Revista da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas — OBOD em lĂngua portuguesa
Fevereiro 2018
obod.com.pt
EDITORIAL
Unidade na Diversidade
FÁBIO BARBOSA
Propriedade: © 2018, Zéfiro – Edições e Actividades Culturais, Lda. ISSN: 2183-9255 Depósito Legal: 419 013/16 Esta obra não pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo à excepção de excertos para divulgação. Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.
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epois de termos comemorado os 300 anos do Renascimento Druídico, parece que, mais que nunca, a nossa comunidade questiona as suas origens, a sua identidade e o seu contributo particular para a renovação do mundo. Pelo menos, se da nossa prática ainda fizer parte o "amor de todas as existências". Num movimento que no século XVIII começou judaico-cristão e hoje reúne pagãos, ocultistas e naturalistas à mesma mesa, em que magos da Tradição Ocidental e reconstrucionistas medem incompatibilidades entre si, é com agrado que reunimos nesta Ophiusa olhares diversos sobre os afluentes que juntos correm no leito da mitopoética celta. Nestas páginas, há espaço para comparar visões com o Sanatama Dharma sobre a Idade actual, entender como a cosmovisão celta influenciou a cultura cristã maioritária ou recordar como os números, matéria-prima de Tudo, foram para os Antigos uma alavanca para uma compreensão profunda do Espírito. Tudo isto com os pés bem assentes em ambos os lados do Atlântico e com os braços abertos para outros ramos da Tradição, como o Colégio Internacional de Estudos Celtodruídicos, cujo lançamento da revista Keugant merece os nossos parabéns e votos de sucesso. Só a escuta humilde das vozes múltiplas que o Awen insuflou na nossa matéria humana nos permitirá tecer um movimento de diversas crenças e práticas, vigilante contra a apropriação, mas firmemente uno no seu propósito. ■
Director: Alexandre Gabriel Editor: Fábio Barbosa Concepção gráfica e paginação: Fábio Barbosa Imagem de capa: The Lady of the Lake, por Mariana Rosa Scarpa
Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas
Colaboram neste número: Alexandre Gabriel, Agostinho Veras, Ana Simões, Joel Marteleira, José Alexandre Frazão Matos, Lúcia Nascimento, Mafalda Cancela, Marcelo Paschoalin, Marisa Boëchat, Maria José Jacinto.
Morada: Zéfiro, OBOD, Apartado 21, 2711-953 Sintra, Portugal Telefone: (+351) 91 48 48 900 E-mail: obod@obod.com.pt Website: www.obod.com.pt
Responsável pelo curso de Druidismo em língua portuguesa: Alexandre Gabriel
ÍNDICE
Da Reversão na Era da Inversão p.4
O Cristianismo Celta — Parte 1 p.8
A magia dos números, da vida, dos ciclos e da Mãe Natureza p.11
Uma visão transoceânica do Imbolc p.15
A esperança no Imbolc p.17
No Bosque Sagrado p.18
EISTEDDFOD AL M ANAQUE T R Í A D E
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p.20 p.24 p.27
2 Apoie a Ophiusa tornando-se assinante e receba a revista em primeira mão! assinatura anual (4 números): Impressa: 20 € (+portes) Online (PDF): 8 €
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O ph i us a fe v ereiro 2018
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Reversão Da
na Era da
Inversão
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por ALEXANDRE GABRIEL
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mundo em que hoje vivemos tem uma relação com o tempo diametralmente oposta à que tinha num passado mais remoto. Hoje em dia tudo impele para o imediato: uma qualquer pergunta tem de ter automaticamente uma resposta; um qualquer desejo tem de ser automaticamente saciado; uma qualquer vontade tem de ser automaticamente satisfeita. Contudo, esta imediatez – com todo o seu potencial libertador – na maior parte das vezes não nos liberta, mas sufoca. Sufoca porque nos distrai no mundo das aparências, em que o parecer toma o lugar do ser. Esta imediatez está, assim, muito longe do instante – do não-condicionado, da pura presença, que, esta sim, nos faz tomar consciência da nossa liberdade original e primeira. Esta imediatez não é única, não é saudável, não está em harmonia com a nossa natureza. Deixa-nos “fora de ritmo”, dessincronizados. Mal um estímulo surge, a nossa mente dispara e persegue-o, como um burro vai atrás de uma cenoura. Este processo repete-se inúmeras vezes no nosso quotidiano, ainda que dele não nos demos conta. Um dos sintomas desta “parasitagem mental” é a falta de energia vital, energia essa que é desperdiçada em infrutíferos pensamentos e emoções que “vão e vêm”, sempre atraindo a nossa atenção, e que pouco a pouco nos vão dilacerando o nwyfre (energia vital), deixando-nos debilitados. Esse entupimento
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da força vital, ao nível da emoção e do mental, corta a ligação serpentina que existe entre o espírito e o corpo – ou entre o alto e o baixo, numa linguagem hermetista – não deixando o espírito alumiar o corpo, nem o corpo elevar o espírito. Pensemos na origem da palavra hermético, que vem de “fechado”, “encerrado”. Sem uma circulação ourobórica da energia – interna, em circuito fechado, sem fugas – sempre ocorrerá uma dissipação e uma diluição da mesma. Este modo de vida frenético e citadino não aceita a ausência de estímulos, não aceita a ausência de ruído, neles aprisionando a nossa consciência. Rejeita o silêncio, o recolhimento e a contemplação activa, para onde uma paisagem natural como uma montanha, uma planície ou o mar serenamente nos reconduzem. E esses são exactamente os melhores portais para nos afastarmos do mundo do artifício e aproximarmo-nos do mundo natural: uma caminhada num bosque, numa montanha, junto do mar, silenciosamente num espírito de reverência pela sacralidade da existência, religando-nos à nossa verdadeira essência e recarregando-nos energeticamente através do influxo telúrico serpentino do nwyfre, que desponta no mundo natural. Ao caminharmos exteriormente, caminhamos também interiormente, procurando reconhecer as periferias para delas nos podermos libertar, para assim reencontrarmos o Centro
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do Labirinto. Contudo, também este processo é ilusório, também este labirinto não existe na realidade. Ao chegarmos ao Centro e tomarmos consciência de que somos o Centro e dele nunca saímos, assim o labirinto por nós criado se dissolve. Sempre aqui estivemos e daqui nunca saímos, do lugar sem espaço, do tempo sem tempo. Simplesmente deixámos de nos identificar com os objectos, com as situações, com as falsas noções de eu, onde o Eu Sou se deixava diluir, encantado pelo fenómeno. A tradição hindu diz-nos que a humanidade se encontra no Kali Yuga (“Era de Kali”), contudo esta Kālī não se trata da conhecida consorte de Shiva (o “Destruidor”), mas antes representa o demónio Kali com o mesmo nome. Kali Yuga é assim a Era da Inversão, Era do Vício ou Era Negra, e representa o último de quatro ciclos cósmicos, no qual se assiste à progressiva degenerescência espiritual da humanidade, regida pela casta dos comerciantes. Contudo, este é também o período de charneira que permitirá à humanidade franquear o portal para a Era de Ouro que se avizinha – e que segundo alguns sábios já entrámos –, e que no Ocidente é geralmente referida como sendo a Era de Aquário. e num passado não muito distante (até poucas dezenas de anos atrás), o acesso à informação era extremamente difícil, hoje em dia é extremamente fácil. Se no passado era difícil encontrar o que quer que fosse relacionado com determinadas matérias espiritualistas e iniciáticas, hoje em
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dia existe uma tão grande profusão de informação sobre as mesmas, que se torna difícil perceber por onde começar e o que escolher. A falta de algo é tão mau como o excesso de algo, o equilíbrio encontra-se, como dizia o filósofo grego Pitágoras, no “meio termo justo e bom”. Porquê almejar mais do que o suficiente? Porquê querer mais do que o necessário? Se antes se “perdia tempo”, pela escassez, até encontrar algo, agora “perdemos tempo” a filtrar, no meio da sobreabundância, algo que seja realmente válido e relevante para a Demanda. A posse de informação não implica o seu conhecimento. O seu conhecimento não implica a sua sabedoria. Só a experiência directa permite a absorção real da informação e a sua transformação em conhecimento. Só do amadurecimento autêntico desse conhecimento se poderá um dia extrair a sabedoria. Só o tempo permite essa destilação. Não há atalhos, mas podem existir catalizadores.
