Revista da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas — OBOD em lĂngua portuguesa
Novembro 2017
obod.com.pt
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EDITORIAL
A quadratura do círculo
FÁBIO BARBOSA
Propriedade: © 2017, Zéfiro – Edições e Actividades Culturais, Lda. ISSN: 2183-9255 Depósito Legal: 419 013/16 Esta obra não pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo à excepção de excertos para divulgação. Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.
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C
ompletar um ano de existência é um marco nada negligenciável quando nada fazia prever que o trabalho que tem agora em mãos fosse possível, 12 meses atrás. Qualquer projecto que pretende servir uma comunidade deve dispor de uma visão, um propósito e um caminho claro para o cumprir. Aqui na Ophiusa, achámos por bem reservar este marco na jornada para redelinear o nosso. O nosso contributo para que esta tradição com 300 anos continue a ser um veículo sempre actualizado da Sabedoria Selvagem — e por isso mesmo Perene — apresenta novidades a partir desta edição. Mantemos o compromisso de dar espaço às vozes em língua portuguesa que pensam, escrevem e criam sob a alçada do Awen. Mas a partir de agora, olhamos também para a comunidade ao largo, com novas rubricas que dão a conhecer um pouco do que acontece na literatura e na música de inspiração telúrica, expandem a nossa habitual selecção de recursos na Internet e transmitem ideias intemporais do imaginário druídico. Um imaginário que passamos a ancorar nas experiências vividas no nosso templo druídico em Sintra. Aproveitámos para ajustar a nossa linguagem gráfica, que esperamos estar ao serviço da mensagem, mas mais importante que isso, colocámos essa mensagem em prática numa nova impressão, inteiramente em papel reciclado. Recomeçamos no número 4, ao jeito de quem, como Taliesin, se transfigurou após a sua viagem por todos os elementos. ■
Director: Alexandre Gabriel Editor: Fábio Barbosa Concepção gráfica e paginação: Fábio Barbosa Imagem de capa: Joel Marteleira
Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas
Colaboram neste número: Alexandre Gabriel, Ana Simões, Francisco Canelas de Melo, Isa Baptista, Joel Marteleira, Jorge Telles Menezes, Mafalda Cancela, Maria José Jacinto, Marta Pinto, Nuno Ferreira Gonçalves.
Morada: Zéfiro, OBOD, Apartado 21, 2711-953 Sintra, Portugal Telefone: (+351) 91 48 48 900 E-mail: obod@obod.com.pt Website: www.obod.com.pt
Responsável pelo curso de Druidismo em língua portuguesa: Alexandre Gabriel
ÍNDICE
Da Iniciação: Ruptura, Despertar e Absoluto p.4
Da identidade à (comum)idade p.7
Sacralidade Megalítica em Portugal p.11
A misteriosa história de Doon Hill e o Trilho das Fadas p.14
O Equinócio e a via do Equilíbrio p.17
No Bosque Sagrado p.18
EISTEDDFOD AL M ANAQUE T R Í A D E
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p.20 p.24 p.27
1 Apoie a Ophiusa tornando-se assinante e receba a revista em primeira mão! assinatura anual (4 números): Impressa: 20 € (+portes) Online (PDF): 8 €
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O ph i us a nov e mbro 2017
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A INICIAÇ ÃO É RUPTUR A
A Filosofia sem Iniciação não conduz a nada, A Iniciação sem Filosofia conduz à estupidez. Ibn Arabi
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em Ruptura não há Iniciação. Quando há Iniciação sem Ruptura, não é Iniciação, é uma concepção mental da mesma. Ruptura com o nosso ego — que mais não é do que um eu ilusório, um falso eu, no qual procuramos uma cómoda e irrealista sensação de segurança no sempre mutável mundo da manifestação. O ego é tão frágil quanto a concepção meramente racionalista e mental da Realidade. O ego é um guardião do umbral, nele se projectam todos os nossos piores receios.
Iniciação Da
— Ruptura, Despertar e Absoluto por ALEXANDRE GABRIEL
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É verdadeiramente o nosso pior e único inimigo real. É um obstáculo à Iniciação, mas pode também ser um impulsionador da mesma. Para tal, o ego deve ser considerado como aquilo que é, nem mais, nem menos. Ele pode ser um excelente servo, mas quantas vezes é um terrível senhor!… O ego tem medo de perder algo. E quanto mais tenta prender com as suas garras aquilo que não pode ser preso, tudo lhe foge. O eu não tem medo de perder o que quer que seja. Em primeiro lugar, porque nada lhe pertence. Em segundo, porque é tudo.
A INICIAÇ ÃO É O DESPERTAR
A Iniciação que é conferida ritualmente numa Ordem Iniciática autêntica transmite uma semente àquele que busca. Porém, assim como um terreno deve ser fértil e estar lavrado para abraçar e fazer crescer essa semente, o iniciável deve romper com o passado, romper com as falsas concepções que tem acerca de si próprio, romper com tudo aquilo que não é verdadeiro. Só quando deixar de pensar a Iniciação é que se tornará naquilo que já era mas não sabia, um Iniciado. É preciso ir para além de pensar a Iniciação. É preciso vivê-la, senti-la e pressenti-la. Por melhor que seja a semente, quando esta é plantada num mau solo, ou quando não é regada, ela jamais crescerá. Será uma semente morta, inútil, desperdiçada. Por isso existe o adágio místico: “Muitos são os chamados, pouco são os escolhidos.” Receber a semente é o mais fácil. É no preparar o solo e no cuidar da semente que está a chave da realização da Grande Obra. E aí percebemos que a semente nunca nos foi verdadeiramente “dada”, ela já existia em nós, mas estava adormecida. Na Iniciação, a transmissão é 1% do trabalho, a inspiração é também 1%. Os outros 98% são transpiração. Iniciação sem transpiração é teatro. Iniciação sem transpiração é não-vivência da mesma. Por isso, bem mais importante do que o grau recebido numa iniciação, é trabalharmos no nosso laboratório-oratório interior para atingir o estado correspondente a esse mesmo grau. Porque, para quem o recebe ou transmite, o grau não implica ter atingido esse estado. O estado não se transmite, conquista-se. O ph i us a nov e mbro 2017
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nquanto não despertarmos somos homens da torrente, seres adormecidos, inconscientes da sua verdadeira condição. Aquele que Desperta nasce para uma nova realidade. Ele não nega o “Jogo do Mundo”, conhecido entre os hindus como Lyla, o mundo da manifestação visível e da aparência, de natureza fenoménica, fruto do mundo real e invisível, do incriado, de natureza numénica. Não negando o Jogo do Mundo, aquele que Desperta aceita-o, porque sabe que faz parte da Máquina do Mundo. Mas aceita-o sem o tomar pela realidade. Aceita-o como ilusão. Ele está no mundo, mas não é do mundo, porém, vive no mundo. A sua pátria verdadeira é a das estrelas. Aquele que Desperta reconhece o mundo que vive como um sonho. Aquele que Desperta reconhece o mundo que sonha como uma realidade. Aquele que Desperta, acorda e, assim, tudo lhe é revelado. Pois tudo está em si e Ele é tudo. Ele é Aquele que É.
