Junho/Julho 1
SUMÁRIO 03| Editorial: As Utopias Nunca Morrem 04| Frases 05| Cronicando: Devaneios de Um Sonhador 06| Posfácio: Pegando nas “Pegádas Íntimas” de Ras Nguimba
Ngola
10| Poesia: José da Silva Maia Ferreira 11| Homenagem: Euclides Sabino 12| Perfil Literário: Lucia Nereida 13| Proposta Literária: Angola: Debates e Ideias 14| Conto: Azul e Branco 16| Faça com Estilo: Quando Começou a Literatura 18| Na Palavra com: Heduardo Kiesse 24| Estilo e Cores: Sugestões de Auxílio ao Estudos das Artes
25| Ateliê: Para Apreciar Arte
FICHA TÉCNICA Direcção
Luamba Muinga Luefe Khayari Oliveira Prazeres Cordenação de Edição
Oliveira Prazeres Redação
Aneth Silva António Paciência Cláudia Cassoma Cláudio Kimahenda Didier Ferreira Isis Membe Luamba Muiga Luefe Khayari CRiação e Diagramação
Luamba Muinga Oliveira Prazeres Revisão
Luefe Khayari Mário Henriques
26| Em Cena: Luanda, Um Cemitério de Teatros 27| Entredanças: Dança-Corpo e a Relação com o Sentir
Fotografia
Adilson Leão
29| Outros Passos de: José Pitra 32| Portfólio: VêSó, Vagando na Câmara De Adilson Leão 38| Em Análise: Dimensão Africana da iiiª Trienal de Luanda
41| Entidades: SADIA
Palavra&Arte 2
Caricatura
Elias Jamba Sanjelembi Parceria
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E D I T O R I A L
As Utopias Nunca Morrem
N
um olhar clínico sobre a sociedade, é possível concluir que a produção artístico-cultural está intrinsecamente associada à prática e ao modo de vida que é resultado das crenças e relações sociais entre os seres humanos (e não só). Conteúdos culturais são produzidos a todo o momento nas diversas formas, sejam elas individuais ou colectivas e acabam por ser o reflexo e leitura que um determinado grupo faz da sua geração. A nossa geração artística é, inúmeras vezes, confrontada e em tons desafiadores por parte de uma outra geração (os nossos kotas) que aqui galgou, que ousou sonhar, e que tornou possível a materialização dos seus sonhos e que por meio das ferramentas disponíveis deram asas as suas utopias. Não se trata aqui de estabelecer qualquer confronto de gerações, porém reconhecemos que a geração do outrora – em nada ultrapassada (e sempre actual) – é para nós um modelo de inspiração de que muito podemos fazer quando há um vislumbre claro do que se pretende. Desta forma percebemos que as temáticas ligadas à produção artístico-cultural feita pelos jovens não é um tema passível de limitações, pelo contrário, ela abarca discussões que abrem portas para outras dimensões que devem ser exploradas, discutidas e experimentadas em suas múltiplas possibilidades. Hoje buscamos cimentar a nossa visão artística, olhando para o testemunho e trilhos deixados por várias gerações que nos antecederam e que com letras de ouro grafaram os seus nomes no panorama cultural nacional.
passado para compreender o futuro. Reconhecemos que somos uma geração privilegiada, pois sempre podemos, em algum momento, olhar para história e aprender. Aprender com resultados e com os erros. Somos essa geração que fervilha de idéias, críticas e sonhos que são construídos dia após dia. É desses sonhos que hoje brota a revista PALAVRA&ARTE. Compreendemos que temos hoje, na internet (redes sociais), uma poderosa ferramenta para congregar num único espaço toda e qualquer produção artístico-cultural feita por jovens angolanos em diversas partes do mundo. Pretendemos, assim, ser um espaço de divulgação e promoção de todas as manifestações artísticas de jovens que buscam na arte uma forma de expressão. Claro que a compreensão da arte passa pelo sentido de beleza, do estético, do que é artístico, do que é poético ou lúdico, do que é prazeroso, das manifestações que são também um olhar crítico e real da sociedade com que nos conectamos. A revista PALAVRA&ARTE surge ainda com intuito de ajudar a cobrir a demanda existente de espaços culturais (revistas, jornais, blogs...) para divulgação e promoção de novos artistas e ser capaz de abordar de forma sucinta temas do nosso raio de actuação, contribuindo, dessa forma, na emancipação cultural. Ela é também para a equipa de jovens por trás desse trabalho a real prova de que só os círculos são eternos e de que as utopias nunca morrem, apenas transformam-se. Sejam bem-vindos!
O que procuramos é fazer uma leitura do
Por Oliveira Prazeres
oliveirap2001@gmail.com Junho/Julho 3
“As crianças não devem ter preguiça de ler livros infantis e não só, porque quem lê viaja e aprende muita coisa sobre o mundo. É através da leitura que abrem as mentes e aprendem a fazer correctamente as coisas e a criar iniciativas para a sociedade”
Fonte: Jornal de Angola
Maria Celestina Fernandes Escritora
se substitui o ã n m é b m mas ta ço. O essena substituíveis, p in s e á h u e o s ã n o ra o, tem vo “Na literatu no seu temp r, to ri c s se crie um no e e a u d q a l C ia . c n m e é s u s g nin vocês jovens toral. [...]É e u e a u q e d O a . id m v é ti u a ning cial é a cri a original. Os der substituir n rm te fo re e p d e s ra tu m a litera eu espaço se é criar a voss mpo tem o s r te e z a d fa a C m . e v m e e esc José poetas d icos e rejuven stinho Neto e m o â g in A d . o to ã x s te s o u beri o se process da luta pela li ntexto possu , o o c m a s d li a a c n e io c to a nos do n contex . Eu vivi nos a m no âmbito to ra n e e iv m v a s a n h . e in p ir Crave as da Guerra ldava o seu rc o a m M e s d A a i d v li a re so esc dade. Essa re ização, por is re os vossos il b b o s ta s r e e s v e re d c e s vem e da guerra d s também de ê c o v e u q a Isto signific tempos.” rdade - Moçambique Ve
Fonte: Jornal
lo cruzae p á r a d u m artística só o pleno de t o n ã e ç u m a d n o r io c da p ipais: o fun zado e o incremenc “O cenário in r p s o ix iali dois e do gosto tico espec ís o t ã r mento de ç a a c o u in d s e ,a a de en or um lado ade, através de p , um sistem m e is v d es que , da a socie o t e d to de acçõ e, a Arte e a t n ic t e é t s lm a e e r o çã é, so à produ e a aprecia ão do que s ç e a c a lg u o iv e t d en s de a toda a g programa m a it m r e p que por outro, undial.” Marques m a r a r e ic t u ís G t r a ção a Ana Clar ngola ngola de A
Fonte: Re
nestas e puras. o h r se m a it perm rdaas pessoas se e alguém é ve st e e u q r ti n “É preciso que se e r ar para alguém oa não deve se ss e p A . ra Tenho que olh st o m miaquilo que me ser simpática co ra a p o u deiro, e que é ss o p u mim or nada que e re o que vê em b so o it ce influenciada p n co iras ter nenhum pre r mais verdade se e u q go, nem deve m tê s a m verdadeiras o. As pesso re ig se m l co ci r fá a d is li a m ra pa torne as para que se ri p ró p o g si n co utras.” umas com as o ngola
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Irina Vasconcelos (Cantora e Compositora)
nea de A
temporâ ança Con
nhia de D
da Compa Directora
Fonte: Rede A
ijóo Lopito Fe Escritor
CRONICANDO
Devaneios De Um Sonhador Por: Luefe Khayari
luefe.khayari@gmail.com Queria ter estado lá, quando fizeram o mundo. Eu, sentado onde fosse possível, a ver o nada a transformar-se em alguma coisa. Deve ter sido divertido para quem viu o nada a transformar-se em alguma coisa. Eu também queria ter visto, mas não fui convidado! Queria ter apreciado as coisas a ganharem vida. Como será que a primeira erva surgiu? Eu queria ter estado lá para dar a minha opinião, provavelmente, não seria ouvido, mas daria mesmo assim. Podia ter sido bom. Queria ter visto o crescer da primeira árvore e deleitar-me a sua sombra, deve ter sido sensacional para o primeiro que tirou uma soneca debaixo do primeiro embondeiro. No dia em que fizeram, o mar podiam ter-me convidado para assistir, queria ter visto como era o mar sem um traço de poluição, cristalinamente limpo que até os recifes e os corais, de lá do mais profundo, podiam ser vistos de cá de cima. Queria ter visto o céu no seu primeiro dia. Tenho a certeza que não me passaria pela cabeça que, daí, a milhares de anos, a conversa de todos os dias seria um buraco que alguém fez na camada de ozono e que ninguém consegue mais tapar. Se estivesse presente nos primeiros instantes da origem do céu, tenho a certeza que veria nuvens límpidas sem terem absorvido ainda a acidez que vagueia hoje pela atmosfera. Decerto teria sentido a sensação de que haverá sempre amanhã, sem ter que me preocupar se algum dia o sol voltará ou não a brilhar. Queria muito ter sido convidado quando fizeram o mundo, só para ver algumas coisas na sua naturalidade, sem antes a mão do homem ter dado lá um toquezinho para melhorar, mas, na verdade, ter acabado por criar o princípio do fim. Aliás, não seria nada mal se me tivessem chamado quando fizeram o homem. Se calhar, podia ter conseguido coagir a não lhe darem
vontade própria, assim tudo seria segundo os parâmetros de quem o fez. Se tivesse estado lá, quando fizeram o homem, pediria para lhe ensinar a tomar só o necessário para a sua sobrevivência, assim não haveria quem quisesse ter tanto que não deixava mais nada para os outros, de certeza que, com isso, não teríamos uma África como ela é, a mãe que amamentou o mundo, mas, até hoje, sente o mau agradecimento desse filho bastardo, que se formou e se firmou e não mais quer saber de onde saiu, deixando-a simplesmente ser a África. Se tivesse estado lá quando traçaram o seu destino, pediria para que o fizessem um pouco mais para esquerda do que esse que o fizeram, nem mais para cima e nem mais para baixo. A sério, queria ter estado lá no dia em que decidiram mandar-me para esse lado. Gostaria, pelo menos, que me tivessem perguntado, se eu queria vir para esse mundo cheio de coisas desagradáveis para se ver, viver e sentir. Queria ao menos ter tido a oportunidade de pedir o curriculum vitae de muitos dos que nele fazem parte. E, a propósito, não seria nada mal ter recebido uma carta de recomendação de muitos deles, para seleccionar quais fossem e quais não fossem acompanhar-me nessa viagem longa e jornada imperfeita, chamada VIDA. Fui seleccionado para o emprego de viver mesmo sem ter-me candidatado, e, no contrato, o tempo é indeterminado. Não me deram a oportunidade de ter visto, lido e discutido todas as cláusulas que dele fazem parte, e o pior é que nem sequer assinei esse tal contrato. Por isso, dói-me muito ter a certeza de que, da mesma forma que fui admitido para esse emprego de viver, serei demitido sem sequer a minha opinião contar. Queria apenas… Junho/Julho 5
P O S FÁC I O
