimentos. De prazeres e vinhos – vinhos finos: bouquet homens inteligentes - Rubens Bonatelli Moni - Scortecci. Percurso de reconstrução histórica do prosaico e de enteléquias de historicidade de histórias de mundos, classes trabalho. A historicidade do poeta em conceptos e concepções de mundos globalizados mundializados... A personagem literária - Zilda de Oliveira Freitas - Editora Ponto da Cultura. Resultado da reflexão sobre os recentes estudos da personagem enquanto constructo narrativo, este livro procura definir a noção de personagem, a partir de várias épocas, autores e filosofias. Aborda a evolução da personagem na narrativa ficcional, estudando os recursos utilizados pelo autor para construir suas identidades ficcionais. Foco Narrativo e Fluxo da Consciência - Alfredo Leme Coelho de Carvalho – Editora UNESP. Escrito em linguagem acessível, com objetos didáticos, esta obra expõe criticamente as ideias a respeito deste tema, exemplificando- as com trechos de consagrados escritores brasileiros e estrangeiros. Não só propondo um olhar sobre a bibliografia obrigatória do assunto, como também convidando os leitores a revisitarem obras clássicas sob novos prismas. João Alfredo Domingues - Pau pra toda obra - Carlos Souza – Editora Òminira. Na história da família, o indivíduo se põe a reencontrar e refazer, de modo a tornar-se um elo forte na corrente da vida. A experiência do senhor João Alfredo Domingues é marcada por fé inabalável que ele tem em si mesmo. Ao longo do seu percurso, não hesitou em se jogar numa nova aventura sempre que isso lhe pareceu necessário, sem abdicar do papel de esposo, pai, irmão, amigo etc. Herói - Márcia Rodrigues Gonçalves – Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Terceiro livro da autora, editado em 2012. O livro é um momento de saudade, com diversos poemas: “A hora da poesia”, “Papel” , “Amigas” e outros. Em destaque, o poema principal e título do livro, “Herói”. Uma homenagem ao ator e diretor Bill Bixby.


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LIVROS Rainhas – Dirce Lorimier – Editora do autor. Este trabalho biográfico apresenta o retrato moral, físico e político de três soberanas e um quadro da época e do ambiente medieval. As rainhas ibéricas marcaram presença tanto pelo comportamento como esposas, ou amantes, como pelas atividades políticas. Remix e Sampling sob a ótica do Direito Autoral – Alan Patrick Ademir Mendes Bechtold – Editora do Autor. Esta obra é resultado de uma análise feita sobre a possibilidade de utilização de samples e a elaboração de remix de obras intelectuais, tanto pela ótica do ordenamento jurídico vigente quanto pelas propostas de alteração legislativa nacional, bem como uma breve incursão no Direito de outros países. Camargo Freire - O pintor da paisagem de Campos do Jordão – Pedro Paulo Filho - Editora Noovha America. Ninguém captou melhor do que ele a grande variedade de luzes e sombras, de cores e perspectivas da natureza da terra que lhe devolveu a saúde, a ponto de permitir que se olhe para um quadro seu e se diga: “Este é um Camargo Freire!” Esse livro nos revela a vida e obra desse maravilhoso artista, bem como as belezas da linda “Joia da Mantiqueira”. Corpo sem sombra – Sant’ana Pereira – Editora Cejup. O autor demonstra profícua vivência familiar, profissional, artística, e agora, mais do que antes, de revelar sólida espiritualidade forjada desde a religiosidade de infância transmitida pela ‘Vovó Chiquinha’, aperfeiçoada na adolescência franciscana, assentada no mais nobre dos sentimentos: o amor contagiante pelas criaturas, inspirado em Francisco de Assis. Espelhos partidos– Rodolfo Konder – RG Editores. Temos aqui um roteiro político, um longo percurso que envolve diversas emoções, um caminho difícil que levou o autor da certeza ingênua ao necessário ceticismo. É um texto que expõe décadas de intensa militância política - e pode nos ensinar muito. Sentir Amor! – Índio – Robério Magalhães - All Print Editora. Uma coletânea de poesias emotivas, líricas, narrativas nas quais o amor, Deus, Jesus, a natureza, o índio, a índia a beleza feminina... e a “musa inspiradora” são exaltados! Afinal de contas, um homem apaixonado é capaz de fazer qualquer coisa, inclusive escrever um livro inteirinho para homenagear a sua doce amada! O autor espera que ela se sinta a pessoa mais amada do mundo! Centenário de Jorge Amado (19122012) - Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus – Perse Editora. O Prêmio Literário Valdeck Almeida, no ano do centenário de nascimento do escritor Jorge Amado, fez a homenagem por meio de um concurso que selecionou redações, crônicas, artigos e poemas sobre a obra e sobre a vida de Jorge Amado. O resultado foi um livro com 64 autores, lançado durante a 22ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. O ferroviário - Palmiro dos Santos – Editora L. P. Books. No cemitério, os túmulos de Palmiro, Apolônico e Dirceu, um próximo ao outro. O pai, o filho e um espírito que não era tão santo como muitos o imaginavam, mas justiceiro,