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A INICIAÇ ÃO É O ABSOLUTO
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Iniciação está para além de quaisquer palavras. O segredo da sua eficácia apenas diz respeito àquele que a vive. Querer defini-la é negá-la. As técnicas iniciáticas e as ordens iniciáticas devem conduzir o iniciado à Via. Quando não o fazem, não são iniciáticas, são estruturas temporais. A iniciação não é confinável ao mundo da temporalidade. O seu reino é outro, inefável e intocável. A iniciação está para além do tempo e das concepções dos homens.
TRÊS AVISOS
Se eu recusar a iniciação, serei um eterno adormecido, presa da temível fatalidade. Se, iniciado, eu recusar a ruptura, serei uma infeliz vítima do meu ego. Se, tendo vivido a ruptura, a negar, mergulharei na noite negra da alma e no limbo dos mundos.
Sem o Silêncio não se chega ao Mistério. Sem o Mistério não se chega à Iniciação. Sem a Iniciação não se chega ao Absoluto. O Absoluto é o abandono ao ser em si. É o não-fazer e o não-ser: a Não-Via. A Não-Via não exclui as vias, antes integra-as, potencializando-as como facetas particulares da expressão do Real. As nossas concepções da Realidade não passam disso mesmo, concepções. E, sendo nossas, nunca poderiam deixar de ser limitadas. Para abraçarmos o Absoluto temos de nos entregar, abandonando-nos ao Vazio. Aí nós somos aquilo que somos e não aquilo que pensamos que somos. Vazio de mim, eu sou uma taça-receptáculo para o Divino, um Graal cujas facetas são a expressão do múltiplo que é uno. ■
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TRÊS LUZES
A Iniciação leva à Ruptura A Ruptura provoca o Despertar O Despertar conduz ao Absoluto
Da identidade à (comum) idade por FÁBIO BARBOSA
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o princípio era o silêncio. E de súbito o silêncio se fez grito primordial, urgência. Desejo ardente. De um encantamento tamanho que da explosão se fizeram estrelas, planetas, galáxias inteiras. E também continentes e oceanos, vales e montanhas, árvores que falam baixinho quando paramos para as escutar. Vieram ainda animais de escamas, pêlo e pluma. E nós humanos, pelo meio. Dizem que ainda hoje os deuses governam os dias e as noites, o amor e a morte. Mas se foi do silêncio que todas as coisas emergiram, foi pela poesia que ganharam o seu primeiro fôlego. Foi pela poesia que viemos a ser muitos. Deuses, espíritos, fantasmas, memórias, sombras, pedras, plantas, animais, novos e velhos. Todos, de certa forma, viventes. Assim se concedeu a cada ser uma melodia única e invicta, e uma voz com que cantar. Assim se
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colocou em andamento a grande Canção do Mundo. Ainda hoje dançamos ao seu ritmo; uns a contra-gosto e contrapasso, outros tecendo a mesma dança para que toda a gente possa entrar na roda. Cosmologias como esta ensinam-nos qual a ordem do mundo, segundo o filtro de determinadas culturas, línguas e linguagens. Fazem-no puxando a cadeira para ocuparmos o nosso próprio lugar nessa ordem cósmica. Pode ser que esta dinâmica resvale para uma forma de determinismo. É um dos extremos possíveis quando se trabalha com uma ferramenta que tem tanto de estética como de ética. Porém a druidaria que pratico alerta: as palavras são coisas. A estética é uma ética. A história que contamos sobre a formação dos Mundos é a contínua estória do crescimento do nosso mundo interior e de como ele interage com os mundos à nossa 7
É ao assumirmo-nos como matéria comum que emerge o Fogo que um dia nos há-de gerar para uma nova existência.
volta. Os deuses a quem atribuímos a ordem das coisas reflectem a ordem que lhes daríamos se estivéssemos nós ao comando. A druidaria que pratico recorda, como faziam os celtas, que estamos em total paridade com todos os seres, nascidos em graça original, mas também com um dever intrínseco. Foi com uma postura desassombrada, “tu cá, tu lá”, que os primeiros humanos a desembarcar na costa irlandesa terão chegado ao empate com os deuses do lugar na guerra pelo domínio da ilha. Dizem os mitos. E assim se chegou à mais acertada das partilhas de bens: aos humanos, uma morada no mundo visível; aos espíritos do lugar, um refúgio nos vales e rios da Irlanda. Ambas as histórias decorrem em simultâneo, sobrepostas como numa narrativa bem tecida. Com a Natureza por fio condutor. Herdámos do desejo primordial a capacidade de formar novos mundos em cada gesto, em todos os discursos. Somos fruto da poesia, e 8
por ela havemos de ser poetas até ao fim das palavras. Eis o sentido de toda a vocação bárdica. M AGOS E JARDINEIROS
Se a Canção do Mundo nos coloca no mesmo patamar que todos os demais seres, capazes de construir ou danificar e viver as consequências nos seus respectivos mundos, quais as fronteiras dessa tal de "Natureza"? Um dos alicerces da druidaria, e de resto, suponho, das demais tradições telúricas, assenta numa relação cada vez mais justa com a Terra que nos serve de casa. Mas penso do mesmo modo que esta prática também nos convida a fazermo-nos casa, tanto para quem nos rodeia como para nós mesmos. Ou seja, uma relação justa depende dos valores fundamentais da hospitalidade e da reciprocidade. Damos porque recebemos constantemente, de diversas formas, de todos os seres. Aprendemos a receber o que nos é devido para poder dar ainda mais.
