Ophiusa n.º 6 — Maio 2018

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Revista da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas — OBOD em língua portuguesa

Maio 2018

obod.com.pt


EDITORIAL

Em Cima como em Baixo

FÁBIO BARBOSA

Propriedade: © 2018, Zéfiro – Edições e Actividades Culturais, Lda. ISSN: 2183-9255 Depósito Legal: 419 013/16 Esta obra não pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo à excepção de excertos para divulgação. Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.

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Roda do Ano continua a girar e de novo damos por nós diante do Mistério com um Véu menos denso de permeio. No hemisfério Norte, acendem-se agora no Beltane os fogos de uma paixão caótica, daquele tremor criativo que por vezes destapa o Sol e por outras se manifesta em tempestades inesperadas. No hemisféro Sul, são as chamas de Samhain que guiam almas entre mundos, simultaneamente fogueira para banquete e augúrio de uma nova Luz. Em qualquer uma destas estações da Roda, estende-se do Outro Lado uma mão que nos convida a fazer parte destes ciclos, como um antídoto contra a inércia, contra a prisão de um Eu que não dança, um Ego estagnado. Em Cima como em Baixo. As várias reflexões propostas nesta edição da Ophiusa apontam precisamente para essa dimensão, em que é despindo-nos da nossa indumentária habitual que nos preparamos para ver o rosto da Floresta, da Grande Roda. A dimensão em que os actos mais loucos são também os mais iniciáticos. Pois que é o ritual senão “poesia no mundo dos actos”, como diria Ross Nichols? Neste número chegam-nos também palavras que segredam Silêncios, nutridas no seio do nosso Templo Druídico em Sintra, a ser renovado precisamente nestes dias de Beltane. Que estas páginas permitam também despertar a faísca da Inspiração e Renovação em todos aqueles que as lêem. ■

Director: Alexandre Gabriel Editor: Fábio Barbosa Concepção gráfica e paginação: Fábio Barbosa Imagem de capa: Luiz Goulart Colaboram neste número: Adílio Jorge Marques, Agostinho Veras, Ana Simões, Cerridwen, Dinis Cortes, Joel Marteleira, José Alexandre Frazão Matos, Iris Lican, Melissa Boëchat, Morgana da Lusitânia, Nuno Ferreira Gonçalves, Olórin.

Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas Responsável pelo curso de Druidismo em língua portuguesa: Alexandre Gabriel Morada: Zéfiro, OBOD, Apartado 21, 2711-953 Sintra, Portugal Telefone: (+351) 91 48 48 900 E-mail: obod@obod.com.pt Website: www.obod.com.pt


ÍNDICE

Dán ou a Poesia Indómita p.4

Corpo Terra Templo p.8

A ressurreição da Natureza p.12

A Floresta Sagrada p.14

O Cristianismo Celta — Parte 2 p.18

No Bosque Sagrado p.22

EISTEDDFOD AL M ANAQUE T R Í A D E

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p.24 p.28 p.31

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ou a Poesia Indómita por FÁBIO BARBOSA

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pouco que sabemos acerca de como viviam, e sobretudo como pensavam, as comunidades celtas da Antiguidade tem-nos chegado através do estudo da arqueologia, da sua mitologia e lite­ratura — tantas vezes filtradas pelo olhar cristão —, mas também e cada vez mais por uma análise linguística que nos permite encon­trar paralelos surpreendentes na generalidade das culturas situadas entre a Europa e o subcontinente indiano, o que parece fazer jus ao elevado estatuto que essas mesmas culturas atribuíam à palavra e ao modo como serve de canal — que é como quem diz, de agente criador — entre este e outros Mundos. Alguns dos conceitos das antigas línguas celtas que sobreviveram até aos dicionários modernos são verdadeiras cápsulas do tempo que, com um punhado de letras apenas, nos abrem as portas para o tempo e o espaço de onde emergiram. Nascidas num “império sem imperadores”, no dizer de Jean Markale, isto é, fora da dinâmica de violação e de assimi­ lação gratuita do corpo da Terra e dos corpos individuais em que assenta a herança cultural que tanto idolatramos, diria que provocam curto-circuitos no nosso entendimento alienado; são, pois, veículos de iniciação. Um desses casos é o de uma pequena mas multifacetada palavra irlandesa: Dán. Se consul­tarmos os contextos em que surge em 4

textos antigos e ainda nos nossos dias, veremos que acumula, como num palimp­sesto, uma série de significados interes­santes. Dán é um dom, mas também uma arte, uma prática continuada. É a poesia, em todas as suas formas, mas também o destino de todos e de cada um. Ou seja, como em tudo no pensamento celta, é uma dádiva recíproca: a porção de Dán que nos é dada em cada existência é ao mesmo tempo uma vocação, um chamamento, o dever de retribuir com outra oferenda. A da própria vida. «AS PAL AVR AS SÃO COISAS.»

— Bernardo Pinto de Almeida O conceito irlandês de Dán encontra alguns paralelos noutras tradições, como por exemplo, e de forma notável, no Dabar hebraico, que significa tanto “palavra” como “coisa”, aparece associado a declarações profé­ticas que neste canto do mundo dirí­ amos ser bárdicas, e que os antigos tradu­tores helénicos equiparavam ao Logos em que os gregos pensavam residir a razão e a forma de todo o Universo. De facto, não estranhava aos gregos ver nos versos poéticos o mesmo impulso cria­tivo observável nos ciclos de nascimento e morte, nos grandes feitos onde se forjavam heróis ou no próprio desenvolvimento da virtude e do


conhecimento, como se lê n’O Banquete, de Platão. Afinal, todas essas manifestações são modos de poiesis, e por darem forma ao tempo e ao espaço devem ter origem fora dessas mesmas limitações, mais além e mais intimamente, na própria Matriz do Ser. Se entendermos os antigos e novos Deuses como se fossem nós numa trama, como pontos onde se entrelaçam os fios da grande teia da vida, as várias almas — dos lugares, dos povos, de cada um — que constituem a Anima Mundi, a Grande Canção ou a Árvore que está no eixo do Universo, será fácil compre­ ender porque, segundo os Mitos, a família de entidades poderosas que retirou aos Fir Bolg a posse da Irlanda recebeu o nome de Tuatha Dé Danann: a Tribo dos Deuses Habilidosos, ou das Artes. As Artes precedem assim aos próprios Deuses, que como qualquer criatura são colo­ cados sob a sua lei, pois é bem melhor participar na Grande Canção do que por ela ser arrastado. Pois o Dán é tanto destino como ofício: é o talento para Ser. Aos humanos que dominam essas mesmas Artes, os Mitos dão-lhes a honra de repartir equitativamente o Cosmos com as deidades. Um dia, vindos da Ibéria, chegam à Irlanda os Milesianos, liderados pelo druida Amergin, que no seu canto se identifica plenamente com cada um dos elementos da terra e com O ph i us a m a io 2018

a própria Mente por detrás do Todo. Essa gnose torna-se a chave para a posse da ilha, a condição fundamental para a sua Soberania. O C ALDEIR ÃO DA POESIA

O processo pelo qual alguém pode aceder à iniciação pelo Dán aparece descrito no século VII sob a forma mais apropriada possível: um poema composto por um filí irlandês, isto é, um membro de uma antiga classe de videntes, profetas e poetas que provavelmente desempenhavam as mesmas funções na Irlanda que os ovates e bardos noutras paragens. Trata-se, claro, do texto O Caldeirão da Poesia. O autor identifica-se com o próprio Amergin, e conta que na constituição de cada ser humano se modelaram três caldeirões, formados a partir do Mistério indizível: no abdó­men, reside o Caldeirão da Incubação, do Aquecimento ou do Sustento, posicionado de forma normal; ao peito, está o Caldeirão do Movimento, que nasce deitado de lado; e na cabeça, o Caldeirão da Sabedoria, que no começo das nossas vidas está virado com a boca para baixo. Adequadamente, no primeiro caldeirão fervilha o Dán específico que a cada um foi atribuído, e cabe a quem busca a iniciação alinhar-se com ele, aproveitando o fogo dos vários prazeres e mágoas dos sentidos que fazem tombar o Caldeirão do Movimento numa direcção ou 5


Não se entende a dança entre Caos e Ordem, Água e Fogo, que vem gerando os Mundos de ciclo em ciclo numa paixão inqui­eta, sem fazer a passagem para um pensamento triádico.

