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CINEMA X VfDEO POPULAR
O contraste na representação das itnagens
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Este conjunto de textos sobre a linguagem do vídeo popular pretende discutir as diferenças entre o vídeo, a televisão e o cinema e, desta forma, resgatar a identidade do vídeo popular.
As entrevistas com Manfredo Caldas e Eduardo Coutinho extrapolam este contraste de linguagens e, como realizadores, tecem uma crítica lúcida e emocionada do vídeo popular. No texto final o vídeo é contextualizado, primeiro, na nossa época, e segundo, nos movimentos sociais, levantando questões como forma de contribuir no avanço da reflexão sobre a linguagem do vídeo popular.
Cena do filme "Uma questão de terra"
A dramaturgia popular e a poética das idéias
Entrevista com Manfredo Caldas, documentarista, realizada por Alberto López Mejía.
Proposta - Focalizando a questão da linguagem, no documentário, tem uma vertente na qual (a meu ver) você se insere, que valoriza o foco narrativo no próprio sujeito da ação, evitando ao má· ximo a "interferência" do autor; isto, além de ser uma proposta estética é também uma postura política. Como se coloca esta problemática na trajetória do teu trabalho? Manfredo - O cinema está no meu sangue; este fascínio vem desde criança (meu pai era fotógrafo amador) e me lembro das primeiras vezes que assisti filmes em que em vez de olhar para a tela, olhava para o projeto r, a luz que saía, aquele mistério, aquela coisa mágica. Depois, na adolescência, começo a perceber o cinema mais criticamente, passando para um estágio de refletir sobre a própria realidade. O que mais me marcou na minha formação foi o documentário (no começo da década de 60 o documentário era muito forte no movimento cineclubista da Paraíba) e, principalmente, o documentário paraibano (o qual nasceu do jornalismo; a base do cinema paraibano é o documentário) e o Neo-realismo Italiano; estas duas influências têm a ver com o que eu faço
hoje que é colocar a minha ferramenta de trabalho, que é o cinema, a serviço das minhas preocupações de documentar e trabalhar os grandes dramas humanos.
Em 68 eu tive que, infelizmente, sair da Paraíba e migrei para o R i o de Janeiro e daí eu começo a desenvolver um trabalho documental sobre a migração interna (afinal eu também era um migrante) e realizo o primeiro filme (no Rio em 74) sobre a feira de São Cristóvão: é um simples registro, uma tentativa de dialogar com aquelas pessoas, mas tem uma interferência narrativa (eu faço um texto-comentário) e é o único que tem isso. A partir daí continuo desenvolvendo a questão da migração interna. Em 77 faço o segundo filme sobre uma família de paraibanos que mantém aqui no Rio uma manifestação popular do Nordeste chamada boi-de-reis (bumbameu-boi). Esse filme é uma tentativa de analisar as relações de trabalho (no RJ) e o folguedo (da Paraíba). O mestre Zé Felix (que narra o filme todo em off, intercalando as apresentações e as festas) faz questão de dizer que realiza o folguedo autêntico e não se dá conta das modificações, se contrariando ao afirmar que, na Paraíba, o boi-de-reis não tem hora para terminar e aqui no Rio eles fazem apresentações de 30, 40 minutos (em escolas, praças, etc.); ou seja, modificou sua estrutura, porque no Nordeste acontece espontaneamente em algumas épocas do ano e fora do Nordeste se apresentam quando são solicitados.
No terceiro filme (de 79) eu tento rever, repensar o documentário paraíbano (era época de anistia e ao mesmo tempo se comemoravam 20 anos desse documentário). Procuramos (V alter Carvalho - fotógrafo paraibano - e eu) resgatar os autores mais importantes e situar o cinema paraibano no contexto da cinematografia brasileira. Nós somos da segunda geração do cinema paraibano e não procuramos fazer uma tese, mas repensar o que é esse documentário 20 anos depois. São os autores que narram o filme (é estruturado a partir dos depoimentos deles e das cenas dos filmes); não é um filme isolado e sim se incorpora dentro .do próprio ciclo que retrata.
