8 minute read
Etelvino Henrique Novotny
Etelvino Henrique Novotny Pesquisador da Embrapa Solos Biochar
Imagine uma tecnologia verda- deiramente carbono-negativa, onde há a efetiva remoção do gás carbônico atmosférico, mitigando, assim, as emissões antrópicas, e que esse carbono seqüestrado esteja em uma forma extremamente útil, melhorando a fertilidade do solo e, conseqüentemente, aumentando a produtividade deste, produzindo-se mais alimentos, com menor uso de fertilizantes em uma mesma área, reduzindo, assim, a pressão por desmatamentos. Imagine ainda que essa tecnologia tenha como co-benefícios a produção de energia renovável e seja aplicável em qualquer escala, do pequeno agricultor familiar, aos grandes empreendimentos agroindustriais. Uma tecnologia que pode utilizar, como matéria-prima, resíduos de difícil descarte, alguns deles importantes passivos ambientais, e ainda tenha o apelo de recuperar conhecimentos indígenas précolombianos de tribos amazônicas desaparecidas e agregá-los à nossa realidade, com o ferramental científico moderno. Utopia? Acreditamos que não.
Esse é o cenário que se apresenta com a proposta de se utilizar na agricultura os resíduos da pirólise, a baixa temperatura, e de biorrefinarias. Esses processos são a produção de energia (calor, eletricidade e/ou biocombustíveis) e de substitutos a petroquímicos (polímeros, plásticos, agro e farmoquímicos, aditivos para combustíveis, etc), obtidos a partir do aquecimento de biomassa, na ausência de oxigênio. Esses processos têm como resíduos materiais parcialmente carbonizados (biochar), normalmente de granulometria fina, com elevado teor de carbono, em uma forma recalcitrante, ou seja, apresentam um longo tempo de residência no solo.
A matéria orgânica do solo é formada pelos resíduos vegetais e animais, em diferentes estágios de decomposição, sendo estabilizada pelo processo chamado humificação, e é, em grande parte, responsável pela manutenção da exuberância da floresta amazônica, para ficar apenas em um exemplo bem conhecido. A matéria orgânica do solo, a despei- to do conhecimento leigo, é o maior reservatório superficial de carbono, correspondendo a três ou quatro vezes a quantidade de carbono existente na biomassa, sendo assim, ações que vi- sem aumentar o estoque de carbono no solo são mais efetivas e factíveis que alterações no conteúdo de biomassa, tais como o plantio de florestas, com vistas ao seqüestro de carbono.
Adicionalmente, a matéria orgânica do solo desempenha papel primordial na qualidade deste. Isso decorre da influência que a quantidade e qualidade da matéria orgânica exercem sobre as propriedades físicas, químicas e biológicas dos solos. Esses efeitos são particularmente importantes nos solos tropicais, que devido à sua gênese, geralmente apresentam baixa capacidade para reter os nutrientes das plantas. Assim sendo, um aumento do conteúdo de carbono no solo aumenta sua fertilidade e, com isso, o conteúdo de biomassa vegetal que esse solo é capaz de suportar.
As Terras Pretas de Índio, encontradas na Amazônia, são solos extremamente férteis e ricos em carbono, e essa fertilidade mantém-se no tempo, a despeito do uso agrícola desses solos. Essas características devemse, principalmente, às propriedades da matéria orgânica desses solos, de caráter pirogênico (rica em biochar). Esses solos especiais foram formados pelos índios pré-colombianos, embo- ra não esteja claro se foi um processo intencional de melhoria do solo, ou subproduto das atividades agrícolas e de habitação desses povos.
Mas, enfim, essa atividade humana no passado pré-colombiano resultou no acúmulo de resíduos vegetais e animais, assim como grandes quantidades de cinzas e carvão. As lentas alterações químicas naturais desses resíduos carbonizados geraram um material recalcitrante e reativo, pela sua oxidação parcial, dando origem a grupos químicos capazes de reter os nutrientes das plantas, evitando, assim, sua lixiviação pelas intensas chuvas, nesse ambiente amazônico.