noutra, até inverter o Caldeirão da Sabedoria para o preencher com os dons da Poesia e de todas as Artes. Como o deus Manannán Mac Lir — a Alma gaélica do mar, da magia e do Outro Mundo — terá aconselhado ao rei Cormac Mac Áirt, só acede à sabedoria quem souber beber plenamente dos cinco ribeiros de salmões em Tir na nÓg. Só a gnose sem filtros fornecida pelos cinco sentidos, esses limi­ ares sagrados, leva até an Fhírinne aghaidh an tSoail, a verdade do Mundo contra o mundo que nos foi vendido. Se vivemos e morremos pelas histórias que nos são contadas, se são elas que nos integram nas nossas várias tribos e nos explicam quem pensamos que somos, resulta claro que a espiritualidade alinhada com o Dán é um esforço poético de reconstruir a nossa narra­ tiva pessoal e colectiva, uma história que nos apresenta de novo à Árvore dos Mundos e não a um mundo feito armazém de “recursos” naturais e humanos mais ou menos esgotáveis. LOUCUR A , MORTE OU INICIAÇ ÃO

O que há de selvagem na sabedoria druídica prende-se com a forma como inevitavelmente nos precipita para um confronto directo com a soberania dos vários Mundos, a soberania do lugar que nos faz o favor de acolher e a própria soberania com que conduzimos a nossa existência. O tipo de 6

soberania que confere autoridade aos actos e palavras de Amergin, que permite aos humanos repar­tir o Cosmos-Irlanda em equidade com os Deuses, é por definição uma Soberania indó­mita. Ela escolhe a quem deseja mostrar a sua face. Conta-nos a mitologia irlandesa que a Sobe­rania do lugar, desposada com Lugh, O das Muitas Artes, tinha o mandato de nomear cada um dos reis que governariam a ilha até ao fim dos tempos; os mesmos reis cujo sucesso dependia integralmente de estarem ou não em união plena com a Terra e, portanto, com todos os planos de existência. Esta relação com a Vida Invicta, feita hieros gamos em quem todos os esforços místicos convergem, exige que se abandone o pensamento dualista que, na nossa cultura, oferece como única opção um con­junto de falsos binó­ mios entre diferentes formas de explo­ração dos seres. Desde a divisão do Cosmos em três Mundos aos Trí Naoimh, das tríades irlandesas medievais às de Iolo Morganwg, parece existir uma longa tradição que usa o número 3 como um gatilho para um pensamento holístico. Mas não nos deixemos iludir: a terceira via aberta pelo Dán não alinha pelo credo da mode­ração: no momento em que a Morrígan faz ecoar os seus gritos ou Cerridwen parte à caça de Gwion, optar pela isenção ou por assistir com indiferença à Grande Canção do Mundo atenta


directamente contra a inici­ ação que Elas pretendem comunicar. Não se entende a dança entre Caos e Ordem, Água e Fogo, que vem gerando os Mundos de ciclo em ciclo numa paixão inqui­ eta, sem fazer a passagem para um pensamento triádico. Muito menos quando todas as lentes com que a cultura maioritária nos enquadra o olhar não estão calibradas para entender o Mítico. Diante da diversidade de todas as existências suscitadas pelo Awen, dema­ siados grimórios e mestres estereo­ tipam o Natural à imagem e semelhança de ideologias tão recentes quanto a Revolução Industrial, e de normas morais que ainda vendem a procriação como a única ou até a melhor narra­tiva iniciatória — ontem, hoje e sempre, é o Homem, um grupo muito específico de homens, a colocar-se a si mesmo no centro do Mundo. O caminho do Dán coloca-nos face a face com a soberania indelével e inviolável de cada ser e desman­tela aquela lógica decalcada do Contrato Social de Locke que reduz a Terra — bem como determi­nados grupos sociais, conforme a necessidade da moral domi­nante — a um recurso a explorar, como se não tivesse voz própria, uma voz que qualquer ani­mista poderá garantir que fala continuamente e bem alto. Uma lógica que necessita de manter uma elite para subsistir e divide direitos por ordem de importância económica ou mediática. Deixarmo-nos arder O ph i us a m a io 2018

pela Poesia Indó­mita, que conhece apenas as suas próprias regras, leva-nos a considerar a terceira opção, a menos evidente e a mais radical, na raiz da Canção da Vida: deixar que a experiência infil­trada, o Ser, nos faça sábios, e assim situar o fim de toda a opressão no centro das preocupações ecológicas mais urgentes, “pelo amor de todas as existências”. Ou não fosse integral e inerentemente bárdica a crítica ao culto da civilização. Conta uma lenda associada à montanha de Cadair Idris, no País de Gales, que todos aqueles que pernoitam no seu sopé, encan­ tados pela perspectiva de se tornarem poetas de renome, devem esperar um de três destinos: acordarem irremediavelmente enlouque­ cidos, serem visitados pela morte ou despertarem com o muito desejado Fogo na Cabeça. Numa comunidade onde demasiadas vezes se propaga o mesmo veneno que vem sendo derra­mado sobre a Terra e sobre os nossos corpos desde há séculos, opri­ mindo e calando, como qualquer outro Poder mundano, os seres que a Soberania tem por predilectos, faço votos de que as montanhas de que nos rodeamos não reforcem em nós os nossos apegos mais conservadores, mas nos devolvam à verdade indomável dos sentidos, da carne viva no Caldeirão do Movimento, e assim acendam nas nossas palavras-actos criadores o Fogo da Poesia, do Dán que continuamente refunda todas as coisas. ■ 7


Corpo Terra Templo

A relação Terra-Corpo-Ser como base da acção e pensamento por IRIS LICAN

«A M ATÉRIA É ENERGIA , O ESPÍRITO É ENERGIA , TUDO É ENERGIA» — Starhawk

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ma das mais profundas feridas que trazemos é a corporalidade. Desde que nascemos que o nosso corpo é tratado como se estivesse inapto para se dar à luz, ser saudável por si mesmo, ter permissão para a expressão livre e espontânea de gestos e emoções, ter espaço para ser amado na sua singularidade e na sua relação sensorial e sensual consigo mesmo, com outras pessoas e com a própria Natureza. Estar no corpo pode trazer uma sensação de limite, impossibilidade, frustração perante o cansaço, a fome, o desconforto, a impossibilidade de seguir a sua visão. Mas terá sido sempre assim? Até que ponto os nossos códigos socioculturais e religiosos investiram no antropocentrismo? Alienando o geocentrismo, impossibilitando a experiência corpórea de ser plenamente consciente, dissociando-nos da total e permanente conexão à Natureza Mãe, da qual somos parte enquanto Anima: alma e animal. Empurrando-nos para uma busca permanente baseada num desencontro impossível: sempre estivemos aqui, parte viva do mistério da Existência. A imperfeição é a transformação acontecendo perante os nossos olhos jovens. Cada um de nós, única, inigualável e essencial obra da Natureza Mãe. Em toda a nossa cultura há ainda um eco profundamente vinculado à ideia de sepa­ ração entre espírito e matéria. Como neopagãos, recebemos esta herança por aculturação, e poucos de nós a questionam. Será verdade que temos um corpo desprovido de espírito, que é um mero veículo? Quando referimos a visão, onde acontece a visão? Porque a visão é corpórea e é justa­ mente essa qualidade que nos permite entrar


no campo da epigenética e ter o poder de alterar a matéria-base de que somos constitu­ ídos, elaborando-nos numa relação bioló­ gica profundamente consciente (embora não neces­sariamente racional). Isso é prática alquí­mica e mágica profunda. Estarmos tão presentes que somos testemunhas da ema­ nação da força da existência que nos atra­vessa, cria e desconstrói e, pela vontade (maior que o desejo e até potencialmente impes­soal), esti­ mula o poder inato de ela­borar um sentido comum, um bem maior. Somos parte viva de um planeta vivo. Pertencemos à Terra, a Terra não nos pertence. Pertencer ao corpo e à Terra devolve-nos o sentido de presença, a certeza de que somos feitos para os tempos em que vivemos. A Terra é casa, caminho, alimento. Dela nos erguemos, nunca estamos fisicamente pairando sobre ela; encontramo-nos sempre literalmente ligados a ela, estejamos nós plena­mente conscientes deste facto ou não. «O SAPATO É O PRINCÍPIO DA GUERR A .»