sábio. A estação, aberta ao público de quarta a domingo, é belissima. Mas se alguém escuta risos, barulho de telégrafo, apitos, ou vê objetos se movimentarem sozinhos, não se assuste. Palmiro e a sua turma deverão estar passeando por lá. História Secreta do Brasil - 5º Império - O Milênio Universal – Cláudia Bernhardt de Souza Pacheco - Proton Editora. A tese contida neste livro é o resultado de quinze anos de pesquisa e trata da História que não nos foi contada nos bancos e nos livros das escolas, revela que desde sempre o ser humano esperou e trabalhou por um Mundo Novo. O Povo está pronto para essa reversão – porém os poderes, principalmente os do Quarto Império já moribundo, ainda resistem pois desconhecem aquilo que irá beneficiar a eles próprios. Um marinheiro do Brasil na 2ª guerra mundial - Verdades que a história ainda omite – Antonio Moreira Ferreira Editora do Autor. O objetivo do livro é mostrar a participação das três Armas no conflito, mostrar a traição dos navios argentinos contra os brasileiros, comentar os fatos que a história omitiu e falar um pouco do nosso testemunho e pequena participação durante 2 anos e mais de oito meses em operações de guerra em todo Atlantico Sul. Uma alma a procura de um corpo – J. C. Sibila - Editora LP – Books. Um jovem com dupla personalidade se vê aprisionado em um lugar que não consegue identificar. Sua única possibilidade de liberdade e descoberta, é viajar para o passado. Saudade – Ricardo Viveiros de Paula - Girassol Brasil Edições Ltda. Com linguagem envolvente e uma concepção aberta aos modernos laços familiares, o livro aborda o sentido da vida e sua finitude, além de conduzir reflexões sobre outros temas importantes como o valor das relações afetivas, perdas e luto, tornando-se uma leitura obrigatória para toda a família. A vida conta histórias - Antologia Literária, 3a Edição - Litteris Editora. A vida me conta histórias, desejos e devaneios, fatos do dia a dia, verdades que, moldadas por autores tão excepcionais, viram uma simpática ficção, pronta a nos encantar e a terceira fase do III Prêmio Litteris de Cultura, com certeza, será uma grata alegria para aqueles que esperam que a vida lhes seja generosa, contando boas histórias. 500 Poesias sem fronteiras – Lilia A. Pereira da Silva – Editora do Autor. No princípio, o eventual encontro com poesias estrangeiras que emocionou a autora as fez traduzir as poesias pelo mero prazer de acompanhá-las. Com as poesias acumuladas veio a idéia de compilá-las. Não como uma antologia tradicional. “São talentos sem fronteiras: invadem-nas, pertencem ao mundo”. Portanto estas poesias pertencem ao horizonte. O náufrago e a linha do horizonte: poesias – Ana Luiza de Almeida Ferro – Scortecci. No livro os versos da autora revelam o toque de sonho da mulher, o timbre firme da jurista e o tálamo polinizado de uma alma cheia de paixões. A sua poesia, parece buscar, nas sutilezas da forma, a sua genealogia: música e feminilidade. A autora explora as possibilidades poéticas da figura emblemática do náufrago diante da linha do horizonte, em meio às vagas do oceano.