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a via druídica trabalhamos com o awen, com a inspiração, mas não podemos ordenar a descida dessa
inspiração em nós, pois a sua fonte está para além de nós, mas podemos apelar a ela. Na tradição cristã refere-se que “o Espírito Santo sopra onde quer”, ou seja, não quando e onde a nossa vontade humana quer. O nosso trabalho assemelha-se então ao trabalho do agricultor, que pacientemente sabe “a esperança da colheita reside na semente”. Escolhemos a terra certa para a semente certa, regamo-la, eliminamos as invasoras que poderiam impedir o seu crescimento e, muito simplesmente, cuidamos dela. Contudo, ainda que façamos tudo ao nosso alcance, existe sempre um factor de imprevisibilidade para a eclosão da semente que está para além do nosso trabalho. Para esse despoletar age uma força superior, que podemos chamar de Awen ou Graça. Sem o trabalho certo, dificilmente germinará a semente, mas ele, por si só, não chega. Porém, essa constatação não deverá servir para nos aquebrantar, mas antes para nos estimular à prática perseverante.
significa literalmente “deus em mim” ou “inspiração divina”. O entusiasmo é uma luz interior que contrasta com o estado passivo de adormecimento do “cadáver adiado”. É uma marca do despertar e da presença. É um sinal de manifestação do awen, da força criadora e criativa. Na tradição céltica galesa encontramos referências aos awenyddion de outrora ou, por outras palavras, aos inspirados. Se o nwyfre (força vital) vem de baixo, o awen (inspiração) vem de cima. Quando os dois se encontram dá-se o encontro dos opostos, a coincidentia oppositorum, o Casamento Alquímico, e daí se extrai a mesma Pedra Filosofal que atribuía sabedoria e imortalidade aos Pheryllt, os antigos druidas alquimistas, em Dinas Affaraon, o “lugar dos Altos Poderes” ou “cidade de Ambrósia”. ■
O sopro do espírito perpassa através da respiração e, através da graça, concede a inspiração.
Da água parada nada de bom vem, senão fetidez e estagnação.
Um dos aliados da inspiração, do awen, é o entusiasmo. Esta palavra de origem grega
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Uma vivência espiritual sem entusiasmo não passa de adormecimento, de marasmo.
A água da vida é a perpétua circulação. O movimento perpétuo.
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O Cristianismo Celta
— parte 1
por JOSÉ ALEXANDRE FRAZÃO MATOS
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o início da cristianização da Europa, surgiu nas Ilhas Britânicas uma corrente cristã que apelidamos hoje de Cristianismo Celta. Limitado no tempo e no espaço, o Cristianismo Celta sobreviveu durante cerca de 3 séculos, limitando-se às Ilhas Britânicas e algumas ténues embaixadas que penetraram na Europa Continental, nomeadamente no território que é hoje a França, Suíça e norte de Itália. A cristianização dos Celtas dá-se primeiramente na Gália Romana, por obra de missionários, mas apenas nas cidades. Nesta altura é ainda prematuro verificar alguma influência do druidismo nos novos cristãos, que estavam aburguesados nas cidades onde o cristianismo penetrou, em contraste com as gentes dos campos, os pagani — termo que chegou aos dias de hoje como pagão, com o significado que lhe conhecemos: “o que não professa uma religião do livro, que é politeísta” — que ainda falavam gaulês e continuavam arreigadas às suas tradições, aos seus cultos tradicionais. Ao contrário dos celtas da Gália, que estavam bastante romanizados, na Bretanha Insular e na Irlanda já isso não acontecia. Na Irlanda, por os Romanos nunca lá terem chegado, o que nos permite avaliar um salto directo da cultura celta pagã para a celta cristianizada. Na Grã-Bretanha, apesar de invadida por Roma, a romanização foi de uma 8
forma geral muito superficial, com excepção, talvez, das poucas cidades da Bretanha, Londinum (Londres) e Eboracum (York). Os primeiros missionários levavam uma mensagem de “Boa Nova” ainda “limpa” de ideologia dogmática; quando esta começa a surgir em Roma, "capital" do Cristianismo, algumas vozes levantam-se, e as diferenças com as ideias dos povos celtas começam a ganhar forma. É aqui que aparece Pelágio, um monge provavelmente bretão que terá nascido de uma família cristã por volta do ano 360, nas proximidades de York ou Lincoln, e que após os estudos iniciais terá sido enviado para Roma para estudar com o intuito de ser jurista. Tendo sido baptizado já em adulto, como aliás era normal à época, opta pela vida religiosa e estuda diversos autores cristãos e também clássicos. Ao surgir mais tarde com que eram contrárias às ideias ortodoxas de Roma, entra em conflito com a estrutura, essencialmente com Agostinho de Hipona, um dos primeiros teólogos da igreja de Roma. As três principais diferenças no seu pensamento, que para Agostinho eram indefensáveis, advogavam a inexistência do pecado original, a não necessidade da Graça do Senhor para a Salvação, e finalmente o livre-arbítrio do Homem. Falamos em três, mas na sua essência estão ligadas. Analisemo-las, então: o pecado original não existe, pois, o Homem é
Ruínas do mosteiro fundado por S. Kevin em Glendalough, Irlanda