Ouvi este adágio na Índia do Norte. Recordo-o muitas vezes como contentor de muita e expressiva sabedoria. Quando deixamos de sentir o chão que pisamos, deixamos de conhecê-lo; deixamos de caminhar cuidadosamente, passamos a pisar seja o que for. O sapato, neste contexto, é também um mecanismo de diferenciação económica. Porque, a partir da relação com objectos externos que não o corpo e a Terra em si, criamos facilmente falsas ideias hierárquicas e esquecemos que todos caminhamos, com pés semelhantes, na mesma Terra que O ph i us a m a io 2018

nos sustenta a Vida e que somos muitíssimo menores do que Ela, em tempo de vida como em experiência. Se nos foram úteis templos, resta-nos agora poder reivindicar que o sagrado é a Vida no seu movimento cíclico de nasci­ mento– cresci­m ento–maturidade–decadên­c ia– morte–transformação–regene­ração–nasci­ mento. Este movimento supera a expe­riência enclausurada em quatro paredes e pede uma comunhão directa com a Natureza no seu estado selvagem e sazonal. Somos um templo vivo, parte de um templo muito maior que é a Terra, ela própria parte de um templo infinitamente mais amplo que é o Universo. Ao entender a Terra como sagrada e tudo o que na Terra vive como igualmente sagrado, a nossa relação de interdependência torna-se evidente, as nossas escolhas naturalmente mais éticas e compassivas, sem perda alguma de liberdade, mas sim com uma ampliação de perspectivas. Outrora, Magos e Magas do Ocidente foram obrigados a fechar-se no segredo bem guardado de salas e caves, tornando os seus cultos cada vez mais simbólicos para que não fossem mal-entendidos ou susceptíveis de punição feroz. A Terra tornou-se, aos poucos, um lugar associado ao sofrimento, ao pecado, à dureza. Os eremitas e as Bruxas guardiãs de locais selvagens foram desaparecendo com eles, as suas práticas não escritas fundindo-se com o vento, a água, a pedra (por resul­tarem de uma comunhão elemental constante e espon­tânea, impossível de conter em palavra escrita ou padronizada por hábito). Hoje é urgente reclamar esta espirituali­ dade empírica, baseada no sentido profundo da fisicalidade que nos permite sentir e que 9


Em toda a nossa cultura há um eco profundamente vinculado à ideia de sepa­ração entre espírito e matéria. Como neopagãos, recebemos esta herança por aculturação, e poucos de nós a questionam.

devolve à experiência concreta a qualidade de poder elaborar-se a partir do estar vivo, mais do que do pensar-se vivo. Se perdemos a conexão consciente aos sentidos, perdemos a capacidade de vínculo afectivo e efectivo, perdemos a clareza acerca do que é bené­fico ou não para nós e para os outros e a sobe­rania sobre a nossa saúde e sobre a nossa espiritualidade, que é uma relação livre e selvagem, subjectiva, com a Vida de que somos parte. Podemos também, facilmente, cair na dico­ tomia de chamar a Mãe Terra em palavra (ou símbolo arquétipo) sem jamais entender como os seus processos orgânicos claramente elucidam os processos da Vida e da Alma, bem como nos pode passar despercebida na acção diária a urgência de alterar o nosso estilo de vida para que a Vida maior possa continuar a existir sobre este Sagrado chão pulsante que nos acolhe e que de novo nos reclamará. Evocamos a serpente, mas estaremos prepa­rados para a ver frontalmente? Para a deixar enrolar-se à nossa volta, sufocando as nossas certezas? Estaremos dispo­níveis para mudar de pele como ela e permanecer nus na escuridão, até que a nova pele lenta­mente se refaça? Damos este tempo aos nossos processos físicos (as doenças) e psicoemoci­ onais de transformação? Teremos recla­ mado a ousadia de viver Invernos e Outonos neces­sários para que a Primavera seja fértil e renovada? Ou, como a cultura insiste em deseducar, buscamos inalterável juventude e felicidade, deixando definhar o espírito 10

vivo de cada uma das nossas células por igno­rarmos a sua presença em nós? Crescer ou morrer? A velha pele sufoca-nos a nova; esta não é formada senão na quarentena da vulnerável espera e no não-saber. É essencial não abrirmos mão da resiliência que em nós é criada a cada encontro sobe­rano com o lado desconfortável da ciclici­dade. A imobilidade de um conforto alienante é a única verdadeira morte, com hábitos desa­ justados da Natureza, violamo-nos a nós mesmos, na profundidade de quem somos e de porque estamos aqui. Ao sentirmos e claramente percepcionarmos a Terra como único templo real e o corpo como sendo parte viva da Terra Mãe, retornamos a um sentido de irmandade entre géneros, entre idades, entre qualidades, entre todos os seres vivos e manifestações orgânicas que da Terra fazem parte. Isso é cultivar susten­ tabilidade, na medida em que neste círculo todos suportamos e somos supor­tados, simultaneamente. A Terra é a grande cria­ dora, e ao sabê-lo fascinamo-nos menos com as nossas obras humanas e podemos ocupar um lugar de maior equilíbrio na linhagem da Vida, bem como de muito maior responsabilidade e equilíbrio. A sazonalidade da Terra existe no corpo: o bebé na qualidade resiliente de semente vulne­ rável e tão potente; a ances­ tra­ li­ dade do ancião, como a velha raiz torta e já casa de fungos que a vão dissolver e devolver à Terra da qual emergiu. Depois de nascer,


O verdadeiro templo é a Terra viva e o Corpo Vivo nela. De que forma sabê-lo altera a nossa percepção e atitudes? Como nos despe de substâncias abstractas, idolatrias, segmentações?

constru­ímos um caminho até à verticalidade, e daí um caminho de retorno até ao chão, novamente. Partilhamos este trajecto com tudo o que vive. Não é a Alma que reencarna, é a Alma que é a própria carne, e que ao desfazer-se impregna o chão e os céus de memória viva em transformação. Somos pó-semente, composto de milhares de anos e milhares de seres. Que maior beleza que a de nos oferecermos de volta a esta matriz à qual sempre pertencemos, a partir do exercício constante de honrar e criar sacralidade, regeneração, equilíbrio e afecto (aquilo que nos afecta e afecta os outros, amorosamente)? Somos pó das estrelas e pedras que temos nos ossos. Tornamo-nos literalmente os animais e plantas que ingerimos: o ali­mento substancia a matéria do corpo e por isso a qualidade de quem somos. Esta é também parte essencial da matéria viva da nossa ances­tralidade: tornamo-nos os receptáculos sagrados de tudo e todos os que para nos alimentar ofereceram as suas vidas. Por seu turno, a nossa descendência reside na qualidade com que digerimos o ali­mento como emoção, pensamento e ação. Através das emoções, assimilamos um sentido de vida: o pensamento emana da conexão profunda entre sistemas físicos cuja estrutura é alicerçada em profunda subtileza. No visível como no invisível, há Mater, a presença imanente e transcendente da Mãe enquanto lugar de onde vimos, onde somos O ph i us a m a io 2018

e para o qual nos movemos e retornamos. Tal como o rio jamais se aparta da Terra na sua corrente fluída, ou o céu e a Terra jamais desen­laçam o seu circular abraço, também nós existimos qual árvore, de baixo para cima, com ramos tão mais expansivos quanto mais fortes sejam as raízes. O templo, a Arte, não é uma obra que transcende o ser humano. O ser humano é constantemente transcendido pela força potente, selvagem e misteriosa da Natureza Viva. O Sagrado é imanente e transcendente. «SOMOS A GOTA NO OCEANO E O OCEANO NA GOTA .» — Jalaluddin Rumi

O verdadeiro templo é a Terra viva e o Corpo Vivo nela. De que forma sabê-lo altera a nossa percepção e atitudes? Como altera as nossas práticas? Como nos devolve susten­ tabilidade (pessoal, comunitária, eco-sisté­ mica), adaptabilidade, resiliência, coope­ ração, pertença e ao mesmo tempo individualidade? Como nos despe de substâncias abstractas, idolatrias, segmentações? Sendo nós um templo vivo numa Terra viva, como cuidamos de nós e de todas as nossas relações, profunda e verdadeiramente? Deixo as questões, porque o impor­tante não é solidificar respostas, mas sim poder praticar, como a constante peregrinação que é, esta jornada pessoal, comunitária, planetária e cósmica. ■ 11


A ressurreição da Natureza por AGOSTINHO VERAS

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ressurreição da natureza acontece na primavera. Os povos Celtas festejavam Beltane durante a noite com o fogo de Bel, o brilhante, em honra e encorajamento do deus solar, Belenos. A pujança vegetativa da primavera tem no sol e na água a força maior, mas todo o trabalho rural depende da permissão da lua, estando esta enleada à grande e primordial Deusa-Mãe, inteiramente feminina. Abril, Maio e Junho são, naturalmente, os meses mais significativos na revelação jovial do manto primaveril. Mas, tendo em conta um antigo ditado popular da minha terra (Barroso): em Fevereiro tudo febreja; é em Fevereiro que a força telúrica emanada do interior da terra desperta com a ascensão do arco solar; lentamente o fervilhar do humus palpita végeto. Porém, é em Março que a eclosão desse fervor se revela, sobretudo a partir do equinócio de primavera. Refira-se que “equinócio” provém de duas palavras latinas: aequus e nox, que significam “igual” e “noite”, respectivamente. Ora, é a partir daqui que os dias superam as noites até à encantadora e prodigiosa noite de S. João. São muitos os resquícios arcaicos de sagração e fertilidade animal e vegetal que