Recôncavo em contos - Cosme Custódio - Editora Taba Cultural. “Um Recôncavo grandioso, imponente e inescrutável”, como afirma o autor, é o que se vê neste livro de contos de personagens varonis, encantadores, mas, como diz ainda o autor, ‘ maior terá que ser a razão. Se a sensibilidade sobe à flor da pele, mais arguta terá que ser a inteligência’”. Fernando Ribeiro de Barros: o conquistador de Paris - Joaquim Cavalcanti de Oliveira Lima Neto -Litteris Editora. Neste livro, vemos um homem que ainda vive na lembrança de muitos que souberam de sua passagem, sobretudo na França, onde marcou sua vida entre amores e ciúmes, sempre vividos de maneira intensa. Rua Taboão – Nege Além – Scortecci. Em linguagem literária bem apurada, o autor põe de pé uma personagem em poucas linhas. O livro presente, mostragem nova de textos anteriormente publicados, espelha como livro novo que é, dentro do seu universo criador de arte escrita. Crônicas de minhas flhas Ângela e Veridiana da Gru, musa do Jardim Nazaré e de outras mulheres da minha vida – Joaquim Cavalcanti de Oliveira Lima - Edicon. O autor, nesta obra, homenageia as mulheres de sua vida, desfiando os relacionamentos com cada mulher que foi essencial em sua existência: parteira, ex-esposa, filha, parente, amiga, professora, autoridade, escrevente, cliente de seus serviços de advocacia, colega, estagiária, vizinha, namorada etc. Traços e Compassos – Organizado por Miriam Salles – Editora Pimenta Malagueta. Nesta antologia, livre de rígidos compartimentos conceituais e disciplinares, o leitor vai descobrir leituras gratificantes que o levará a percorrer horas esquecidas a viajar sob ideias e ideais revolvidos por autores vários de estilos diferentes. Um salutar convívio de palavras clássicas, plásticas, sonoras abertas às janelas da juventude sempiterna da poíesis. Carta ao Presidente - Brasileiros em busca da cidadania - Carlos Souza Editora Ómnira. É, na verdade, uma carta à presidente Dilma Roussef e demais políticos brasileiros. O organizador, com vários companheiros, congregou-se em torno de uma visão geral do Brasil através de artigos sobre as questões fundamentais do país. A Ficção Distópica de Huxley e Orwell – Alfredo Leme Coelho de Carvalho - Editora Cultura Acadêmica. Livro escrito como tese de doutoramento em razão de uma ideia da orientadora do autor, são ensaios críticos que revelam os perigos das utopias, mesmo que estas se dêem no universo ficcional.

lucionário.

Márcio o Guerrilheiro – Antonio Pedroso Junior - Publit Soluções Editoriais. Neste livro, temos a oportunidade ímpar de mergulhar não só nos fatos conjunturais que nos remetem aquela época, como também questões internas polêmicas do próprio movimento revo-


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O ESCRITOR

NOSSA GENTE

Segredos de Betty Milan

DEONÍSIO DA SILVA betty milan

S

em nunca passar dos limites que a relação impõe,

Um dia, à sua maneira, ele me disse: “Eu sou seu filho, mas não sou mais o seu filho pequeno”. Disse isso e se afastou. A fim de torná-lo presente e me certificar de que nada justificaria uma ruptura definitiva, escrevi esta carta, me perguntando quem fui e como poderia ter sido. Aprendi que cuidar pode ser sinônimo de se separar e entendi por que ser mãe é uma arte.