responsável pelos seus actos e só os seus, não devendo cada pessoa que nasce vir com o pecado de Adão — que na realidade foi de Eva — pois o primeiro casal cometeu-o com o seu livre-arbítrio, com o seu poder de decisão. “E o Baptismo, serve então para quê?”, terá sido perguntado a Pelágio, que respondeu: é uma forma de aderir à família cristã. Também por via do livre-arbítrio, o Homem não necessita da Graça de Deus para se salvar: é ele, o Homem, que decide se pratica o bem ou o mal, sofrendo as consequências do mesmo. Celestino, um seu discípulo, e o próprio Pelágio, foram excomungados pelo Papa Inocêncio em 417, após o concílio de Cartago. Em 418, após várias alterações, o Papa Zózimo levanta as excomunhões a Pelágio e Celestino, o que revoltou Agostinho e Jerónimo que, após várias pressões, conseguem que o mesmo Papa Zózimo excomungue novamente Celestino, deixando de fora Pelágio, talvez para não o acicatar mais. Mas regressemos à visão de Pelágio sobre o livre-arbítrio. O facto de o homem nascer bom e mau e serem as suas decisões e acções a definirem o seu futuro levanta um problema, um grande problema à Igreja: se o Homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, e se o homem era bom e mau, também Deus seria bom e mau. Isso era inconcebível para Agostinho e a ortodoxia da Igreja. Com esta ideia de O ph i us a fe v ereiro 2018
livre-arbítrio, pode analisar-se a tentação no deserto de Jesus Cristo de uma outra forma. Detalhemos esta ideia. Jesus Cristo, o Filho de Deus, a Divindade, vai para o deserto para jejuar, um rito de purificação pela meditação. Jejua durante 40 dias e o Diabo vem tentá-Lo, segundo as Escrituras; por três vezes O tenta, por três vezes Jesus recusa. Analisando isto profundamente, além da tríade de tentações encontramos uma luta entre Deus e Deus, uma luta consigo próprio, uma luta da dualidade que há em cada um, e também na Divindade, pois o Homem foi criado à imagem da divindade. Em reforço do que já foi dito, o Homem é bom e mau e escolhe o caminho a tomar, e será salvo ou não consoante a via que tomar, do bem ou do mal, e Deus, que é Quem deu a imagem ao Homem, é igualmente Bom e Mau. Ora, estas conclusões revoltavam Agostinho e os seus seguidores, daí toda a sua pressão sobre o Papado. Como já vimos, os Celtas não achavam necessário o baptismo, pois o pecado de Adão ficou com ele; o baptismo era apenas, segundo Pelágio, a forma de entrar na família Cristã. Agostinho, contudo, “enviava” os não-baptizados diretamente para o inferno, coisa com que os celtas não podiam concordar. Então, surgiu uma espécie de limbo onde ficavam as almas até se penitenciarem e entrarem no céu, e baseados nas palavras e ideias de Pelágio, na 9
St. Kevin's Kitchen, Glendalough, Irlanda
dualidade da Divindade, os Irlandeses criaram o Purgatório, que dura até aos dias de hoje com a mesma doutrina. O Papa Bento XVI aboliu o Purgatório, mas Francisco já o reintroduziu na Doutrina oficial. Mas o Cristianismo Celta não se resume a Pelágio; vai muito mais além, até porque os Irlandeses nem foram cristianizados por Pelágio. Podemos dizer que as suas ideias eram similares. Patricius, ou Patrício, terá sido o principal bispo missionário que cristianizou a Irlanda. Patrício nasceu por volta de 367, na Bretanha, talvez no País de Gales, no seio de uma família romana, ou romanizada; terá sido educado na fé cristã até aos 16 anos, quando foi raptado e vendido na Irlanda como escravo, tendo estado ao serviço de um Druida, de quem poderá ter adquirido algum conhecimento druídico, o que lhe será útil mais tarde. Após 6 anos de captura, consegue fugir apoiado no seu Deus, transportado por mercadores/contrabandistas para a Bretanha — não é claro se se trata da continental ou da insular. Mas acabou mesmo por chegar ao continente e esteve em Auxerre e Roma, onde estudou, e de novo em Auxerre, onde terá sido ordenado padre e mais tarde bispo por S. Germano. E regressa à Irlanda para transmitir a Fé de Cristo aos Irlandeses. Mas desenganemo-nos, Patrício não é o responsável pelo Cristianismo Celta, pois era um Bispo à maneira Romana, que fundou uma diocese 10
em Armagh, ainda hoje a capital episcopal da Irlanda. Mais tarde trataremos das diferenças administrativas entre as duas cristandades. Devido à estrutura administrativa da Irlanda, sem cidades e com tuaths que são clãs, bastava a Patrício ou a qualquer outro missionário converter o líder do clã para que todos os pertencentes sigam o chefe, mesmo que apenas superficialmente, pois nunca abandonaram as suas práticas pagãs. Patrício usa os seus conhecimentos druídicos nos seus "combates mágicos" com os Druidas da Irlanda, acabando por vencê-los e assim convertendo muitas das populações. O ponto alto desses combates dá-se pela Páscoa de 433, que Patrício deveria celebrar por altura do Beltane (1 de Maio): a lei Céltica proibia que qualquer fogueira se acendesse antes da fogueira do Alto Rei da Irlanda em Tara; quem o fizesse seria queimado. Mas Patrício, a alguma distância de Tara, em Slane, acendeu a sua fogueira pascal, que foi vista de Tara. Todos ficaram surpreendidos e o Rei convocou a sua assembleia. Então, os Druidas do Rei exclamaram: "Rei, vive para a eternidade. Esta fogueira que nós vemos foi acendida antes daquela da tua própria morada, o palácio de Tara. Declaramos que, se ela não se apagar na noite em que foi acesa, nunca se apagará até à eternidade. Quem a acendeu, e o novo reino do qual ele tira a sua luz, nesta noite, dominarão sobre todos nós". Provavelmente estes Druidas já conheceriam Patrício e sabiam de antemão quem tinha acendido aquela fogueira. E assim nasceu o Círio Pascal, numa atitude de desafio de Patrício à lei celta pagã vigente. ■ (Continua no próximo número)
Mandala: Pedro Soares
A m4g1a ´ dos núm3ros, da vida, dos ciclos e da Mãe Natureza por PEDRO SOARES, numerólogo
O
ser humano sempre teve paixão pelo desconhecido, mas também pela conjugação de factores que nos podem ajudar a interpretar e recriar a realidade. A astrologia e a numerologia estão entre as ciências que, provocando estranheza, estimulam a nossa capacidade de sonhar e levam mais longe a nossa convicção de que nada acontece por acaso. Pitágoras foi o pai da matemática, mas também um mestre do pensamento. Viveu entre 495 e 570 AEC. É tido como o pai da matemática e foi criador da palavra philosofia.