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chegaram até nós, oriundos, sobretudo, de divindades femininas europeias (Artemísia, Flora, Ceres, Cibele, Deméter…). As ramagens, as flores, o lume, a água, o sol, a lua, são os principais elementos de exortação à sagração da Natureza, mas, com a propagação do cristi­anismo, tais cultos ancestrais tiveram uma forte oposição das autoridades seculares e reli­giosas, destacando-se como figura principal S. Martinho de Dume, intransigente na cisão radical do culto e manifestações em torno da Mãe-Natureza e suas divindades arcanas; para a igreja tudo era obra do diabo. Mesmo diabolizadas, estas manifestações culturais foram em parte reagrupadas pela doutrina cristã, nomeadamente, nos cultos marianos e pascais. O hábito de apanhar um ramo de flores espe­cífico, pô-lo a secar à janela e guardá-lo em casa até à sua substituição, do mesmo modo, no ano seguinte, culmina com a queima do ramo velho, reduzido a cinza. Este é um ritual inteiramente pagão, dito aben­ çoado e guardião da vida; o mesmo acontece com as sementes que serão, em Maio, lançadas à terra, juntamente com o estímulo do estrume e da cinza que foi guardada durante o ano, servindo, agora, de fertilizante e repelente


de certas pragas. Finda a tarefa, espetam-se ramos na terra, simples ou em cruz, servindo de purificação simbólica e odorífera no contexto sacrificial e votivo. Lembremos que as ramagens e as flores são elementos imprescindíveis de adorno e embelezamento das igrejas, cruzeiros, veredas sacras, alminhas, andores de santos padroeiros em dias festivos. Tal como no dia da espiga ou quinta-feira da espiga, ou nos dias da bênção dos gados e das terras. As ramagens ou ramos floridos são também colo­ cados nas fontes, para marcação da direcção da água quando usada. Este acto é entendível e respeitado por toda a comunidade. Já o sol demarca o tempo de rega a que cada família tem direito ao longo dos meses em que a água é dividida por sortes. A Páscoa cristã reúne, hoje, a essência primordial da morte e rejuvenescimento da Natureza na figura de Cristo ressuscitado iluminado pelo círio pascal, o novo lume, a nova luz – a esperança. Existe um outro ritual primordial que vem passado despercebido à maioria dos estudiosos, que consiste, por altura da Páscoa, na degradação aparente do Homem: este desleixa-se visivelmente em comunhão com a natureza, abdica de alimento, de higiene, do trabalho, recolhe-se até que surja na natureza certa floração que lhe permita abandonar o O ph i us a m a io 2018

caos natural (seria interessantíssimo o estudo aprofundado deste antigo ritual Galaico que, em parte, os povos transmontanos ainda cultuam, pelo menos, nos três dias que antecipam a Páscoa). O Homem Galaico soube sempre, na via da floração, interpretar bem a natureza. Outro exemplo concreto, ainda em uso pelos pastores das vezeiras de Barroso, é quando surgem as plantas conhecidas por escusa-merendas ou quitamerendas, que demarcam a dispensa da merenda quando os dias se tornam mais pequenos (Agosto e Setembro). Outra forma de interpretação ancestral do tempo diurno é através do sol, mais concretamente pela sombra produzida nos montes; assim os itine­ rários cumprem-se atempadamente. Nos montes, nomeada­mente, em antigos castros, surge o esca­ lheiro ou espinheiro, que na verdade é a pereira brava, árvore sagrada dos povos Galaicos na protecção das medonhas e perigosas trovoadas. Acredita-se que a coroa de espinhos de Cristo fora feita desta árvore. Nos montes surgem, ainda, os rochedos ovais, os conhecidos ovos, onde se escondem as velhas mouras encantadas com os seus tesouros incal­ culáveis; ovos sagrados dos povos castrejos. Aliás, a sagração do ovo, por altura da Páscoa, é também resquí­cio simbó­lico, primor­dial, de reno­vação da Natureza. ■ 13


A Floresta Sagrada

Cenário Mistérico de Ritual e Iniciação por NUNO FERREIRA GONÇALVES

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empre que nos é concedida a generosa oportunidade de darmos a lume parte das nossas indagações, procuramos fazer remontar ao imaginário mais profundo, ao espaço mítico de um “não-lugar” causal e inefável, o mote da dissertação elegida para o efeito. Não abriremos mão de o fazer neste momento, pelo que nos ocorre, desde logo, encetar a presente comu­ni­cação com uma das remanescências literárias mais ricas da poesia épica oriental, isto é, o Ramayana, e mais parti­ cularmente o capítulo do poema que conduz a narrativa à inóspita Floresta de Dandaka, pejada de todos os perigos, nomeadamente os advindos dos sinistros rakshasas, prontos a investir contra viandantes incautos na calada da noite. O herói, cujo coração está pronto para vencer os demónios que personificam o semblante tenebroso dos trilhos florestais, é Rama, um dos mais paradigmá­ticos inici­ados de todos os tempos, exemplo de perfeito equilíbrio entre rigor e amor. Viremos a encontrar características seme­lhantes em Krishna, de espada em riste, comba­tendo feras demoní­ acas por entre o arvoredo espesso dos bosques e sob os raios sinistros da lua, mas recor­rendo paradoxalmente à frescura de clareiras verde­ jantes sobran­ceadas por velhos cedros, para cantar o seu amor pela Deidade, pela Mãe-Natureza e pelos homens. Afinal de contas, são esses mesmos relatos epopeicos provindos do velho Oriente que enfatizam a importância

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da floresta como lugar privi­legiado de reco­ lhimento para anacoretas, ascetas e todo o tipo de homens santos, como se após o embate probatório o prosélito encon­ trasse precisamente no mesmo palco de realizações o ‘descanso do guerreiro’, o acolhimento espiritual pelo qual a sua alma há muito ansiava. No âmbito da tradição iniciática oci­dental, e fazendo jus ao contexto temá­ tico axial do órgão de divulgação a que este estudo se destina, cabe dizer que dificil­mente se poderá dissociar druidismo de floresta. Advogamos a tese em torno de uma hipotética passagem de testemunho mistagó­ gico entre os enigmáticos Tuatha Dé Danann e os druidas. Segundo Louis Charpentier, Danann pode ser interpretado como um substantivo alusivo à Mãe primordial, a matéria virginal dos alquimistas, ou a mesma Virgem Negra assumida pela deusa Ísis no panteão do Antigo Egipto que encontrou eco na cristan­dade através de Santa Ana, por exemplo. Seme­ lhante interpretação etimológica insinua a operatividade de uma corporação depositária dos segredos da Natureza, tendo por sanctum sanctorum de predilecção o espaço florestal, onde todos os elementos se conjugam harmonicamente. Charpentier apelida os Tuatha Dé Danann de “colégio dos Filhos da Natureza”, desig­nação que, se atribuída igualmente à irmandade druídica, não chocaria ninguém. Com efeito, os druidas


Louis Charpentier apelida os Tuatha Dé Danann de “colégio dos Filhos da Natureza”, desig­nação que, se atribuída igualmente à irmandade druídica, não chocaria ninguém.

fizeram do bosque o laboratório de eleição da sua ciência prodi­giosa, proscénio mistérico de ritual e inici­ação. Não é difícil imaginá-los a instruírem os seus neófitos sob a copa de árvores ancestrais, ao som de melo­peias elementais, gorgolejos graciosos provindos de riachos próximos e cânticos ento­ados pela brisa boreal ao agitar suave­mente a folhagem envolvente. Clareiras recôn­ditas serviriam de câmaras de ope­rações mágicas realizadas ao ritmo da natureza circun­dante, onde estados de verda­ deiro êxtase seriam alcançados e forças ocultas evocadas. Cavernas insuspeitas, encobertas por densa vegetação, perfariam os sacrários das mais altas realizações teúrgicas, a que só o primus magus e os correligionários mais gradu­ados poderiam aceder. Segundo Plínio, os druidas habitavam preferencialmente em bosques onde predo­ mi­ nasse o carvalho, de cujo visco faziam recurso para o desenvolvimento de poções e bálsamos curativos. O erudito Henri d’Arbois de Jubainville informa que todo esse ritual taumatúrgico não era feito à revelia de requi­ sitos expressamente protocolares, desde a para­men­tação (túnica branca), passando pelo momento propício (sexto dia da lua), até à espe­cifi­cidade do instrumento cortante utilizado (foice de ouro). Os druidas foram suprimidos por Roma, quer pela secular dos césares, quer pela religi­ osa do catolicismo emergente. Porém, o O ph i us a m a io 2018