na nossa vida com rosas vermelhas e um ‘enfim, três’ no bilhete do buquê. Está guardado com os outros que eu recebi”. O número três junta-se aos dois que o geraram, mas nem isso é usual no Brasil, desde os tempos do Descobrimento, quando foi inaugurado um outro tipo de brasileiro, sem pai e sem mãe, descuidado na roça, antes, e nas ruas, agora. Não é à toa que a frase “sem pai e sem mãe”, expressando um afastamento inexplicável, pois vem de onde menos se espera, entrou para o arsenal de expressões significativas, nascidas deste abandono: “Nós perpetuamos uma tradição perversa datada do Descobrimento: “Engravidou? Deixa nascer. Nasceu? O que tenho eu a ver com isso?”. (...) São os filhos que ninguém quis, os filhos do gozo. Isso, obviamente, só muda se a lei mudar”. Carta ao filho retoma a opção narrativa epistolar, tão fértil em tantas literaturas, trazendo verdades partilhadas, como a de que a água do amor nos é dada em mais de um copo. Algumas perguntas persistem. Afinal, qual será a reação

carta ao filho

O romance Carta escreveao sobrefilho, a sua vida recusando a de Betty Milan, sentimental, é também proibição secular de não falar sobre isso com os fiepístola ou encíclica dirigida lhos e apostando na possibilidade deles escutarem. a todos nós. Ela abre o coração ao filho e, porUmeio dele, m texto arrebatador em que há uma reflexão soa nós também; desarruma e arbre a mãe e a mulher, inteicalcada no vivido ruma de novo os ramente sentimentos da autora. Do nascimento maturidade, passando de mãe, em vez deà apenas repela formação com Lacan latar, revelando aoemfilho o que Paris e a volta para um Brasil que ela descobre, o ele sabe, o que julgava e Brasil de saber Joãozinho Trinta e Gilberto Freyre. o que jamais saberá, se não ler do tabu de que a este romance, poisLéivrenarrativa boa mãe é infalível, Betty repleta de inconfidências. Milan comunica essa libertação ao leitor. Acompanho a literatura da psicanalista e escritora há décadas. Nunca a vi nem a senti mais terna, nem mais aguda, mais sagaz, garimpando nas palavras os modos do amor. Do amor pelo filho, pelo marido e pelas outras pessoas às quais verdadeiramente ama, aí incluídos os familiares e amigos de longo convívio. Podia dizer: é um amor comovente. Mas, não, preciso usar o plural: são amores comoventes esses amores ora repostos para exame e balanço. Este estranho masculino de balança também lida com dois pratos ao mesmo tempo, na busca do equilíbrio, seja sentimental, seja financeiro etc. O romance é narrado em blocos intercalados, não segue uma estrutura linear, o que afasta qualquer possível monotonia. À p. 74 , a mãe diz com toda a simplicidade como foi o nascimento, ato inaugural do filho no mundo: “O rosto crispado e a pele manchada pelo sangue da placenta, você era ainda um pedaço de mim. E, para todo o sempre, o sangue do meu sangue. Eu, que já te amava no meu ventre, te amei mais ainda e te dei o primeiro beijo, aquele que significa você é meu filho, e eu, sua mãe”. E fala ao filho sobre o pai dele: “Seu pai primeiro entrou

CARTA

AO FILHO ninguém ensina a ser mãe

do menino, hoje homem, ao ler que o pai foi diretor de um cassino na Côte d’Azur? À p. 80, o passado, talvez inconfessável, vem à tona: “Imagino seu pai de smoking, um uísque na mão esquerda e um cigarro na direita, circulando entre as mesas ou atento ao jogo, olhando os que corriam o risco de se arruinar para existir”. O périplo iniciado na França, com o namoro, na década que mudou tudo no mundo, termina também na França, quando, viúva, ela acompanha o féretro do marido, que sucumbe a um câncer de pulmão num hospital de Paris: “Se fôssemos capazes de imaginar o futuro, não viveríamos. Ficou a fotografia de um belo alsaciano de terno escuro e gravata listrada em cima da mesa onde escrevo”. Que filho privilegiado esta narradora tem! Ela abre as entranhas da alma, para que ele entenda suas inconfidências e também para saber não de onde veio, isso ele já sabe, mas como veio. À hora do nascimento, quando o médico arranca do útero um menino de quatro quilos – a mãe já estava vinte acima de seu peso normal –, ela lembra nesse co-