Este cuidado essencial do mago que é também jardineiro não deixa de ser acima de tudo a inclinação básica de todos os seres. Existimos harmonicamente ao ritmo da Oran Mór — que tem tanto de morte como de vida, diga-se — desde que não o desaprendamos. Há tantos factores que nos conduzem a esse esquecimento: a integração numa sociedade desencantada e des-encantada; todas as estruturas económicas e produtivas que vêem a Terra e as pessoas, humanas e não-humanas, como meras despensas de recursos inesgotáveis; as discriminações concretas e sistemáticas que atentam contra o nosso sentimento de segurança e de valor pessoal; as doutrinas que nos convencem de que nascemos na etnia eleita, no lado eleito da fronteira, na versão eleita da História, conforme convenha aos senhores de ocasião, mas que deixam a espiritualidade retida na alfândega; enfim, as próprias dúvidas quanto ao sentido da Grande Canção. O ph i us a nov e mbro 2017
E se confiássemos? E se nos fizesse mesmo sentido abraçar o arquétipo do mago e do jardineiro que cuidam da alma como do mundo em redor? Passaríamos a compreender as lutas de quem cuja voz ficou afogada pelo ruído de alguns intervenientes na Canção do Mundo. Pelo nosso ruído histórico. Teríamos mais urgência na preservação dos nossos solos, das nossas águas, do nosso ar, dos pensamentos e emoções, das vontades e dos sonhos que poluímos por ocasião do funeral das nossas infâncias. Teríamos mais atenção ao nosso corpo, esse eterno negligenciado a quem devemos tudo, desde os pequenos prazeres às maiores vaidades. Cumpriríamos enfim a solidariedade, porque a mesma Natureza onde se ouvem as vozes dos mitos nos fala pelos corpos diversos, ricos e invioláveis de todas as criaturas. A Terra, essa, continuará no seu próprio percurso, capaz de regularizar todos os desequilíbrios e depurar-se de quaisquer 9
homo sum humani nihil a me alienum puto Sou humano, e nada do que é humano me é estranho. Terêncio
parasitas, tal como sempre fez. A nós, aqui e agora, na intersecção dos nossos privilégios e traumas, com mais ou menos visitas idílicas a círculos de pedra e densas florestas, cabe-nos a escolha de entrar de facto no compasso, na dança de todos os dias, ou ficar à margem da própria vida. DA C AÇ A À DANÇ A
Passamos a vida à caça da Vida profunda, ou a ser por ela caçados, tal como Taliesin terá ganho consciência do Awen depois de ser longamente perseguido por Cerridwen. Parece inevitável que o derradeiro embate se dê mais tarde ou mais cedo, não parece? É válido perguntar se devemos tentar precipitar esse encontro, se se trata de facto mais de precipitação do que de convite. Pessoalmente, prefiro pensar na prática druídica como uma forma de endereçar esse convite ao Awen, a todos os seres, ao mundo inteiro, para que, (im)portados vezes sem conta, me passem a importar deveras. Para que eu transforme a caça numa dança em que ambas as partes se seduzem. 10
Para que eu entenda a Grande Canção pelo diapasão da empatia. Muitas são as formas de entrar nessa dança. Há quem se concentre em treinar a atenção plena, ou em estreitar os laços com os seres dos diversos Mundos, seja como for que se entenda a sua existência. Certamente não iremos longe sem concretizar o que pregamos em hábitos de vida mais éticos e ecológicos, exigindo também dos poderes a sua quota — maioritária — de responsabilidade. Convém ainda saber mais acerca da história de quem fomos, muito para além do filtro dos currículos oficiais; é geralmente pelo olhar da mitologia que tiramos a mordaça de quem não vem nos livros e desafiamos os limites da consciência e do julgamento. Para que enfim questionemos os nossos silêncios coniventes. Para que cresçamos no amor, sabendo que não é pelo mérito que produzimos a pedra filosofal, mas que é ao nos assumirmos como matéria comum que emerge o Fogo que um dia nos há-de gerar para uma nova existência. Afinal, se a Vida profunda nos persegue, não teremos como fugir dela para sempre. ■
Santuário Megalítico de Adrenunes, Serra de Sintra
Sacralidade Megalítica em Portugal por NUNO FERREIRA GONÇALVES
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absolutamente assombrosa a abundância de monumentos megalíticos que podemos surpreender ao longo da orla ocidental da Península Ibérica. O fenómeno é relativamente homogéneo em toda a extensão compreendida entre a Galiza e o Algarve, ainda que a região de Évora albergue uma concentração de megálitos superior aos restantes lugares bafejados pela irradiação misteriosa desses ícones rupestres da sacralidade ancestral. Menires, dólmenes, cromeleques e outras estruturas pétreas congéneres emprestam à Terra das Serpentes um semblante de venerável ancianidade e sinalizam o incomparável manancial telúrico que lhe é inerente. Surgem no alto de montes, em planaltos sobranceiros ou em vales insuspeitáveis, como reminiscências tangíveis de uma religiosidade pagã pejada de sentido mágico. Especula-se acerca dos seus construtores, das suas funcionalidades, significado e antiguidade, numa mescla de exegeses desprovidas de consenso. Pelo menos do ponto de vista académico, a dificuldade parece residir na metodologia antropológica aplicada, mais positiva
