Revista da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas — OBOD em lĂngua portuguesa
Agosto 2018
obod.com.pt
EDITORIAL
Semear e colher
FÁBIO BARBOSA
Propriedade: © 2018, Zéfiro – Edições e Actividades Culturais, Lda. ISSN: 2183-9255 Depósito Legal: 419 013/16 Esta obra não pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo à excepção de excertos para divulgação. Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.
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a última assembleia de verão da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas em Glastonbury, fomos surpreendidos pela notícia de que o actual Chefe Escolhido da Ordem, Philip Carr-Gomm, está já a preparar a sua sucessão. No mesmo instante, foi anunciado o nome da pessoa a quem se passará o testemunho, já a partir de 2020. A futura Chefe da Ordem chama-se Eimear Burke e começou a estudar druidismo com a OBOD em 2003. Lidera actualmente um Bosque druídico na cidade de Kilkenny, na sua ilha-natal, a Irlanda. Tal como Carr-Gomm, trabalha como psicóloga, e o que podemos ler e ouvir faz prever uma certa continuidade nos destinos da OBOD. Segundo declarações da própria, “aqui não há nada que precise de conserto”. Será a primeira vez que o cargo é ocupado por uma mulher, e além disso, por alguém vindo de fora do Reino Unido. Talvez isso se reflicta numa maior presença da mitologia irlandesa em futuras versões dos Gwersi. Seja como for, estamos a assistir ao início de um novo ciclo na história da Ordem: doravante, os futuros Chefes deverão suceder-se no máximo a cada nove anos, escolhidos em colégio pelos seus antecessores. Nisto como em tudo o mais, semear e colher são movi mentos que contêm no seu cerne a essência dos seus opostos. Na raiz está o Awen transcendente que os manifesta, sempre nos agracia com a sua visita. Que haja paz a Norte neste Lughnasadh. Que haja paz a Sul neste tempo de Imbolc. ■
Director: Alexandre Gabriel Editor: Fábio Barbosa Concepção gráfica e paginação: Fábio Barbosa Imagem de capa: Fábio Barbosa Colaboram neste número: Adílio Jorge Marques, Ana Fonseca, Agostinho Veras, Ana Simões, Gil Albuquerque, Joel Marteleira, José Alexandre Frazão Matos, Hugo Lima, Isa Baptista, Mafalda Cancela, Melissa Gonçalves Boëchat.
Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas Responsável pelo curso de Druidismo em língua portuguesa: Alexandre Gabriel Morada: Zéfiro, OBOD, Apartado 21, 2711-953 Sintra, Portugal Telefone: (+351) 91 48 48 900 E-mail: obod@obod.com.pt Website: www.obod.com.pt
ÍNDICE
Ogma — O Guerreiro Poeta p.4
Alguns aspectos da cruz druídica p.6
Uma visão arcaica do velho druida p.10
A dimensão simbólica de Rosslyn p.12
O Cristianismo Celta — Parte 3 p.15
No Bosque Sagrado p.18
EISTEDDFOD AL M ANAQUE T R Í A D E
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p.20 p.24 p.27
3 Apoie a Ophiusa tornando-se assinante e receba a revista em primeira mão! assinatura anual (4 números): Impressa: 20 € (+portes) Online (PDF): 8 €
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D E U S E S C E LTA S
Ogma
O Guerreiro Poeta por ALEXANDRE GABRIEL
O
gma é um deus irlandês ligado à poesia e à eloquência, sendo-lhe atribuída a invenção do mágico alfabeto Ogham – cuja ligação à divindade se torna evidente pela sua denominação, que forma uma espécie de “anagrama”. Para além disso é conhecido pela sua ferocidade guerreira, transportando sempre consigo duas armas: o arco e a clava. Destaca-se o seu poder heróico no relato épico irlandês sobre a Batalha de Moytura, onde combate do lado dos Tuatha Dé Danann (“o Povo da Deusa Dana”), participando na vitória contra os barbáricos Fir Bolg e os Fomorianos. Assim, Ogma manifesta uma faceta dupla de poeta e guerreiro, contendo em si tanto o princípio feminino como masculino. Na Gália, o escritor romano Luciano registou a crença dos gauleses no deus Ogmios, por eles descrito como sendo um homem calvo, transportando um arco e uma clava. Luciano diz-nos ainda que Ogmios é seguido por um grupo de homens com boa disposição, que têm as suas orelhas presas a correntes que estão ligadas à língua desta divindade. 4
É possível inter pretar a simbologia das correntes presas às orelhas dos homens como sendo um símbolo da eloquência cativante de Ogmios, que os “prendia”, e que se manifestaria em particular, de uma forma arquetí pica, no turbilhão emocional provocado pelo discurso que antecede uma batalha. Graças à sua poderosa eloqu ência, Ogma condu ziria os homens para a batalha, inspirados e encorajados pelas suas palavras e pelo seu porte assustador. Consi dera-se que muito prova velmente se tratará do mesmo deus, Ogma, com uma grafia ligeiramente diferente, já que possui os mesmos atributos bélico-poéticos acima mencionados. Temos, assim, duas armas principais e visíveis, que são usadas pela divindade no plano exterior: o arco – produto do engenho humano e que serve para atacar a uma grande distância – e a clava – arma primeva usada no combate corpo-a-corpo. A clava representa, muito provavelmente, a arma de guerra primordial descoberta pelo ser humano nos tempos mais remotos da sua origem. Representa a força bruta, primal,
Pintura de Albrecht Dürer alusiva a Ogmios, associando-o a Mercúrio, com os típicos motivos alados e o caduceu
explosiva. A sua descoberta mudou para sempre o curso da história humana. Por outro lado, o arco simboliza a evolução do homem, o seu intelecto, subtileza e argúcia. Ogma representa assim, numa primeira leitura, o arquétipo do guerreiro que existe na memória atávica de cada Homem, desde o seu “nascimento”, no dealbar da humanidade, até ao seu estado actual, com uma capacidade técnica infinitamente superior. Numa segunda “camada”, menos óbvia, encontramos as “correntes da eloquência”, ela própria também uma “arma”, num certo sentido, embora bem mais subtil. Um bom discurso requer arte, fogo, inspiração, paixão e força. Quando reúne estes atributos, reúne também aqueles em seu redor, que se sentem “ligados” por uma qualquer força misteriosa ao seu emissor, que actua como um canal de poder invisível. Neste sentido, o discurso, através do uso da palavra, é também uma “arma”. Mas esta “arma” é infinitamente mais poderosa, pois subsiste e habita para além do espaço e do tempo: tem uma natureza etérica.