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Foi cunhado em moedas durante o Período Greco-Romano entre os impérios de Augusto (27 AEC–13 EC) e de Galieno (253–268). Julga-se que recebeu o seu nome por causa de a sua mãe ter ido consultar o Oraculo de Delfos, e que ainda antes de nascer, a Sacerdotisa Pitonisa afirmou que vinha aí um varão, e que este haveria de ficar para a história como um dos que mais de perto estiveram entre o divino e a matéria. Mas Pitágoras também não nasce pronto, e por mais que fosse um predestinado, teve, como todos nós, de aprender ou relembrar com outros. Terá tido nos celtas a sua fonte mais directa de inspiração. O historiador grego Diodoro Sículo, ou Diodoro da Sicília (90 AEC – 30 AEC) liga Pitágoras de Samos à crença céltica na imortalidade da alma, segundo o qual as almas dos homens são imortais e que cada alma volta à vida noutro corpo. Vamos, assim, fazer uma pequena viagem interligando estas duas magias, e para isto proponho que usemos desde já a Cruz celta como exemplo. O Símbolo da cruz era uma das principais formas de expressão artística entre os celtas e representa a unicidade e o ciclo eterno. Este símbolo está associado à coragem e ao heroísmo, à força de vontade e à boa disposição. A divindade deste símbolo é Lugh, o Senhor da Criação na mitologia celta. Este antigo símbolo surge muito antes do cristianismo e, de acordo com uma lenda irlandesa, terá sido São Patrício quem misturou a cruz católica com o círculo, sendo este o símbolo do Sol, cultuado pelos pagãos da época. Imagine então que este representa a vida em 4 ciclos: os 4 quadrantes, as 4 estações do ano, e assim por diante… Cada ciclo comporta em si 3 energias similares. 11
O movimento de translação, como se designa o deslocamento da Terra em torno do Sol, juntamente com a inclinação do eixo terrestre em 23°27’ em relação ao plano orbital, é responsável pela variação de energia solar que atinge a superfície terrestre em determinadas épocas do ano. Esse fenómeno é responsável pelas estações do ano: primavera, Verão, Outono e Inverno.
VER ÃO
Eis a estação mais quente do ano, na qual as temperaturas permanecem elevadas e os dias são mais longos do que as noites. O Verão começa logo após a primavera: a 21 de Dezembro no hemisfério sul e a 21 de Junho no hemisfério norte. A Mãe-Terra leva com o intenso calor pela proximidade do Sol. Nesta fase, os seus frutos são os mais fortes, doces e vistosos. Mas uma vez aquecida, precisa de
PRIM AVER A
A principal característica desta estação é o reflorescimento da flora, sendo considerada a estação mais florida e forte do ano. Esse período é marcado por belas paisagens pintadas pela mãe natureza, com uma grande diversidade de flores e cores. É a estação mais colorida de todas, pois é nela que se inicia, para além do reflorescimento da flora terrestre, o início da fauna no planeta. É também conhecida como “estação das flores”. A primavera é uma estação de transição entre o Inverno e o Verão: dá-se a 21/22 de Março no hemisfério norte e a 22/23 de Setembro no hemisfério sul. Como sabemos, nesta altura a energia da mãe terra está com toda a sua força, e tudo o que nela cai, rebenta e nasce! O ser humano menos centrado, menos forte ou mais exposto a tensões pode sentir, e normalmente sente, esta força da mãe terra! Verifica-se que é este o período do ano com mais suicídios, depressões e desistências. Nascem nesta altura os nativos de Carneiro/4, Touro/5 e Gémeos/6. Energias dominantes: força, perfeição, liberdade e auto-estima. 12
descanso, de sombra e de se resguardar, ficando mais inerte! É com esta força, doçura e inércia que nascem os nativos de Caranguejo/7, Leão/8 e Virgem/9. Energias dominantes: inteligência, brilho, sombra e inércia. OUTONO
É a estação de transição entre o Verão e o Inverno. Nela, os dias deixam de ter maior duração do que as noites. Gradualmente, as temperaturas diminuem e as folhas das árvores caem, como forma de adaptação ao frio
que se aproxima. O outono começa logo após o Verão, a 21/22 de Março no hemisfério sul e 22/23 de Setembro no hemisfério norte. Aqui, a terra, qual poesia, veste a mãe natureza de amarelos e castanhos que marcam a transformação da vida, a reciclagem dos elementos da Natureza e também das emoções humanas. Inicia-se neste momento uma fase de transição que só se vai completar no Inverno, quando todos sentem mais necessidade de recolher e hibernar. No Outono, as pessoas vão-se tornando mais introspectivas, mais desejosas de abrigo nos seus refúgios, inclinadas a buscar a meditação e a acender as lareiras. É preciso descansar enquanto as árvores se despem. Vão os frutos sumarentos e chegam os mais secos. E o que não é colhido a tempo ou não é cuidado, com esta energia acaba por apodrecer, finar e cair! Curiosamente, esta é também a estação em que mais idosos sucumbem, morrendo para a vida como a folha para o seu galho. E com este recolher, com este cuidar, nascem os nativos de Balança/10, Escorpião/11 e Sagitário/12. Energias dominantes: a capacidade de acreditar, intensidade, resguardo e montra. INVERNO
Eis a estação mais fria do ano. Tem como característica principal a queda de temperaturas, podendo chegar a graus negativos em muitas regiões do mundo. O Inverno começa logo após o outono, a 21 de Junho no hemisfério sul e 21 de Dezembro no hemisfério norte. O Inverno — de inferno, interior, inferior — é a energia mais fria da mãe terra. Esta bebe mais água — símbolo de intuição e ligação — pelas suas chuvas, deixa-se desmoronar, grita O ph i us a fe v ereiro 2018