movente memorial que “quem gritou foi você, mas podia ter Qsido ue mãe eu”. sou eu, se pergunta Betty Milan neste Ser mãe dói, e esta dor é livro. Como poderia ter um dos maiores prazeres da evitado os erros que cometi? existência de qualquer mãe mundo. Mãe é masoquisDnoeixando-se norteUm escreve tema que só poderia ar ta? pela pergunta, para o filho e rememora a ter sido destrinchado pela férhistória dos dois a fim de til aliança da literatura com descobrir a resposta. Pera psicanálise. Ainda que os cebe que não se reconhece escritores em nenhum modelo de tenham chegado maternidade. Conclui que, ao inconsciente antes, a psipara ter uma conduta adecanálise trouxe as novidades quada, a mãe precisa escutar o filho. Afirma que indispensáveis de outro olhar não existe modelo de mãe quando lhes passou a fazer e mãe modelo também não. companhia. Autora de romances memoráveis, como O Papagaio e o Doutor, Consolação, O amante brasileiro, A paixão de Lia e O clarão, já traduzida para o francês, o espanhol e o mandarim, ela se destaca no panorama da atual literatura brasileira com uma obra referencial também na psicanálise e no teatro. É uma de nossas intelectuais mais completas, com uma vivência internacional que a fez desvincular-se de paroquialismos estéreis, dando à obra uma dimensão universal. Seu grande tema, como para todos os grandes escritores, é a condição humana, vivida em tempos e espaços específicos, matizada pela cor local, mas com as antenas apontadas o mais longe possível. Carta ao filho vem compor um dos pontos mais altos de sua prosa, conciliando temas controversos e sofisticados numa linguagem entendida por todos os leitores, dos quais não exige requisito algum, a não ser o de lhe dar atenção por algumas horas. Vale a pena perder estas horas.

Deonísio da Silva é escritor e professor universitário. Foi vicepresidente da UBE.


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UBE

O ESCRITOR

ABRIL, 2013

ENTREVISTA

Literatura e brasilidade

Às vésperas de completar 93 anos, preparando mais um romance (“Um tal de Zé”), a romancista e folclorista que ocupa a cadeira número 22 da Academia Paulista de Letras nos recebeu para falar sobre literatura regionalista JOAQUIM MARIA BOTELHO

Ruth Guimarães é mulher de fôlego. Autora de vasta pesquisa folclórica (“Os Filhos do Medo”, “A saga de Pedro Malazarte”, “Lendas e fábulas do Brasil”), um romance aclamado pela crítica (Água Funda), livros de contos, peças de teatro, centenas de crônicas, também assinou dezenas de traduções do francês. Sua festejada tradução de “O asno de ouro”, de Apuleio, diretamente do latim, é atual tema de estudos na Universidade Federal de Minas Gerais. Escreveu, a quatro mãos com Bernardo Elis, “O mundo caboclo de Valdomiro Silveira”. Nesta entrevista, ela nos fala de literatura e brasilidade. Escritor – Uma parte da crítica literária tem dito que a literatura regionalista está superada. A senhora concorda com isso? Ruth – Depende do que eles acham que é literatura regionalista. Se é o registro do falar errado, está cada hora mais viva... Escritor – Mas o que é então a literatura regionalista? É a literatura com traço rural? Ruth – Não. É a literatura com traço das cidades pequenas. Escritor – Portanto, a literatura que trata das periferias, não é regionalista, é urbana. Ruth – É, sim. É urbana. Escritor – O que caracteriza a literatura regionalista, além dessa ambientação? Ruth – É a educação. Existe uma educação brasileira, uma somatória de cultura. O regional é a cultura das fazendas, mas não da roça. E é caracterizada por uma cultura brasileira,

Ruth Guimarães: a escritora em dois tempos.

que vem da tradição familiar. Valdomiro Silveira, por exemplo, escritor considerado o pioneiro da literatura regionalista, pesquisou muito bem os textos, observou os tipos, verificou a maneira de ser do brasileiro autêntico, aquele que não tem nenhuma distorção causada pela educação formal. Obteve um resultado fiel em “Os Caboclos”, “Mixuangos”, “Mucufos”, “Lereias”. Mas tem uma coisa: Valdomiro Silveira não é caipira. O pensamento dele é o pensamento do intelectual brasileiro. Não quero dizer que a educação seja maléfica, mas ela distorce aquilo que é característico da cultura popular. Escritor – O que a senhora viu na obra de Valdomiro Silveira? Ruth – Vi que a obra dele é uma obra postiça. Não achei o brasileiro ali. Encontrei um registro, mas a história viva, a pessoa viva, o personagem vivo, não estão lá. Isso não é mau, mas não podemos dizer que seja regionalista. Escritor – E Graciliano Ramos? O que dizer desse escritor regionalista, da geração de 45,