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Tal como os trovadores medievais, os antigos bardos tinham o domínio da palavra. Este facto tornava-os dignos de respeito e até de temor pela sociedade celta, já que ninguém quereria que caísse sobre si o pesado fardo de um escárnio bárdico! Existem inclusive relatos da Antiguidade em que os bardos, pelo poder da sua palavra e da sua presença, podiam impedir um combate entre dois exércitos. Assim, o deus Ogma reúne e manifesta em si duas qualidades essenciais no caminho do Bardo: por um lado, a força ou ímpeto — sem as quais nenhuma tarefa pode ser iniciada ou mantida —, por outro, a inteligência — sem a qual nenhuma força é útil ou eficaz. Ao ligar-se à força arquetípica personificada por Ogma, o Bardo descobre em si estas duas fontes de força espiritual, que o ajudarão no seu caminho do Bosque. ■ Artigo originalmente publicado em Mandrágora – O Almanaque Pagão – 2011: No Bosque Sagrado dos Druidas (© Zéfiro, 2010. Todos os direitos reservados).
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Alguns aspectos da cruz druídica por ADÍLIO JORGE MARQUES e MELISSA GONÇALVES BOËCHAT
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ste símbolo, utilizado por algumas Organizações iniciáticas, é o mais completo símbolo da cosmogonia Druídica. Pode-se dizer que a “cruz druídica” é um livro secreto no qual os ensinamentos filosóficos e científicos dos Druidas foram transmitidos durante séculos. O GR AFISMO
A Cruz Druídica é traçada a partir de números de valores absolutos, pouco importando a unidade de medida, uma vez que a proporcionalidade será mantida. Observemos agora a Tríada 8 e a Tríada 101: Deus possui três supremacias: • A vida universal, • A ciência universal, • A potência universal
Roche aux Fées, na Bretanha, França
Na Vida Universal existem três círculos: • O círculo de Keugant • O círculo de Abred • O círculo de Gwenwed Uma vez que a Cosmogonia Druídica se baseia no número três, estes círculos concên tricos tem o diâmetro (d) relacionados por uma lei de triplicidade. O círculo de Keugant, d = 81, é o círculo Divino, onde está Deus e suas manifestações. A este círculo o homem jamais terá acesso. Já o círculo de Abred, d = 27, é o círculo da Fatalidade, o círculo das Migrações das Almas. Neste, as almas estão presas nos seus ciclos encarnatórios, sendo que, ao início de cada etapa, por vontade divina, a alma sai do nada — Cytraul — indo para Abred, até que atinja o merecimento de chegar a
As tríadas aqui inseridas referem-se a uma classificação sistemática de 9 grupos de 9, que foi realizada, no Colégio Internacional de Estudos Celtodruídicos – CIDECD, por suas serenidades os arquidruidas Philéas Lebesgue e Paul Bouchet.
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Melissa G. Boëchat
Gwenwed. O círculo de Gwenwed, d = 9, é o do Conhecimento e da Plenitude, onde os seres que foram purgados e purificados em Abred se libertam dos ciclos de reencarnação e podem evoluir de uma maneira muito mais elevada. A cruz Druídica representa também os quatro elementos e as quatro dimensões, reunidos no 5o elemento, o éter, representado pelo círculo do Mundo (=Gwen) e Branco (=Wed). O ESOTERISMO
Procuremos agora um significado mais oculto dos elementos que compõem a cruz. O comprimento do círculo de Keugant é 2pR, sendo R o raio e 2R o diâmetro (d). Da relação anterior temos que 81 (d) x 3,1416 (p) = 254,4696. Este valor representa, aproximadamente, o chamado Grande Ano Solar, retirando-se a diferença de três casas decimais: 25.446,96 anos. Tal resultado difere um pouco do valor aceito de 25.920 anos, já que este leva em conta ciclos de 72 anos (360 graus x 72 anos = 25.920 anos). Acreditamos que se a nossa órbita terrestre, por exemplo, fosse perfeitamente circular (q = 360°), o valor seria tal como o aceito. Contudo, as órbitas dos planetas em torno do Sol2 são elípticas, o que pode nos permitir certa aproximação. 2
O comprimento ou circunferência do círculo de Abred é de 0,8482. A superfície é de 0,57256, que é 9 vezes a do Círculo de Gwenwed. No druidismo, fala-se que a Perso nalidade Espiritual evolui em Abred. Ela é submetida a períodos de provação material ou de encarnações em um corpo físico no seio de Annouin. Isto quer dizer que, segundo as Tríadas, no Mundo da Matéria o Espírito tem a sua menor potência. O estado de vida tem o mínimo material no átomo. Este, energia concentrada, é composto de um núcleo (com prótons e neutrons) e elétrons dispostos em camadas (o número de camadas varia com o tipo de átomo). Por sinal, a representação mais usual, mais conhecida do átomo é o de um núcleo orbitado por elétrons. Não que seja realmente assim, isto é, que os átomos se pareçam com sistemas planetários. De acordo com a ciência, isto é apenas uma representação simbólica. A representação mais verdadeira das chamadas “orbitas” eletrônicas se parece com hélices de ventiladores tridimensionais ou campos de energia. Estes átomos se juntam em moléculas, estas em compostos orgânicos e inorgânicos — minerais, vegetais, animais (com personalidade) e, depois, o homem. Este pode progredir pelo conhecimento até o Mundo Branco.
A respeito do Sol, diz-se que o seu espirito é Belém. O corpo físico do Sol é chamado de Heol.