cristi­anismo foi incapaz de decapitar a sábia serpente druídica de um só golpe. Houve um tempo em que o paganismo celta conviveu de perto com a nova religião monoteísta, pura e simplesmente porque os mais sublimes ensi­na­mentos ministrados pelo colégio druí­ dico em nada contrariavam a gnose primi­ tiva evangelizada por Cristo. À medida que a cristan­ dade foi sendo estrategicamente poli­tizada pelo feudalismo déspota da Alta Idade Média, os deuses pagãos da floresta foram caindo em profunda letargia, todavia, deixando viva no imaginário dos povos a reminiscência de artes proscritas e de princípios ontológicos genuinamente ecuménicos. O mago Merlin, figura incontornável no âmbito da prosa romanesca medieval, perso­ nifica, de certo modo, o sincretismo mista­ gó­ gico que demarcou a transição entre a hegemonia mistérica pagã e o cristia­nismo emergente. O Graal, por sua vez, une o melhor desses dois mundos. Em qualquer dos casos, o bosque sagrado constitui-se proscénio inexorável. Era nas vísceras telúricas e inexpugnáveis do bosque que Merlin encobria a sua cripta residencial; no bosque encan­tado enamorou-se de Viviane, que se diz ter-lhe furtado o sortilégio da criação; no bosque iniciou Artur e forjou a aliança de uma das irmandades cavaleirescas mais célebres de todos os tempos. Este episódio em particular foi magistralmente recriado 15


pelo cineasta John Boorman em Excalibur, quando em determinada cena o mago enca­ minha o mancebo Artur ao coração do bosque, forçando-o a confrontar-se com os seus receios mais profundos. Artur entende que apenas se receia a si próprio, a dimensão do ‘eu’ que espelha o grande mistério e que, sob a vibração ele­mental da floresta, tende a tornar-se extraordinariamente sensível. Tudo ao seu redor se encontra envolto no hálito do dragão, inclusive ele mesmo e a espada sagrada que o conduzirá ao poder, coro­ lário da potência fecun­dante do demi­urgo, na verdade, potestade femi­nina, matri­arcal, depo­ sitária das águas genesíacas de onde brota toda a natureza. O mestre Yoda, em Star Wars, de George Lucas, força Luke Skywalker a penetrar nas entranhas tenebrosas do bosque. Antes de entrar, o neófito pergunta: “O que vou encontrar?”, ao que lhe é respondido: –Tudo o que contigo levares”. Muito antes da prolificação da sétima arte, Richard Wagner cria o cenário operá­ tico do Parzival de Wolfram von Eschenbach, escolhendo o ambiente florestal típico do norte gótico da Península Ibérica para pano de fundo do primeiro ato. Se por um lado, foi no seio mais recôndito da floresta que Herzeleide, mãe de Parsifal, procurou protegê-lo das intempéries do mundo, por outro, foi perante a hostilidade das feras e dos demó­nios que habitam os bosques que o mancebo, à semelhança de Krishna, errou 16

até tomar integral consciência de si. Efectivamente, as potencialidades iniciáticas do bosque sagrado encerram um dos mitemas centrais do legen­dário cavaleiresco medieval. Encontramo-lo em Lancelote do Lago, recolhendo-se na floresta para purgar o seu amor proibido por Guinevere; encon­tramo-lo em Gurnemanz, fiel cavaleiro do rei Amfortas, repou­ sando na clareira florestal em cujas imediações descansam as águas terapêuticas de um lago sagrado; encontramo-lo também na vegetação luxuriante dos jardins de Klingsor, cujas flores se transformam em jovens sensuais instruídas para desviarem os cava­leiros do Graal dos propósitos consa­ grados na sua demanda; encontramo-lo ainda na orla florestal de Brabante, onde Lohengrin aporta e de onde parte na sua barca puxada por um belo cisne branco. Sendo genuinamente matriarcal, a floresta define-se como um dos mais enigmáticos repo­si­tórios do sagrado feminino, potência uterina passiva que atrai irresistivelmente o cavaleiro errante. Nesse sentido, ela é luciferina, estrategicamente opositora, guardiã do escrínio mistérico onde o peregrino, temeroso, procura penetrar. Se desejada por força de um impúbere impulso de posse, assume os contornos de anjo demoníaco, afagando o peregrino num amplexo fatal que o enclausurará no ergástulo da passionalidade efémera; se conquistada pela nobreza de um coração altruísta e desapegado, ainda que necessariamente intrépido, transformar-se-á em leal


A floresta é luciferina, estrategicamente opositora, guardiã do escrínio mistérico onde o peregrino, temeroso, procura penetrar.

consorte, luminar progenitora, sacerdotisa do fogo sagrado… A mulher-mistério, ou mulher-serpente, povoa-nos o imaginário através de belas lendas, como aquela da fada Melusina, que, por pura compaixão, desposou o infeliz Raimondin, estereótipo do cavaleiro solitário que procura desesperadamente redimir-se de erros passados, para tanto recolhendo-se em recônditos bosques. No caso de Raimondin, a demanda conduziu-o a uma clareira circular, atravessada por um regato cuja fonte, na extre­midade da clareira, precipitava as suas aguas sobre um lençol cristalino. Foi junto a esse lago secreto, pois nunca antes outro mortal o havia vislumbrado, que o cavaleiro se prostrou perante a graciosidade delicada e feminil de Melusina. Ela irá testar-lhe a fé, a perseverança e a lealdade, muito antes de lhe revelar os seus segredos. Não raro, a mita­nálise do legendário popular evidencia a subjacência dessa dimensão sigilosa do fenómeno iniciático, na medida em que a forma lendária dos mitos manifesta o exoterismo do conteúdo esotérico implícito. A existência de lugares insondáveis no seio da floresta remete-nos para os mistérios jinas de Sintra, no seio de cujos bosques surpre­ endemos refestos incrustados na penedia, assi­ na­lando embocaduras de acesso vedado a um mundo proibido. Escassos passos percorridos no interior dessas insó­litas criptas e o viandante logo se depara com a rocha lacrada, O ph i us a m a io 2018

impe­dindo-o de prosseguir o seu caminho rumo ao desconhecido. Por vezes, a horas insuspeitas da noite serrana, pode acontecer que lugares nunca antes vistos surjam perante o olhar estarrecido do peregrino, aos quais se dirige sofregamente para logo lhes perder o norte e jamais os voltar a encontrar. Raros são aqueles a quem a deusa se desvela inteiramente, na razão do axioma verdadeiramente iniciático que dita que “muitos são chamados, mas poucos os escolhidos”. Entre os eleitos, estaria certamente um tal de Bey Al Bordi, de quem a tradição mais oculta diz ter demandado o sarcófago do seu misterioso progenitor, já que ainda recém-nascido havia sido entregue aos cuidados dos Tavernay, crescendo nas acomodações palacianas dessa extremosa família. Como corolário da sua incansável busca, encontrou o sarcófago no interior de uma cripta, a que se acedia por passagem secreta no interior de certa ermida dedicada ao culto do divino Paracleto, tudo isso em lugar recôndito da Floresta Negra, na Alemanha, onde o próprio Christian Rosenkreutz, acompanhado de três freires albigenses, terá fundado a Summa Et Mistica Ordinis Rosae Crucis. Sendo essa uma história que delongaria indesejavel­mente a presente dissertação, adiamo-la para uma outra oportunidade, importando tão só sali­entar reiterada e concludentemente a transversalidade mitémica da floresta como palco privilegiado de demanda e iniciação. ■ 17


O Cristianismo Celta por JOSÉ ALEXANDRE FRAZÃO MATOS

O

s monges celtas estavam habi­­tu­ ados às histórias das epopeias do seu povo. A sua própria narra­tiva não haveria de ser muito diferente, uma vez que, após as conversões, necessitavam de apresentar santos, e para eles um santo era um herói ao jeito dos protagonistas das epopeias celtas, como Cú Chulainn (ou Cuchulainn), por exemplo. Na Irlanda, durante o período da evangelização, não houve mártires como os primeiros santos do cristianismo, e isso incomodava os irlandeses, para quem uma morte gloriosa era o final ideal para a vida, o desfecho sublime. Os irlandeses teriam que encontrar uma outra forma de martírio: é assim que, nos finais do século V, surge o Martírio Verde, por oposição ao Martírio Vermelho de sangue dos mártires do início da cristianização no continente europeu. Com o propósito de estudarem as Escrituras e estarem mais perto de Deus, alguns abandonavam o conforto de suas casas e iam para os bosques, montes isolados ou ilhas desertas, afastados da população. A esta prática chamaram Martírio Verde, desig­ nação em que encon­ tramos alguma influência druídica. Este eremitismo começa com uma mudança para a clareira 18