com a força das tempestades e dorme mais horas. Alimenta-se mais e dos mais quentes alimentos, pois o frio leva ao recolhimento, abrigo e união. Chegam com esta estação os frutos mais antioxidantes, os vermelhos e os mais fortes. As pessoas são mais meigas, carinhosas e afectuosas, pois lá fora chove, e há que estar mais por casa, mais com os seus, ser mais criativo para preencher os tempos vazios, e destas necessidades nascem a proximidade, o diálogo e o aconchego. Aqui nascem os nativos de Capricórnio/1, Aquário/2 e Peixes/3, que, como não podiam deixar de ser, são mais livres, mas também os mais protectores. Energias dominantes: afectos, cuidado, fuga e vontade de sair, por estarem muito tempo “fechados”. OS NÚMEROS NO C ALENDÁRIO
Como na doutrina dos números, não estamos a falar na Era Comum, e sim antes de Cristo, quando prevalecia o Calendário Juliano (usado entre e 46 AEC e 153 EC). E neste, os meses corriam numa sequência com início em Março, terminando o ano no mês de Fevereiro. Uma sequência, aliás, ainda hoje respeitada e válida para alguns povos e culturas. Nesta ordem de exposição, seguem-se algumas reflexões ligadas às várias energias numéricas: 0 (zero): antes do início, o nada era o tudo. E esta vibração é associada às paixões, ao amor e à fé. A tudo, afinal, que nos encha, mas que não se pode ver nem se pode tocar. Liga-nos ao sentir sem ser possível provar. Ao vazio e ao cheio. Com a chegada do 1 (um), começa então a exploração do nunca dantes visto, nunca dantes tocado. Este é o primeiro, o pioneiro, o 13
Ordem 1.º
Nome actual Março
Significado Marte, deus da guerra
2.º
Abril
Abertura das flores (Primavera)
3.º 4.º
Maio Junho
Maia, deusa da abundância Juno, deusa da casa e família
vezes, esquece-se de si, ferindo o amor-próprio. Torna-se preciso ino5.º Por Júlio César Julho var, pensar, mudar, via6.º Por Octávio Augusto Agosto jar, projectar, e é o 7 (sete) 7.º Sétimo mês Setembro quem sabe fazer isto 8.º Oitavo mês Outubro como ninguém. É ele quem 9.º Nono mês Novembro tem a mente brilhante dos 10.º Décimo mês Dezembro poetas, dos compositores 11.º Jano, deus dos portais. Janeiro e dos arquitectos, que nos January, em inglês. revelam o nunca dantes 12.º Mês do Febuar, ritual das Fevereiro construído, nunca dantes fogueiras purificadoras desenhado, tocado ou ouvido. Mas a vida tem também o seu lado malíder o que guia e vai à frente, sendo também o que mais se sente inseguro por não ter com- terial. E há que ser forte e intenso como o 8 (oito) para poder discutir, defender e negopanhia, defesa ou ajuda. Mas nesta busca do perceber e explorar ciar este lado, ainda que tenha que se elevar o tudo, este acaba por encontrar o 2 (dois), e tom e a imposição. Mas tal como nos ensina a mãe terra, e o logo começam as relações entre eles. Agora e a dois, impera o ouvir, falar e escutar, ensinar e velho mestre, de seu nome tempo, tudo passa, tudo amadurece e vai aprimorar, mas é preciaprender, fazer amor e reproduzir mais vida. E neste relacionar nasce o 3 (três). Nú- so primeiro saber-se ser o 9 (Nove). O Mago, o sábio, o eremita, o nómada e o mero de trindades e tríades. A 3ª pessoa do relacionamento dos 2 anteriores e o nascer paciente. Pois a paciência é a ciência da paz. das realizações, das emoções e da criança E só os mais “antigos”, os mais velhos e os que mais percorreram sabem usar desta sabedomágica que agora chegou. Logo começa a ordem e o 4 (quatro), com ria, ensinando a fechar portas e ciclos para a sua perfeição, rectidão, os seus 4 lados iguais que tudo fique limpo e na ordem. Pois daqui a nada vai mudar a energia, mudar a estação, e a sua disciplina. Mas toda esta ordem cansa e precisa de e com esta, chegam sempre novas primaveras, apanhar ar. É neste cansaço que aparece o 5 que vêm iniciar novos novo ciclos e novos iní(cinco), que vem para “derrubar” a ordem, as cios. Início, que, na linguagem dos números, leis, os dogmas… Vem mostrar a liberdade, nos leva de novo ao 1(um). Afinal nada começa e nada termina. Cumcomunicando o amor pela vida e expressando prem-se os ciclos, completam-se os caminhos agilidade e pressa de viver a cada segundo. Porém, com a necessidade de assentar, de e regressamos sempre, sempre ao ponto acalmar, de cuidar da família e da casa, eis que de partida! Mais sábios, talvez! vem com o 6 (seis) para trabalhar e dedicar-se Mas mais crescidos certamente. ■ aos seus, aos afectos, às doações. Por isso, às 14
Uma visão transoceânica do Imbolc por MARCELO PASCHOALIN, autor do livro A semente da bétula
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uando perguntamos às crianças quais as estações do ano, a resposta é dada sempre na mesma ordem: primavera, verão, outono e inverno. Nós as ensinamos assim e assumimos que é o normal, o padrão, o verdadeiro sob nossa ótica. Geralmente aprendemos sobre as estações antes mesmo de compreendermos o calendário gregoriano, e é então que vemos que algo não se relaciona diretamente: no calendário civil comum, o início do ano não ocorre durante a primeira estação do ano que aprendemos. No hemisfério norte, o ano civil se inicia no inverno; no sul, no verão. A primavera fica no meio do caminho, perdida entre as folhas do calendário que adornam portas antigas e agendas em papel. Como pode o ano iniciar no frio e no recolhimento do inverno do? Como pode, no sul, ocorrer durante o auge do poder solar?