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Podemos mencionar aqui a quadra tura do círculo. A alma quando liberada pela morte do seu corpo (o quadrado), desa brocha e prossegue em um trabalho de evo lução até sua próxima encarnação. Como diz a Tríada 14, ela deve, então: “Recolher o fruto de cada existência e de cada estado de vida, aprender para conhecer todas as coisas”. Mas,
Gwenwed — pode representar essas oito encarnações mínimas. Os quatro ângulos da Cruz representariam também os quatro elementos, assim como as quatro dimensões: comprimento e largura nos ramos horizontais, altura e profundidade nos verticais. O círculo de Gwenwed, ou da Luz Branca, é o círculo do conhecimento. A este
O número 8 também está presente em muitas outras tradições antigas: egípcios, gregos, celtas, Templários, etc.. A Tradição é una e perene, como o tronco do carvalho, não importando quantos galhos saiam deste tronco.
ela é subme tida ao esquecimento das suas vidas pregressas. A regra deste Mundo leva em consideração três necessidades impostas para alcançar o estado superior de Conhecimento que termina cada ciclo evolutivo e abre o “portal” para um ciclo superior. Estando a alma já no reino Humano, tem a obrigação de conquistar as três vitórias sobre o mal (Tríada 20): “Criar, Amar, Aprender pelo Amor, Criado da Vida por Deus; a Ciência que leva ao Conhecimento; a Força Moral, que permite dominar as provas.” Algumas tradições druídicas acenam com a possibilidade de oito encarnações, no mínimo, necessárias para se alcançar o ciclo superior, levando assim a Alma às mais altas funções: a dos seres superiores, considerados os Regentes do Mundo. A coroa de oito círculos — que tangencia o círculo de
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círculo temos os 8 círculos mencionados acima que o tangenciam — uma Coroa. Aquele que por algum motivo não terminou sua evolução em apenas 8 encarnações deve reco meçar àquela etapa pelas sucessivas encarnações. Tudo passa por essa evolução. Cada criatura retira de Annouim os materiais de sua construção: fluidos do Éter e do Ar, do Fogo e da Água, para se formar o elemento Terra, sólido. A ronda de encarnações, simbolizada pela coroa de 8 círculos, não termina em Gwenwed,
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como em um paraíso estático no qual os “bons” encontram a recompensa de milhares de anos de provas. O círculo não tem começo nem fim visíveis para nós. Os seres que não terminaram sua evolução neste plano humano terrestre, ou seu equivalente sobre outros mundos, a reencontram em outra parte, e a vida cósmica assim continua abandonando em Cytraul to-
dos os defeitos que a tornam mais pesada; isto é uma grande obra espiritual. Júlio César, nos seus comentários sobre a guerra da Gália, afirmava que os Druidas contavam em séculos de 30 anos. Mas aí existe um erro, pois os ciclos são de 37 anos, o que nos dá: 365,242 dias x 37 anos = 13.513,954 dias; ou seja, 365 x 37 = 13.505 + 9 = 13.514 dias. Isso nos mostra que os Druidas conheciam a duração exata da revolução solar. E que, para relacionar a Terra com o Sol, acrescentavam um complemento em dias, cujo número é revelado pelo 9. O ph i us a Ag os to 2018
Outro simbolismo dos números druídicos está nos valores dos inversos dos diâmetros dos círculos que a compõe: Gwenwed: 1/9 = 0,111111111... O 1 é o número solar; é Plenitude no âmago de Deus. Abred: 1/27 = 0,037037037... Já mencionamos os ciclos druídicos de 37 anos e sua importância entre os antigos Druidas; 37 também representa a evolução individual na organização cósmica. Keugant: 1/81 = 0,012345679012345... É a totalidade e o prosseguimento rumo ao infinito de todos os algarismos, menos o 8. Motivos: 8 = Binário suscetível de oposição Duplo quaternário: 2 x 4 = 8 Potência cúbica de dois: 23 = 2 x 2 x 2 = 8 8 = 5 (homem) + 3 (pensamento criador de onde vem a possibilidade da liberação do carma). Este número 8 também está presente em muitas outras tradições antigas: egípcios, gregos, celtas, Templários, etc.. A Tradição é una e perene, como o tronco do carvalho, não importando quantos galhos saiam deste tronco. Como nos diz o grande místico Raymond Bernard na obra Fragmentos da Sabedoria Rosacruz: “Existem inúmeras formas de receber uma verdade. Aos meus olhos, a única válida é considerá-la como o melhor meio de nos compreendermos e de melhor compreendermos o outro. A verdade deve reunir aquilo que o erro divide.” ■
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Uma visão arcaica do velho druida Agostinho Veras
por AGOSTINHO VERAS
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palavra druida, escrita, não é tão antiga como se possa crer, pois aparece pela primeira vez nos comentários de César (livro VI), por volta do ano 50 a.C.. É a partir daqui que a mesma se difunde através da escrita. São muitos os estudos da etimologia da sua raiz, porven tura, a mais conhecida será dru = carvalho; na Irlanda, surge druid, da antiga raiz druwd-es = muito sábio; em latim, vider = ver; em sânscrito, vid = saber. Enfim, todas parecem querer dizer: ver de dentro para fora. Os druidas eram muito solicitados sobretudo por jovens que procuravam o seu saber, por iniciativa própria ou por indicação fami liar, essa sabedoria era interdita à escrita, tudo era passado por via oral, numa aprendizagem duradoura, cerca de vinte anos e subdividia-se em três diferentes graus: 1.º O druida: branco era a cor atribuída; logos: vontade e lei. 2.º O ovate: verde era a cor atribuída; logos: amor e sabedoria. 3.º O bardo: azul era a cor atribuída; logos: inteligência e forma. A tradição druida surge sobretudo da tradição oral — lendas e mitos —
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transmitidas através das gerações, nomeada mente, nos países que hoje constituem a Europa ocidental. Na obscuridade temporal dos druidas, diz-se que detinham grandes poderes e uma sabedoria incomparável, herdada da cultura do continente perdido, a Atlântida. Para muitos, o druida é um religioso. Eu não o vejo assim! Para mim, o druida é um detentor sensorial de absorção enérgica, capaz de interagir naturalmente, de forma mágica, com os elementos (terra, água, ar e fogo), concentrando em si todas as forças telúricas terrestres e cósmicas. Por isso, prevê, antecipadamente acontecimentos – benignos ou malignos – futuros; e, dentro do possível, quando necessário, recorre ao seu engenho pessoal para apaziguar ou deter, atempadamente, tais acontecimentos. O velho druida era misterioso, enigmá tico, relacionava-se facilmente com os espíritos primordiais da Natureza. Não será por acaso que o velho druida elegia, para sua residência, sítios místicos, tais como, cavidades em troncos de velhos carvalhos vivos, grutas, covis sob megálitos naturais ou edificados, localizados perto de rios e fontes. Diz-se que possuíam poderes de transmutação física e da invisibilidade. Eram, também,
conhecidos como serpentes – projectistas e construtores de poços, grutas e centros megalíticos. Visto assim, os velhos druidas, enquanto povo, seriam muito anteriores aos celtas; acredita-se que habitaram, primeiramente, a península Ibérica antes de serem absorvidos pelos celtas da história. São muitos os estudiosos que crêem na existência de um antigo centro megalítico de instrução, localizado na região da antiga Galiza, mais propriamente em Santiago de Compostela, e, daí, terão partido para outras paragens como a Gália e a Irlanda. Seria assim? Talvez seja uma tolice minha, pois, vejo no velho druida uma mulher (druidisa), sobretudo no arco atlântico da Ibéria peninsular, onde o velho druida se assemelha, em tudo, ao mito da moura encantada – a velha serpente. Terá isto lógica? Repare-se na semelhança entre o velho druida e a moura encantada: ambos conhe cem a fonte oculta dos segredos telúricos e espirituais da terra-Mãe; são eternos guardiões dos tesouros da sabedoria oculta; promovem a verdade e condenam a mentira; são detentores de encantamentos; são protectores, alquimistas, criadores de sons benéficos eternos; imortalizam memórias; são notáveis construtores de templos megalíticos; habitam os mesmos locais; são intuitivos por antecipação; possuem o O ph i us a Ag os to 2018
Agostinho Veras
Para muitos, o druida é um religioso. Para mim, o druida é um detentor sensorial de absorção enérgica, capaz de interagir de forma mágica com os elementos, concentrando em si todas as forças telúricas terrestres e cósmicas.