E assim, o estudo desses solos possibilitou a definição de um modelo de material orgânico a ser reproduzido, visando à melhoria da fertilidade do solo, de forma sustentável, e o seqüestro de carbono.
Para isso, se pode utilizar resíduos parcialmente carbonizados (biochar) e gerar os desejados grupos químicos reativos, de forma expedita e econômica, utilizando-se técnicas modernas em um perfeito casamento entre o conhecimento tradicional indígena pré-colombiano, com respeito à natureza, e o conhecimento científico moderno.
Finalmente, cabe ressaltar que não se propõe competir por recursos energéticos, tais como carvão e bagaço de cana-de-açúcar, mas sim otimizar o seu aproveitamento na geração de energia ou químicos, por métodos modernos de pirólise e pela utilização de resíduos de difícil descarte, que, muitas vezes, correspondem a passivos ambientais, tais como: resíduos da indústria madeireira e de papel e celulose, da produção de carvão, resíduos da indústria de biocombustíveis (biodiesel e via celulósica, para produção de etanol), lodo de esgoto, casca de arroz e outros resíduos da agroindústria. Conciliando, assim, a produção de energia e alimentos, com o aumento da fertilidade do solo e seqüestro de carbono.
Essas características fazem dessa tecnologia uma das poucas ferramentas disponíveis com o potencial de responder à convergência de temas com os quais nos defrontamos no início deste século: degradação dos solos, escassez de alimentos e fertilizantes, competição por biomassa e escalada das emissões de gases do efeito estufa.
Talvez, estejamos diante de uma segunda revolução verde, onde se irá substituir e aprimorar tecnolo- gias mais do que “balzaquianas”, pelo reaproveitamento de resíduos e produção de novos insumos “tropicalizados”.
Fernando Carazza Professor de Química Orgânica da UF-MG As riquezas das fumaças do carvão vegetal
As crises geradas pelos constan- tes aumentos dos preços do petróleo trouxeram para a humanidade uma consciência aguda da precariedade do nosso modus vivendi, fundamen- tado sobre fontes energéticas não re- nováveis. Na esteira dos problemas energéticos surge também preocupa- ções com os insumos para a indús- tria química. De novo, a biomassa é lembrada como uma fonte alternativa renovável a ser explorada e, como pontos proeminentes desta alternati- va, ressaltam as florestas cultivadas. As plantas lenhosas são constituídas, principalmente, pela celulose, hemicelulose e lignina, concentrados de tal modo, que é fácil recolhê-los sob a forma de troncos das árvores. Os troncos podem ser guardados e constituem uma forma adequada de armazenar energia solar e matériaprima orgânica.
O primeiro processo químico de- senvolvido pelo homem para o aprovei- tamento desta energia foi a fabricação do carvão vegetal, usado pelos primiti- vos como combustível, sem fumaça.
A carbonização é fundamental- mente um processo de decomposição térmica dos constituintes da madeira, na ausência de oxigênio. No início do aquecimento, a madeira é apenas secada. Com o aumento da tempera- tura, as estruturas da celulose, hemi- celulose e lignina começam a se de- compor, dando origem a uma grande variedade de substâncias voláteis e um sólido - o carvão vegetal. Em mé- dia, apenas 30% da massa é converti- da em carvão e os 70% restantes são lançados na atmosfera, sob a forma de fumaças.
A recuperação e utilização de subprodutos presentes nas fumaças re- montam aos tempos do Egito dos faraós. A carbonização da madeira era utilizada não só para produzir carvão, mas também o alcatrão e o ácido pirolenhoso, sendo este usado nos embalsamamentos. Houve um tempo em que produtos, como ácido pirolenhoso, alcatrão, ácido acético, metanol, acetona, etc., foram produ- zidos industrialmente, por destilação da madeira, e comercializados com bons lucros, apesar das instalações primitivas das indústrias. Após o início da produção do metanol e do ácido acético sintéticos, houve um grande esforço no desenvolvimento dos processos de recuperação e pu- rificação eficiente dos subprodutos; entretanto, foi impossível vencer a concorrência. 46
Atualmente, o metanol e o ácido acético, oriundos da carbonização, não têm expressão comercial.