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que dedutiva e muito pouco ou nada intuitiva. Quiçá para entender as razões que motivaram a edificação de semelhantes estruturas se faça necessário ver o fenómeno sob a óptica da antropologia filosófica, ou antroposofia, se preferirem, sendo precisamente esse o móbile que nos traz aqui hoje, na expectativa de darmos o nosso contributo para uma visão mais abrangente da temática em epígrafe, de modo que a mesma seja melhor entendida e nos conduza para mais perto da realidade. O nosso país foi fundado num território há muito bafejado pelos deuses. Indícios muito sérios levam-nos a depreender que Kurat — nome pelo qual era conhecida a região serrana de Sintra durante os evos perdidos da Atlântida — terá albergado os melhores entre os semitas atlantes muito antes de Vaivasvata os eleger como semente genealógica da raça ária. Portanto, os eleitos, conduzidos por esse excelso Manu racial, teriam partido daqui para a Ilha Imperecível, onde foram submetidos a transmutações lentas e profundas, e cujo corolário se reflectiu no nascimento da nossa civilização pós-atlante, 11
com as suas primeiras migrações a estabelecerem-se na Meseta do Pamir, Mesopotâmia, Irão e Egipto. Os seus maiores sábios seriam as Serpentes que, conduzidas por Ur-Gardan, regressaram a esta terra de promissão onde o melhor entre vários povos se mesclou sucessivamente. Vemos nos dragani de Avieno, ou nos Tuatha Dé Danann das tradições irlandesas, essas mesmas serpentes de sabedoria cujo legado mistagógico viria a ser posteriormente absorvido pelos druidas. Aos dragani, com o concurso musculado de gigantes de remanescência lemuro-atlante que à época ainda pisavam a face da Terra, se deve a edificação dos santuários megalíticos que sobejam na orla occídua da Ibéria. Das antas fizeram lugares de retiro, convidando ao interior da Terra, ao seu útero, para daí resgatarem a occultum lapidem dos alquimistas. Elas são vaginiformes, simbolizam o princípio feminil da matéria — donde mater rhea ou mãe-terra — e, mais do que meras necrópoles, terão sido lugares de culto votivo à grande deusa, ou a mesma virgem negra de tradições ancestrais. Dos menires, por sua vez, fizeram marcos geodésicos que sinalizam plexos sinergéticos, quais agulhas pétreas de acupunctura sabiamente incrustadas em nervuras teluricamente ultrassensíveis, o que faz deles portentosos emissores e, simultaneamente, receptores de alta frequência. São fálicos e por isso simbolizam o princípio masculino, apontando aos céus, ao coração espiritual do Universo. Uma das estruturas rupestres mais antigas e enigmáticas em todo o território nacional será certamente a vulgo Anta de Adrenunes, que de 12
platô altaneiro da serrania sintriana sobranceia o Promontório Magno ou Olissiponense, Cabo da Roca, Rocha ou Rupis, tanto vale, sinalizando a ponta mais ocidental da Europa. Trata-se de um mole bastante assolado pela erosão do tempo, mas cujo semblante rudimentar, algo abatido por sucessivos acidentes geológicos, não logra dissimular uma intencionalidade geométrica evidente. Com efeito, continua a ser visível a simetria da sua traça, e, embora tenha sido classificado como monumento dolménico por Possidónio da Silva na década de 50 do século XIX (o que até hoje dá azo a controvérsia por ausência de vestígios lúgubres no local), as suas funcionalidades terão transcendido largamente as de uma simples anta. Trata-se na verdade de um dracontia, um templo de culto lunissolar, dedicado ao dragão na sua dupla faceta de demiurgo luciferino — artífice gerador do ilusório universal, segundo o mito gnóstico — e luzeiro de amor-sabedoria — símbolo do resgate da alma espiritual ao ergástulo ilusório dos sentidos. Terão sido naturalmente os dragani a edificar o dracontia kuratiano com vista à iniciação de neófitos, conduzindo-os da treva à luz, o que vai muito bem com a orientação cardeal do tabernáculo, com o portal a poente e a ara a nascente, orientação de que os construtores medievais da cristandade não prescindiriam a posteriori. De acordo com o relato de Avieno, dragani e lusitanos coabitaram Ophiussa, o que significa que estes terão bebido no manancial de sabedoria daqueles. Se aos dragani atribuirmos uma relação de parentesco com
À esquerda: Cromeleque dos Almendres, Évora Nesta página: Diagrama da orientação do cromeleque e menir dos Almendres
os ancestrais Tuatha Dé Danann numa era que se perde na noite dos tempos, já na época dos lusitanos a relação mais óbvia estabelece-se com os druidas, cujo domínio (por herança) da ars sacratum lhes permitiu manter o sentido profundamente mistagógico dos sacrários rupestres. No dizer de Louis Charpentier, as próprias tradições irlandesas recordam os druidas como sacerdotes provenientes da Ibéria, e embora o autor remonte a origem a um “centro iniciático superior muito antigo perto de Santiago de Compostela”, o mais provável é que os druidas ibéricos tenham aquartelado o cerne do seu colégio iniciático na região de Sintra, em cujo escrínio sacrossanto vibra o quinto vórtice sinergético do planeta, qual laríngeo planetário de inusitada e incomparável irradiação verbal. Destarte, os druidas terão sido os derradeiros utilizadores operativos do dracontia kuratiano. Os eflúvios telúricos que brotam do útero sintriano atravessam todo o território peninsular e o seu benfazejo raio de acção abarca as ilhas britânicas, a Europa continental e, inclusive, regiões insulares, especialmente o arquipélago dos Açores. Naturalmente, tal como já foi dito, o ocidente ibérico recebe esses eflúvios com maior intensidade, sendo a região de Évora particularmente sensível ao fenómeno. Não será certamente por acaso que a cerca de doze quilómetros da capital alentejana jaz tácito o Cromeleque dos Almendres, o maior e mais importante do seu género em toda a Península Ibérica. No seu apogeu, o cromeleque era uma estrutura verdadeiramente inaudita, O ph i us a nov e mbro 2017