à qual a senhora também pertence? Ruth – Em “Vidas Secas”, Graciliano apresenta Fabiano, um brasileiro em estado puro. O autor apresenta o personagem, mas não se apresenta. É um observador. Em “São Bernardo”, Graciliano apresenta outro tipo, que é o fazendeiro, personagem de cidade pequena, imbuído da cultura das fazendas. Novamente, o autor é apenas observador. Veja só, os tipos são caracterizados pela linguagem e pelo pensamento. E não pela linguagem errada, mas pela linguagem típica. O registro certo da linguagem típica. Escritor – Então a senhora discorda do trabalho de Amadeu Amaral? Ruth – Mas claro! Escritor - Amadeu Amaral recolheu o falar caipira e o registrou como ouvia. Em que a senhora discorda desse trabalho? Ruth – Porque falou a cultura caipira. O modo de pensar do autor não é o modo de pensar do caipira. Escritor – Mas o caipira não escreve livros... Ruth – Não. Mas ele conta.

Escritor – Então, quem conseguiu recuperar, resgatar, anotar a cultura brasileira? Ruth – Alvarenga e Ranchinho... (risos). Falando sério, o escritor que conseguiu isso foi Cornélio Pires, com personagens como Joaquim Bentinho, o mentiroso. Escritor – Essa autenticidade não fez de Cornélio Pires um escritor de primeira linha, porém. Ruth – Não. Ele é realmente um escritor de segunda... O que não quer dizer que ele não seja fiel. Escritor – Então a literatura regionalista tem que ser mais fiel à língua e ao pensamento. Como chegar a essa pureza? Ruth – O escritor precisa ser uma pessoa do povo, que vive o que o povo vive, e que tenha burilado sua linguagem a ponto de ser capaz de transmitir com fidelidade e apuro linguístico a maneira de pensar e de viver do homem do povo. Eu sou caipira. Eu vivi a cultura da cidade pequena, e contei uma história (no romance “Água Funda”, de 1946) que respeita o pensamento e a linguagem caipira. E não só isso, mas respeitando a maneira do caipira de contar uma história, a sua maneira de pôr a linguagem. Escritor – A senhora diz, portanto, que Guimarães Rosa criou uma coisa que não é a literatura regionalista. Ruth – Justo. Escritor – O que ele criou? Ruth – Guimarães Rosa criou uma ópera. Ele criou a ópera dos acontecimentos caipiras. Com extrema qualidade. Ele está fora, acima de qualquer classificação, porque é genial. A literatura dele é muito boa! Foi andar a cavalo pelos


ABRIL, 2013

sertões de Minas e ficou chocado com a vida que encontrou lá. E produziu o que, na minha opinião, é o grande livro dele: Sagarana. Grande Sertão: Veredas, ele inventou – é um grande experimento linguístico e até filosófico. Mas Sagarana, ele viveu. São duas obras de qualidade, mas diferentes. Para efeito desta nossa conversa sobre regionalismo, o livro é Sagarana. Guimarães Rosa ficou subjugado por aquela força que vinha da terra e das pessoas da terra. Escritor – A senhora tem acompanhado autores contemporâneos? Ruth – Passou da moda fazer literatura regional. Não tem ninguém fazendo. Escritor – Isso é ruim? Ruth – De certa maneira é, sim, porque nós precisamos dos escritores regionalistas. E não vejo nenhum aparecendo. Tem muita gente fazendo a crônica das grandes cidades, a literatura urbana. Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo estavam fazendo uma pesquisa da cultura brasileira. E estavam ambos no caminho certo. Mário de Andrade foi parar no Macunaíma, mas ele vinha de fora dessa cultura, inclusive com uma formação europeia. Então, ele chegou ao Macunaíma, um livro muito bom, tão grande quanto Sagarana, mas com a mesma identidade: um escritor genial se aproveitando de uma coisa nova. E gente percebe logo que aquilo não é ele, mas é recolha, é garimpo. Um material que ele burilou com uma linguagem e um tratamento intelectual que se colocam em plano diferente de onde está a cultura brasileira pura. Mas ele fez Macunaíma. Ninguém mais faria. Escritor – E J. Simões Lopes Neto, dos “Causos de Romualdo”, “Cancioneiro Guasca” e “Contos Gauchescos”? Ruth – Ele é mais fiel. É regionalista, tanto quanto Cornélio Pires. J. Simões Lopes Neto é o brasileiro que se revela. É o que estamos precisando: a cultura brasileira. Onde está ela? Onde podemos buscá-la? Qual o escritor que traz isso pra gente? Escritor – Qual escritor traz isso pra gente?