Pegando nas ‘‘Pegadas Íntimas’’ de Ras Nguimba Ngola Por: Helder Simbad: hssandre32@gmail.com
‘‘Pegadas Íntimas’’ é a mais recente obra poética do poeta e prosador angolano Nguimba Ngola, que reúne 50 poemas, que retratam o tema do amor, nas suas múltiplas dimensões e com todas as suas incidências e implicações: factos visíveis a partir da capa, sobre a qual podemos visualizar as marcas deixadas pelos pés, constituídas por palavras, que, juntas, nos remetem a verdadeiros oxímoros (paz vs guerra; amor vs ódio;) e pelo seu tom avermelhado. Sabe-se que o vermelho é uma cor quente, perigosa como a paixão; associada ao poder, à guerra, é a cor do elemento fogo, do sangue e do coração humano; simboliza a chama que mantém vivo o desejo, a excitação sexual e representa os sentimentos de amor e paixão. É também a cor do pecado, no contexto religioso, representando aquilo que é carnal. Em termos ideológicos, é a cor do comunismo e dos partidos da esquerda. O tecido preto, como que manchas sobre o vermelho, saberá explicá-lo melhor o designer gráfico. Por suposição, e temos essa liberdade, talvez quisesse diversificar o ambiente paisagístico da capa, porquanto, o vermelho em excesso pode não fazer bem aos nervos. O amor é, indubitavelmente, um
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campo aberto: cabe-se-lhe todos os actos humanos, decorrentes, por vezes, de sentimentos contrários a si: para o músico angolano Heavy C, o amor é uma «merda»; para Camões, que dispensa apresentação, o amor é tão contrário a si. O autor de “Mátria” pinta, concomitantemente, as diferentes paisagens do amor num quadro social, preenchido por um materialismo descomedido, em que o pouco amor que resta surge como divina tampa a impedir um caos maior: o amor ingénuo, puro como uma natureza intacta, assente na doutrina judaico-cristã; o amor carnal, vivido intensamente pela pele que descansa na sombra do prazer e por vezes desemboca em infidelidade; o amor ao próximo que se vai desvanecendo no tempo, ridicularizado nas quadras festivas com almoços e jantares de solidariedade à luz dos media; o amor à criança, hoje dura, outrora o ser mais frágil, que aprendeu a dureza com as chapadas da vida . O título ‘’Pegadas Íntimas’’ é constituído por um nome feminino no plural, pegadas, e um adjectivo, íntimas. Pegadas, do latim pedicata, é um termo polissémico, significan-
do vestígio que o pé deixa no solo (como nos sugere a capa), sinal, ou ainda ( já que o amor é o tema central) todos os gesto durante um coito aprazível e satisfatório para a pessoa intimada . Mas o adjectivo íntima, forma feminina de íntimo, derivado do latim intimu, que significa interior, o que é de dentro, muito ligado, âmago. Como em quase todas as obras poéticas, em ‘‘Pegadas Íntimas’’ há algumas virtudes que devem ser ressaltadas: a começar pelo índice que, ao que nos consta, apresenta uma numeração inédita (implicitamente) bilingue, ou trilingue (árabe, romana, e kimbundo). Bilingue remete-nos a uma leitura aportuguesada dos símbolos árabes e latinos; em relação ao Trilingue, se recorrermos aos significantes autóctones das línguas de partida, uma vez que por extensão, o autor apresenta-nos a numeração na língua nacional de origem africana Kimbundo. É importante dizer que o modo como foi grafado o índice remete-nos a uma leitura subjectiva. O texto literário é uma entidade «pluristratificada», na medida em que reúne diversos níveis de expressão. O estrato óptico é, certamente, o elemento primário da percepção
íntima de uma obra tipografada. Do ponto de vista técnico-formal, Nguimba Ngola apresenta-nos textos sob o signo de prosopoema , mantendo, plasticamente, a feição horizontal da prosa e, simultaneamente, até certo ponto, a sintaxe estrutural do verso, interpondo recurso a processos técnicos-compositivos como o encavalgamento. Uma experiência com diferentes leitores revelou-nos que a opção técnico-formal apresentada e os encavalgamentos podem levar os menos experientes a uma leitura que diminui a beleza do extracto fónico, na medida em que estes liam como se de prosa se tratasse. Convidamos ao estimado leitor a imaginar o verso, a descobrir o ritmo. (ler pág. 24) A obra que anda, ou voa, ou voando, de mão em mão, encerra a palavra amor em suas íntimas entranhas, como que um remédio a curar as doenças da alma. A assumpção desta suposição temática lê-se num poema com o título ‘‘Concentro o Verso no Amor’’ (pág. 12). A Língua Portuguesa figura para os angolanos, apenas, como um meio de expressão e não como meio de pensamento. E, no âmbito da angolanidade defendida por muitos teóricos românticos, o autor da obra em decomJunho/Julho 7
posição, interpõe recursos, ora a processos de diglossia, em muitos poemas, ora a expressões típicas da terra: nganza, fitucados (pág. 18), dá bum (pág. 21), muzumbo (pág. 13). No plano dialogista, a obra conversa intimamente com diferentes meios de expressão. Com a sociedade, através de passagens que encerram vozes de quase toda uma colectividade, com estatuto etário juvenil: “se fosse eu metia-te toneladas de cornos…” (pág. 22). E, fundamentalmente, com a Bíblia Sagrada, facto denunciado pela recorrência a determinadas passagens bíblicas: Génese, capítulo II, versículo 18 “não é bom que o homem viva só…” (pág. ?). E há mais: “é melhor ficar só do que com a pior coisa do que a morte…” (pág. 22); “o que Deus uniu não o separe o homem” (pág. ?). Assumpção evidencia-se em alguns poemas, nos quais, o poeta cita as fontes Cantares de Salomão 8: 5 – 7 (pág. 59). A Matriz Judaico-cristã acompanha-o em quase toda a obra. É recorrente em muitos poemas a presença de personagens como Eva, Dalila, etc. É quase impossível, no plano da construção linguística, não notar a presença do autor de “Este país chamado corpo de mulher’’, ‘‘Olfactos de Sentidos’’, ‘‘Reino das Casuarinas’’ e de muitas outras obras. Uma linguagem reticente e alegórica, que tende a ser ora sublime, ora moderada em determinados versos: (pág. 58); (Pág. 24). Ainda no âmbito da intertextualidade, permitam-nos destacar o texto da página 17 que dialoga com a música “Você não vale nada” da banda brasileira de Forrô electrónico, Calcinha Preta. Uma música reinterpretada pela Banda Calipso e que muito tocou por essas bandas:
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Você não vale nada Mas eu gosto de você! Você não vale nada Mas eu gosto de você! Eu quero ver você sofrer Só pra deixar de ser ruim Eu vou fazer você chorar Se humilhar Ficar correndo Atrás de mim A passagem axiomática “uma imagem vale mais que mil palavras” encontra particular realce nos poemas das páginas 19 e 20. No poema da página 19, o meu sobrinho disse-me que a imagem sugere ora a cabeça de um cão, ora a cabeça de um gato. Nós, devido a nossa consciência surrealista, visualizamos uma criatura primitiva fora dos manuais de paleontologia. Em vista disso, o nosso comentário, sobre a poesia concreta de Nguimba Ngola, limitar-se-á no poema “caprichos do amor”, (pág. 20): um poema através do qual podemos visualizar um sujeito poético que releva um amor altruísta, sem medo de humilhação. Corre apressadamente, como nos sugere a disposição gráfica da palavra correr, sem se importar, de facto, com o resultado da sua busca. Há ainda, na página 33, um acróstico excepcional, na medida em que as letras que encerram a dimensão ontológica do acróstico introduzem as estrofes e não os versos. Há poemas que nascem do meio, alguns nascem do nada e outros poemas nascem de outros poemas. Há, todavia, poemas que nascem de momentos ímpares, que se não podem confundir com o meio, pelo grau de abstracção, ou seja, poemas que nascem de um sorriso miragem, ou de múltiplos cânticos: da
Seria uma injustiça com Nguimba Ngola, se não reconhecêssemos a qualidade de salto entre “Mátria” e “Pegadas íntimas”. voz de uma criança, da voz do prazer, ou da voz da imaginação. Em alguns textos, o autor revela as suas diferentes musas e apresenta-nos algumas razões: Para a Mira Clock (pág. 26) que desfrutava a paisagem de Kangandala. Enquanto a fotografa, o poeta entra em transe e o sujeito poético contempla a imagem de uma bela mulher em cujo corpo advinha-se-lhe os dedos mágicos de um deus. E seguem-se outras musas: à Detinha (pág. 31); à Beatriz (pág. 34); Inspirado num retrato da Marta Mesquita ou nela mesma (pág. 46); às crianças angolanas (pág. 48); à Jael de Fátima (pág. 54); ao amor inalterável do esposo para com a esposa (pág. 59). O erotismo é forçosamente daqueles espaços de contemplação que nos obriga o visualizar o sublime. Torna-se mais sublime quando aliamos uma linguagem vernácula e alegórica que se não confunde com obscenidade (pág. 51). Seria uma injustiça com Nguimba Ngola, se não reconhecêssemos a qualidade de salto entre “Mátria” e “Pegadas íntimas”. É positivamente salutar ler escritores que não se conformam com a sua poética e, em cada publicação, surpreendem-nos com um novo fazer criação. Há muito que se diga relativamente a essa obra, não críamos nós que possível fosse abordar a obra na íntegra, por essa razão deixamos os leitores descortinarem outros enigmas.
IX
dou as mãos à vara C H I C O T E (iem-me) Rasguem-me as costas com o mais doloroso instrumento de tortura Torturem-me à vontade Não gritarei não gemerei aceitarei as pancadas no [cérebro Mas ainda assim mudo ficarei dou-vos a razão não fui o mais doce e servil ca va lhei ro que enchesse de glória e honra a princesa do reino pena que ela não tirasse da espada e saísse também à luta pois a batalha era nossa no palco da VIDA – Ras Nguimba Ngola, em Pegádas Íntimas. Pág 19
E terminamos dizendo que os homens constroem países, os livros constroem os homens que constroem sociedades que constroem livros que constroem grandes homens. Bem-haja à literatura angolana. Junho/Julho 9
POESIA
A saudade
Tenho Fé!
Não sei que mão de ferro alçada Com força extrema me comprime o peito Não sei que dor vigente me lacera As fibras da alma.
Tenho fé na meiga aurora No horizonte a despontar — Quando junto a altivas rochas Eu contemplo o argênteo mar.
Escuto os homens que julgava amigos – Envoltos no prazer do mundo ingrato – Mostro-lhes minha dor – a causa inquiro – Voltam-me o rosto
Tenho fé n’uma estrelinha Lá nos céus só a brilhar — Quando em noite escura e feia Vem-me a mente acalentar.
Escuto as aves no albor do dia Em verdes campos cantando amores Contemplam de amargura o meu sorriso E ávidas fogem!