apresentando um duplo anel elipsoidal encabeçado a nascente por dois círculos concêntricos, numa disposição sofisticada que terá chegado a albergar mais de uma centena de menires de dimensões variadas. De orientação equinocial, o eixo este-oeste culmina a nascente num menir com cerca de 3,40 m de altura, sensivelmente à distância de um quilómetro e meio. Semelhante alinhamento é o corolário de um cânone primoroso, obedecendo a determinada gnosiologia de inspiração teúrgica que fez da estrutura um magistral laboratório alquímico, capaz de promover o consórcio flogístico entre forças telúricas e celestes. Ao monólito cabia receber o fogo frio do cosmos — conhecido entre os orientais como fohat —, projectá-lo no círculo interior da ‘abside total’ que se moveria no sentido dos ponteiros do relógio, para de seguida fluir até ao anel interior da “nave” elipsoidal, que rodaria no sentido oposto, produzindo um movimento em oito — súmula da suprema neutralidade como oitava superior relativamente ao septenário evolutivo universal — e, finalmente, lançá-lo até ao núcleo flogístico do orbe, aí despertando o fogo quente do seio da Terra — Kundalini —, que refluía em sentido inverso ao longo de toda a estrutura, até que o monólito o relançasse em direção ao coração espiritual do Universo. É natural que no tempo dos druidas já não se fizesse algo tão transcendente, mas não nos custa crer que os Tuatha Dé Danann, sacerdotes iniciados de elevadíssima craveira espiritual, o tenham feito no seu tempo. ■ 13
LUG ARES M ÁGICOS
A misteriosa história de Doon Hill e o Trilho das Fadas por ISA BAPTISTA
Mingling hands and mingling glances Till the moon has taken flight; To and fro we leap And chase the frothy bubbles, While the world is full of troubles And is anxious in its sleep. Come away, O human child! To the waters and the wild With a faery, hand in hand, For the world's more full of weeping than you can understand. William Butler Yeats in "The Stolen Child"
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e entre os muitos locais da velha Europa associados, através de mitos, lendas e folclore local, ao “outro mundo”, a seres elementais da natureza ou episódios que desafiam a lógica, a história aqui apresentada destaca-se como uma das mais curiosas, envolvendo uma personagem histórica, autora de um clássico literário de referência no que respeita ao contacto com os reinos feéricos, e um dos locais mais misteriosos da Escócia rural. Segundo uma antiga crença irlandesa, em alguns lugares específicos e determinadas épocas do ano, como o Samhain celta, o véu que separa o “céu” e a “terra” tem somente a largura de três pés. Por esta razão, torna-se possível aceder, nestes momentos, a vislumbres do “outro mundo” que podem culminar em encontros inesperados com o povo das fadas, também conhecido como a nação invisível ou o povo do crepúsculo. Designados Caol Áit, lugares “finos” ou "translúcidos”, estes locais lendários continuam a alimentar a curiosidade de todos os que anualmente continuam a procurá-los, e permanecem envoltos pela bruma do seu próprio mistério. Esta é a história de um desses lugares…
Doon Hill, também conhecida como Fairy Knowe, é uma colina lendária, envolta em mito e mistério, junto à vila de Aberfoyle na Escócia. Este local tem permanecido, ao longo de vários séculos, associado ao reverendo Robert Kirk, um padre que ficou mais célebre pela sua profunda crença em fadas do que pelos sermões bíblicos. Robert Kirk foi um sétimo filho, facto que, de acordo com a crença local da época, explicava a possibilidade de ser dotado de “segunda visão”, apurada intuição, ou o dom de “ver”. Obcecado e persistente na sua tentativa de compreender, estudar e comprovar a existência e veracidade do povo das fadas, habitantes do “outro mundo” ou “sidhe”, como eram conhecidos na língua gaélica, Robert escreveu o seu famoso The Secret Commonwealth of Elves, Fauns and Fairies, em 1691. O livro é um ensaio sobre a natureza e a estrutura social dos seres elementais ou fadas. O trabalho de extremo detalhe de Kirk não era enciclopédico ou baseado em investigação escolástica, pois, além das várias crenças e avistamentos locais que recolheu e registou, escreveu grande parte da obra a partir daquilo que sempre afirmou tratar-se de experiência pessoal e observação directa. O ph i us a nov e mbro 2017
FACTOS CURIOSOS
De acordo com a tradição local, Robert não morreu, tendo sido levado para o reino das fadas através da mítica colina, onde acreditava encontrar-se a “porta” para o Reino Misterioso, facto alegadamente ocorrido após a divulgação das informações contidas no seu livro, que teria suscitado a ira dos seres elementais. Kirk costumava caminhar até Doon Hill todos os dias; contudo, na manhã de 14 de Maio de 1692, durante o seu passeio diário, caiu inanimado, tendo o seu corpo sido descoberto mais tarde por habitantes locais que o julgaram morto. No entanto, o reverendo Patrick Graham, um dos sucessores de Kirk no início do século XIX, delineou o que aconteceu em seguida: Aparentemente, Kirk, depois do seu próprio funeral, apareceu ao seu primo Graham de Duchray, confessando-lhe que não estava morto, que tinha apenas caído e desmaiado na colina, tendo sido levado para o reino das fadas, como prisioneiro pelas suas revelações. Acreditava Robert que a sua libertação seria ainda possível durante o baptismo de seu filho póstumo (a esposa de kirk estava grávida aquando da sua “morte” aparente). Advertiu o primo que iria aparecer na igreja durante o baptismo da criança e que Duchray deveria lançar uma faca de ferro enferrujado sobre a sua aparição para libertá-lo do cativeiro. À hora marcada, Robert Kirk apareceu como previsto; porém, o seu primo não conseguiu cumprir a tarefa prometida, por terror ou surpresa, e Kirk saiu placidamente da igreja para não mais regressar. Até hoje muitos acreditam que Kirk continua vivo no reino das fadas, embora outros tenham sugerido que ele é agora um mediador entre os dois mundos.