— parte 2

no bosque, tal como os druidas se reuniam e estudavam nas clareiras, mas a tendência natural dos irlandeses para a socialização “obri­ gava-os” a não persistir na condição de eremitas solitários durante muito tempo. Por outro lado, na Irlanda era impossível encontrar as mesmas condições desérticas do Egipto, fonte das influ­ên­cias do eremi­ tismo celta. Nasce assim o Mona­quismo Celta, completa­mente livre dos Bispos, assente em comunidades fundadas por iniciativa de ere­mitas. Um desses eremitas era Columba, que aos 41 anos tem 41 mosteiros fundados, entre eles o de Iona. Columba deter­minou que o mosteiro de Iona teria o máximo de 150 monges: chegado a esse número, 13 monges partiriam para fundar outra comunidade, e assim, de mosteiro em mosteiro, Columba chega até à Europa continental. Mais tarde aparece o Martírio Branco, que é a escrita, seja das epopeias orais, seja através da cópia das obras clássicas ou da Bíblia. Colum Cille (nome irlandês de Columba que significa “Pombo da Igreja”) foi estudar com o bispo Finnian, cujo missal Columba admirava pela sua apetência para o belo. Era, na realidade, um missal com ilumi­nuras e uma letra muito cuidada e bonita. Na escuridão


Torre redonda do Castelo de Cashel, Co. Tipperary, Irlanda

da noite, Columba copiou, pois, o missal de seu professor sem este o saber, e conta a lenda que não usou nenhuma vela, pois dos seus dedos da mão esquerda surgia iluminação sufi­ci­ente que lhe permitia copiar o missal do bispo Finnian. Mais tarde o bispo descobriu a existência da cópia do seu missal e levou o caso ao Rei Diarmait, que definiu o caso nos seguintes termos: “A cada vaca seu bezerro; a cada livro sua cópia”, entregando assim a cópia ao bispo Finnian. Será talvez a primeira decisão “judicial” de direitos de autor e cópia conhecida. O Cristianismo Celta caracterizou-se por algumas diferenças do Cristianismo orto­ doxo de Roma. Tudo o Papado fez para tentar anulá-las, ao ponto de absorver algumas delas. O Papa preferia lidar e converter os pagãos a lidar com as cristan­ dades celtas ou outras divergentes: os pagãos não tinham por hábito colocar perguntas de difícil resposta, discutir doutrina. Assim Roma optou por negociar e converter Clóvis e os seus francos no continente em vez de dia­ logar com os visigodos e burgúndios que defen­ diam um arianismo radical. Na Bretanha as influências de Pelágio, do século IV, perduraram até muito tarde, o que levou O ph i us a m a io 2018

a Igreja em Roma a enviar missionários para evangelizar os saxões. As divergências começam na organi­zação eclesiástica: o Papado herdou a organização administrativa do Império Romano, portanto centrava nas cidades as suas sedes eclesiás­ticas, as dioceses, regidas por um bispo, que por norma estava mais próximo do Rei ou Nobre da região que do povo. Em contrapartida, o sistema principal na Irlanda era a abadia, em que uma pessoa devota, um mártir verde, fundava um eremitério. Não era raro estes eremitas serem transformados em “santos” do calendário celta sem o reconhe­ci­­mento de Roma. De volta deste homem “santo”, outros fiéis juntavam-se, formando assim uma comu­ ni­dade centrada na abadia, em volta da qual viviam e parti­lhavam os terrenos. Na Irlanda medieval, a abadia tinha preponderância sobre o bispado, o que entrava em conflito directo com Roma. Ainda mais, o Abade não era necessariamente um sacerdote; podia ser um leigo, por vezes casado e com filhos, o que ainda mais irritava a hierarquia romana. Mais tarde, alguns abades viriam a ser consa­grados bispos. Outros houve que nunca o foram, como Colum Cille. Ainda assim, sendo ele abade da importante comunidade monás­tica 19


O Papa preferia converter os pagãos a lidar com as cristan­dades celtas ou outras divergentes: os pagãos não tinham por hábito discutir doutrina.

e cristã de Iona, a sua influência na abertura de outras comuni­dades monásticas fazia dele um abade “perigoso” aos olhares de Roma. Tal como nos tempos pagãos, na Irlanda, o Druida tinha predominância sobre o rei, também aqui o Abade tinha predominância sobre o Rei e o Bispo, que para muitos não passava de um funcionário administrativo do Papado. Alguns Bispos eram vistos até como simples capelões do Rei. Como é natural, Roma não tolerava esta situação. A forma de organização dos mosteiros irlan­ deses, descendentes directos das abadias, consistia na cabana central do Abade, que inicialmente era eremita, uma igreja e as restantes cabanas dos outros monges que se juntavam ao grupo. Nestes grupos os “clérigos”, nitidamente inspirados nos antigos Druidas, eram os guardiões do conhe­ ci­ mento. Posteriormente, com a escrita, tornar-se-iam os grandes responsáveis pela passagem à escrita das narrativas pagãs da Irlanda, e também pela cópia dos grandes clássicos da antiguidade. Podemos agradecer a estes monges irlandeses muita da literatura clássica, pagã e não só, que chegou até hoje: na mesma altura, na Europa Cristã continental, eliminava-se tudo o que ia contra a doutrina, 20

enquanto os bárbaros que ocuparam o Império Romano destruíam as restantes obras. Os celtas recusavam-se a baptizar os fiéis antes da idade adulta ou da razão, enquanto Roma pretendia que fossem baptizados em bebés. Como os Celtas seguiam a tradição, ou melhor, a doutrina de Pelágio — não que tenham sido doutrinados por Pelágio ou seus discípulos, mas porque estes estavam de acordo com a forma de pensar e viver dos Celtas —, não acreditavam que transportássemos connosco o pecado original, e por isso não viam necessidade no baptismo. Roma alterou também a forma da confissão, talvez por influência dos mosteiros celtas fundados na Europa continental: antes pública, passou a ser privada e em segredo. Uma diferença manteve-se: os Celtas só davam a absolvição após o penitente ter cumprido a penitência. A data do festejo da Páscoa é também considerada uma das principais divergências com Roma. No entanto, trata-se de uma dife­rença tão ligeira e formal que leva a pensar que foi mais por casmurrice dos Celtas que estes mantiveram a data que era celebrada por toda a Cristandade até ao século III. No século VII, Roma passou a festejar a Páscoa no Domingo


Na página anterior: Cruz alta de Moone, Co. Kildare, Irlanda Nesta página: Castelo de Cashel, Co. Tipperary, Irlanda

seguinte ao 14º dia da primeira lua da Primavera, em vez de, tal como no costume preservado pelos Celtas cristãos, seguir a lei judaica, que fixava a Páscoa na tarde do 14º dia do primeiro mês do ano lunar hebraico. O problema principal desta forma de cálculo residia na possibilidade de a data da vigília pascal calhar na noite do 13º dia, e ser Sexta-feira Santa, o que nem a lei nem o Evan­gelho autorizavam. Columba ainda levou esta marcação da data da Páscoa os mosteiros que fundou no continente. A oração dos Celtas era baseada nos Salmos, que todo o monge deveria saber de cor e recitar diariamente, segundo uma prática de resto consensual na Igreja. Mais problemáticas eram as orações privadas, deno­mi­nadas loricae em latim: estas eram essencialmente ladainhas com alguns versos memorizados, recitadas num ritmo próprio e constante. A partir desses versos, a oração dava lugar à expressão livre da fé de cada monge, o que lembra o geis céltico, um encantamento mágico que era lançado sobre alguém com carácter obrigatório, sob pena de morte. Ou seja, aqui o geis era lançado sobre Deus; é esta uma das características mais distintivas da Cristandade Celta e também uma das suas grandes forças, a forma como interage com a Divindade. As loricae fazem lembrar O ph i us a m a io 2018

também os bardos que cantavam as epopeias a partir de alguns versos memorizados. Encontra-se, assim, na oração alguma influência da cultura ancestral destes monges. A participação das mulheres no ministério do sacerdócio, entre os celtas da Bretanha Armoricana ou continental, foi criticada por Roma. Por nos ter chegado essa crítica e por sabermos do estatuto da mulher dentro da soci­edade celta, podemos aceitar que era prática comum a toda a cristandade celta. Em adição, encontramos em Kildare um Mosteiro misto, dirigido por uma mulher, Brígida, mais tarde Santa Brígida. (Sobre Santa Brígida, ver a Ophiusa nº1). O mosteiro de Kildare é um verdadeiro Martírio Verde: constru­ ído inicialmente em madeira (o mosteiro actual é do século XIII, tendo sido iniciada a sua construção em 1260, por padres francis­ canos), está situado junto a um carvalho que já fazia parte de um Nemeton druídico, o que deu origem ao nome da abadia, Kildare de Cill Dara, literalmente Igreja do Carvalho. Alguns autores defendem que Brígida terá sido consagrada episcopisa, ou seja, “bispa”, o que era algo extremamente perverso e perigoso para a Igreja patriarcal de Roma. ■ (Continua no próximo número) 21


No Bosque Sagrado por JOEL MARTELEIRA

ÁGUA É VIDA!