Tenho fé também na lua Mesmo a pino a fulgurar — Quando a sós e merencório Vou na lira a descantar.
Então procuro as grimpas das montanhas Onde outrora meus ecos ressoavam Vibrados pela lira em que tangia Cânticos suaves!
Mas quando diviso uns olhos Negros — negros a mirar Minha fé inda é mais pura Porque nunca ha de acabar.
E meus ecos não são repercutidos Agora que a saudade os vibra na alma – Saudade?! – Ai! Tu és meu sofrimento Na alma o sinto!
Porque uns olhos negros — negros De tão doce e mago olhar Tem mais brilho do que os astros No firmamento a brilhar!
— José da Silva Maia Ferreira em Espontaneidades da Minha Alma” José da Silva Maia Ferreira, Nasceu a 7 de Junho de 1827. Foi para o Brasil, com sete anos de idade, aonde viveu entre 1834 e 1845. Espontaneidades da Minha Alma, publicado em 1849, foi dedicado pelo autor às «senhoras» africanas, como o autor chamava às mulheres do nosso país. Destaca-se pela ruptura com a anterior literatura produzida em Angola, traduzido num olhar mais justo, menos exótico e até eloquente sobre as gentes de Angola. O referido livro hoje faz parte da Primeira Edição dos Clássicos da Literatura Angola editado no ano de 2013 Palavra&Arte 10
H o m e n ag e m : E u c l i d e s S a b i n o
Um amigo, um irmão, assim foi visto Euclides Sabino por muitos. Um poeta, um artista, uma voz incontestável para nossa esfera artístico-cultural. De talento visível e devoção conhecida, deixou a sua marca nas lides poéticas de uma geração que fervilha por arte. Destacou-se enquanto poeta, actor e fazedor de spoken word e agora deixa um desmedido vazio. Para nós, não obstante a morte seja a única certeza da vida, não nos desviamos das agruras que nos causa. Para trás fica o seu eterno legado, pois como se diz, um artista nunca morre, mas fica eternamente gravado em sua arte. “[...] Muitos desconhecem-me então, saio do fundo das cavernas de Zau Évoa e subo até topo Eu sou Angola, maravilha da natureza e subo até o topo do Miradouro da Lua para dizer que Eu sou a Welwitshia Mirabilis uma flor indefesa. Eu sou Angola, Maravilha da Natureza”
Euclides Sabino
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em de
Maravilha
Junho
de
da
Natureza
1993 - Abril
de
2016 Junho/Julho 11
PERFIL LITERÁRIO
Lúcia Nereida do Carmo Morais de Oliveira Pseudônimo: Lúcia Morais Data de nascimento: 27 de Abril de 1989 Formação acadêmica: Licenciatura em Gestão de Empresas Inspirações Literárias: Paulo Coelho, Óscar Ribas, Cora Coralina Aspirações literárias: ter reconhecimento em Angola, escrever best sellers, ganhar o Nobel da Literatura Gêneros literários nos quais se expressa: contos e novelas (em segredo), mas é na poesia onde me sinto realizada. Público que deseja atingir: todos que se deixarem tocar pela poesia O que motiva a sua escrita: saber que tenho o poder de transformar vidas com o que escrevo. Livros lançados: nenhum. Participações em Antologias: • Á flor da Alma (Editora Sol, 2014) Brasil • Vai Rolar um Tête-à-Tête (Editora Sol, 2014) Brasil • Poética Mucubal do Namibe (Ómnira, 2014) Angola • Poemário 2016 (Pastelaria Estúdios, 2015) Portugal • Faces não reveladas (editora sol, 2015) Brasil • Eça de Queiroz e convidados na Bienal RJ 2015 (Editora Mágico de OZ, 2015) Brasil • Poesia Nósside 2016, Itália • Jardim de Palavras (Orquídea Edições, 2016 ) Portugal Prémios literários: • Prémio Poesia mundial Nosside 2015 • Prêmio de Literatura Passos de Mulher 2015 Movimentos literário em que faz parte: • Berço Literario • Elas & As Letras Projectos na área da literatura em que está inserido: organização da Antologia poética feminina “Borboletras” Blog: www.nereidabylua.blogspot.com E-mail: lua7poderole@hotmail.com Instagram: @luapoderole Twiter: @lucyla73 Facebook: /blogNereida
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AMOR, UM PEQUENO SONETO Amor, você não é mais que um pequeno soneto Por entre as linhas, perdido ou secreto Não distinguem mais de concreto Na verdade me revira por completo Amor você veio quando eu não mais acreditava Nem mais de lágrimas sonhava Só de sonhos chorava Onde é que tu estavas? Duas almas no mesmo céu em solidão Voando e indo de boleia no avião Enquanto voltavam do verão Uma união um tanto diferente Um sorriso e você de presente O amor um poema e tanta gente
P R O P O STA L I T E RÁ R I A
E
AngoDebates: Angola, debates e ideais www.angodebates.blogspot.com
Numa linguagem original e transparente, assuntos a respeito de Angola e outros lugares são abordados num blog com foco na literatura
Por: Cláudia Cassoma claudiacassoma@hotmail.com
mbora estejamos perante a uma explosão virtual, ainda não é fácil encontrar um endereço electrónico digno de um investimento ilimitado de tempo e atenção por faltar dentre muitos atributos, qualidade; tanto no conteúdo como não. Deparar-se com um blogue de autoria angolana, demanda uma pesquisa excessiva, mais ainda quando se tenciona encontrar um com teor literário. O blogue AngoDebates: Angola, Debates & Ideias, é decerto uma das excepções. Numa linguagem original e transparente, assuntos a respeito de Angola e outros lugares são abordados no mesmo. Num olhar aprofundado ao singular, aos detalhes, é apresentada, num retrato sem guarnição, a imagem do mundo literário. No blogue há um vasto arquivo de notícias, reportagens, crónicas e desabafos. A Rubrica Oficina é preenchida por poesias, contos, e crónicas; essa última é também encontrada na rubrica Crónicas do Metro. Dentre outras rubricas no blogue estão: Diário, Citação, Nota Solta, Utilidade Pública, e Fábulas da nossa terra; há lá também razões para gargalhar, com sarcasmo ou não, na rubrica Humor. O blogue supracitado é editado pelo escritor angolano Gociante Patissa. O mesmo nasceu na comuna do Monte-Belo, município do Bocoio, província de Benguela. Tem licenciatura em Linguística, especialidade de Inglês. O autor altiloquente é membro efectivo da União dos Escritores Angolanos e colaborador do Jornal Cultura. A edição do AngoDebates: Angola, Debates & Ideias é também auxiliada por outros colaboradores, principalmente em rubricas como: Oficina. Em síntese, AngoDebates: Angola, Debates & Ideias é um endereço literário digno de uma visita morosa.
Junho/Julho 13
CONTO
Azul e Branco
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e entendo ter noventa anos, não de idade, mas de alma. De idade tenho míseros cinquenta. Renasci vigoroso nessa tão aclamada metade de um século em que os desassosegos da alma são deixados para trás, o acordar de todas as manhãs é de imprecisão abismal e as memórias são fiéis companheiras. Ao acordar na manhã de hoje indaguei-me sobre a minha vontade absurdamente excessiva de aparar a barba e cortar o cabelo para tornar-me atraente, coisa que não faço há mais de vinte anos. Pois é, desejo tornar-me atraente, mas para quem? Ah... é mesmo uma ideia ridícula! A idade avançada trouxe consigo o mínguar da massa óssea, a redução da frequência cardíaca e o desabrochar do entendimento próprio. Apesar de meio abatido, magro de razão e graúdo de pensamentos, solidifiquei meu hábito diário de contar histórias de uma Luanda dançante, cenas dos palcos da vida por mim desconhecidas e da humanidade perdida em meus poemas ao longo dos anos. Nunca tive grandes amigos, e os poucos que chegaram perto disso estão mortos. Nunca fui casado, porque provavelmente nunca amei uma mulher. Em véspera de meus aniversários, visitava um bordel na Mutamba, onde havia perdido minha virgindade e passava à noite com uma simpática portuguesa de nome Suzana, que milagrosamente era tudo o que precisava, daí que logo no segundo encontro passei a chamar-lhe Suzy. Era suzana para qualquer que ocupasse o lugar vazio na sua cama, mas para mim, era Suzy, a minha Suzy. Mas até a Suzy pereceu e eu continuo vivo. Há, exactamente, uma década quando ouvi pela primeira vez a solidão bater a minha porta em forma de convite para as bodas de ouro de meu primo, fiquei desnorteado e cresceu em mim um pavor a lugares isolados, como a minha casa. Deixara de escrever, e com isso perdera a coragem de me expor ao mundo. Mas minha alma à beira da morte questionava meus pensamentos juvenis todas às noites: para que servem os idosos nessa sociedade? Que caminho há para mim nessa terra de contínua reforma moral? Passei então a percorrer as ruas dessa cidade barulhenta – com ruídos melódicos e bafientos – meio celestial e de moral forjada, o que aumentou meu desejo de inventar uma profissão para a minha velhice. Aconteceu em Luanda, mas eu fantasiava ter acontecido longe daqui, num lugar intensamente humano, lotado de vidas abnegadas da vaidade e desejosas de enterrar beijos no rosto coberto de lágrimas de um velho escritor. Aqui porém, tudo parece meticulosamente calculado, especialmente a vida de um escritor sem sucesso e desfalecido no tempo como eu. A idade avançada trouxe também consigo a esperança e a incerteza de ver o Sol nascer diariamente. Meus pensamentos juvenis tornaram-se tempestades num pequeno mar ao redor de mim, um mar vazio de água, cheio de poesia musical e sem ouvidos para contemplar a beleza sinfônica da vida. Se talvez fosse uma sereia a cantar, ouviria, mas era um salmão. Salmão?! De que me interessa ouvir canções de um salmão? Luanda era o mar, mas ninguém me ouvia. Contava histórias pouco felizes porque a felicidade era para mim uma utopia, como o amor e um paraíso repleto de rostos eternamente sorridentes na casa do Senhor. Palavra&Arte 14
Caminhava por longas distâncias, deleitava-me com as vozes na rua, o cheiro a guerra e a festa. Eu era uma casa desorganizada e levava comigo um livro, apenas um, pois não precisava de mais do que isso. Quando parava, contava uma história diferente como se estivesse a lê-lo, mas não, fiz dele meu parceiro da mentira. Agia como profissional, porém não cobrava por meus serviços. Afinal, o povo nada tinha, pois a guerra levara tudo. O egoísmo em mim fez-me acreditar que contar histórias me convenceria de que não era um falhado. Embora transformado pelos aromas da vida urbana que despertava em Luanda, eu era um abismo de melancolia sem fim. Havia até mesmo falhado com minha promessa de morrer antes dos trinta e cheguei aos cinquenta com força juvenil, ah... que merda! Não era nem bom o suficiente para morrer, mas covarde o suficiente para não tirar minha própria vida. Tornei-me então no primeiro Contador de Histórias que Angola alguma vez conheceu. Os táxis eram os meus lugares favoritos para historiar, daí ter adotado o nome Azul e Branco. Os bares eram sedutores e histórias não faltariam, mas o facto de existirem muito poucos nessa cidade tornou-lhes numa opção quase descartável. Minha profissão da velhice tornou-se numa profissão sem custos – excepto a solidão das noites em que palavras não limpavam as lágrimas, escorrendo torrencialmente dos meus olhos. Uma estrada abria-se, ouvia-se o som de conchas escuras tocando lentamente um cavaquinho, e a voz de um outro Salmão tornava-se mais audível. Um cantar sossegado, quase como que despedindo-se da vida de artista do mar, elucidava-me: a Sereia foi esquecida, perdeu seus poderes divinais e eu continuei minha caminhada pela estrada com palavras reprimidas – muitas silenciosamente furiosas por não existir ouvidos para ouvi-las e outras recitando poemas de Ondjaki com ternura para minha alma envelhecida. Ainda lembro-me como se fosse hoje, preso num engarrafamento típico de Luanda, no trajecto do Hoji-ya-Henda à Mutamba, no calor dos diabos presente nessa terra, quando um jovem de nome Ernesto olhou para mim e disse: – Envelhecer é alcançar a segunda vida. – O quê? És poeta? – Sim, e tu, és poeta? – Não, sou um ex-escritor, hoje contador de histórias. – Vives o que contas? – Conto o que sinto, o que dá no mesmo, pois viver é sentir. – Quantas histórias trazes? Conta-me uma até a paragem, se gostar pago-te o táxi. – Meu filho, histórias para contar são inúmeras, eu é que sou pouco!