mesmo poder psico pompo; são concelheiros; servem palácios e reis poderosos; realizam pactos entre o visível e o invi sível; abstêm-se da guerra; não receiam a morte; procuram incessante a fraternidade e amor universal; são conhecidos como serpentes; revelam-se e ocultam-se; possuem os segredos da transmutação física; nas suas lendas e mitos preocupam-se em manter viva a memória e tradições de tempos perdidos; são “adorados” pelos povos rurais que, assim, os mantêm vivos no consciente colectivo dos povos; ambos giram em torno da Natureza, a Terra-Mãe, através de rituais esotéricos cadenciados pelo movimento terrestre, e em sintonia com a roda cósmica. Já agora, quem era Morgana, e, qual a sua origem no mito de Merlin? Enfim, se tudo isto é pura coincidência, pelo menos, direi eu, ambos terão bebido e surgido do fio da mesma fonte, disso não tenho dúvida! Seja como for, é imperioso salvaguardar os laços que nos ligam ao passado mais longín quo, é aí que reside o génio, a pureza e a verdade ocultada da Humanidade. O druida é um dos fios que nos escapa. ■ 11
LUG ARES SAGR ADOS
A dimensão simbólica de Rosslyn por ISA BAPTISTA
“O homem é um microcosmo, ou um pequeno mundo, por ser um extracto de todas as estrelas e planetas de todo o firmamento, da terra e dos elementos; ele é pois, a sua quintessência.”
Gil Albuquerque
— Paracelso
A Coragem, escultura na capela de Rosslyn
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A
capela de Rosslyn, que se ergue na vila com o mesmo nome, a cerca de 20 km de Edimburgo, na Escócia, constitui um notável exemplo da profusão do simbolismo na arte sagrada. Começada a construir em 1460, continua até aos dias de hoje a deslumbrar visitantes e investiga dores de arte pelo detalhado trabalho de relevo e escul tura que compõem o seu interior. Imagens do Antigo Testamento, de passagens bíblicas e milagres, surgem lado a lado com elementos de iconografia pagã, possivelmente herdados de tradições mito lógicas dos povos que ocuparam a região em períodos pré-cristãos, como foi o caso dos Pictos, a quem foram atribuídos muitos dos artefactos encon trados em esca vações na área circundante. Uma das mais célebres imagens vivificadas em Rosslyn e que maior polémica tem susci tado, com presença marcada na arte Româ nica e Gótica, mas também em ancestrais templos romanos, da Ásia e até de África — facto que lhe confere uma já longa universalidade — é o popular green man: rosto de homem ou elemental da natureza rodeado de folhagem que habitualmente lhe cobre
O “bosque de pedra” eternizado pelas antigas catedrais nas suas complexas representações iconográficas projecta-nos rumo à dimensão das verdades universais, das quais a natureza é por excelência mensageira velada, fomentando uma eterna demanda através do mítico Jardim das Hespérides.
também os lábios. Em Rosslyn são mais de 100. Existem diferentes teorias que procuram justificar a sua habitual inclusão nas catedrais medievais: a explicação mais frequentemente aceite associa esta imagem à fertili dade, regeneração cíclica e frutificação eterna da natureza fecunda. Todavia, o seu aspecto mais sombrio poderá também representar a inconstância da vida e a permanente acção da faceta indómita e selvagem do macrocosmo natural sobre a alma humana, abrindo caminho a um terreno em que esta se entrega e cede aos sentidos subtis, à visão interior e aos alfabetos naturais, temidos e sublimados pela mentalidade judaico-cristã, que assim procurava realçar a fé como via para a salvação, mantendo à vista os rostos que alegoricamente personificavam o “outro mundo”, mais além da esfera salvaguardada pela religião, onde o peregrino incauto poderia facilmente perder-se. Ainda assim, a folhagem que frequentemente brota da boca destas figuras pode vincular-se a uma terceira e misteriosa chave interpretativa que alude a verdades veladas que repousam sobre o edifício, a serem compreendidas segundo o prisma das linguagens geométricas, “alquímicas” e não-verbais. O ph i us a Ag os to 2018
BOSQUES DE PEDR A?