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LUG ARES M ÁGICOS
UM PASSEIO M ÁGICO
Twilight Fantasies, de Edward Robert Hughes
Da velha igreja de Aberfoyle, um caminho leva a Doon Hill, por onde o reverendo andava todos os dias e observava as fadas. O trilho ao longo da colina tem uma atmosfera única, lembrando um pouco o design da colina do Tor em Glastonbury, que parece ter sido trabalhada ou moldada pela mão humana. De facto, alguns investigadores sugerem que a colina poderá ter abrigado uma fortaleza durante a Idade do Ferro, ou algum tipo de estrutura ceremonial/ritualística, embora o terreno nunca tenha sido escavado. A caminhada até ao trilho íngreme, através das árvores, leva a uma pequena clareira com um grande pinheiro antigo no centro. A árvore é conhecida como a “Ministers Pine”, visível a quilómetros de distância com sua folhagem escura. Diz-se localmente que a árvore abriga o espírito de Robert Kirk. Hoje em dia, fitas, pendentes, mensagens votivas e pedidos são amarrados simbolicamente às árvores ao seu redor, e oferendas para as fadas, tais como peças de fruta, biscoitos, botões ou pequenas gemas, são também colocadas no chão, no patamar superior de Doon Hill. ■ 16
Equi nócio e a via do Equi líbrio o
U
ma das principais causas das doenças que surgem no dia-a-dia é o desequilíbrio que existe entre o Homem e o seu bioritmo, fruto de uma sociedade em acelerada expansão tecnológica, onde este cada vez menos responde aos estímulos da Natureza. Citando Hipócrates, que terá dito “nós somos o que comemos”, é de elevada importância o cuidado e atenção ao consumo de produtos marcados pela sazonalidade, os quais fornecem exactamente o que necessitamos, do ponto de vista nutricional. Com o surgimento do equinócio de Outono, às 20:02 do dia 22 de Setembro, o nosso corpo começou a abrandar; o ritmo mais frenético deu lugar ao lento, ao pré-invernal.
O ph i us a nov e mbro 2017
por FRANCISCO CANELAS DE MELO
O lento gera o ócio, e dia-a-dia, sentimos cada vez mais a noite a vencer o dia. É tempo de acumular para o Inverno — “Hiberno” — é o momento em que os frutos dão lugar às raízes, folhas rústicas e algumas bagas. Através da alimentação, deveremos eliminar os excessos que só o Verão permite, para novos recomeços. Deveremos ter em atenção que acumular significa maior sobrecarga para órgãos como fígado e rins; equilibre a sua alimentação com produtos da época e complemente com algumas plantas medicinais metabólicas e hepáticas como erva-cidreira (Melissa officinalis), dente-de-leão (Taraxacum officinalis), orégão (Origanum vulgare) ou bardana (Arctium lappa). ■ 17
No Bosque Sagrado por JOEL MARTELEIRA
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A
qui no Bosque Sagrado, pergunto-me tantas vezes se este é o meu Caminho. O porquê de estar aqui, de aqui me sentir tão bem, tão em união com tudo o que me rodeia. Percorrendo outros Caminhos, faço a mesma pergunta ao trilhá-los, entregando-me por completo, de coração aberto. Chego à conclusão de que só há uma razão: Todos os Caminhos levam ao mesmo “ponto” de chegada, “ponto” de partida, pois, chegando, outro Caminho começará. Todos estes Caminhos, seja o Caminho Druídico, o Caminho do Santo Daime, o Caminho Sufi, seja o Caminho Vermelho dos wixárikas/huichol, têm por fim o Reencontro com o Divino, com os Deuses, com a Luz, com o Grande Espírito (seja qual for o nome que “lhe” atribuam). Caminhos, todos eles percorridos de formas diversas, mas que têm por base o Amor. O Amor a nós próprios, a todas as criaturas da Terra, à própria Terra, nossa Mãe, ao Universo. O Amor a Tudo, porque nós fazemos parte dessa enorme aventura-mistério que é a Vida, o Universo e tudo o que ele contém, sendo que o Universo a que me refiro é o Universo do Grande Espírito que engloba tudo o que se reconhece materialmente — e comprovado pela ciência, que teima, numa busca desenfreada, substituir-se ao próprio Deus — e tudo o que jamais a ciência poderá comprovar, pois faz parte do imaterial, do sentir, do amar. Faz parte do Coração, de uma certeza absoluta que vem da sensibilidade de cada indivíduo e do seu conhecimento empírico, diria mesmo, da sua Sabedoria Ancestral, a Sabedoria que cada um carrega no seu ADN espiritual.