Por: Magno Daniel Esmeraldo Visiste e leia mais textos do autor em: http://m-xix.tumblr.com Junho/Julho 15
FAÇ A C O M ES T I LO
Quando a literatura começou, não sei se alguém sabe O escritor deve ser intelectualmente independente, desenvolver o seu próprio estilo, a sua linguagem, a coisa que há dentro de si, e não a tradição que é a voz de um outro tempo. Por: Didier Ferreira | didier.paulo.ferreira@gmail.com
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uando a literatura começou, não sei se alguém sabe, mas, também, que importa? Seremos nós mais felizes quando conhecemos a nossa origem? Não sei, talvez. Pois não me proponho indagar da genesis das coisas a que chamamos Cultura, Literatura, Letras, bem longe disso. Prefiro, pelo menos, para já, questionar o corpo comunicativo da Cultura, da Literatura, enfim, das Letras. Porque um povo é fruto da árvore enraizada em determinada cultura da terra. Há uma genealogia patrimonial que ali se forma, e compete aos Homens compreendê-la. Mas a que Homens? A todos, respondo! E explico. Se entendermos a fonte como nascente, origem, como causa ou princípio – a fonte como a nascente das primeiras águas – de um objecto concreto, compreenderemos que essa causa e esse objecto jamais se podem confundir após a origem, como uma criança se torna ela mesma logo que separada do cordão umbilical da mãe – mãe e filho que antes eram um só, um dentro do outro, um sentindo o mesmo que o outro – para imediatamente ganhar personalidade jurídica (eis um cidadão que nasce!), uma voz própria (ainda que na forma do choro), e, anos volvidos, adquirir um caráter próprio e, décadas depois, a indepência, e, ainda, um rumo que só a si dirá respeito. Mas – e por que não perguntar – será a ruptura identitária um modo de abandono dos pais? Ora, não propriamente. Quero dizer, isso irá depender da da vontade individual de cada um, ou da força positiva da formação dos pais sobre o indivíduo dependente. Entre pais e filhos, os laços, ainda que Palavra&Arte 16
rompidos, ficam para sempre, seja porque se ama ou porque se odeia: a memória da proveniência fica. E não é em vão que penso em proveniência, em vez de progenitores. Pois, que agora cumpre falar das Letras. E as Letras não têm pais, elas têm proveniência. Qual é, então, a proveniência da literatura angolana? Será ela preponderante na formação do escritor contemporâneo? Numa pátria tão nova, ainda, como é a nossa Angola, que grau de independência intelectual deve o jovem escritor conquistar? Como deve escrever? Inspirado em quê ou em quem? Escrever, afinal, para quem? A FONTE A literatura angolana tem a sua fonte na memória (coletiva), lá longe, distante das vistas e compreensões do Homem novo angolano, que, enfim, ainda hoje, se reconhece naquele saber, muito por força da tradição oral, mas também e, direi, sobretudo do seu rebuscamento pela classe política, no período imediato após à independência, em 1975, para servir a consecução do ideal de identidade nacional assente em princípios rácicos e independentistas, como o da africanidade. A fonte da literatura angolana é a voz e a presença do conjunto das gerações nativas (direi mesmo, naturalmente – e por direito – angolanas). De onde viemos parece ser ainda a grande preocupação do escritor nacional, e, quando não encontra ou não há a resposta, então, inventa ou reescreve uma possível história, ao que entramos na esfera da conhecida estória. Um país em formação
precisa de um veículo cultural para a manutenção da coesão e da identidade comunitária. No caso angolano, adotou-se o mecanismo da memorização e rememorização. E assim o emocional impôs-se ao intelectual: quem melhor sente os problemas da nação eleva-se ao que pensa os problemas da nação. Resultado próprio, parece-me, da conjuntura político-social que motivou a aspiração do homem africano moderno a edificar nações coesas e identificadas com valores tradicionanis, valendo-se da literatura. De 1975 para diante, as literaturas africanas de expressão portuguesa tomam o seu próprio rumo, e a nossa não foi indiferente a essa necessidade de mudança. A literatura angolana inaugura o seu 6.º período literário, o da Independência, no qual se assiste a uma tentativa de acerto com as grandes literaturas mundiais, e, pouco tempo depois, “a uma exaltação patriótica e natural apologia política do novo.” Porém, só em 1981, temos uma Renovação (7.º período), num movimento literário iniciado com a Brigada Jovem de Literatura, de apoio estatal, cujo objetivo é formar jovens escritores (Laranjeira, 1995, pp. 33-43) FORMAÇÃO É de longe sabido que um bom escritor é necessariamente um bom leitor. E um bom leitor deve, desde cedo, iniciar-se na grande literatura mundial. Porque um livro, no seu contexto, é apenas um manual de reconhecimento. Já um livro fora do seu contexto, se sobreviver, é porque faz a descrição de um universo interessante e útil ao Homem. No tempo de descobrir a literatura, há que ler com critério e orientação, libertar-se da pressão das raízes que prendem o Homem a uma só terra, a uma só cultura, e partir em busca do conhecimento intelectual, universal. Porque vivemos hoje num mundo totalmente diferente daquele que testemunhamos a pouco mais de uma década. Agora, quem escreve em Angola deve fazê-lo para ser lido em qualquer outro país: eis o expoente máximo da partilha. Quero com isto dizer que urge o tempo de condicionarmos a escrita bairrista, popular e de contexto es-
tritamente nacional. É difícil, mas possível. O lugar de onde certa história procede é importante, contudo, não mais do que aquele para onde irá – a formação do leitor. Na literatura, pode ser interessante sabermos de onde vimos. Mas, para o leitor, é determinante perceber para onde o levamos. Por isso, o escritor deve ser intelectualmente independente, desenvolver o seu próprio estilo, a sua linguagem, a coisa que há dentro de si, e não a tradição que é a voz de um outro tempo. Em suma, a inspiração do escritor não tem que ser mais a origem, mas, antes, o seu próprio sonho, a visão singular e intuitiva do Homem, com muito conhecimento do Homem. Conhecendo o Homem, primeiro, depois será fácil determinar o Angolano. E, ainda assim, não vamos escrever para o angolano. Vamos escrever o angolano, para que o mundo nos reconheça como somos e perceba de onde vimos. O CAMINHO Na história dos movimentos literários, é constante a tentativa de se instaurar uma renovação, que nem sempre se concretizou em inovação. De quantos recuos é feita a Literatura? Entre avanços e recuos, uma coisa é certa: todos queremos melhorar a imagem das Letras que nos caracteriza como indivíduos. Sempre quer-se melhorar, excitar o novo, enfim, como na vida, rejuvenescer. Eis então o meu ponto de vista: não precisamos recomeçar a literatura angolana – até porque não tem como; impossível rasurar tão bons contributos que nos chegam do passado, e muitos perserveram com qualidade no presente –, não!, o caminho está em adquirirmos talento suficiente para dar o aspecto de novo a fórmulas do passado. Para tal, há que ler, ler muito e descobrir as múltiplas linguagens que a literatura mundial foi já capaz de produzir, para delas encontrarmos a nossa – aquela com a qual nos identificamos –, e, nessa linguagem, reproduzirmos a imaginação, o facto, o verdadeiro Homem angolano, e a sua cultura intelectual. Referência bibliográfica: Laranjeira, Pires. (1995). Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Lisboa: Caminho.
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Na palavra com...
Heduardo Kiesse, fazedor de poemografias Escritor, praticante da arte visual, licenciado em filosofia e futuro mestre em Cultura e Comunicação; Heduardo Kiesse, angolano, residente em Portugal, é uma pessoa de personalidade e talento singular, artista que se destaca pela unicidade do seu trabalho, adestra ao público com fotografias e vídeos com palavras em movimento. É decerto um astro que já eclodiu.
Por: Cláudia Cassoma | claudiacassoma@hotmail.com
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Heduardo Kiesse é alguém que eu própio vou descobrindo, vou conhecendo, nas suas manifestações, naquilo que ele tenta mostrar. Alguém que eu próprio não conhenço, até porque não está definido, mas essencialmente é alguém que gosta de escrever, gosta de poesia. Tem licenciatura em filosofia, está a terminar o mestrado em Cultura e Comunicação. É alguém que gosta de criar, descobriu esse gosto de forma expontânea, por uma brincadeira, depois percebeu que valia a pena investir devido a receptividade do público. Postando tudo no facebook e nos blogues as pessoas foram manifestando o seu gosto pelo que fazia através de comentários, através de partilhas, então daí continuou a trabalhar. É editor do blog Fotomorfoses e da página ParadoXos no facebook. Palavra & Arte: O do trabalho do Heduardo é mundialmente conhecido através da página ParadoXos, no facebook. Para já, o que é a ParadoXos? Como começou? Heduardo Kiesse: A ParadoXos nasceu em 2007 através de um blog, que ainda mantenho, mas com o surgimento do facebook os blogs perderam um bocado a proeminência que tinham. Essencialmente escrevia mais poesia tradicional, com versos, com rimas… Escrevia também prosa poética; depois houve uma necessidade de dar imagem às palavras ou pelo menos casar a imagem com a palavra, então fui fazendo inscrições, frases curtas, alguns versos, em vários materiais; como: Pedras, esferovite, gelo, prego; materiais comuns. Nesses materiais comuns eu tentei dar um outro toque, uma outra dimensão, transformar aquilo que é comum em algo mais ou menos fora do comum. P&A: Para quem acompanha o seu trabalho, denota-se com poucas frases de autores angolanos. A que se deve? HK: De angolanos eu tenho alguns trabalhos, posso referir, por exemplo, o Ondjaki e Agostinho Neto. Esses são pelo menos dois autores angolanos com cujas frases já trabalhei. Por outro lado, há algumas páginas de poetas angolanos, poetas como eu, não me refiro àqueles poetas reconhecidos internacionalmente, mas os poetas que estão a começar, e tenho tido o cuidado de divulgar através da minha página. Sempre que encontro uma página divulgo, tento conhecer a poesia que se faz em Angola, apesar de viver fora há vinte e sete anos, tento estar por dentro através da divulgação desses poetas.