O historiador botânico Stephen H. Buhner sugere em algumas das suas publi cações a possi bilidade de muitas catedrais que surgiram durante a Idade Média, prolí ficas em motivos arbóreos e florais que alguns mestres escul tores conceberam com tal minúcia e detalhe que aparentam tratar-se de elementos naturais petrificados, incorporarem deliberadamente símbolos de culturas que precederam o advento do cristi anismo, tendo muitas das capelas e igrejas da Alta Idade Média sido erguidas intencionalmente sobre as ruínas dos antigos templos. Por outro lado, Buhner refere a importância que o bosque sagrado assumiu entre celtas e pré-celtas, e relata alguns episódios que remontam à cristianização da Irlanda, quando muitas destas áreas florestais foram intencional mente queimadas ou abatidas, mas mais tarde lembradas nos relevos das novas igrejas com a intenção de “aplacar” a eventual fúria de deuses e espíritos heréticos, como sugerem alguns relatos de monges irlandeses do século VI. Parece ter sido também este o destino do ancestral Nemeton ou bosque sagrado de carvalhos anciãos que terá 13
ocupado a área onde posteriormente Rosslyn viria a ser edificada. Toda a construção lembra um jardim vivo cristalizado no tempo: as represen tações botânicas intrincadas e detalhadas sucedem-se com variedade tal, que ainda não foi possível aos botanólogos catalogar e identi ficar todas as espécies representadas. Folhas de videira dão lugar a heras, lírios, acantos, verbenas, artemísias, azevinhos, inúmeras bagas de visco, folhas de carvalho, uvas e pinhas, prímulas e rosas que cobrem uma área significativa da nave central, ao redor das quais florescem pilares encimados por misteriosos símbolos musicais, trova dores e menestréis alados, cavaleiros em demanda e eventos escatológicos, num intrin cado alfabeto iconográfico que assume a sua mais elevada expressão artística na representação central do lendário pilar do “aprendiz” cuja mensagem aguarda ainda uma completa descodificação. Para o escritor e investigador Lawrence Gardner, as repre sentações da natureza no seu estado puro, desordenado (ou espiralóide quando rodeia pórticos e pilares muito presentes na imagística da Idade 14
Média e do Renascimento) estão intimamente relacionadas com um outro elemento simbólico de herança pré-cristã e carácter iniciático — o labirinto. Este incorpora por excelência o espírito da jornada hermética a partir de um mundo de trevas e caos que motiva a demanda na labiríntica floresta interior, habitada por cria turas míticas e recantos obscuros, que culmina numa catarse de natureza inteligível, onde a nova natureza passa a servir apenas os olhos da alma, que alegoricamente se abrem durante a chegada ao centro do labirinto. O “bosque de pedra” eternizado pelas antigas catedrais nas suas complexas representações iconográficas projecta-nos, por seu lado, rumo à dimensão das verdades universais das quais a natureza é por excelência mensageira velada, fomentando uma eterna demanda através do mítico Jardim das Hespérides. Ali o percurso do V.I.T.R.I.O.L alquímico aguarda a fecundação das sementes lançadas à terra pelo Homem, transmutando-as nas maçãs de ouro do paraíso universal, anterior à queda da humani dade, a Obra completa, vermelho rubro das moradas filosofais. ■
— parte 3
O Cristianismo Celta por JOSÉ ALEXANDRE FRAZÃO MATOS
O
s monges celtas encaravam a pere grinação de um modo diferente de hoje, que é essencialmente uma atitude de súplica e eventualmente agradecimento, e envolve sempre algum esforço ou suplício, tendo geralmente como objectivo a ida a um Santuário dedicado a Deus, a algum Santo ou a Nossa Senhora. A Peregrinatio pro amore Dei era mais uma forma que os monges celtas tinham de se superar, de se santificar pelo esforço e dedicação. Eram muitas vezes peregrinações sem rumo certo: uma delas, conta-se, terá chegado a território norte-americano, cerca de um milénio antes de Colombo ou Vespúcio. Essencialmente procu ravam imitar, replicar os seus antepassados heróis; algumas das peregrinações identificadas com santos irlandeses não são mais que a cristianização de uma epopeia ou história mitológica da Irlanda, que foi copiada por um monge do Martírio Branco. É o caso da Viagem de São Brandão, que não será mais que uma cristianização da viagem de Brann, filho de Febal, (Braínn mac Fébal) que viaja com os seus companheiros em busca da Ilha de Verão ou a Ilha da Promessa, Ilha de Emain Ablach (que em irlandês antigo significa macieira), ilha onde não há doenças, dor ou
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mesmo morte; ou seja, o paraíso Celta, equivalente à Ilha de Avalon na tradição arturiana. Nesta viagem, Brann percorre durante anos várias ilhas, com vários mundos e desafios diferentes. São estes desafios que Brann tem que ultrapassar para se realizar, para chegar ao Outro Mundo, até Emain Ablach. Assim os Santos Celtas que partiam em Perigrinatio pro amore Dei procuram ultrapassar uma série de desafios e dificuldades para assim se reverem nos heróis da antiguidade. Nem todas foram uma “adaptação” como a viagem de São Brandão; outras houve em que os monges irlandeses lançavam à agua um “curragh” (barco de origem irlandesa feito de peles) e sem remos ou vela entregavam-se nas mãos do destino, tendo sido assim que Columbano, por exemplo, partiu da Irlanda com 12 companheiros, como mandavam as regras, chegando à Gália, onde fundou três mosteiros campestres, abadias, em território suevo: Annegray, Luxeuil e Fontaines. Havia nestas peregrinações um sentido diferente das de agora, com destino em santuários: na época, não eram feitas a santuários ou templos, salvo raras excepções que deverão ter existido. As peregrinações eram feitas como um desafio de 15
Uma característica essencial que separa os monges celtas dos da actualidade é o “jejum contra Deus”. Em lugar de uma atitude submissa e de perdão, o monge celta negociava com Deus de igual para igual, nos seguintes termos: “Enquanto não me deres o que pretendo, não comerei ou beberei.”