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O ESCRITOR

- (pausa) Ruth Guimarães, em “Água Funda”. O velho Amadeu de Queiroz, um crítico severo da turma que se reunia na Farmácia Baruel, na década de 40, marretava tudo o que lhe levavam para ler. Ele viu os originais de “Água Funda” e não achou nada para modificar no meu livro. E eu, agora, 70 anos depois da publicação, leio novamente e não veja nada que possa ser tirado de lá. Ali está o Brasil. Porque eu sou caipira. Escritor – Dê um exemplo. Ruth – Num trecho, eu dizia isto: “Antigamente, isto aqui não era assim. Quero dizer, era e não era.” Ele questionou. Mas seguiu a leitura. E decidiu que não precisava mudar nada no texto, porque ficou dito

acostumados a viver, não? Ruth – José Lins do Rego e José Américo de Almeida também foram regionalistas, mas apenas observadores. Rachel de Queiroz, por sua vez, viveu um cataclisma: a grande seca de 1915. Foi um fato de tamanha gravidade que ela precisou contar. E se revelou conhecedora do tema, e foi a voz daquela catástrofe. De maneira certa, colocou a seca como a catástrofe brasileira. Mas ela não viveu outro desastre dessa magnitude. E não conseguiu contar outra história. O Quinze ficou sendo o único grande livro dela. Escritor – Na seara das novidades literárias, podemos lembrar de Autran Dourado, com o romance sinfônico. E de

No lançamento de “Água Funda”, em 1946, ao lado de Lygia Fagundes Telles e Guimarães Rosa.

o que era e o que não era. Escritor – Quem mais podemos citar como esse espelho do brasileiro? Ruth – Jorge Amado. Podemos discutir a sua qualidade linguística, claramente abaixo da genialidade de Guimarães Rosa, mas as suas obras são um retrato da brasilidade. Escritor – E os nordestinos que também fizeram a chamada literatura regionalista, como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, também cobriram as porções de terra onde estavam

Osman Lins, com o seu Avalovara (cujos originais ele enviou em 1972 para que a senhora fizesse a primeira leitura). Ruth – Osman Lins foi um bom amigo, e um escritor inteligente. Como Autran Dourado. Mas não fizeram escola. Escritor – Por que a literatura regionalista não tem mais charme hoje? Por que ficou sufocada? Ruth – Porque não tem mais regionalismo, hoje. Todo mundo vai para Frankfurt. E aí? Quem fica para fazer a literatura brasileira? Quando eu

