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D'América Imagem Latina
América Latina
D'Atnérica ltnagetn latina
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Ma bel de Faria Melo*
Informação x Manipulação x participação. Recepção x interlocução. Esses são alguns paradigmas sobre os quais muito se discute atualmente no campo da comunicação.
O debate é matizado pelos "efeitos d iaból icos" da comunicação de massas, que transformou o planeta numa aldeia global povoada de antenas metálicas que aprisionam idéias, obscurecem vontades e escamoteiam medos e necessidades.
Neste contexto insere-se também o vídeo popular na América Latina, que surge como alternativa a este gigante invisível que através da sua luz colorida e sonora nos torna cada vez mais pobres em histórias surpreendentes. Como diz Walter Benjamin, a arte de contar história está no fim, ela foi suplantada pela era da informação, cujos "fatos já nos chegam acompanhados de explicações"', que se impõem a quem os recebe como os intérpretes da verdade, inquebrantável e única.
Durante seus primeiros tempos, o vídeo popular é a expressão da revolta a este estado de coisas, e se propõe fundamentalmente a contar a história que não é contada, a mostrar real idades que são tidas como inexistentes e a dar voz aos emudecidos pelos meios dominantes.
É nessa trilha que começa a crescer o movimento de fazer vídeo popular alternativo em nos-
sos países. Vários grupos munidos de equipamentos mínimos partem para esta aventura 2 , aprendendo no fazer e descobrindo as formas de criar. E é precisamente essa diversidade e esta busca criativa que virão fortalecer posteriormente o movimento de vídeo latino-americano. Alguns pressupostos levam os realizadores de vídeo a aprofundar sua relação com os setores populares que buscam atingir e a refletir sobre seus objetivos e seus processos de produção.
O compromisso político desses videastas com os setores populares levou-nos a desafiar com nos. sos instrumentos e com idéias, nossas e das camadas organizadas da população, uma conjuntura social e política, na qual os governos consideram as classes populares como parceiros-fantasmas ou cidadãos de segunda categoria.
Impôs-se como tarefa fundamental aos comunicadores populares resgatar, através de imagens e depoimentos, a trajetória de lutas e a dignidade desses setores populares. Ao vídeo popular alternativo passamos a atribuir o papel de ser muito mais que alternativo aos meios massivos por considerá-lo instrumento daqueles que trabalham com a perspectiva de transformação social de nossos países. O foco da discussão, antes centrado na questão da cultura popular x cultura de massas, passa a recair sobre o contexto político global no qual o vídeo popular se insere, sem necessariamente desprezar o primeiro questionamento. Questionamento este pautado pela lógica não comercial das produções e pelo seu caráter educativo, cultural e político.
De imediato isso traz grandes desafios, muitos deles não respondidos ainda, que vão desde a apropriação tecnológica de equipamentos nem sempre adequados aos usos propostos até a necessidade de aprofundar uma reflexão sobre as mediações que estamos criando para interpretar as percepções e experiências desses sujeitos.
De uma maneira quase unânime, os realizadores de vídeo popular afirmam que a velocidade da produção e utilização do vídeo não é acompanhada de forma satisfatória de uma reflexão sobre suas experiências. Poucos já adotaram como prática a avaliação permanente de suas experiências e difusão de suas conclusões.
Parte disso decorre do fato de que, apesar dos precursores do vídeo popular virem de campos do conhecimento da comunicação, a produção alternativa toma corpo e assume a dimensão de instrumento de expressão dos valores e da memória popular, quando incorpora no seu interior a participação daqueles que não detêm essa bagagem espec ífica 3 e, principalmente, dos próprios atares sociais. Vemos o caso do Chile, por exemplo, onde o vídeo é produzido majoritariamente por instituições de
Se por um lado esta conformação trouxe alguns problemas em relação à qualidade técnica e ao desenvolvimento da linguagem, por outro ela representa a essência do vídeo popular, e aponta a orientação e o papel que queremos imprimir em nossa ação de comunicadores populares. Os modelos de produção e as formas de utilização em vários países da América Latina nos permitem concluir que o vídeo popular tem seus alicerces na dimensão educativa, e como tal ele é entendido como um instrumento de comunicação participativa e horizontal. Mesmo no Uruguai, onde não existe uma produtora que se dedique exclusivamente a produzir vídeo educati\(o, as produtoras estão fazendo-o, de uma forma ou de outra.4 Ele surge em nosso continente como resultante das demandas e necessidades dos movimentos organizados de base, e nunca anterior a elas, mas sim como realimentador destes movimentos.
O vídeo popular vem reforçar a luta democrática dos setores de base em conjunturas de transição política, como é o caso do Peru e Brasil, por exemplo. Toma seus primeiros contornos como instrumento. de reflexão coletiva a aglutinação de forças oposicionistas ao regime militar chileno, e aos setores dominantes no Uruguai. Ou ainda, como resgate cultural, através do vídeo antropológico que é produzido na Boi ívia, concebido e realizado com a participação dor. quechuas aymaras.