auto-superação, como uma prova modelada a partir dos heróis do tempo antigo, da religião antiga; os monges celtas tinham que adquirir o mesmo valor dos heróis, como Brann, filho de Febal, ou como Setanta, filho de Diétrich, que ganhou o nome de Cú Chulainn (isto é, “o cão do ferreiro Cullan”) depois de matar o referido animal que protegia as suas terras e a sua fortaleza, nem tinha ainda 6 anos de idade, no dia em que ali se encontrou com o Rei Connar. Uma característica essencial que separa os monges celtas dos da actualidade é o jejum: hoje em dia é uma atitude submissa perante a divindade, mas na época, demons trando o seu carácter celta e irlandês, os monges faziam o “jejum contra Deus”, colocando-se ao mesmo nível da Divindade. Convém referir a que a ligação dos celtas à Divindade, no tempo antigo, era de uma grande proximidade. Eles estavam habituados a que os seus Deuses convivessem com eles, ao contrário dos Romanos, que colocavam os Deuses num patamar superior, tal como o cristianismo — que como se vê herdou muito do Império Romano, além da componente administra tiva. Os Deuses celtas manifestavam-se de diferentes formas junto do povo, como 16
mostram as crónicas da epopeia celta. Estes eram provenientes na sua maioria do povo da Deusa Dana (Ana, Danu), dos Tuatha Dé Danann, que partilharam a Irlanda com os filhos de Milé, conhecidos como Milesianos, que são os gaélicos, os celtas que invadiram a Irlanda. Para os celtas, a convivência com a divindade era normal e igualitária, por isso o jejum contra Deus está intrínseco à espiritualidade e modo de viver celta. Como funcionava este jejum tão característico? Em lugar de uma atitude submissa e de perdão, o monge celta negociava com Deus nos seguintes termos: “Enquanto não me deres o que pretendo, não comerei ou beberei.” Ao fazer chantagem com Deus, coloca-se ao seu nível e transfere o ónus para Deus, pois se algo acontecer ao monge quem quer que desafie Deus, a culpa é deste último. Mas os monges não inventaram este jejum, pois o mesmo já fazia parte das leis celtas, pois quando alguém pretendia um reparo de outrem, fazia o jejum, de preferência à porta deste último: se o primeiro falecesse, quem ficaria com a culpa seria quem estava a ser objecto de reparo. Este costume chegou até aos nossos dias com a denominação de “greve de fome”. Um bom exemplo desta
Catedral de S. Patrício, Dublin, Irlanda
greve de fome, feita ao jeito celta, foi a levada a cabo por Bobby Sands, membro do grupo terrorista IRA, e pelos seus companheiros de bloco na prisão, nos anos 70, que pretendiam ocupar o seu lugar no parlamento inglês, para onde foram eleitos como candidatos de um partido criado para a ocasião. Acabaram por morrer, pois o governo britânico não cedeu. Este caso mais mundano e recente junta-se ao de vários monges e santos celtas. Patrício, por exemplo, ter-se-á rendido em Crochan Aigli, hoje Croagh Patrick, lugar de peregrinação no condado de Mayo. Nessa montanha, um Anjo ter-lhe-á dito que Deus não lhe concederia o seu pedido, por achar que era excessivo. Patrício terá questionado se essa era a decisão final, e após reposta afirmativa do anjo, retorquido: “Então a minha decisão está tomada: não sairei daqui, a não ser morto, enquanto as minhas exigências não forem satisfeitas.” Assim Patrício ficou sem comer nem beber desde o sábado gordo ao domingo de Páscoa. Isto é, sem dúvida, um desafio a Deus, uma blasfémia, pois Patrício ousa equiparar-se a Deus. Columbano, quando estava em Vosgos, onde construiu um dos seus muitos mosteiros, tinha um dos seus monges doente, muito O ph i us a Ag os to 2018
fraco e com fome. Então Columbano decretou que nem ele nem nenhum dos seus compa nheiros comeria ou beberia enquanto não fosse encontrada comida para o pobre monge doente. Este foi mais um desafio a Deus, um jejum contra Deus, que foi compensado, pois passados três dias um camponês local apa receu junto do Mosteiro com víveres e remédios, tendo salvo o seu monge. O “Jejum contra Deus” é como se fosse um geis celta com carácter mágico lançado sobre a divindade. O Cristianismo Celta durou cerca de quatro séculos, tendo desaparecido com os últimos monges/abades, que foram de um certo modo dizimados pelo clericalismo secular de Roma, ou através do peso das dioceses (uma herança do Império Romano), que pouco a pouco aglutinaram os últimos monges livres, ou fazendo a vida deles um autêntico martírio (terá sido este o “Martírio Roxo”?), ou então aliciando-os para a vida secular. Muito mais poderíamos dizer acerca de Patrício ou mesmo de Columba (Colum Cille) e Columbano, que são figuras interessantíssimas no Cristianismo Celta. Outras oportunidades haverão para os conhecermos, a eles e a outros mais, bastante melhor. ■ 17
No Bosque Sagrado por JOEL MARTELEIRA
U
SILÊNCIO
m silêncio morno, calmo, que acolhe plenamente... Um silêncio só interrompido, preenchido, pelo trinar de pássaros que nem se vêem mas estão. Este silêncio que tudo veste no despir silencioso e volátil do orvalho que se eleva como uma nuvem, uma poeira dourada, brilhando aos primeiros raios de sol. Está um dia doce, um belo dia para recomeçar, para continuar a obra aqui no Bosque. Oh! Grande Espírito, a Tua Obra é a maior Obra que me dás a ver. Nem as mais belas estátuas dos deuses gregos ou as mais sentimentais e sublimes Canovianas se comparam à mais minúscula flor deste Bosque. Aqui, na mais ínfima criatura está a Tua Obra Maior, em cada manifestação, um respirar Teu, um sonho concretizado, uma promessa de Amor! Aqui, nas mais pequenas e singelas coisas, Estás por completo, por inteiro. OR AÇ ÃO DA M ANHÃ
Grande Espírito, permite-me a Tua Força a cada momento. Permite-me a Tua Luz na minha escuridão. Permite-me o Teu Silêncio no turbilhão dos meus pensamentos. Permite-me o Teu Discernimento na confusão da minha alma. Permite-me, oh! Grande Espírito, que neste silêncio, calmo e doce, eu Te possa ouvir, e, escutando as Tuas palavras, seja alimentado com o Alimento Amoroso que me ofereces. Permite-me, oh! Grande Espírito, fazer o que me dás a fazer… a Tua Vontade! 18
Te agradeço o pássaro que me acompanha logo pela manhã e que me faz lembrar de Ti, o pisco de papo ruivo que me anuncia um novo dia e que nada é maior que o voo em liberdade, (n)a Tua Liberdade!