15 comecei a escrever, mocinha do interior que veio para São Paulo, fui procurar gente com quem pudesse conversar sobre literatura. Falei com jornalistas, como Cid Franco, Emir Macedo Nogueira e Fernando Góes. Falei com falei com médicos, como Osório César. E principalmente escritores. Procurei Mário de Andrade. Eu estava escrevendo “Os Filhos do Medo” (o primeiro que produzi mas o segundo que publiquei – “Água Funda” acabou saindo antes). Mário de Andrade leu os originais e desancou o meu livro. Ele tinha uma noção aguda da linguagem. E era pela linguagem que se faziam – e se fazem – os escritores. Se ele não tem uma linguagem brasileira... Não essa do “vamu lá”, “nu entorno”, essas bobagens, porque a linguagem do brasileiro não é essa. A linguagem brasileira é muito mais antiga, muito mais firme e muito mais literária. O brasileiro tem um ritmo que é aprendido em casa. Quando pomos uma criança no colo e brincamos de “serra, serra, serrador, quem serrar é meu amor”, estamos ensinando ritmo. Até sem saber, estamos ensinando ritmo. O nosso ritmo, que tem que estar na nossa literatura. Escritor – Mário de Andrade viu o livro, depois de publicado? Ruth - Não. Voltei a trabalhar no texto e só o publiquei em 1950. Mário já tinha morrido. Mas o livro tinha melhorado muito com as observações dele. Escritor – Não podemos desconsiderar que o português brasileiro é contaminado por muitas outras línguas. Ruth – Pois é. E daí? Qual o papel do escritor? Ele tem que tirar todas essas “sujeiras”. Escritor – Mas, em certos lugares do interior do Nordeste, é usual exclamar “vaute”, palavra francesa que quer dizer diabo. Isso está incorporado e o escritor não pode ignorar. Ruth – Sim. O escritor não deve ignorar o uso. Mas há uma coisa que o escritor é obrigado a fazer: o registro da vida. E a vida está aí.


16 NOTÍCIAS

UBE

O ESCRITOR

ABRIL, 2013

Novos acadêmicos

Renata Pallottini é imortal da Academia Paulista de Letras. Ex-vice-presidente e atual conselheira da UBE, foi eleita com expressivo número de votos para ocupar a vaga deixada por Hernâni Donato, também nosso associado histórico. Poeta, dramaturga e prosadora, tem várias peças teatrais encenadas e publicadas e recebeu vários premios por suas obras literárias; destaca nesse setor o Premio Molière, o Premio Governador do Estado, Premio Jabuti e Premio Anchieta , para Poesia e Teatro. Recebeu ainda vários premios por traduções de Teatro.

Antonio Luceni foi eleito para a Academia Araçatubense de Letras. O Diretor da UBE ocupa a cadeira nº 15, cujo patrono é Carlos Aldrovandi, primeiro diretor da Faculdade de Odontologia de Araçatuba/Unesp. Tem dez livros publicados e é personagem atuante no cenário cultural e literário de Araçatuba.

Alberto Slomp e Yara Regina Franco ingressaram, na condição de acadêmicos corresondentes, na Academia de Letras de Goiás – ALG. A cerimônia de posse ocorreu no dia 9 de março, na cidade de Goiânia-GO. Após o evento houve um jantar de confraternização.

Alberto Slomp também tomou posse, em janeiro deste ano, como membro Correspondente da Academia de Letras e Artes de Fortaleza.

Antonio Ventura tomou posse na Academia Ribeirãopretana de Letras. Eleito para ocupar a cadeira número 11, que tem como patrono Luiz Gama, sucede ao acadêmico Moisés Tractenberg. A posse do poeta e juiz aposentado teve uma atração especial: a presença da cantora Veronica Ferriani, interpretando o Hino Nacional brasileiro e o Hino a Ribeirão Preto. Após a solenidade, o poeta recepcionou amigos e convidados com coquetel nas dependências do Teatro Municipal de Ribeirão Preto.

Emília Goulart também foi eleita para a Academia Araçatubense de Letras. Ela pertence ao Núcleo de Araçatuba da UBE. É contista, cronista e romancista. Entre antologias e coletâneas, tem os seguintes livros publicados: Essa nossa gente (contos, 2004), Diário de Vó Lina (2011, romance) e Descaminho dos Anjos (2012, romance).

Emília Goulart e Antonio Luceni serão empossados na mesma data, ainda a ser marcada.

Rita de Cássia Amorim de Andrade, da UBE seção Rio Grande do Norte, tomou posse na Academia de Letras e Artes de Fortaleza-ALAF, com o título de Membro Correspondente. O evento foi realizado no dia 26 de janeiro de 2013, e foi presidido por Ariza Souza.


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