O Brasil, com uma produção anual de 35 milhões de m 3 (8,75 milhões de toneladas) de carvão vegetal (AMS/ 2006), tem, neste processo, um poten- cial significativo para o uso racional da biomassa. Para isto, bastaria recu- perar os subprodutos, principalmente o alcatrão, que pode ser usado como insumo energético renovável.
À proporção de 200 kg/t de car- vão vegetal produzida, poderiam ser geradas 1.750 mil toneladas de alca- trão/ano. Considerando a densidade do alcatrão igual a um, a produção seria de 1.750 milhões de litros, ou seja, cerca de 11 milhões de barris de alcatrão/ano. Sendo que a energia conti- da no alcatrão, 65% daquela apresenta- da pelo petróleo, poderia ser obtida em uma quantidade de energia equivalente a 7,15 milhões de barris de petróleo, os quais gerariam uma receita de 858 mi- lhões de dólares/ano, nos preços prati- cados ultimamente (US$ 120).
Embora os dados do exercício acima sejam animadores e o uso do alcatrão como combustível seja de fácil desenvolvimento, a produção de carvão vegetal é bastante dispersa e a cultura de recuperação do alcatrão é muito pouco difundida e incentiva- da. A idéia do uso do alcatrão vegetal como combustível exigirá a criação de plantas, onde fosse concentrada a produção e realizada a desidratação do mesmo.
Com a produção de 8,75 x 106 t de carvão, poderiam ser recuperados o alcatrão (1.750 x 106 t) e, aproxima- damente, 2,6 milhões de toneladas de ácido pirolenhoso. O ácido pirolenhoso é uma solução aquosa, con- tendo cerca de 10% de compostos orgâni- cos ácidos, carboníli- cos e fenólicos. Com composição compa- rável a uma solução de matéria (ácidos húmi- cos e fúlvicos) orgâ- nica ultradecomposta, vem sendo usado co- mo insumo agrícola. De fato, estudos con- firmam as atividades quelante, fungicida, aleloquímica etc., do ácido pirolenhoso. Sendo ácido, é reco- mendado como redutor de pH de caldas e seu uso correto é uma forma possível para minimizar custos na agricultura.
O alcatrão in natura praticamen- te não tem outra aplicação, a não ser o uso como insumo energético. En- tretanto, como o petróleo, pode ser fracionado e utilizado como insumo químico pelas indústrias químicas, farmacêuticas e de alimentos.
Os primeiros fracionamentos do alcatrão levaram a cinco frações: uma aquosa, três oleosas e uma re- sidual, denominada piche vegetal. A primeira contém o ácido pirolenhoso, com acidez controlada, permitindo uma formulação mais adequada dos produtos destinados à agricultura. As frações oleosas, com seus aromas característicos, pungente, adocicado e “bacon”, vêm sendo utilizadas na formulação de aromas de fumaças, usados em produtos com sabor de defumado.
Com uma das frações oleosas, é preparado o “creosoto vegetal”, usa- do no Japão no tratamento distúrbios intestinais; em laboratório, foram obtidas quase uma centena de subs- tâncias novas, a partir de constituin- tes do alcatrão. Já o piche vegetal vem sendo usado como veículo em produtos veterinários e na produção de refratários. Pesquisas mostram que o piche pode ainda ser utilizado no preparo de elastômeros, espumas flexíveis, revestimentos e fibras de carbono.
Os fatos relatados mostram que os esforços para introduzir a recupe- ração de subprodutos, iniciados em Minas Gerais, durante primeira crise do petróleo, e mantidos até hoje pela V&M do Brasil, Biocarbo e UFMG, podem, neste novo momento de cri- se, ser aplicados para o uso mais ra- cional da biomassa.