É dentro desta diversidade que o vídeo popular significa um meio na construção da identidade social e cultural em cada um de nossos países. Mas, constatar a riqueza desta diversidade não basta. Ela deve necessariamente conduzir-nos para uma reflexão sobre os distintos processos de produção e as formas de difusão e utilização que nossos produtos estão empregando. Isso implica, fundamentalmente, analisar como estão se constituindo as relacões entre os realizadores e os atares sociais que qu.eremos retratar.
Mesmo considerando que as informações e análises sobre este tema são bem escassas, nos arriscamos a afirmar que apesar de grande parte dos grupos e entidades produtoras ter como pressuposto metodológico a participação dos representantes das comunidades em todas as fases de realização do vídeo, isso ainda não é uma realidade e só foi alcançado por poucos. Dentre esses, é conhecido o trabalho dos videastas do grupo Ohana, na Boi ívia, com os camponeses aymaras, cujos vídeos são fruto de uma decisão coletiva do tema, do trabalho técnico e dos atares dos aymaras. Bem como os vídeos do Equador, onde os destinatários fazem parte do grupo que discute o tema, traça os objetivos, trabalha na produção e participa na avaliação. 5
Observa-se que muitos grupos já alcançaram uma etapa deste processo, como Calandria no Peru, Ecos no Chile e Cimca na BoHvia, e caminham em direção à concretização de seus objetivos. Mas, boa parte da produção que chega aos setores populares e que retrata a sua problemática ainda é constituída das produções que não tiveram a sua participação; embora . tenham como objetivo fundamental estimular o debate e a reflexão coletiva por parte do público, tanto sobre ele mesmo como sobre sua realidade.
Sem desconhecer a importância de cada uma dessas produções e iniciativas, diríamos que isso decorre basicamente de três fatores, que são na verdade três grandes desafios. São eles a necessidade de romper a exterioridade da equipe realizadora frente às comunidades; avançar na capacitação processual e permanente das comunidades para que esses sujeitos possam ter elementos e conhecimento que permitam uma relação de troca e uma qualificação da produção; e, por fim, criar e consolidar um trabalho de difusão e intercâmbio das produ· ções, com uma metodologia pautada na interlocução.
O trabalho cotidiano mostra que a superação destes problemas está intimamente relacionada à luta pela democratização da comunicação e, mais amplamente, à democratização da sociedade. Mas, mostra-nos também que isso faz parte de uma aprendizagem que passa por trabalharmos as nossas próprias contradições. Muitas vezes idealizamos o popular, mitificamos os movimentos e não reconhecemos os conflitos aí tão presentes. Jorge Delgado, do Peru, observa que esta forma populista de abordagem do popular, e que muitas vezes está presente em nossos vídeos, que se expressa em "roteiros c.om textos e diálogos 'paternalistas', 'orientadores e fáceis"', faz com que "embeleze' mos o atraso e a miséria", que no tratamento dado à trajetória dos setores populares eles sejam vistos sempre lutando, nunca rindo ou cantando, e principalmente nunca se equivocando6 • A explicitação desta prática, tão transparente no tratamento dos sujeitos, é um dos primeiros passos para avançarmos em nossa relação com os movimentos populares. E, de uma forma geral, os produtores brasileiros, peruanos, bolivianos, chile· nos, enfim, latino-americanos, têm claro que é necessário se buscar novas formas de aproximação do popular, participando do seu cotidiano e aprendendo sua vida, reconhecendo seus projetas individuais, suas aspirações pessoais e seus pesadelos.
Os avanços, alcançados em direção à materialização desta concepção, refletem-se na qualificação da produção atual e no tratamento dado ao trabalho de difusão, que hoje constitui uma das grandes batalhas daqueles que fazem vídeo popular. Na maior parte dos países, a produção de vídeo popular ainda circula de modo esporádico e é consumida setorialmente, atingindo as organizações de base que foram retratadas e/ou participaram da produção.
Num breve panorama dos países, vemos que tanto no Equador como no Uruguai não existe uma circulação organizada da produção. Para alcançar as organizações sociais e educativas, alguns grupos no Uruguai adotaram a prática do empréstimo de equipamentos de exibição.
No Peru e Chile, também não há uma ação coordenada dos produtores para a distribuição e difusão, sendo que no Chile ela pode ser feita através de assinaturas (Teleanálises), convênios com instituições ou empréstimos diretos pelas produtoras.
Apesar de na Bolívia a circulação dos programas educativos ainda estar reduzida a circuitos reduzidos na área urbana 7 , já existe um movimento entre os grupos e entidades para organizar e ampliar essa difusão, impulsionado pelo Movimento do Novo Cine e Vídeo Boliviano. Iniciativas como esta, ou como a da Videored do lpal, no Peru e da Associação de Vídeo Popular- ABVP, no Brasil, já possibilitam um alcance mais diversificado do público e um intercâmbio maior entre os destinatários e realizadores.
Cabe destacar que todos os grupos de vídeo popular latino-americanos concebem a recepção das produções como uma intervenção criativa e coletiva por parte dos públicos, e um momento de expressão e desenvolvimento de suas capacidades. Nesse sentido, privilegia-se a exibição em pequenos grupos fechados, onde o material pode ser discutido e apropriado.