PARADOXOS
HEDUARDO KIESSE
REGULAMENTO AOS PRATICANTES DE SONHOS Artigo 1º Não estancione o seu coração em becos sem saidas (demore o tempo estreitamente necessário para largar despedidas ou carregar um abraço) Artigo 2º Se beber com intuíto de se lavar por dentro não conduza (é quase impossível dar banho ao pensamento sem molhar a lucidez) Artigo 3º Antes de atravessar a realidade, escute e olhe, certifique-se de que não existem ilusões em contra-mão (descalce os caminhos que já não lhe servem - caminhos são sapatos que a terra nos oferece para descalçar irrealidades) Artigo 4º Não abra a boca a beijos desconhecidos (especialmente aos conhecidos que se fazem desconhecer) Artigo 5º Evite dormir em sonos usados (cansam mais do que subir o infinito a pé) Junho/Julho 19
P&A: Assim sendo, como vê a poesia em Angola? HK: Acho que a poesia em angola está a ser bem tratada, e sempre esteve, até porque foi através da poesia que o povo angolano, justamente em situações, por exemplo, de opressão, usou como veículo de comunicação. Em momentos de falta de uma tal liberdade de expressão, sempre usamos a poesia, música, etc. NO entanto, desliguei-me da poesia convencional e dei um salto à poesia visual. E nesse caso, eu vejo que a nível de Angola, é muito difícil encontrar um poeta visual. P&A: Falando nisso, quem são as suas influências? Há alguma angolana dentre elas? HK: Tive e tenho várias influências, várias referências também. Há alguns autores que que de facto tiveram influência em mim. Há um nome, por exemplo, não angolano, mas moçambicano, que é o Mia Couto, penso que esse teve uma influência melhor ainda no meu trabalho, devido aquela brincadeira com as palavras, aquela criatividade, invenção por outras palavras; penso que teve uma influência mais significativa em mim. P&A: Por outro lado, indo agora para algo de certa abrangência, como se mantém a par das novidades da literatura angolana? HK: Faço parte de duas associações muito ligadas a África, a Angola, e uma delas tem uma vertente muito literária, de divulgação da literatura feita em áfrica em geral e isso é uma
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forma de estar a par do que tem acontecido. Por revistas também. Há sempre uma forma de estar ligado, não só pelo facebook. P&A: Há tanta verdade no que trazem as suas frases sejam em foto ou vídeo, será que, ao fazer, pensa no impacto que terá nas pessoas? HK: Boa pergunta. Muito forte; forte porque no princípio eu tinha esse cuidado. Antecipava a reacção dos outros aquando da visualização das fotos ou dos vídeos. A dada altura eu percebi que não era por aí, acho que facilmente eu iria desistir, iria me perder se continuasse preocupado em agradar a gregos e a troianos, como se costuma dizer. Eu acho que amadureci um pouco e actualmente quando faço, já não me preocupo com essa reacção, independentemente daquilo que os outros irão pensar ou sentir, eu faço. Quando o artista está demasiado centrado nos outros, acho que ele limita-se, acaba por se autodestruir, fica preso a opinião alheia. E acho também que isso é algo que destrói a criatividade. Acho que neste sentido o artista tem que ser livre tem que criar, alguns irão gostar, outros não, e isso também é bom. P&A: As pessoas têm visto o “Poema em Movimento” no youtube e é um trabalho decerto admirável. E como tudo o que é admirado, surge a questão, “como o autor se prepara para fazer aquilo?” Há alguma preparação em particular?
HK: Não há qualquer preparação. Não há uma preparação prévia, ou muito elaborada, a inspiração bate no momento e então crio. É isso que também me estimula, porque eu acho que se eu preparasse não sairia tão natural, com tanta simplicidade e espontaneidade. A ideia bate-me, inspiro-me numa coisa qualquer, num sentimento ou acontecimento e a coisa acontece. P&A: Pode-se dizer então que o Heduardo vai a um determinado lugar já sabendo o que fazer, quais matérias vai usar? Será que enquanto passeia vê e pensa em algo e ali mesmo faz o trabalho? HK: Boa pergunta. Neste caso geralmente já tenho a frase e da frase crio o contexto, crio a imagem, crio o suporte, e as vezes é o contrário. Vejo a pedra, e penso: “essa pedra, precisa de uma frase pra ela”, então busco a frase de um autor que eu quero homenagear ou uma frase minha. As vezes é espontâneo. Eu costumo fotografar numa fábrica abandonada que há aqui, e é um local pra mim muito inspirador. É um local com grafites, com lixo no chão, um local comum, rústico, e isso pra mim desperta inspiração. P&A: Pode-se então afirmar que prefere trabalhar em silêncio? Ou não se importa com o barulho, talvez, uma música? HK: Eu acho que gosto mais de trabalhar em silêncio. Mas com influência do barulho. Ou seja, é aquele ruído que me influencia a criar. De todos os ruídos da minha própria vida, dos ruídos íntimos, os barulhos bruscos, aquele tumultuo, aquele terramoto íntimo, efectivo, têm influência naquilo que eu faço. Tentar criar com pessoas ao lado, só de saber que estou a ser observado não me sinto muito à vontade, já percebi isso! P&A: Portanto não gosta de ser assistido enquanto produz, mas quanto ao assistir o já produzido? Ou seja, para quando uma exposição?
HK: Eu ia adorar. Uma exposição em Angola seria a realização de um sonho. É um sonho daqueles que… sinceramente, não tenho palavras. Seria uma coisa espectacular. Mas não tem acontecido, nem aqui tem surgido oportunidade. Quer dizer, aquilo que eu faço, fora do facebook nem sempre é bem abraçado, nem sempre se consegue conquistar as pessoas que de facto teriam alguma influência para exposições, divulgações, e ir um pouco mais longe, mais além daquilo que é o mundo virtual. Eu as vezes sinto muito isso, estou ali muito fechado no facebook, as pessoas comentam, divulgam, partilham, mas quando tento dar um passo maior, já encontro barreiras. Barreiras no sentido de furar o mundo literário comum, tradicional. Tento participar em concursos, concorrer a bolsas literárias, mas não encontro apoios, instituições que podiam apoiar, simplesmente não encontro. P&A: Como explica essa falta de falta de apoio e/ou interesse de parte dos possíveis patrocinadores? HK: Pode não ser exactamente falta de interesse, este poderá eventualmente existir; mas penso que está mais ligado a uma resistência, a uma falta de aceitação daquilo que é o novo, daquilo que é diferente, daquilo que eventualmente se possa distinguir daquilo que é comum, aquilo que é o quotidiano. Eu acho que é isso, é uma falta de disponibilidade daquilo que é novo, daquilo que é diferente. Se eu escrevesse a poesia convencional acho que seria muito mais fácil. O engraçado é que eu não desisto, apesar de estar a fazer algo não comercial, mesmo assim mantenho a minha onda. P&A: Exactamente, é preciso persistência e foco. E falando da tua onda, no trabalho que faz, os poemas não podem ter mais de um verso? Um soneto por exemplo? HK: Não. Não dá. Não é aconselhável. O impacto, a mensagem, perde-se um bocado. Quanto mais a frase for sucinta, completa, resumida, melhor. Depois a pessoa que visualiza é que cria o desenvolvimento. P&A: Quanto a temática, é visível a diversi-
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dade, ainda assim, há algum tema que prefere não abordar por uma ou outra razão? HK: Há o tema da morte que eu as vezes gosto de fugir mas é quase impossível, é um tema que está presente naturalmente, mas as vezes evito tocar. A política também é um tema que tento fugir mas volta e meia também caio nele. Mas não há temas tabus, temas proibidos, não há temas que recuso.
verso, da rima, a chamada poesia convencional ou tradicional, e eu com aquilo que faço tentei dar movimento as palavras. Não só aquele movimento estático que tem a fotografia, mas dar mesmo um movimento explícito, pôr as palavras a mexer, dar som ao poema. Posso dizer que tenho uma foto que diz “É tão longe voltar atrás”, gosto porque tem muito de mim. As vezes não sei se as pessoas percebem mas é uma coisa muito forte pra mim.
P&A: Atitude, digna de um profissional com um vasto universo de temas ainda a explorar, para muitos trabalhos a desenvolver. Mas dos já feitos qual o seu favorito?
P&A: Mudando um pouco de assunto, diz-se que as mulheres na poesia sentem-se mais à vontade, do que os homens, para expor os seus trabalhos. O que pensa disso?
HK: Pra mim é suspeito falar sobre aquilo que eu próprio faço, mas gosto muito dos vídeos. Há uns vídeos que faço, que aos quais chamei “Poemas em Movimento”. A poesia é muito isso, a poesia que todos conhecemos do
HK: Sim, é verdade. Há quem ainda vê a poesia muito ligada ao lado feminino, porque por norma a mulher é mais sensível. Mas a verdade é que o poeta, aquele que se quer manifestar, tem sempre uma necessidade irreprimível de manifestar as suas folhas, a sua solidão, a sua
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HK: Espero que ele seja influenciado pelo maior número de referências, acho que isso vai tornar a relação dele mais sólida. Em termos da arte, eu acho que a arte é um mundo tão restrito, restrito no sentido elitista. Aquele pobre, o zé povinho, faz arte em casa, porque a arte é pra um grupo de pessoas que monopolizam e ganham bastante a custo da arte, exploram a arte, prostituem a arte, e assim, esses são os verdadeiros artistas do lucro, agora, aquele artista que veste a camisola, que faz as coisas com amor, independentemente daquilo que ele vai ganhar ou não esse é sempre menos, infelizmente. À esse não é dado o devido valor, porque não faz arte com a intenção do comércio, faz porque sente, faz porque aquele tumultuo íntimo o leva a criar, o inspira, o incentiva. Agora, um filho meu a seguir a arte, espero que não, espero que ele tenha outras referências, que não vá por aí, senão vai morrer pobre [Risos] P&A: E por paixão, vale a pena fazer por paixão?
existência, este não se priva, independentemente daquilo que os outros possam pensar. Eu já não ligo isso, já ultrapassei essa fase! P&A: Falando de fases, é de admitir que a qualidade do seu trabalho, será um grande legado, há algum herdeiro, um Heduardo Kiesse Júnior?
