Histรณrias aos pedaรงos
Alcino G. Francisco
Histórias aos pedaços, é um conjunto de pregos pré-gados em cada dia. Neste livro, não cabem todos os 20.075 dias já passados. Cabem alguns dos que foram escritos.
Escondo porém que este género me foi inspirado por José Gomes Ferreira e o seu livro “A vida dos outros”. Aqui, deixo a minha. Aos pedaços.
Histรณrias aos pedaรงos ou os pedaรงos de uma histรณria.
Esta é uma edição de autor onde colecciono alguns escritos (poucos em relação ao que escrevi até hoje) que pretende retractar o que (quase) ninguém conhece de mim. Onde ás vezes, nem eu me (re)conheço. Estes trabalhos foram escritos entre os anos 2000 e 2010. Em 2016, quando os releio, fica-me a alegria imensa de saber que não cresci.
Londres
Dedicado À saudade. Ao sentimento maior de quem deixa o seu País, a sua família e os amigos. À minha família de quem me lembro todos os dias nas minhas preces. Para que um dia (próximo), estejamos mais próximos.
Ao Vasco e ao Gonçalo Ao Alexandre, ao André e à Maria
Agradecimento
A escrever
Prefรกcio Ainda por escrever por autor a convidar
ALMA DO VAZIO
Decorei a Alma em cores A cada cor dei um Condado Para que da minha sombra Pudesse fazer um Estado Dei à Alma panos e tecidos Pigmentos e corantes Reuni povos enfraquecidos Pioneiros e militantes Dos desenhos fiz palavras Na Alma da brincadeira De misturas açucaradas Inventei-lhe uma bandeira A Alma criou paixão Um fluxo que sofreu De repente ficou Nação Dessa Terra que sou Eu Fiz-lhe encaixes de violino Dei-lhe acordes de melodia Para que do ventre do seu hino Pudesse parir harmonia Dei-lhe palcos de bailado Horizontes espatulados A Alma fez-se fado De aromas enfatuados
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De um pavio sem cera Fez a Alma um cenรกrio Olhei pra Mim a ver quem era Era o Prรณprio Destinatรกrio
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Inverno de ponche quente
Inverno de Ponche Quente Ponche Quente de Inverno Serei este que te sente Que aquecendo me amorno És talvez pontaria O meu caminho do inferno Se não for por cortesia Não quero que seja eterno Voltaremos a ser gente Os dois na intimidade Serei eu no teu ventre A rasgar a tua saudade Serás a rosa do meu pico Aurora do teu pilar Na tua boca serei o bico Do teu desejo libiar Rasga os teus olhos em mim Solta a ponta do teu miar Quando olhas pra mim assim Sinto a alma desmaiar Serás tu o meu Inverno Serei teu Ponche Quente Mesmo aquecido no inferno Serei teu céu e confidente 3
Serás o meu milagre Serei porto que te abrigue Até que alguém nos separe Ou que Deus nos obrigue … ou desampare
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OUTRO
No repuxo desta rima Um de nós está por baixo Se o outro está por cima Um é testo o outro é tacho Letra a letra és minha sisma Em laçadas de pensamento És o vértice do meu prisma Geometria do sentimento Ombreira da minha portada Tempero do meu sal Moldura recortada Na soleira do meu quintal Quero que sejas Mais minha amiga Quero que te revejas Na força desta cantiga Beiral do meu telhado Cheio de águas de chuva És um cofre selado Num vidro de sumo de uva No caminho desta entrada Aprendem-se coisas da vida Temos o tapete de entrada O mesmo tapete à saída
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Algures dentro de mim
Algures dentro de mim És a pedra que procuro Perdida ficas assim Num buraco muito escuro Pedaço dessa malha Meu pedido de ruptura Onde o meu eu falha És tu linha dessa costura Cúpula da minha cópula Rocha da minha pedra És o que em mim pula Regando o que em mim medra Meu pedaço de areia Meu baraço de granito És a parte que em mim anseia Mármore em que me agito Saudades precedem a despedida Beijos que são memórias Rochedos filtrados de vida E tu nas minhas histórias Fraga de bijuteria Nuvem que cheira a suspiro Como não sei o que diria Canto-o neste papiro
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Montanha do precioso Topåzio de Jasmim Se amando estou ocioso És tu, algures dentro de mim.