O ph i us a fe v ereiro 2018
Escrevo estas palavras além do Atlântico, aqui no Brasil. Olho para fora da janela e sinto as estações. Percebo os ciclos e as mudanças externas e compreendo o reflexo delas dentro de mim. Meu início do ano, então, não acontece de acordo com o tic-tac dos relógios, nem com a queima de fogos nos litorais. Meu ano começa no meu renascer, no retorno que tenho ao meu crescimento: na primavera. E não é mero acaso que, por ter Brighid como minha deusa de devoção, considero meu início do ano em Imbolc. Afinal, é nessa época em que a Deusa se liberta da influência da Cailleach (transformando-se de Anciã em Donzela, ou ficando livre da prisão em que estava; simbolismos diferentes, mas de essência similar). É nessa festa do fogo, festa da Senhora das Três Chamas, que tudo começa. O solstício de inverno ficou para trás, e o gado, a fertilidade, 15
Comprender o simbólico nos permite entender o real. E, quando verdadeiramente adentramos no mistério, descobrimos que tudo é realidade e tudo é símbolo.
pode deixar a reclusão e avançar nos campos. É nesse momento que nós podemos também nos lançar adiante. Em Imbolc, vemos as wserem acesas na sua plenitude – não apenas nas fogueiras, mas em nossos corações. O simbolismo, a meu ver, é evidente. A chama da Forja nos leva a perguntar o que precisamos manifestar fisicamente em nossa vida. O que precisamos criar? Como devemos agir para transmutar o metal bruto na mais bela ferramenta? Qual trabalho merece nosso foco, nosso suor, nossa força? Essa compreensão nos ajuda a entrar em sintonia com o novo ano e nos conduz durante esse ciclo. A chama da Cura, por outro lado, é mais introspectiva, fazendo com que nos voltemos para as partes de nossa vida que precisam de cuidados. Temos olhado para nós mesmos, ou no afã de curar a comunidade e curar o mundo acabamos por nos esquecer de curar a nós mesmos? Muitas vezes é mais fácil nos concentrarmos nos problemas dos outros, mas, ao menos dessa vez, devemos fazer uma pausa e olhar para nosso reflexo, usando essa chama para cauterizar nossas próprias feridas. A chama da Inspiração, por fim, é acesa para despertar nossa criatividade e nossa conexão espiritual. Ela anuncia aquela pausa antes do disparo da corrida, a véspera da grande expedição, a calma depois da tempestade de ideias. É nosso elo com o sagrado que se maximiza nesse momento, permitindo que
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reconheçamos as sendas a trilhar de acordo com o que se espera de nós. Para aqueles que consideram que o caminho do druida não consiste apenas numa conexão espiritual, mas também numa devoção sacerdotal, é essa a chama que iluminará a escuridão que permeia a alma nos momentos de dúvidas. Assim, é em Imbolc que buscamos a gentileza e o cuidado. Se é esse o início do ciclo, simbolicamente ele também representa nossos primeiros anos de vida, a calmaria da contemplação da chama refletida na água. É um microcosmo que se repete ano a ano e, ao aprendermos a ser crianças novamente nesse período, poderemos aprender e crescer uma vez mais. Compreender o simbólico nos permite entender o real. E, quando verdadeiramente adentramos no mistério, descobrimos que tudo é realidade e tudo é símbolo, pois a interligação de cada elemento nos impede de dizer onde um começa e outro termina. Mais do que uma questão de fé, é, essencialmente, uma análise racional do mistério, do oculto, daquilo que podemos chamar de magia. A magia das Três Chamas nos acalenta em Imbolc e sentimos a mão de Brighid nos guiar ano adentro. Que possamos, então, ser como as crianças, que começam o ano pela primavera, por Imbolc, para crescer dia após dia até entendermos que as chamas que buscamos estão, sempre, acesas dentro de nós. ■
A esperança no Imbolc
Q
uem já tenha lido algum artigo meu irá perceber que costumo sentir de perto a roda do ano e reconhecer as mensagens da Natureza. É notável o quanto a roda do ano mudou, como as estações do ano já não batem exactamente nas datas que me ensinaram na escola primária durante os anos 80. O Imbolc não é excepção. Apesar de continuar a festejar o Imbolc em Fevereiro, a Terra já começou a acordar do seu sono em meados de Dezembro. As azedas (Oxalis pes-caprae), que costumam dar os primeiros sinais em Janeiro, começaram a despontar a partir de 20 de Dezembro (mais ou menos), no meu quintal. Também as aves começaram a partilhar as suas melodias em Dezembro, e o clima já não estava tão frio. Para quem não saiba, eu resido no concelho de Cascais – acredito que seja possível a existência de diferenças entre o Norte, o Centro e o Sul de Portugal. Eu não sou das pessoas mais convencionais a nível espiritual. O meu caminho é uma amálgama das minhas experiências, do que me faz sentido espiritualmente. Eu não festejo a roda do ano como a maioria dos pagãos (e druidas) que conheço, ou dos que encontro online ou offline. Falando em Imbolc, por exemplo, eu não sei fazer as cruzes de Brighid. Ao nível das artes, ajeito-me melhor a desenhar, a escrever e a cantar e, mesmo assim, haja prática. Por outro lado, a minha prática é mais solitária e ainda me estou a adaptar à ideia dos rituais. (Demasiados anos na religião católica
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por ANA SIMÕES
marcaram-me com uma certa aversão a práticas ritualísticas muito rígidas.) A maior parte das vezes, um passeio mais mindful pela natureza é o meu ritual pessoal para estas alturas. Festejamos o retorno à luz, o acordar da vida e o regresso do calor com a aproximação da Primavera. Este ano o meu plano é caminhar no meio da Natureza (a minha preferência recai, inevitavelmente, sobre um espaço com árvores, um bosque, uma floresta, porque não me sinto eu própria sem árvores), encontrar uma clareira ou, pelo menos, um espaço onde possa traçar o círculo, meditar, agradecer pelo que tenho, pelo que vou ter, pelos sucessos e vitórias tanto meus como da minha família, verbalizar o que desejo do ano 2018 para mim e para a minha família, fazer uma oferenda (água e mel parecem-me bem) e fechar o círculo. Simples, mas eficaz. Se, para mim, o Alban Arthan é um período de introspecção e comunhão, o Imbolc significa esperança e preparação. Esperança num mundo melhor. Esperança em tornar-me uma pessoa melhor, em aprofundar a minha espiritualidade, em permitir que me abra a novas experiências espirituais. Esperança em tempos mais favoráveis para mim e para a minha família (e aqui o termo "família", para mim, alberga a minha família de sangue, os meus amigos mais próximos e a minha família espiritual). E é um tempo de preparação para o futuro, para construir o caminho que nos levará à concretização dos nossos objectivos. ■ 17
No Bosque Sagrado por JOEL MARTELEIRA
“Cada passo que dou / é um passo de Amor, / é um passo Sagrado...”