M
FIM DE TARDE
ais um dia que se passou, como se o tempo não tivesse existido, não fôra agora o sol, que vai começando a descair sobre o oceano, a dizer-me que estou no final da tarde. Os mosquitos, guardiães aqui do lugar, também têm o cuidado de me avisar que chegou a minha hora de partir. Dar-lhes o lugar é de comum acordo... O dia passou com o cântico do pisco, de quando em vez, me lembrando da sua presença, o sol aquecendo o corpo e o madeiro e, no madeiro, símbolos foram sendo gravados, símbolos que, para além de símbolos, formam palavras. A única palavra gravada hoje, no poste norte do portal este, foi a maior palavra das que já gravei em todos os outros portais, ou das poucas que ainda faltam gravar — a Luz. Foi esta a palavra maior que gravei, maior que Renascimento, Morte ou qualquer outra por maior que seja. Esta é, para mim, a palavra maior porque a Luz é, em si, a Essência, a Essência que é Luz, presença em mim. Awen! 16/4/2018 No Bosque Sagrado
R
REFLEXOS
eflexos do sol que baixou ainda sobre a mesa e os bancos da esplanada. Reflexos dourados tombando para o prate ado, seguindo os minutos que passam lentos no seu tempo próprio. Reflexos compostos de reflexões feitas ou por fazer. Sim. Tudo pode ser motivo de reflexão, até um reflexo dourado-prateado sobre a mesa sobre os bancos. O banco de descanso, o descanso merecido do guerreiro que, com a sua espada sempre afiada e pronta a usar, lutou todo o dia contra os seus muitos inimigos. Um reflexo é um raio de sol reflectido, ainda que com a sua luz já esbatida em jeito de despedida. Até amanhã Sol, até amanhã. No céu, os primeiros morcegos surgem volteando a copa das árvores, baixando rés ao telhado e desaparecem no seu voo incerto. Incerto?! Talvez não seja assim tão incerto. Talvez a minha incerteza seja a certeza do seu voo, do seu instinto. Talvez eu, sim, tenha o meu voo incerto, porque nele penso e por vezes a insegurança de mim traz-me a incerteza, o medo, a angústia, mas tenho também eu um voo parte feito, parte por fazer.
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Tão longo é o meu voo que talvez continue incerto, talvez seja menos incerto porque já aprendi a conhecê-lo melhor, a conhecer o rumo, o Caminho, não o trilho. Esse continua não incerto, mas desconhecido. Um trilho para desbravar a cada passo dado, a cada momento que se aproxima e cada momento, cada passo, pode ser o fim do trilho. Nunca sei. Sei que avanço pelo trilho que se me abre, o trilho que vai surgindo e eu aceito com a curiosidade da descoberta, porque sei que tudo o que encontrar é uma dádiva do Grande Espírito. Sei que por detrás de cada silvado está algo de grandioso, como em cada flor brilhando e exalando o seu perfume. Sei que o cântico dos pássaros algures em qualquer ramo de árvore é o Teu sussurro Amoroso, incentivando-me a seguir, a não ter medo, a dar cada vez mais firme o passo temeroso resistente de peito aberto e coração iluminado. Sim, tudo isto pode estar no reflexo num banco da esplanada, porque cada raio de Sol é uma miração de abundância. 16/4/2018 Na Casa do Fauno, 20h45
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O poema é conversa humana palavra que recuperamos ao abandonar. José Tolentino Mendonça
Eisteddfod: DANÇA ANCESTRAL
No silêncio de minha floresta interior ouço a voz suave e ancestral de uma lira. Dançam ao redor centenas de mulheres como eu que em roda há milênios celebram a vida das árvores o amor dos homens os filhos da terra os frutos do trabalho da família. De olhos fechados sinto minha leveza sobre o corpo firme da Terra que me abriga desde sempre e me ensina que é preciso ser forte para existir.
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É preciso girar com a Roda da Vida adormecer quando é o tempo da retirada e despertar o fogo à chegada da estação de Lugh. Meu ritual cotidiano se resume em ler a Natureza e nela encontrar meu caminho. Mãos que se movem ao baile das chamas aprendo que crio sombras se desejo a partir da Luz. Escolho a dança dos reflexos. Assim me ensinaram aquelas que vieram antes de mim e assim aprenderão aquelas que porventura responderem ao chamado da lira de um Bardo. Melissa G. Boëchat
Melissa G. Boëchat
Jo Burgard
LUGHNASADH
Aproxima-se o fim de mais um ciclo. Preparamo-nos para colher o que plantámos Nos campos, Na comunidade, Nas nossas vidas. Como é que este ciclo preparaste? Que sementes escolheste e plantaste No campo que é a tua vida, Nos férteis terrenos das vidas em teu redor? Como preparaste esta roda do ano? E o que escolheste para a tua colheita? Que caminhos, para ti, traçaste? Como foi a tua Iniciação? Celebra, agora, a tua colheita. Celebra o Deus do Fogo e da Luz. Celebra a Sua versatilidade e habilidades. Celebra a tua vida. E reconhece a sabedoria da cuidadosa preparação a cada novo ciclo. Ana Simões
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EISTEDDFOD
RETORNO
voltamos aqui muitas vezes a terra invoca o nosso nome estação após estação os anos passam levamos pele morta a enterrar ouvimos coisas estranhas que inspiram desassossego no cântico do fogo forjamos o verão entre um verso e outro no silêncio no verso do verso no fumo entre gestos pesados voltamos aqui muitas vezes esperamos pela chegada das estações ventos de primavera ribeiros de outono em queda livre mas dos verões ninguém sabe de onde vêm para onde vão no verso fronteira do silêncio o desassossego faz novas todas as coisas e do intervalo do fôlego os desertos se fazem tempestades Fábio Barbosa
SARAMANTIGA
Por vezes enrola-se, contorce-se e é de uma beleza comovente. Outras, jaz pacífica numa brisa tépida e fareja fios de ouro arrancados aos seus destinos. É um turbilhão de coisas perdidas, o que sente. Escórias ainda quentes e coisas aveludadas que não sabe de onde vêm. As raízes também farejam metálicos veios sonoros, mas esses ecoam surdamente por entre crisálidas de massas moles que parecem mortas mas vão renascer brevemente, numa luxúria de vida. Bisonhos animais de bronze gritam estridentemente mas ninguém foge. Há até quem lhes tire fotografias. O ar continua a estalar, discretamente e adormece bêbada de luz. Ana Fonseca
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Hugo Lima Fábio Barbosa