A

proximo-me e olho para o copo de água, ali, bem no centro da mesa iluminada, e estendo a mão. Pego no copo e elevo-o, em reverência ao Grande Espírito. Peço as bênçãos e levo o copo à boca. Um gole de água fica na cavidade bucal. Não a ingiro de imediato. Sinto-a, pura, simples­mente a inundar-me a boca. Depois degusto, lentamente, pouco a pouco, sentindo o seu volume, a sua frescura, a pouca água que do copo bebi. Sinto-a deslizar no meu interior e penetrar todos os canais por irrigar. Como um campo sequioso de chuva, gretado, fendido, o meu corpo vai absorvendo gota a gota e com ela vai se nutrindo. Sinto o poder da água, a sua força regeneradora e, com ela, o meu corpo relaxa e o meu espírito é inundado de luz. Muita luz. A água é vida sim! Cerridwen, na sua força de Vida, na sua força Criadora e Protectora. Bosque Sagrado 11/9/2017 /|\

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REFLEX ÃO

E

stou a trabalhar em mim quando aqui trabalho sem que trabalho sinta que seja. É mais algo que tenho que fazer sou impelido a fazer de coração aberto deixando fluir o momento. Enquanto a trincha espalha o óleo sobre o madeiro ressequido pela espera sinto-me ser nutrido pelo mesmo óleo como se o estivesse a passar sobre o meu corpo ou então num plano mais profundo de mim como se estivesse a ser ungido com o óleo sagrado. Penso se é mais uma mani­ fes­tação do meu ego egoístico a lançar-me véus de ilusão se é pretensioso pensar-me e sentir-me assim ou assim sentir mas creio que não. Sinto-o mesmo. Posso afirmá-lo porque sinto. Estar a laborar aqui no Bosque nestes madeiros que constituirão o nosso Templo é para mim mais que uma honra é uma bênção constante pois sinto-me abençoado. Penso como teria sido se o meu pai me tivesse consentido e motivado a ingressar naquele convento de Franciscanos quando era ainda uma criança e sonhava. Penso no que que teria sido se tivesse tido a coragem de bater à porta da Cartuxa e ultrapas­sado a soleira. Esses sonhos, essa vontade de pertencer a uma comunidade contem­pla­tiva onde o trabalho é mais de entrega do que obrigação ainda não se concretizaram. Penso se alguma vez se concretizarão. Ainda sonho com isso estar inserido e O ph i us a m a io 2018

viver numa comunidade onde possa trabalhar e, no trabalho e com o trabalho, trabalhar em mim mesmo. O trabalho como fonte de inspi­ ração como fonte de aproximação em que cada gesto cada acção é feito tendo presente o Todo sem no Todo pensar em que cada gesto é um gesto consciente um gesto meditativo e de entrega… O trabalho na sociedade actual é enca­ rado como um castigo. Afasta-nos de nós e do Caminho. O caminho que escolhemos por sentirmos ser o nosso Caminho. Aqui no Bosque vou percorrendo o trilho que me levará a esse Caminho. Aqui o Awen está presente em mim. Sonhar projectar e fazer. Ver a Obra crescer tomando forma é um enorme prazer uma satisfação imensa que me deixa pleno de alegria e felicidade. Sim, feli­ ci­­dade, porque a felicidade são as pequenas e singelas coisas da vida. É podermos estar bem com o que fazemos. É sentirmo-nos preen­ chidos, realizados e nessa realização relembrarmo-nos e reconhecermo-nos no Todo. Deixar fluir o Sonho tomar Forma. Deixar que aconteça. Ser instrumento da Obra Maior! Ser A Obra Maior! Bosque Sagrado 13/9/2017 /|\ 23


O Homem já nasce praticamente contando histórias. Está inserido numa história que o precede e com certeza irá sucedê-lo. Celso Sisto

Eisteddfod: VÉSPERA DE BELTANE

No ar paira inequívoco o odor das flores, aquele perfume inconfundível a Primavera. Entre os Carvalhos que ladeiam o caminho, vamos adentrando a floresta, perdidas num mundo de cor, perfume e sons. E ali, no silêncio do bosque, em comunhão profunda com Gaia, os sentidos despertam para uma outra dimensão: é um silêncio vivo, onde vibram as notas complexas de uma perfeita sinfonia, com sons de águas cristalinas correndo e saltando sobre as pedras do leito do ribeiro. Quais violoncelos afinados em vários tons, insectos de muitas cores batem as asas apres­sados, coreografando danças de acasala­ mento, enquanto do arvoredo vêm notas puras, das aves que por ali fazem os seus ninhos e que instin­ti­va­mente celebram Beltane. A magia vibra no ar, prenhe de alegria, de renascimento. Lentamente, vamos entrando em sintonia com esta realidade que de tão mágica, parece irreal. Inebriadas pelo perfume das flores, pelo odor forte a terra e a seiva, deixamo-nos levar, adentramos uma outra dimensão, tornando física a sensação de abertura do grande Portal de Beltane. E as cores vão-se tornando mais nítidas, mais vibrantes, o coração canta, harmonizado com a Grande Sinfonia da Natureza. 24

É Magia, esta energia poderosa que nos proporciona sintonia profunda com os Elementos e com a Grande Mãe. De Alma renascida, continuamos mata adentro, buscando um lugar onde possamos deitar-nos na terra, sentir o corpo fundir-se com ela. Depois de algum tempo, entregamos as nossas oferendas de leite e mel e recolhemos as flores e ramagens com que, à noite, havemos de enfeitar o Mastro de Maio. Fortalecidas e em paz, regressamos a casa. Quando a noite cai, erguemos o Mastro e deixamos que a alegria corra solta entre nós. Oferendamos as Fadas com grinaldas colo­ ridas, convidamos os Seres dos outros Reinos a parti­ci­parem nesta nossa cerimónia, pedindo Bênçãos para ajudar a fertilizar e forti­ficar as nossas sementeiras. Homenageamos a Deusa e o Seu Consorte e agradecemos as Suas Bênçãos, a Ela que torna verdes as florestas, ao Seu Consorte que através Dela fertiliza a Terra. Invocamos assim o Senhor dos 7 Galhos, o Deus da Colina, dos Bosques e das Montanhas, para que fertilize a Terra Mãe, a Donzela da Primavera, para que as nossas colheitas sejam fartas e abençoadas.


Espaço e tempo se misturam, o exterior encontra-se com o mais íntimo, e em nós, quiçá, encontramos a solidão; Velemos… Depressa se pausa o passo na moção da Roda, na observação, na sensação, pela interioridade; Avancemos… Nós não estamos sozinhos. O invisível deixa-se ser visto, o silêncio ganha expressão, o frio torna-se quente. No entanto, nada é confuso ou indistinto. É-nos revelado que se pode ver, sentir e ouvir de outras maneiras; Experimentemos… Com os olhos do Coração, as mãos e os braços abertos, podemos acolher todas estas mudanças. Acolher sem rejeitar, sem medos, sem julgamentos… Escutemos, pois não estamos sós; Observemos…

No Caldeirão queimamos artemísia, como símbolo de reverência e agradecimento à Doce Senhora cujo ventre é fértil. Unindo o Cálice e o Athame simbolizamos a união do Sagrado Feminino com o Sagrado Masculino, pedindo que o grande Círculo da Vida jamais se quebre e que a União Sagrada possa continuar a sustentar a Terra e as nossas vidas. Entoamos o Awen e terminamos em alegria, partilhando o Pão, o Leite e o Mel, por entre cantos e danças.

Perto de nós, mesmo ao nosso lado, há uma espiral no escuro cuja mão estendida mostra o caminho para um caldeirão. Se aceitarmos o convite, seremos libertados do que já não nos serve, do que já não carecemos; Cedamos… Este momento fora do tempo, ancorado na quietude, faz-nos avançar… Atravessamos a porta, sem medos, sem receios, rumo à metade escura do ano, a metade interior do ciclo; Sintamos… Viveremos o pousio necessário até ao nascimento do novo sol; Sejamos pacientes… Olórin (tr. do francês por Fábio Barbosa)

Cerridwen

O CHAMADO DE SAMHAIN

Morgana da Lusitânia O ph i us a m a io 2018

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EISTEDDFOD

BELTANE

A roda girou, chegou a Primavera, E a alegria paira no ar. Há vida! Há festa! Viva a folia! Em comunidade vamos festejar. A Primavera chegou, Agora os dias crescem, O Sol, astro-rei, Começa a aquecer. De noite há fogueiras, As mesas estão cheias É hora de comer e beber.