Em 83 retornei à Paraíba me propondo começar a documentar os conflitos de terra no Nordeste tendo como ponto de partida a Paraíba (é uma constante no meu trabalho os fortes vínculos com a Paraíba, suas problemáticas e os valores culturais) e começo a produção de Uma Questão de Terra o qual terminei agora. No meio da produção surge outro filme: Nau Catarineta que é um folguedo popular praieiro, onde, mais uma vez, o filme é estruturado a partir das pessoas que fazem esse folguedo (estivadores, pescadores, etc.), de analisar e equilibrar a fantasia e a realidade (nos depoimentos do filme essa diferença é muito sutil). Concluindo este filme retomo Uma Questão de Terra tratando dos problemas da violência no campo e, em termos de linguagem, talvez seja o filme que se aproxima mais do meu ideal cinematográfico, porque é um filme em que procuro trabalhar com os elementos presentes no registro da filmagem (a realidade está mais inteira); eu não interfiro (no processo intelectual da montagem) com um texto comentado, eu trabalho com o depoimento das pessoas e procuro dar o recado com os elementos sonoros e visuais que colhi no momento da filmagem. É evidente que há uma interferência no momento em que você enquadra aquela realidade, mas o que me interessa é trabalhar com a dramaturgia natural ou popular; é tentar captar, numa relação de troca que é estabelecida durante a filmagem, a expressão mais espontânea do povo. A minha interferência não aparece na tela e sim essa ação espontânea das pessoas se expressando, dialogando e debatendo idéias.
"Uma questão de terra" Proposta - Resgatar a dramaturgia popular é se inserir na realidade como ela é: seu cotidiano, sua linguagem ... Manfredo ... É uma questão de postura; porque postura é linguagem. Não chegar naquele mome1oto de filmar sendo o dono da verdade, com as coisas preconcebidas; a realidade é muito mais forte do que se imagina. É preciso ter coragem e uma certa humildade de dialogar com isso; você estabelece realmente uma troca, um diálogo: você sabe quais são tuas ferramentas de trabalho, assim como é preciso saber o que aquelas pessoas com as quais você está trabalhando têm a dizer e captar o que tem de mais expressivo. O compromisso do documentarista é com a poética; não devemos fazer teses e sim levantar questões; um filme não encerra nele mesmo soluções mas, principalmente, visa ampliar as discussões. E uma obra aberta. Em Uma Questão de Terra, por exempio, a gente sabia o que não queria, mas o que a gente queria estava descobrindo no próprio processo de realização. É uma questão de investigação da poética da realidade e este é o grande desafio e o mais fascinante.
Proposta - Você se insere e capta uma realidade, depois expressada nos teus filmes e esta expressão se destina a um público. Esta devolução ou retorno, vista não somente como uma questão de mercado mas do ponto de vista político, coloca a relação entre a produção e utilização.
Manfredo - Em todos os meus filmes tive esta preocupação com o retorno exibindo-os nos lugares em que foram realizados; é onde o filme se completa. O diálogo com os "personagens" se dá antes, durante e depois da produção (o diálogo se completa na exibição). Embora estes personagens ou atares sociais sejam os principais destinatários (pois são eles que estão discutindo de forma mais viva as problemáticas abordadas nos filmes) não são o único "públicoalvo". Esta relação com a devolução tem a ver com a própria linguagem: quanto mais abrangente você é na tua abordagem é também mais amplo o público que você pode atingir.
Proposta - Você é essencialmente um cineasta, mesmo quando faz vídeo; como você vê a diferença entre o cinema e' o vídeo?
Manfredo - No cinema você tem mais tempo de elaboração; no vídeo, pelo próprio imediatismo do processo técnico (da resposta imediata) -e é por aí que a gente deve tomar partido de uma nova linguagem - resulta num certo relaxamento na elaboração. A reprodução imediata do vídeo é uma faca de dois gumes: por um lado possibilita entrar mais intensamente na própria realidade embora, por outro lado, pode ser banalizada se reduzindo a um mero "espelho" de autocontemplação. Uma nova linguagem no vídeo implica em se apropriar da reprodução imediata como um processo de aprofundamento na elaboração, resgatando o diálogo com os participantes nessas exibições imediatas após cada filmagem. Proposta - O vídeo, de fato, comporta um paradoxo: ao mesmo tempo em que é mais acessível (e isto é politicamente importante no vídeo popular porque permite a sua expansão) e introduz novos recursos (como a reprodução imediata), por outro lado tem uma tendência a se banalizar - por ser fácil de operar e conseqüentemente não exigir grau de elaboração - (é pouco sutil enquanto instrumento).