O ph i us a nov e mbro 2017
Todos nós somos espíritos encarnados neste corpo material e terreno, para nos relembrarmos de quem somos realmente e de onde viemos e para onde vamos. No entanto, todo este percurso se faz rompendo véus, densos uns, translúcidos outros e, de quando em quando, um véu transparente nos surge, e é através desse véu que nos relembramos de quem somos. É através dele que vemos a Luz e sentimos o Amor do Mais Divino no Coração. Pois, então, neste nosso trilhar nesta Terra, podemos seguir qualquer Caminho. Podemos seguir o Caminho que herdámos por tradição e herança cultural, ou seguir um outro que faça, para nós, mais sentido. Também podemos percorrer vários Caminhos e, em todos, bebermos a água pura de cada fonte que eles nos oferecem. Não importa em que Caminho se situa a fonte, importa que essa fonte nos ofereça a água pura que nos mata a sede de Sabedoria. Através dessa água, toda uma transmutação se inicia em nós e, quando olhamos em redor, vemos bem para além da simples flor que se abre à beira do caminho, ou da nuvem que percorre os céus, ou do voo dos pássaros, ou, ou… Para além de tudo isso, dessa aparência real, há o que lhes dá a forma, o movimento, a cor, o perfume a densidade… Há a Energia que os alimenta, a mesma Energia que nos alimenta, a mesma Luz que nos ilumina e, aí, sentimos que a realidade das coisas, de tudo, é só uma, UNA e indivisível. Mistério. O Mistério Divino. ■ Sintra, 4/9/2017 19
Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. Gonçalo M. Tavares
Maria José Jacinto
Eisteddfod:
Mão saudosa, Corpo encoberto, Cinzas no chão. Cantam as raízes profundas, húmidas e negras. Estrelas que enchem o corpo e eu danço. Desejo respirar E perfumar-me com essência de jasmim. Mafalda Cancela
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eterna criança da lua, amada e trágica ninfa, revela-te! e ao teu laço em desaperto. A mim, que me consigo mover (como um fantasma) por tuas árvores-estelas teu mapa de muros vivos tua cascata de orquestras tua fonte, ao meio-dia estranha, teu perfume de montanha em mares de um vento d’além, pelos palácios, veloz e como nuvem branca ao fundear no teu colo, renasço no teu misticismo pagão adorando a lua, bacante, e sou o «noivo desvairado ao luar» e devir nos olhos de um poeta em viagem para a luz. Revela-me! mulher telúrica e virgem, do teu corpo o selo tua fonte dos amores no santuário dos fetos na cynthia dos eremitérios dos conventos e das tabas, no oriente, dentro de ti. O ph i us a nov e mbro 2017
Revela-te! a mim, que padeço desta insónia de amar tua branca aparição, hárpica cynthia, dá-me a visão, uma vez, da tua face… e enterra meu corpo frio, quando eu morrer, depois, dentro de ti, antes do céu, para que leia no teu cabelo frases com pena, folhas de música de um rei artista.
HINO A CYNTHIA
Suave deusa da ilha saturnina cynthia celta romana vestal do ocaso moura alma encantada deusa que caças no bosque, revela-me a tua face!
E que depois de saciado, na harmonia do bosque mágico em ritual sagrado e sensual na clareira magmática eu renascesse da pira quente do megalito a um ritmo extático de cítaras que a minha voz transformassem, oh deusa mais pura, serena, na de um poeta druídico. [Variação sobre o poema "Cynthia", do livro Selenographia in Cynthia. Cor(de)ais agradecimentos a George Crumb, pela suave, telúrica e cósmica companhia que a sua obra Makrokosmos I + II me proporcionou durante a escrita do poema, numa noite de Carnaval, e muito especialmente o tema “Gespenster-Nocturne: füdie Druiden von Stonehenge (Nachtzauber II)”, sob o signo de Virgem.] Jorge Telles de Menezes
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EISTEDDFOD
SA MHAIN
Samhain, o tempo sem tempo O véu entre os mundos, como nevoeiro, se desvanece Chegam Ancestrais, Deuses e Espíritos da Natureza Caminham entre nós desde a hora em que anoitece. Celebram connosco a viragem do ano É tempo de nos despedirmos das últimas colheitas Honramos Deuses e Aqueles que nos antecederam Aspirando a um futuro de vidas perfeitas. Renovamos os nossos compromissos espirituais Consolidamos relações com os mundos Traçamos os nossos passos por caminhos não habituais Nossas crenças e conhecimentos cada dia mais profundos. A roda do ano retornou ao Samhain Aos nossos olhos abrem-se outras realidades O nevoeiro dissipou-se, vislumbra-se o caminho, por fim No limiar dos mundos, encontramos as nossas verdades. Ana Simões
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Marta Pinto
Uma vez cortada a floresta virgem, tudo muda. É bem verdade que é possível plantar eucaliptos, essa raça sem vergonha que cresce depressa, para substituir velhas árvores seculares que ninguém viu nascer nem plantou. Para certos gostos, fica até mais bonito: todos enfileirados, em permanente posição de sentido, preparados para o corte. E para o lucro. Acima de tudo, vão-se os mistérios, as sombras não penetradas e desconhecidas, os silêncios, os lugares ainda não visitados. O espaço racionaliza-se sob a exigência da organização. Os ventos não mais serão cavalgados por espíritos misteriosos, porque todos eles só falarão de cifras, financiamentos e negócios. Rubem Alves (1933-2014) Nascido no Brasil, foi teólogo, filósofo, educador, escritor e psicanalista.
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alma na — — que LIVRO
www.oghamoraculo.blogspot.com
Ogham: O Oráculo dos Druidas Osvaldo R. Feres 2017
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Já conhecemos Osvaldo R. Feres através do seu blogue, recomendado pela Ophiusa numa edição anterior. Sabemos por isso o quão dedicado o autor é à sua prática do Ogham, assente em alicerces sólidos e refinada, tanto pelo estudo atento como pela experiência pessoal. Com o seu novo livro, com o mesmo título da sua página na Internet, confirma-se o seu papel de relevo na literatura em língua portuguesa sobre o Ogham... E não só. Osvaldo R. Feres reconhece a forma como o neopaganismo, com tudo o que foi beber ao esoterismo ocidental — bem como o que isso implica quanto a apaixonados equívocos e imprecisões históricas —, contribuiu para o ressurgimento do Ogham. Mas esta obra distingue-se de tantas outras abordagens na senda de Robert Graves precisamente por assumir uma abordagem respaldada pelo movimento reconstructionista celta, que tanto deve a Erynn Rowan Laurie e à sua bibliografia, de resto fundamental, sobre o Ogham e o universo celta.