A
qui no Bosque, sentado sob estas árvores, recebendo a energia do Sol que sobre mim se derrama, sinto que faz cada vez mais sentido o poema deste cântico. É um cântico de reconhecimento e relembrança, que se canta nos temazcais, dentro do útero da Mãe Terra, um cântico em que reconhecemos com humildade que cada passo que damos em consciência é, inevitavelmente, um passo de Amor, um passo Sagrado. Tudo é Sagrado se o observarmos e o fizermos com o coração, com entrega total e absoluta. Cada gesto, cada pensamento ou acção deve ser Sagrado, deve ser consciente e
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autêntico, deve ser de entrega ao Divino, ao Grande Espírito, ao Uno! Só assim, nós, já o sendo, nos reconhecemos como parte integrante dessa Fonte de Luz; só assim podemos reconhecer em nós, no nosso coração, essa centelha Divina que nos alimenta e faz crescer. Cada dia que passa e a cada passo que dou, tenho a consciência que o Universo se abre para mim, abrindo sempre uma porta a seguir à outra. São portas, contudo, no desconhecido e para o desconhecido, mas portas de experiências enriquecedoras e iluminadas porque — acredito, sinto e tenho convicção disso — por "pior" ou menos agradável que seja a
experiência que cada porta me ofereça, eu, através dela, através dessa possível alegria, sofrimento ou dor, sairei mais rico, mais sábio. No entanto, tenho, mas tenho tanto que aprender. Por quantas portas terei eu que entrar ainda, até assimilar, absorver a Luz que me alumia o caminho? Tenho insights, rasgos, vislumbres dessa Luz, como quando atravessamos a floresta densa numa noite escura de lua nova e, de repente, vemos um raio de luz, uma linha de luz, projectada à nossa frente iluminando a escuridão, reflexo do brilho inesperado de alguma estrela. Ao vermos esse raio de luz, toda a escuridão se O ph i us a fe v ereiro 2018
dissipa em nós e surge uma vontade crescente para avançarmos. É na escuridão que a Luz, por ínfima que seja, tem a força da esperança e da certeza numa Luz Maior e Plena. Aqui, no Bosque, neste espaço de paz, onde cada vez mais me sinto mais Eu, deixo fluir os pensamentos e tento chegar a “conclusões” que só a mim farão sentido. Reflicto em quantos caminhos poderemos tomar para a Luz (?), qual o caminho melhor — se é que há algum melhor que o outro (?). Sei que todos os caminhos, sendo caminhos de Amor e de Luz, são válidos, embora diferentes. Em qualquer um poderemos fazer o nosso percurso. Encaro-os como vias paralelas mas convergentes, que se encontram no Infinito. Sim, direi que se encontram nesse infinito sempre presente em nós e que é a nossa essência, o “ponto” de partida e de chegada deste nosso percurso. Como a kundalini, duas energias paralelas que se espiralam em redor de um eixo, o axis mundi energético, fonte de Vida, até nele se consubstanciarem. Como numa corda em que cada fio se enrola no outro fio e, quantos mais fios se enrolarem, mais forte será essa corda — Indestrutível. Que digo eu?! Que sei eu?! Nada! Absolutamente nada! Há, no entanto, algo que sei. Não encontraremos jamais palavras, nem conceitos, que possam alguma vez descrever essa "Força", essa "Luz" a que chamo o Grande Espírito, o Mais Divino, o Uno, o sem Princípio nem Fim, o sem Tempo, o Tudo e o Nada… Conceitos. Conceitos vagos e obtusos de uma mente humana sedenta de conhecer o inefável. ■ Sintra, 6/9/2017
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No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. Manoel de Barros
Lúcia Nascimento
Eisteddfod:
DANÇA ANCESTRAL
No silêncio de minha floresta interior ouço a voz suave e ancestral de uma lira. Dançam ao redor centenas de mulheres como eu que, em roda, há milênios celebram a vida das árvores o amor dos homens os filhos da terra os frutos do trabalho da família. De olhos fechados sinto minha leveza sobre o corpo firme da Terra que me abriga desde sempre e me ensina que é preciso ser forte para existir.
É preciso girar com a Roda da Vida adormecer quando é o tempo da retirada e despertar o fogo à chegada da estação de Lugh. Meu ritual cotidiano se resume em ler a Natureza e nela encontrar meu caminho. Mãos que se movem ao baile das chamas aprendo que crio sombras, se desejo, a partir da Luz – escolho a dança dos reflexos. Assim me ensinaram aquelas que vieram antes de mim e assim aprenderão aquelas que porventura responderem ao chamado da lira de um Bardo. Melissa Boëchat
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Maria José Jacinto
ÁGUA E FOGO
O Templo dilacerado pelas múltiplas camadas de fogo É, agora, inundado por ti. Tu que convidas as raízes secas a celebrarem a frescura e a ecoarem os sons temidos. Onde as janelas da percepção Se afloram e permitem ver o que, outrora, era invisível. Onde as emoções que rasgaram São, agora, um manto de doçura cristalina. Amado Fogo. Amada Água. Prosterno-me perante vós. Mafalda Cancela O ph i us a fe v ereiro 2018
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EISTEDDFOD
MOURA ENCANTADA
A moura encantada Mostra-se de madrugada Antes do sol nascer, Com algo p`ra oferecer. Será figo, ou tesoura p´ra cortar? Será sortes de S. João! O segredo há que guardar, Ou o ouro será carvão. Donzela de rara beleza, De aprazível sedução; Guardiã de imensurável riqueza Que guarda no coração. Ninguém tem medo dela, Seja lá onde for, Mostra sempre a sua dor A quem não foge com ela.