HK: Vale, sem dúvida. Por paixão, por gosto, por prazer, sim, mas nunca pensando que daí irá advir um ganha pão. Mesmo no lançamento de um livro. Porque a gente sabe como é, os artistas passam grandes dificuldades, e só mais tarde essa paixão é reconhecida. E muitas das vezes, quando essa paixão é reconhecida, o lucro que daí advém não é para o artista, porque esse aí decerto já foi, e quem ganha são os outros. Por exemplo, os grandes escritores, músicos, etc, os grandes poetas, no seu tempo não foram devidamente reconhecidos, não tiveram o merecido valor.
HK: [Risos] Não, não há um Heduardo Júnior. Embora ter filhos seja um sonho meu, estou numa fase da minha vida em que eu também P&A: Foi uma honra, para essa revista ter essou ainda um filho em desenvolvimento, então penso que seria um acto egoísta. Egoísta na tado Na Palavra Com: Heduardo Kiesse. medida em que, se eu tivesse um filho nessa HK: A honra foi toda minha, muito obrigado. fase seria mais a pensar em mim do que a pensar nele. P&A: Quando vier a tê-lo, pensa em influenciá-lo com a arte; seja literatura ou outra expressão artística, de modos, talvez, a dar seguimento ao legado “ParadoXos” ou mesmo “Poemografia”?
“...os artistas passam grandes dificuldades, e só mais tarde essa paixão é reconhecida...” Junho/Julho 23
Estilos e Cores
Sugestões de auxílio aos estudos da Arte Por: Isis Hembe de Oliveira | quebra.tendencia@gmail.com
A história da educação artística em Angola é jovem. Apesar de termos já uma geração com um grau de instrução elevado, ainda se revela insuficiente para responder aos anseios de todos os interessados nessa área, numa escala que abrange todo território nacional. No entanto, sabe-se que o anseio pela arte é um impulso incontrolável e arranja sempre um meio de “obrigar” os seus utentes a fazerem os possíveis e os impossíveis para materializá-lo. Por outro lado, o pessoal que tem acesso à formação percebe que, pelo dinamismo que esse mercado abarca, distrair-se das ferramentas que possam emancipar as nossas habilidades profissionais, é um suicídio académico. Nesse contexto, reuniu-se aqui algumas ferramentas que podem servir de auxílio a quem se interessa pela área. Começamos com um curso de Mozart Couto. Dividido em 6 volumes, cujo primeiro disponibilizaremos no site da revista. É um curso sintético e com pré-requisitos relativamente acessíveis à nossa realidade: com vontade de aprender e algum material básico, consegue-se iniciar o programa.
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O primeiro volume trata de ensinar a construção das figuras geométricas básicas e tende a aprimorar o olho artístico de formas que o artista seja capacitado a transcrever imagens reais para o papel. A segunda sugestão é o livro de Albert, L com o título “A Pintura”, obra considerada uma das primeiras a compilar a teoria da pintura ao lado da obra “Arquitectura” de Vitrúvio; esta última, mais ligada às proporções das formas do que, propriamente, à pintura. A obra é mais centrada a aspectos teóricos ou conceptuais dessa disciplina, portanto, pode servir de base de sustentação artística para quem já exerce a pintura como ofício. A terceira e última sugestão é a obra de Rosane Andrade de nome “ Fotografia e Antropologia” em que a autora defende uma linguagem etnográfica na intenção de unir essa forma de arte à ciência. Com o mundo na internet, hoje consegue-se ter muita coisa, desde livros a materiais audiovisuais que auxiliam aprendizagem. Sendo que essa publicação vem não só como mais uma, mas direccionando as alternativas para todos estudiosos.
at e l i ê
Para Apreciar Arte Por: Luamba Muinga | edymuinga@gmail.com
U
m convite acaba de cair no e-mail ou nas notificações do facebook: Exposição de Arte. Uns aderem à exposição naturalmente, outros, com alguma retracção; alguns aderem por estar com a agenda vazia nessa noite; os mais chegados ao artista, estão garantidos para não desiludir o amigo que reforça o convite desde o primeiro instante; uns poucos vão pelo interesse de conhecer a obra; há ainda os mais extremistas que vão tão-somente pela degustação do cocktail depois da apresentação. Sem sobressaltos ou com algum ligeiro, o evento decorre, sendo questionável a compreensão e apreciação elaborada das obras pelos presentes, um misto daqueles que estão fora do espaço na companhia de um cigarro ou a apanhar ar, e os que perambulam pela sala entre fotos para redes sociais. Para o público, infante-apreciador de arte, a compreensão e o julgamento da obra acaba no acúmulo de informações e explicações provavelmente cedidas pelo artista ou folhetos com a descrição das obras. Entender a riqueza e a beleza, embora seja um exercício intuitivo, onde algum elemento – cor ou forma – chama o observador a ver a peça com maior profundidade, é uma apreciação que se complementa com uma observação consciente e uma relação de elementos no conceito da peça. O ponto focal é o lugar em que os olhos do observador se dirige primeiro, e é importante abandonar esse ponto convencional para perceber a individualidade na unidade da obra. De lá, vem boas observações na suavidade, nitidez e curvidade das linhas; saturação, contraste, destaque e emoções das cores; o volume e dimensão das formas na comunicação e preenchimento dos espaços ou ainda na exploração da textura, que é uma das maiores explorações da arte angolana, por passar nossa africanidade. Para quem ignora ou lhe pareça difícil elevar esses elementos da arte na apreciação, resta-lhe ainda questões conceptuais como a técnica e o tema, impressões pessoais, intenções e imaginação do artista. Ao último, resta-lhe ser inquietante, reflectir na sua obra condições humanas, valores e intervenções políticos-sociais cada vez mais urgentes na arte nacional. Só assim, saímos todos da galeria contentes, a mídia com conteúdo importante e crítico e reduzidas observações de artistas como Januário Jano e Jack Nkanga no hábito de apreciação artística do país. Junho/Julho 25
Te at r o | E m C e n a
Luanda, Um Cemitério de Teatros Por: António Paciência | antoniopaciencia20@gmail.com
Aquando da concepção (no período colonial) da então cidade de Luanda, a sua estrutura arquitectónica original possuía os contornos de uma sala de teatro, onde o palco assentava-se na sua marginal. Paralelamente a esta curiosidade, havia pelas artérias da mesma vários pontos de exibições de peças de teatro. Após à independência, tal como a cidade de Luanda, o país foi sofrendo varias mutações do ponto de vista político, social e económico. Em consequência disso, muitas salas foram transformadas em instalações governamentais e não só. Nota-se, como principal exemplo, o espaço onde era a assembleia da república. A cidade transformou-se no maior cemitério vivo, a nível nacional, de teatros, tudo em nome da requalificação e renovação das novas metrópoles. A nível mundial, o teatro sempre sobreviveu às crises, e Angola não é um caso isolado, sobretudo pelo facto de ter uma independência territorial com uma frescura jovial muito acentuada (em todos os ramos de desenvolvimento). Por isso, o país ainda tem muitos mares de dificuldades por navegar e o antídoto para alguma destas patologias tem sido a força de vontade, a determinação e a camisola do espírito de sacrifício usada pelos fazedores de teatro. Tudo isso aliado a pequenos pedaços de know-how provenientes de Portugal, Brasil, Cuba, e de uma febre de auto didatismo intrinsecamente ligada à proliferação do teatro em Angola. Embora houve uma iniciativa governamental em 2015 com inauguração dos Institutos Médio e Superior de Artes, onde existe especialização em teatro, ainda existe um silêncio titânico por parte de quem de direito quando o assunto se refere a faltas de salas de teatro. Com o desaparecimento (o exemplo mais próximo é o do Teatro Avenida que durante a sua existência foi considerado como a catedral do teatro luandense) e subaproveitamento (muitos destes espaços passaram a ser utilizados para realizações de cultos religiosos, festas de qualquer carácter, encontros partidários etc…) das salas Palavra&Arte 26
convencionais para exibições, a comunidade teatral, de forma singular, passou a dar asas à liberdade do seu poder de improviso, adaptando espaços como quintais, armazéns, salas de aulas, ruas, salões de festas, salas de hotéis, anfiteatros de centros comerciais, de universidades e de unidades militares para apresentações das suas peças por uma questão existencial, sim… tão-somente para fazer prevalecer a sua sobrevivência. Muitas destas iniciativas, fruto de muita teimosia e relutância, resultaram em palcos que até hoje continuam a servir o teatro, e um dos casos mais difundidos é o Elinga Teatro, que fora outrora um centro de educação física e cuja morte já anunciada, embora sem data, é facto consumado (devido as rugas que oferece ao lindo rosto da nova Luanda). Outros exemplos como o Auditório Nzinga Nbande e o salão da LAASP são as casas que têm permitido o não esmorecimento completo dessa arte. Tem sido, actualmente, o principal refúgio da classe fazedora. As coisas começam a mudar de rosto fruto desta mesma luta. Actualmente, o teatro construído de raiz mais bem equipado tecnicamente a nível nacional (foi a única inaugurada desde o período pós independência e é fruto de uma iniciativa privada) encontra-se na província de Malange. Foi inaugurada em 2010 e recebeu teatro pela primeira vez em 2012 pela Companhia Enigma Teatro. A mesma denomina-se Cine Teatro Ginga. Depois do fim da guerra civil, visivelmente, canalizou-se as forças para a reconstrução física e estrutural do país e, claramente, tem-se deixado para um amanhã incerto a saúde cultural da nação. O teatro é um vírus cuja qualidade da sua sobrevivência também passa pela existência de uma célula hospedeira. Precisa-se urgentemente de salas teatro designadas para tal, pois não devemos continuar a sobreviver infinitamente de salas adaptadas. No meio desse cemitério todo, o único sobrevivente é o Teatro Nacional de Luanda.
EntreDanças
Dança-Corpo e a Relação com o Sentir Por: Aneth Silva | Kj.priscilla@gmail.com
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dança é puro movimento expressivo e, como se sabe, o movimento é o mais primordial meio de comunicação, é expressão humana; ele está no corpo, está na existência biológica do homem. É no corpo que existe a marcação da identidade, é nele que guardamos todos os traços da nossa infância, adolescência, juventude, ou seja, tudo o que nos marcou fortemente e contribui para a evolução do sujeito.
O nome ‘dança’ pode ser usado de maneira geral, referindo-se ao movimento sinuoso e expressivo, muitas vezes seguido de uma música. Mas a verdade é que ela não é universal. Querendo dizer que, diferente do nome generalizado, ninguém dança igual, não existe apenas um jeito de dançar, e a maneira de sermos afetados por ela também é muito relativa ao que somos e a tudo que ela abrange.
De uma maneira geral, o povo angolano tem, dentro do seu quotidiano, a dança presente com afinco, facto este, resultado de um contexto cultural. Desde cedo, existe uma relação interior com estruturas de ritmos contínuos, começando com a relação tão aproximada da criança com os movimentos da mãe ao serem carregados nas costas (respiração, andar e fala). Essa relação com o movimento se torna ainda mais forte ao participar de celebrações sociais, onde a dança se torna um factor categórico para integração e para preservação da identidade. Assim sendo, a dança surge a partir da necessidade não só de se comunicar, mas de contar uma história, de celebrar, de se animar, de conectar, ou seja, de se expressar. Do latim expressione, de acordo com o dicionário Lello, a palavra significa “dar a conhecer” ou “manifestar os seus sentimentos”. Ao dançar, o bailarino, contemporâneo ou não, dá a conhecer a essência que existe no seu interior, mesmo que inconscientemente.