O livro explora cada letra do Ogham na sua totalidade, como uma rede de conceitos que sim, podem ser associados a determinadas árvores, mas que tecem uma simbologia muito mais rica. Acima de tudo, um universo que não pode ser entendido sem uma compreensão clara da mitologia e cosmologia celtas, e irlandesas em particular, de modo a que se torne relevante, de corpo e alma, para os praticantes em todo o mundo. Este é um guia prático para quem pretende iniciar ou aprofundar o estudo do Ogham. Desde ideias para métodos de tiragem, formulação de sigilos e talismãs até um conjunto de meditações que permitem ao praticante absorver a riqueza do Ogham na sua totalidade, este volume reconcilia a tradição com vários contributos modernos, dando nova vida às letras deste antigo alfabeto. Letras-fonte de sabedoria intemporal para o dia-a-dia: uma verdadeira arte oracular. ■ Fábio Barbosa
19 de Novembro
>> EVENTOS
PERCEPÇ ÃO DO PAGANISMO
5 de Novembro
EM PORTUGAL
O PAGANISMO M ÁGICO
Casa do Fauno, Sintra Palestra com Mariana Vital e Mário Pinto
E O ESPÍRITO DA TERR A
Casa do Fauno, Sintra Palestra com Gilberto de Lascariz
17 de Dezembro HERBALISMO M ÁGICO E MEDICINAL
9 de Dezembro ASSEMBLEIA DE INVERNO DA OBOD
Glastonbury, Reino Unido
– ESPECIAL SOLSTÍCIO DE INVERNO
Casa do Fauno, Sintra Curso com Isa Baptista
DISCO
“Vivemos tempos de recolha, de pureza e calmia”. É com palavras destas, a arder sobre um lume crepitante, que somos acolhidos pelo mais recente EP dos Urze de Lume. Em Vozes na Neblina, a banda abranda o passo de outros trabalhos dark folk e convida-nos a adentrar os mistérios do Outono, como num casebre no norte do país. Estas Vozes na Neblina são vozes mais antigas que o próprio tempo, porque vinculadas à própria terra, ao barro que nos forma. Em dois temas instrumentais apresentados por outras duas faixas, narradas pelos barceloneses Àrnica, colaboradores habituais da banda, os Urze de Lume invocam essas vozes junto ao calor da fogueira, denunciando o esquecimento a que foram votadas, ainda que até hoje nos ressoem nas paisagens e no sangue. O ph i us a nov e mbro 2017
Neste disco, a habitual gaita-de-foles é calada para deixar ecoar as cordas da rabeca e da viola campaniça, que, demarcadas pela percussão incisiva que caracteriza a banda, pintam com todas as cores da névoa um ambiente sonoro tão assombrador quanto belo. E sobretudo, fiel às raízes. A forma acompanha a mensagem, neste EP que nos pede para ser, mais que escutado, respirado até ao transe, até que enfim atravessemos para o país além do mundo aparente; para um espaço de harmonia entre as gentes e a terra, tema sempre tão caro à banda. Vozes na Neblina está disponível em edição física e digital, e pode ser escutado nos principais serviços de streaming na Internet. ■
www.urzedelume.bandcamp.com
Vozes na Neblina Urze de Lume Equilibrium Music, 2017
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AL M ANAQUE
>> EVENTOS Todas as luas cheias, a Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas convida-o a meditar pela paz.
Uma meditação mensal, a sós ou com um Grupo-Semente ou Bosque, com vista à paz: no mais íntimo, na comunidade e no mundo inteiro.
EM LINHA
PODCAST
DRUIDC AST
www.druidcast.libsyn.com O podcast oficial da OBOD, apresentado por Damh the Bard.
BLOG
KELTODUNUM
www.keltodunum.wordpress.com Recolha e tradução de textos académicos sobre os antigos povos celtas.
BLOG
LIVING LIMINARLY
www.lairbhan.blogspot.com Página da autora Morgan Daimler sobre espiritualidade e mitologia irlandesa.
BLOG + PODCAST
RUNE SOUP
www.runesoup.com Gordon White discute diversas tradições mágicas, antropologia e cultura.
PODCAST
CELTIC MY TH PODSHOW
www.celticmythpodshow.com Contos, mitos e lendas da Irlanda, País de Gales e outras culturas celtas.
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DE foto: Hudson Hintze
TRÍ
três sinais de sabedoria: paciência, proximidade, o dom da profecia. O ph i us a nov e mbro 2017
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O MISTERIOSO "OVO DA SERPENTE" DOS DRUIDA S
«Há também um outro tipo de ovo, muito famoso nas províncias gálicas, mas que é ignorado pelos gregos. No Verão, inúmeras serpentes entrelaçam-se até formarem numa bola, que se mantém unida graças a uma secreção do seu corpo e à sua saliva. A isto se chama anguinum. Os druidas dizem que as serpentes ao sibilar lançam-no no ar e que deverá ser apanhado com uma capa, não permitindo que toque no chão, e que se deve instantaneamente voar dali a cavalo, pois as serpentes irão entrar em perseguição até serem impedidas de continuar por algum ribeiro. Pode ser testado, dizem, vendo se flutua contra a corrente de um rio, embora seja feito de ouro. Mas como é hábito dos magos de lançar um véu astucioso sobre as suas fraudes, dizem eles que estes ovos apenas podem ser tomados num determinado dia da lua, como se coubesse à humanidade harmonizar a lua e as serpentes de acordo com o momento da operação.
Plínio, o Velho in História Natural, séc. I (tradução: Alexandre Gabriel)
Eu próprio, contudo, vi um destes ovos: era redondo e do tamanho de uma pequena maçã, a casca era cartilaginosa e marcada como os braços de um pólipo: é tido em alta estima pelos Druidas. Quem o possui gaba-se de que assegura o êxito em processos legais e um favorecimento nas recepções pelos príncipes, uma noção que foi desmentida, pois um romano da classe equestre — um nativo do território dos Vocôntios —, que durante um julgamento tinha um destes ovos no seu peito, foi morto pelo falecido Imperador Tibério, que eu saiba, apenas porque o tinha consigo. É este entrelaçar das serpentes uma na outra, e os resultados frutíferos deste uníssono, que me parece ter dado origem ao costume, nas nações estrangeiras, de se rodear o caduceu com representações de serpentes, como acontece em tantos símbolos da paz — também deve ser lembrado que, no caduceu, as serpentes nunca são representadas como estando direitas.»