Quando chove vai dançar Radiante e contente, Deixa rasto de serpente Para os campos fecundar. Ao rio vai lavar O seu corpo de menina, Em noite de luar, Em água cristalina. À fonte vai chorar Quando o orvalho estender E as ervas encantar P´ra quem cedo as colher. Leite gosta de beber e os cabelos pentear, Antes do dia findar À gruta se vai deitar. Agostinho Veras
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PASSAPORTE
não podes entender a terra sem que ela te convide primeiro estudos se fizeram fronteiras se traçaram plantaram-se milénios de tradições que te desenraizaram que te fizeram amátrida mas a terra convida quem entende e pelo seu convite se entende outras terras a terra toda a Terra por inteiro até o deserto mais populado podes guardar o teu passaporte a tua mentira predilecta em formato de bolso não podes entender a terra sem que ela te convide primeiro Fábio Barbosa
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alma na — — que LIVRO
www.zefiro.pt
A Deusa no Jardim das Hespérides Luiza Frazão Zéfiro, 2017
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O conhecimento da terra que nos gerou e gera continuamente enquanto tivermos vida é também o conhecimento de uma vertente do Ser que, devido ao carácter invasor da cultura dominante, adquire a dimensão de um Outro encoberto. Ou melhor, a Outra, a Face desafiante do Sagrado Feminino. Esta é a promessa de A Deusa do Jardim das Hespérides: desvelar a dimensão encoberta do Sagrado Feminino no território português, demasiadas vezes negligenciado pelos investigadores da área religiosa, e por conseguinte, pelos próprios praticantes e devotos pagãos. Apesar de o nosso conhecimento histórico actual ter desmistificado muito do imaginário de Avalon, é um facto que a Ilha das Maçãs continua a fornecer uma estrutura útil para diagramar os mistérios que para nós se têm manifestado no feminino. Desta feita, o colégio das nove Deusas é composto por deidades da Península Ibérica, não só das mitologias pré-cristãs mas também de figuras consagradas
>> EVENTOS
10 de Fevereiro / 18h00 O BARDO E A HARPA: INSTRUMENTOS DO ESPÍRITO
Loja da Ordem Rosacruz AMORC, Lisboa Palestra com Alexandre Gabriel
pelo Catolicismo popular. Ao centro, sob a macieira, a Senhora é a própria Ibéria, ou quiçá a Ophiusa que nos inicia através da Serpente. Luiza Frazão convida-nos a percorrer a Roda do Ano através do prisma das várias Deusas ibéricas, das árvores que lhes estão associadas, dos seus animais de poder e de uma série de outras associações de carácter lírico-especulativo capazes de enriquecer a nossa caminhada pelas estações. Por detrás deste trabalho de pesquisa e de partilha pessoal, está também o sonho da recuperação do culto à(s) Deusa(s) em Portugal, consubstanciado num templo físico e em vocações sacerdotais. Aliás, esta obra é ela mesma um convite para o despertar da Sacerdotisa que vive em cada praticante pagã: a mulher que media este e o Outro Mundo e alcança enfim a consciência da sua própria divindade. Uma alma que se redescobre e desvela no Jardim das Hespérides. ■ Fábio Barbosa
17 de Março / 18h30
Na Casa do Fauno, Sintra:
RODA DO ANO CELTA – EQUINÓCIO DA PRIM AVER A
9 de Março / 21h30
José Alexandre Frazão Matos
A FLORESTA SAGR ADA
18 de Março / 15h
– CENÁRIO MISTÉRICO
HERBALISMO DE PRIM AVER A
DE RITUAL E INICIAÇ ÃO
Curso com Isa Baptista
Palestra com Nuno Ferreira Gonçalves
14 de Abril / 15h30 CRISTIANISMO CELTA
José Alexandre Frazão Matos
DISCO
De volta ao bosque onde os deuses da antiga Gália se fazem ouvir e sentir sob a pele: este é o cenário desta segunda evocação em modo acústico dos suíços Eluveitie. Regressados ao estúdio depois de uma remodelação que alterou metade da formação da banda — em que o talento e a voz de Fabianne Emi, por exemplo, representam por si só ganhos fenomenais —, os Eluveitie dedicam mais este disco à mitologia celta, dedicando cada faixa a uma deidade diferente no panteão gálio-romano. Aqui a banda continua e aprofunda os seus esforços de reconstrução do que poderá ter sido o antigo idioma gaulês, além da habitual recolha de vários trechos de música popular no espaço da Europa Central, incluindo algumas melodias que já haviam figurado O ph i us a fe v ereiro 2018
em produções anteriores, como o "Tri Martolod" ou o "Son ar Chistr", ambos temas tradicionais bretãos. Suspeitamos, a julgar pela intencionalidade que define o trabalho dos Eluveitie, que isto sirva associações de conceitos e mitos que transitam de um álbum para outro. O ritual desenhado pelo alinhamento das faixas inclui momentos de assombro e contemplação, como "Artio", um lamento arrebatador do lado de lá das brumas. Depois de Pantheon, os Eluveitie já lançaram "Rebirth", um single com que a banda regressa ao seu ADN fundamental. No entanto, Evocation II ficará para a história de 2017 como um dos discos fundamentais do ano na música de inspiração telúrica. ■
www.eluveitie.ch
Evocation II – Pantheon Eluveitie Nuclear Blast, 2017
Fábio Barbosa 25
AL M ANAQUE
>> EVENTOS Todas as luas cheias, a Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas convida-o a meditar pela paz.
Uma meditação mensal, a sós ou com um Grupo-Semente ou Bosque, com vista à paz: no mais íntimo, na comunidade e no mundo inteiro.
EM LINHA
BLOG
IBERIA M ÁGIC A
www.iberiamagica.blogspot.com.es Lugares sagrados da Antiguidade e pré-História na Península Ibérica.
BLOG
BELLODONUM
www.bellodunon.com Traduções e pesquisas sobre a Gália celta e não só, por Bellouesus Isarnos.
BLOG
ENTRE A NÉVOA
www.entreanevoa.wordpress.com Reflexões pessoais de um politeísta gálico e galaico-lusitano em Portugal.
PORTAL
THE WILD HUNT
www.wildhunt.org Notícias e opinião. A actualidade vista através de um olhar pagão.
REVISTA
KEUGANT
www.boechatmg.wixsite.com/cidecd-keugant Revista online do CIDECD – Colégio Internacional de Estudos Celtodruídicos.
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DE foto: Melissa Boëchat
TRÍ
três grandes melodias da Criação: o vento nas árvores, o ribeiro no degelo, o grito de um recém-nascido. O ph i us a fe v ereiro 2018
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H I N O À N AT U R E Z A
Natureza Que não fazes qualquer diferença entre os seres E para quem o dia e a noite são equivalentes Faz com que Eu considere os homens como insectos E os insectos como homens O todo, no seu conjunto, como um nada Liberta-nos do mal Isto é, da crença que algo deva ser evitado E, consequentemente, do medo e do escrúpulo Liberta-nos do bem Isto é, da crença que algo deva ser desejado E, consequentemente, da inveja, do ciúme, da ganância e do orgulho Concede-nos a liberdade do vento.
Invocação da Ordre de l’Hermine d’Argent (Ordem do Arminho de Prata), incluída no grimório céltico Nabelkos. (tradução e nota: Alexandre Gabriel)