O Bardo brinda-nos com poesia E também com música de encantar, Em roda da fogueira dançamos, juntos brindamos, Beltane vamos celebrar. E enquanto a música do Bardo toca, A minha alma dança ao som do seu encantamento, Os meus pés movem-se ao som da sua harpa, E descubro-me nesse momento: Sou o Bardo e poesia, Sou Awen e perfeita melodia, Sou origem e renascimento. Ana Simões

ROSA ARTISTA

Doce eglantina Eterno atiço Doce coração Singel, aglutina Doce baloiço Presente diapasão Heraldistas, Alquimistas, Artistas... Elias chamou-te! Enquanto quinquefólio A trazer O reviço do ser

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De todas as flores A despertar amores Nenhuma como ela Em larga memória Não a escabiosa A mais pura Rosa Surge como indicativa De o caminho a seguir Aos Iniciados Magistrados, Até soldados... Para alguns, milagrosa N’outros, a salvação Talvez esta, sim, Última flor ressurgente, Simples aparente, Imanente... Presente.

Ah, Rosa! De todas A mais bela no Jardim Sem dúvida, A mais preciosa, Buscada, Amada, Pouco encontrada. Aos que carregam a cruz Artistas, nós que, Algum dia, Em algum lugar, Iremos buscar E te encontrar! Adílio Jorge Marques


Dinis Cortes

DO ENTRUDO, DA MÁSCARA E DO OLHAR

Tradições ancestrais de cuja origem a memó­ ria dos homens se esqueceu.

A máscara quotidiana da pessoa (palavra ori­unda do grego antigo persona e que signi­ fica “máscara”) é posta de parte. A máscara sagrada é-lhe sobre­ posta e oculta-a, para assim deixar revelar o abscôn­ dito, que surge na sua natureza primeira, desnudado, não-condicionado. A máscara sagrada, cobrindo, revela.

Ritos de fertilidade atávica, no tempo do não-tempo, no interstício entre-realidades, onde a regra é temporariamente abolida e são inver­tidos os papéis sociais.

Com o rosto coberto, coberta fica a face. A face é a faceta, aquilo que nos distingue e torna únicos aos olhos dos outros. As nossas facetas são as nossas particularidades.

Aqui a transgressão não só é tolerada, como é promovida. Ela tem um papel libertador, catár­tico, renovador.

Apenas fica a descoberto o olhar, que emite um “fogo que não queima”. O olhar que não mente, lugar onde o Ser transparece.

Queima-se o ano velho e prepara-se o ano novo (facilmente nos esque­ cemos que até há poucos séculos atrás, o ano novo era cele­ brado no Equinócio da Primavera).

De face encoberta, se descobre no Entrudo a Porta de Entrada para o Transparecimento do Ser.

Das cinzas do que já foi, nasce o que virá-a-ser.

Alexandre Gabriel

O ph i us a m a io 2018

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alma na — — que LIVRO

www.asombradafaia.blogspot.com.br

A Sombra da Faia Melissa G. Boëchat 2017

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A intuição de que o saber do corpo, o saber sensorial, ardente, erótico até, é o mestre do próprio Espí­ rito, tem estado bastante ausente da cultura maiori­ tária, cristi­anizada, com certas excepções notáveis em obras inter­ pretadas com eufe­mismos a mais, como o Cântico dos Cânticos. Isso talvez torne ainda mais valiosas as perspectivas de quem vem pisando o mundo desde nascença com o coração voltado para os Caminhos Antigos, como é o caso da poetisa e amiga da Ophiusa, Melissa Boëchat. A primeira parte do livro A Sombra da Faia, sugestivamente intitu­ lada “Ouve, Bardo”, parece fazer eco dessa ligação mística entre Amante e Amado, que tanto impul­ siona as paixões terrenas como provoca súbitos arre­ bates pelo Incri­ ado, mani­ festo e feito convite em todas as coisas. A espera, a atracção, o caos e a união derradeira são o modelo iniciático por excelência, em qualquer um dos Três Mundos.

Diz-se que a faia terá sido uma das inspirações primeiras para as catedrais dos homens. O seu nome nas línguas germânicas partilha a mesma raíz com a palavra para “livro”. O deus irlandês Ogma terá redi­gido o alfabeto do Ogham pela primeira vez em madeira de faia. Não é de se admirar, por isso, que seja à sua sombra que a autora deposita a sua poesia. Não como oráculo que tudo viu e conhece, mas como Bardo plenamente inves­ tido na sua dança contínua com aquele Silêncio que por vezes nos possui com profecias, e por outras se esconde no Natural, a fonte inesgotável de onde o livro retira as suas Metafísicas. E neste esforço do Bardo atinge-se, com sorte ou pelo poder do Awen, o cerne do que é a Drui­daria e de qualquer caminho da Terra, e que a autora tem o condão de sinte­ tizar logo ao primeiro poema: “É esta a magia da existência: / poder redescobrir-se, por fim, / uma e outra vez, / em Casa.” ■ Fábio Barbosa


>> EVENTOS

31 de Maio – 3 de Junho

1 – 3 de Junho

IX ENCONTRO

ASSEMBLEIA DE VER ÃO DA ORDEM

BR ASILEIRO DE DRUIDISMO

DOS BARDOS, OVATES E DRUIDAS

E RECONSTRUCIONISMO CELTA

Glastonbury, Reino Unido

Espaço Carapiá, Rio de Janeiro

16 de Junho / 18h RODA DO ANO CELTA — SOLSTÍCIO DE VER ÃO

Casa do Fauno, Sintra Palestra com José Alexandre Frazão Matos

DISCO

Num primeiro momento, os passos sobre folhas de carvalho, sobre os sinais do Eterno. Depois, o senti­ mento-título: as árvores estão secas, e no entanto, parafraseando a máxima latina, natura omnia vincit? Depois da fúria contida do EP anterior, também divul­ gado na Ophiusa, os Urze de Lume regressam com um longa-duração em que o Outono passou e o Inverno finalmente se cumpre. As conse­ quências dos actos dos homens alienados estão à vista, e quiçá por isso se sinta ao mesmo tempo uma certa doçura. Como se as faixas deste disco estivessem de espe­ranças por um futuro diferente. No entanto, a mágoa perdura, e isso é patente nos indispensáveis apontamentos líricos que acompanham os arranjos instrumentais já propostos em Vozes na Neblina. O ph i us a m a io 2018

Aqui a arte é um ofício em que se persiste “como um pastor guarda o seu rebanho do mais temível lobo: a solidão”. Uma solidão emergida dos escombros da trama de mútua dependência que um dia comuni­ dades inteiras terão tecido entre si, dentro de si e com a terra. Na segunda metade do disco, o lamento transmuta-se nova­ mente em fúria, quase em toque de marcha. Primeiro, com o rugir dos tambores nas “Encruzilhadas”, insistindo impa­rável até aos segundos finais, quando se ouve o ribombar, já não da terra, mas do próprio céu, que tudo testemunha e vinga. O novo álbum dos Urze de Lume está já disponível para compra e audição nas principais plataformas da Internet. ■

www.urzedelume.com

As Árvores Estão Secas e Não Têm Folhas Urze de Lume Equilibrium Music, 2018

Fábio Barbosa 29


AL M ANAQUE

>> EVENTOS Todas as luas cheias, a Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas convida-o a meditar pela paz.

Uma meditação mensal, a sós ou com um Grupo-Semente ou Bosque, com vista à paz: no mais íntimo, na comunidade e no mundo inteiro.

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TRÍ

DE

três caminhos no ciclo da Iniciação: a despedida, a saudade e o silêncio no reencontro. FÁBIO BARBOSA

O ph i us a m a io 2018

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O S AW E N Y D D I O N

«Entre os galeses existem certos indivíduos a que chamam awenyddion, que se comportam como se estivessem possu­ ídos por demónios. Não é fácil encontrá-los em qualquer lugar. Quando alguém os consulta a propósito de algum problema, de imediato entram em transe e perdem o controle dos seus sentidos (…). Às questões que lhes colocam, nunca respondem de forma lógica. As palavras saem das suas bocas, incoe­ rentes, aparen­te­mente insigni­ficantes e sem sentido, e contudo, expressas de forma clara: se se escutar cuidadosamente o que dizem, encontrar-se-á a solução para o problema. Quando terminam, eles convalescem do seu transe como se fossem pessoais normais acordando de um sono

Geraldo de Gales

in Description of Wales (1194) (tradução: Fábio Barbosa)

pesado, mas é preciso abaná-los vigorosamente para que recuperem o controle de si mesmos, e quando voltam a si, eles não se lembram de nada do que disseram no entretanto. Se acaso lhes for colocada a mesma questão uma segunda ou uma terceira vez, eles darão respostas completamente diferentes. (…) Eles parecem receber esse dom da adivinhação através de visões que ocorrem nos seus sonhos. Alguns deles têm a impressão de que alguém lhes besunta mel ou leite açu­ca­ rado nas suas bocas; outros dizem que uma folha de papel com palavras escritas está a ser apertada contra os seus lábios. Assim que despertam do seu transe e voltam a si depois das suas profecias, é isso que dizem que aconteceu.»


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