ANIMAL DA NOITE
Sangro em liberdade Sangue farto de potencialidade, morte, amor e vida. Sangue que é a própria vida. Em Infinita Espiral atravessando Ouroboros. Suspiro para esses lugares desabitados existentes no meu corpo. As camadas de pele que caem formam o uivo melódico nesta Terra do Não-Saber. Animal da Noite. Vem. Pousa aqui. Que eu possa ser cortada e destruída para que o fumo dourado se espalhe. Haja em mim Visão para tecer a Pele do Silêncio. Que o meu grito por Ser, seja Música. Que assim seja. Mafalda Cancela
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alma na — — que LIVRO
www.angleseydruidorder.co.uk
The Book of Celtic Magic Kristoffer Hughes Llewellyn, 2014
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Numa época em que, como nunca dantes, existem livros introdutórios sobre neopaganismo e espiritualidade celta em abundância, poderia pensar-se que está tudo escrito. No que toca ao universo celta, as águas parecem inclusive estar claramente divididas entre as abordagens recons trucionistas e os autores herdeiros de Gardner e Nichols. Só que depois existem pessoas na comunidade que decididamente estão afinadas pelo seu próprio diapasão — e ainda bem que o fazem. Kristoffer Hughes, fundador e mentor da Anglesey Druid Order e também membro da OBOD, é um desses exemplos. The Book of Celtic Magic parte de um conjunto de referências famili ares mas ao mesmo tempo estranhas para a maioria dos que seguem os currículos das escolas de mistérios celtas mais conhe cidas. Sim, o livro fala-nos do mesmo Awen, do caldeirão de Cerridwen e do Taliesin que conhecemos. Sim, ao centro está o símbolo do tríscele — mas como eixo dos Mundos, numa
cosmovisão que não necessita dos quatro ele mentos hermé ticos que importámos para os nossos círculos mas que também não se envergonha de Iolo Morganwg. O resultado sabe-nos ao País de Gales, sem compromissos, mas sem isolacionismo. Hughes convida-nos a abordar o Awen como a Essência indefinível e incriada que se manifesta não só nas histórias galesas mas também em todos os lugares, sob todos os nomes e, sobretudo, nenhum. É nesse Absoluto que mergulha a sua magia. Em seu torno, figuram todos os muitos espíritos que o Espírito do Mundo suscita, entre deuses, génios do lugar e ancestrais, que aqui não são objectos de culto, mas sim entidades mentoras e parceiras. A espiritualidade celta ocupa-se em reparar a nossa teia de relações com o restante Cosmos. E este trabalho fornece várias ferramentas visionárias e divinatórias que nos ligam tanto aos outros seres vivos como ao Tempo fora do tempo. ■ Fábio Barbosa
>> EVENTOS
4 de Agosto / 15h-18h
4 de Agosto / 18h30
HERBALISMO PR ÁTICO
RODA DO ANO CELTA
— ESPECIAL LUGHNASADH
— LUGHNASADH
O Regresso do Rei-Sol
Casa do Fauno, Sintra Palestra com José Alexandre Frazão Matos
Casa do Fauno, Sintra Curso com Isa Baptista
DISCO
Damh the Bard é um nome incon tornável na comunidade druídica, não só pela sua profusa actividade como músico, mas também como produtor e apresentador do Druidcast, o podcast oficial da OBOD em inglês. No seu mais recente trabalho, vemos o artista a fazer ainda mais jus ao seu título de Bardo, ao editar o primeiro de quatro volumes temáticos dedi cados à mitologia do Mabinogi. O Mabinogi, por hábito editado no seio de colectâneas mais abrangentes — que incluem a história de Taliesin, por exemplo — sob o título Mabinogion, é um conjunto de textos em prosa redigidos em galês medieval. Na sua diversidade de géneros literários, estão contempladas histórias de amor, guerra e magia, contadas em quatro ciclos, ou Ramos, e a sua leitura reveste-se O ph i us a Ag os to 2018
de um valor inestimável para quem pretende compreender a cosmo visão popular do País de Gales. O primeiro Ramo, que alimenta este disco, conta a viagem heróica de Pwyll, Príncipe de Defyd, pelo Annwn, o Outro Mundo galês. Da sua união com Rhiannon nasce Pryderi, que muitos equacionam com a figura de Mabon ou Maponos. Compactar tudo isto num disco e propô-lo a um auditório neopagão, cujo contacto com Gales se resume muitas vezes a palavras soltas e comparações com o imaginário irlandês, pode ser penoso. Mas Damh está aqui no seu auge, e entre canções e largos excertos falados, vale a pena dedicar os ouvidos à escuta. Com auscultadores. Como que à volta de uma fogueira. ■
www.paganmusic.co.uk
Y Mabinogi: The First Branch Damh the Bard 2017
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AL M ANAQUE
>> EVENTOS Todas as luas cheias, a Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas convida-o a meditar pela paz.
Uma meditação mensal, a sós ou com um Grupo-Semente ou Bosque, com vista à paz: no mais íntimo, na comunidade e no mundo inteiro.
EM LINHA
PODCAST
W YRD
www.anchor.fm/wyrd Mitologia nórdica e runas, por Marco Dinis Santos, membro da OBOD.
PORTAL
EIMEAR BURKE
www.kilkennydruidry.com Página oficial da futura Chefe Escolhida da OBOD.
VÍDEO
TEA WITH A DRUID
www.facebook.com/druidry Transmissão ao vivo, todas as segundas-feiras, com Philip Carr-Gomm.
BLOG
ECOSOPHIA
www.ecosophia.net Por John Michael Greer, antigo Grande Arquidruida da AODA.
BLOG
THE WEEKLY DRUID
www.druidryblog.wordpress.com Blog pessoal do austríaco Christian Brunner, membro da OBOD.
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TRÍ
DE
três deveres de um druida: curar-se a si mesmo, curar a comunidade, curar a Terra. pois, se assim não fizeres, não poderás chamar-te druida. TRÍADE MODERNA
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DA INICIAÇ ÃO
«Mas o significado real da iniciação é que este mundo visível em que vivemos é um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão. A iniciação é o dissipar — um dissipar gradual, parcial — dessa ilusão. A razão do seu segredo é que a maior parte dos homens não está adaptada a compreendê-lo e, portanto, compreendê-lo-á mal e confundi-lo-á, se for tornado público. A razão de ele ser simbólico é que a iniciação não é um conhecimento, mas uma vida, e o homem deve, portanto, descobrir por si o que mostram os símbolos, porque, assim, viverá a vida deles, não se limitando a aprender as palavras em que são mostrados.»
Fernando Pessoa in Fernando Pessoa e a Filosof ia Hermética