Muitos bailarinos nem pensam na maneira que dançam, e quais as marcas que ficam da sua dança, simplesmente acontece, é natural, o movimento se apropria do corpo e o olhar externo é o objecto que traz a identidade do intérprete para a dança. O problema é que, às vezes, é muito difícil falar de si e descobrir quais os traços que realmente nos definem, muitos nem gostam de fazê-lo – é muito mais fácil olhar para o outro e descobrir a partir da verdade que ele transmite –, mas é perfeitamente normal que isso aconteça, visto que, muitas vezes, confiamos mais no que vemos e no que isso nos dá a entender, do que no que sentimos. Por não nos querermos expor, esquecemo-nos, diversas vezes, do olhar interno, aquele que ao ativarmos diz tudo o que precisamos saber, porque tudo o que somos está acessível em nós. Mais do que na mente, as nossas características mais fortes estão guardadas na nossa memória corporal, e isso se reflecte na maneira que reagimos nas diversas situações quotidianas. Junho/Julho 27
A proposta é que se foque nas diferentes características que os bailarinos possuem, na multiplicidade que os constrói, no que os faz mover, no que os identifica como seres únicos que realizam a mesma prática, e como as suas particularidades afectam a maneira de executá-la, a maneira de sentir, a maneira de se relacionar. Dança-se na mente e no coração sem fronteiras, e o corpo é o instrumento usado para definir, comunicar, “experienciar” e transformar os estados. Então, um professor de dança podia falar interminavelmente sobre o que é a dança, qual a sua origem, como ela afecta as pessoas, o que o bailarino deve sentir quando dança, como se dão as conexões corporais, etc.; mas a experiência só se tornaria completa, palpável, real, se esses alunos colocassem, (o quê?) no corpo, praticando, vivenciando e não imaginando, porque o corpo cria uma memória e a dança, como diz Frederico Paredes , “…é do corpo”. No século XVIII, Noverre , o principal nome na reforma do ballet, já acreditava que, antes de ser uma manifestação estéti-
ca, a dança era uma forma de expressar emoções com o corpo. A estética do movimento seria apenas uma consequência da emoção que essa dança procura exprimir. Ele criticava ainda os bailarinos que trabalhavam por excesso o corpo (físico) e pouco a alma, tornando-se ignorantes na arte expressiva; tudo isso sem deixar a técnica de lado que ainda era muito exigida deles. Assim como ele, Delsarte , mais tarde, acreditava que a técnica tinha de ser ensinada de forma adaptada a cada organismo, dentro das suas limitações. E, dessa maneira, ele começa a estudar a relação entre movimento, voz, expressão e emoção do ser humano. Pensando a partir desse viés, o sentimento torna-se o estímulo que gera um estado de atenção que se volta para o corpo em forma de movimento e que, consequentemente, se conecta com o novo; e essa relação origina um ser realizador. O corpo passa a criar a dança que existe dentro dele a partir da motivação, da emoção, a partir da presença de continuar a ser no mundo. Referência bibliográfica:
Bailarino, coreógrafo e professor da Escola e Faculdade Angel Vianna (EFAV). http://adancadecadaum.blogspot.com.br/2011/04/jean-georges-noverres.html http://www.iar.unicamp.br/lab/luz/textos7.html
DANÇA: ONDE VER E APRENDER Para aulas de dança em Luanda contacte os seguintes lugares: CLUBE ATITUDE Rua Mortala Mohamed – ilha de Luanda/ dentro do Clube Náutico – Luanda Telefone: 925976004/919122644 JAZZ COM ARICELMA CORDEIRO Telefone: 921549995/997580761 Luanda Palavra&Arte 28
VOCÊ SABIA QUE Na Antiga Grécia, a dança era tida como um elemento essencial na formação dos indivíduos e era parte da educação obrigatória. Hoje em dia, acredita-se na mesma coisa. Pode-se dizer que, enquanto processo educacional, ela não se resume à formação de bailarinos, mas ajuda a aprimorar habilidades básicas, ajuda no desenvolvimento das potencialidades humanas, favorece a criatividade e o processo de construção do conhecimento.
Out r o s Passo s d e : Jo sé Pitra
A Revista Palavra&Arte traz em Outros Passos, a sua rubrica que engloba a arte dançante, o bailarino angolano José Pita. Vamos entrar um pouco na sua cabeça e desvendar o que pensa sobre a dança e os bailarinos angolanos, que tipo de mudanças, se houver, precisam ser feitas e, em sua opinião, que passos precisam ser dados para que se alcance um outro patamar nessa forma de expressão artística. José Luelo Miguel Alves Pita (Zeca) tem 26 anos de idade e é natural de Luanda. O seu estilo predominante é o Hip Hop L. A. Recém-casado com uma brasileira, encontra-se, desde ano de 2015, no Rio de Janeiro onde decidiu morar e trabalhar. Zeca, como é normalmente conhecido dentro e fora dos palcos, iniciou-se na dança com apenas 10 anos de idade e, sem professor algum, foi aprendendo os passos nas ruas da cidade, passando pelo kuduro e break dance, até chegar ao estilo em que se encontra actualmente. Em 2003, ano em que começou a ver a dança com outros olhos, fundou o grupo de hip-hop Black Boyz e foi aí que decidiu que seguiria esse caminho.
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P&A: Zeca, para início de conversa, quais foram as suas inspirações para ingressar no mundo da dança? Zeca: Uma das minhas inspirações foi o meu irmão, Avelino, que já dançava kuduro underground com o seu grupo, e eu gostava muito de vê-los a dançar. Mais tarde, com o aumento do gosto pela dança, comecei a assistir vídeos norte-americanos e filmes de dança. Nos videoclips, via muito o Jun Quemado, um dançarino e coreógrafo americano que ajudou-me muito a crescer e a ver a dança com seriedade. P&A: Que espaço a dança ocupa na sua vida? Zeca: Eu sempre digo que a dança é a minha vida. Ela faz parte de mim. Toda vez que me sinto triste ou mal por alguma razão, eu coloco uma música e deixo o meu corpo mover, aí sinto que sou a dança. A dança faz bem à alma, e é por essa razão que dançarei até não poder mais. P&A: Já pensou em desistir? Zeca: Sim. Não é fácil viver da dança, há muitas barreiras a serem ultrapassadas. Comecei com pessoas que hoje já não pensam em voltar, mas, com a graça de Deus, eu continuo aqui e talvez pare apenas quando ferrar o joelho (risos). P&A: Fale-nos um pouco do seu percurso. Que tipo de trabalhos já fez, em que está a trabalhar e o que pensa fazer a seguir? Zeca: Trabalhei com alguns cantores como a Yola Araújo, Big Nelo, Adi Cudz, Pérola, Coréon Dú e muito mais. Com o Black Boyz, venci um concurso de hip hop em Luanda, o Street Dance Cuca. Participei da terceira edição do concurso de dança Bounce, da qual fui um dos vencedores, e isso levou-me ao Rio de Janeiro para uma formação. Tive a grande oportunidade de trabalhar com a renomada coreógrafa Débora Colker na comissão de frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval do corrente ano. Fiz algumas apresentações tanto em Angola como no Brasil e muitos outros trabalhos. Actualmente, preparo-me para dançar na abertura dos jogos olímpicos, que vai acontecer este ano no Rio de Janeiro. É um evento gigantesco e sempre admirei. Quando o via na TV, não imaginava que um dia faria parte dele e agora faço. Está a ser uma grande experiência. Palavra&Arte 30
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A dança é a minha vida. Ela faz parte de mim. Toda vez que me sinto triste ou mal por alguma razão, eu coloco uma música e deixo o meu corpo mover, aí sinto que sou a dança ”
P&A: Diria que qualquer pessoa pode dançar? Zeca: Todo mundo pode aprender a dançar, sozinho, na rua ou até mesmo com professor. Eu diria apenas que há corpos mais preparados, ou com mais facilidade, para aprender um estilo do que outros, mas todo corpo é vivo e pode dançar, e nunca é tarde para começar. P&A: Vale a pena estudar conscientemente o corpo? Vale a pena estudar a dança? Zeca: Vale a pena e é muito importante que se faça isso. No meu caso, quando estava em Angola não tinha noção do corpo, nem de como devia cuidar dele, fazia os movimentos sem pensar e me jogava de um jeito que hoje me poderia causar uma lesão que me impossibilitasse de continuar a dançar. Meu corpo é o meu instrumento de trabalho e eu tenho de ter consciência de tudo o que faço com ele, para me prevenir de lesões. Mais importante ainda é que, se eu for professor, eu teria uma responsabilidade com os alunos e teria de guiá-los do jeito mais seguro que puder. P&A: Existem esses professores especializados em Angola? Zeca: Existem, mas são poucos. Há muitos que sabem e aprenderam a dançar muito bem, mas não sabem como formar um bailarino, porque não têm a pedagogia e esquecem-se que, se não souberem ensinar correctamente os seus alunos, esses mesmos alunos podem passar a mesma experiência a outros. Como disse, é uma questão de responsabilidade. P&A: E agora? Morando no Rio de Janeiro, casado e a trabalhar. Pensa em voltar? Zeca: Agora que tenho uma esposa, a Elisa, que é a mulher que amo e que me dá muita força, sou um homem muito feliz e sinto-me bem a viver aqui, no Brasil. A vida vai seguindo desse jeito, depois vamos ver no que dá.
P&A: Uma mensagem ou um conselho para os bailarinos angolanos. Zeca: Não parem de sonhar, continuem a lutar. Sei que não é fácil dançar, não é fácil montar projetos, pedir patrocínios, arranjar espaços, etc. Mas não parem. Pois, nunca é tarde para se alcançar os objetivos. P&A: Zeca, agradecemos pela oportunidade que nos deu e esperamos continuar a vê-lo em palco fazendo belos movimentos e grandes passos. Zeca: Sou eu quem agradece, por ser o primeiro a mostrar, fora dos palcos, os meus “Outros Passos”. Junho/Julho 31
Portefólio | vêsó vagando na Câmera de Adilson Leão
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Dimensão africana da IIIª Trienal de Luanda O que Africa tem para transmitir ao Mundo? Por: Cláudio Kimahenda: kontrazte@hotmail.com
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frica é, para muitos, o ponto central da cultura. Há quem afirme que foi aqui onde nasceu a arte sob todas as formas, desde à escrita, pintura, tecelagem, etc. com características próprias. Seja como for, a arte sempre esteve enraizada nos africanos, desde muito antes dos descobrimentos e dos conflitos. E é a partir da faculdade e capacidade de indagação que o africano se afirmou, sempre. O presente texto é uma análise da dimensão africana da IIIª Trienal de Luanda, que acontece de Novembro 2015 até Novembro de 2016, sob o lema: da Utopia à Realidade. Organizado pela fundação Sindika Dokolo. A questão da teoria de arte contemporânea emerge em todos os continentes. E o continente africano não é excepção. Para efeito, é preciso se traçar métodos para sair do então paradigma, que separa arte superior e inferior. Em muitos casos, limitando-as a uma determinada área geográfica. É preciso que se crie um novo paradigma. Sendo uma variante da cultura, a arte define os traços fundamentais da identidade de um povo. A arte “é uma postura filosófica”, como diz Fernando Alvim, curador da Trienal. A arte aparece, inicialmente, como instrumento de memória. Usada pelo homem para sinalizar acontecimentos. Exemplo: as pinturas rupestres. Com o progresso científico, a arte passa a ser uma ciência. Exemplo: o estudo da Arte contemporânea. Mas o que é cultura? E como se revela? É uma palavra camaleónica, geradora de vários conceitos. A nós interessa defini-la como sendo toda e qualquer manifestação artística, politica, económica, de um determinado povo ou indivíduo. Modo de pensar ou agir.
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É um dos três subsistemas artificiais (com a Politica e a Economia), concretos de toda a sociedade humana”. (BUNGE, 2002). A cultura revela-se nos gestos, nos diversos modos de arte, no vestuário, etc. Há cultura onde existe povo. Durante longo período, pesquisadores vêm a estudar a etnografia africana. Muitos rios de tintas têm vertido. Não é o nosso objectivo. Nosso propósito, já dissemos, é analisar a Trienal de Luanda. Mas será possível falar dela sem nos referir ao movimento cultural que ela desenvolve? Pensamos que não. Em 1516, Thomas More, escreveu um romance filosófico, intitulado “Utopia”. A “Utopia” significava um lugar que só existe na imaginação. Thomas More idealiza uma sociedade onde seus habitantes eram todos iguais. Onde a arte e a leitura trariam a paz. Neste caso, a sociedade organizada não passava de uma utopia para o autor, comparada com a realidade que se vivia. As sociedades vivem mergulhadas em tensões conflituosas. Não há paz. É exactamente neste contexto que se compreenderá a IIIª Trienal de Luanda, nesta frase “DO COLONIALISMO AO FIM DO APARTHEID”. O apartheid foi instituído em 1948. Um movimento segregação racial da África do Sul, com incidências negativas para todos os países africanos. Durante este período, brancos e negros não podiam coexistir no mesmo espaço. O regime do apartheid procura criar bases, mudando o paradigma da Sociedade. Como diz Andrew, “o regime do apartheid procura acentuar, cimentar e perpetuar (…), implantando o sistema de bantustões” (p. 98) Comparado ao Apartheid está o colonialismo , ou seja, a semelhança está na forma como o colono agia, “santamente”, renegando tudo quanto pertencia ao colonizado. Tudo em nome de uma “nobre” civilização.
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Para “europeizar” o africano, fez-se um deles. Para melhor dominar e acabar com tudo quanto tinha de original. Fazendo-o agir, pensar, olhar como um “europeu às avessas”, verdadeiras marionetes. A “europeização” fez com que se criasse divisões. Por um lado, tínhamos os africanos assimilados, aculturados que rejeitavam a ferro-e-fogo “voltar a África”. Acreditavam que a mesma não tinha “passado nem futuro”. Logrados com está herança cultural, os nossos irmãos passaram a renegar a sua identidade, como se tratasse do Diabo. Outro grupo era daqueles africanos que, embora assimilados, quiseram regressar a África. Esses paladinos do seu próprio futuro procuravam “redescobrir” as suas terras, redescobrindo a sua própria identidade. Usaram meios como a literatura, a música e outras manifestações artísticas. Podemos dizer que desde o período colonial até o fim do apartheid, em 1994, houve uma preocupação de criar-se um movimento de vanguarda capaz de expor o drama social. E resgatar, por meio da arte, os valores humanos e legítimos da cultura e da personalidade africana. O movimento pan-africanista de Dubois, dá lugar ao pan-africanismo que, nos anos cinquenta, luta contra o colonialismo para conseguir implementar as independências de alguns países africanos. Ele criou raízes e se disseminou por toda a África através do ideal de unidade africana. Ao ser uma Trienal em que o “epicentro do sistema” é o Artista, segundo Fernando Alvim, torna-se também um evento com veio de transformação dos valores artísticos. É o artista, para além de simples obreiro do artefacto de arte. É tempo de revalorizar os artistas “remetidos a um tipo de indivíduos (…) [sem] capacidades (…) de exprimir (…)” a sua arte. Os artistas são criadores da memória colectiva. Capazes de criar mundos. Um mundo real nos é acessível apenas pela arte.
A originalidade artística, a valorização do ethos , a coerência identitária são valores legítimos que qualquer artista africano deve adoptar. Sob pena de cair na “despersonalização”. É ainda uma trienal que redefine a ideia de cultura, reafirmando princípios africanos. Feitas pelos próprios africanos. Sindika Dokolo, patrono do projecto, que leva o seu nome, afirma, em entrevista, que nós, africanos, devemos “redescobrir e revalorizar” a nossa cultura, mas “a luz dos nossos princípios e padrões”. A cultura angolana, segundo o etnomusicólogo Macedo (2006), citando Agostinho Neto, diz que “[...] Desenvolver a cultura não significa submetê-la a outras” (p.10) . A cultura africana é universal, e podemos ver os povos da América latina reivindicar e defender a sua herança Cultural africana. Macedo (2006) acrescenta: “as aculturações resultantes do contacto cultural com os demais povos não devem resultar em perda da personalidade do angolano no contexto dos seus valores antropológicos materiais e espirituais”, (p. 10). “Luanda torna-se autónoma”. É o que diz Sindika Dokolo. “A arte e a estética angolanas são concebidas a partir de luanda”. Augura-se, com a mesma actividade, que Luanda seja a “capital da cultura e da arte”, embora seja uma “questão política” (acrescenta Sindika Dokolo). A IIIª trienal de Luanda responde a várias perguntas sobre a africanidade. Sobretudo a pergunta do presidente Abdoulaye Wade, no III Festival Mundial das Artes negras, realizado no Senegal, Dakar, 2010. Quando perguntou: “O que a África quer transmitir ao mundo?”.
[...] Desenvolver a cultura não significa submetê-la a outras
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Jomo Fortunato escreveu nos seguintes termos referindo-se a este magnificente projecto: “Partidário de uma leitura do fenómeno artístico e de gestão cultural suportada num permanente questionamento, a Fundação Sindika Dokolo persegue um método de intervenção, no domínio das artes, que articula as disciplinas tradicionais, sempre passíveis de novas leituras, com ferramentas de análise, e formas de abordagem teóricas, de feição multidisciplinar e multimédia” Não foi esse o objectivo dos nossos antes? Quando quiserem “descobrir” a África? Não é este o nosso desejo hoje? Habitar numa África sem “tensões nem estrondo de balas”? Sem segregações, estigmas e que vivamos de forma harmoniosa? Onde cada um afirma com padrões culturais africanos? A arte é e sempre será a medianeira nos conflitos. Pois, a arte é a Mãe da paz. Se é verdade que o homem é O QUE É, com base a sua cultura, se é verdade que a cultura fortalece, então, é verdade que o homem deve agir no interior do universal, sem renunciar a sua individualidade. Assim, o homem deve livrar-se das grilhetas da utopia e partir para acção, algurando viver a realidade. É a partir da acção que o homem se torna verdadeiramente consciente das suas capacidades, porque só aqui a arte se pensa, ganha forma e sentido. Vive-se a realidade.
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Referência bibliográfica BUNGE, Mário. (2006). Dicionário de Filosofia, São Paulo, Perspectiva. MACEDO, Jorge. (2006). A Dimensão Africana da Cultura Angolana. Luanda: INALD. ANDREW, Igor. (1986). Karl Marx, o marxismo e a África. Moscovo, Edições da Agencia de Imprensa Nóvosti. DOKOLO, Fundação Sindika. Trienal de Luanda. 2006/2007. http://fsindikadokolo.org/projectos/i-trienal-de-luanda.html (acedido em 16 de Abril de 2016).
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Podemos dizer que desde o período colonial até o fim do apartheid, em 1994, houve uma preocupação de criar-se um movimento de vanguarda capaz de expor o drama social. E resgatar, por meio da arte, os valores humanos e legítimos da cultura e da personalidade africana
ENTIDADES
SADIA, a instituição que protege os direitos do autor
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uitos são os artistas que, depois do longo percurso de criação, vêm-se estagnados, sem saber que rumos tomar a seguir. Ao escritor, pesa-lhe saber do registo da obra (alguns contando ser tarefa exclusiva da editora). O mesmo dá-se com o artista plástico ou com o músico que pode ter alguma composição sua usada por outrem.
cineastas e qualquer criador que queira ter os seus trabalhos protegidos. Como fazer para registar uma obra na SADIA?
O acto de registo na SADIA é um processo simples. Há um formulário de inscrição que deve ser preenchido com informações pessoais e da obra. O mesmo deve ser acompaPrentende-se, nesse espaço, apresentar nhado de uma fotocopia do bilhete de identias instituições ou órgãos ligados à área cul- dade, duas fotografias tipo passe, cópia do tural, de modos a apoiar na compreensão cartão de contribuinte, dois mil kwanzas e das suas funções, razão de existência e utili- um exemplar de cada obra a apresentar. dade para os seus destinatários (artistas e criadores). Como a SADIA trabalha com os autores Nessa edição, vamos abordar de forma (membros)? simples e concisa sobre a SADIA – Sociedade Angolana do Direito do Autor. Depois de registada as obras, é atribuído um certificado ao autor e um cartão de memO que é a SADIA? bro, que comprovam a propriedade das obras. Aos músicos fica só um cartão de Como descreve a própria sigla, Sociedade membro. Angolana do Direito do Autor, é uma instituição de natureza cultural que trabalha na proComo está constituída a SADIA? tecção dos direitos do autor angolano. A SADIA é composta por uma Assembleia O que a SADIA desenvolve na prática? Geral que se reúne ordinariamente de três em três anos, um Conselho de AdministraComo toda a instituição que vela pelos di- ção e um Conselho Fiscal. reitos do autor, a SADIA trata do Registo e proteção de obras artísticas, regulariza o uso Quando e onde funciona a SADIA? de obras tuteladas junto de entidades que divulgam as criações, pagamento dos direiA SADIA funciona de segunda a sexta feira, tos do autor, combate contra a pirataria e das 08:30 até 15:30. Localizado no Bairro Vila demais serviços. Alice, Rua Fernando Pessoa, em frente ao Colégio Bem Dizer Quem pode se inscrever na SADIA? Pode inscrever-se na SADIA músicos, compositores, interpretes, fotógrafos, escritores, jornalistas, artistas plásticos, dramaturgos,
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Foto: Adilson Le達o | ady.leao@hotmail.com Junho/Julho 43