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Outros escritos
Como as gotas de chuva afagam o embaciado dos vidros, como os godos chatos beijam as águas paradas, como o ski embarra nas ondas, como a vida se deixa tocar por destinos. Embarrilado em mil troares, persigo um lampião de braços abertos. Quejandos, sou tropeçado por um paralelo. Levanto-me e volto a correr. Ferido, magoado e volátil ao cheiro da água. Levanto-me e volto a viver. Sôfrego de ânsias, volto a sofrer por não ver tanta gente correr como gostava de ver. Chorado, volto a correr encharcado no prazer de viver e na esperança de ver mais gente a correr. Risonho, volto a correr no sonho de tornar a viver, e nesse espaço a mar, solto as velas ao luar e parto à procura de um lugar para rezar.
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O lugar onde não fui
Esse lugar onde não fui Apressado em mim mesmo Fiz aquele que substitui A figura do egoísmo Ausente do meu passado Olvidei a própria saliva Na falta de um predicado Esqueci a própria vida Dei comigo deitado Á espreita da verdade Ao espelho do meu fado Vi-me vestido de saudade Realejos que não toquei Que eram meus por direito Foi então que enforquei As saudades do meu peito Nesta confusão em que me assanho Ás vezes sonho que perdi Parte do meu rebanho Nas emoções que senti Nestes pensamentos cansados Nesta promessa que juro Vou procurar nos achados O caminho do meu futuro
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Algures nesse carreiro Onde o estreito sai Vou ser o carteiro Da minha figura de pai Se eu a estrela encontrar Nesse tempo que se vai Vou pedir para encarnar E voltar a ser pai
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Sou vento
Algures nesse alento, Sou vento E dentro do pensamento Sou também alimento Sou a foz de um rio parado Sou a alma de um corpo deserto E no restolho deste arado Sou locomotiva de um destino incerto Sou este aquele e o além Sou tudo o que quiserem E se quiserem também Serei a palavra amém Sou a venda sou o passo E nesse imenso que sou Sou esse imenso pedaço Que de mim restou Sou herança que flutua Num mar de ironia Um bailado que desagua Numa rua sem saída Nesse espaço imenso Em que tudo é um sustento Chego a pensar que penso Ser o mesmo que alimento
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Quero
Algures dentro do tempo Quero ser o teu espaço E dentro desse alento Quero ser o teu abraço Ser o chão que beijas O teu divertimento Até quero que sejas A forma do pensamento Âncora do teu corpo Semente do teu sustento Sentir-me assim absorto Em areias de rebentamento Em zonas de sentimento Quero ser o teu seguro Segurar-te no firmamento Ser o alicerce do meu futuro As linhas que seguram a Lua Trazem o isco que me desafia Quero que a Lua seja tua E tudo o que a ilumina Dou-te o céu e as estrelas As centelhas e os cometas Um sol de cores amarelas Em troca do que me prometas
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Serei esse pedaço De que Deus te privou Além desse espaço Serei tudo o que já sou Serei a tua rua alargada A tua avenida estreita A tua lágrima lavada O teu futuro à espreita
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… procura de destino
É um tr-a-ço É um baralho É um embaraço É um trabalho É um caminho de poeira Um pedaço de tempo Em cada grão de areia Uma eternidade de vento É um percurso Um pulsar de coração Come se fosse um uso Viver sem paixão Na marginal dos dias Do Astro que está cá dentro Ficam vidas como espias De aprender o sofrimento Corre sereia de vida Agasalha-me na tua barbatana Á medida em que ficas comprida Cresce o desejo de chegada Dá-me os acordes desta dança Mostra a raiz da vontade Porque de tudo o que não se alcança Se faz uma massa de saudade 17
Orquestra este bailado Marca o ritmo da aragem Vê que por baixo deste sibilado Existe beleza em forma de paisagem Iça as velas nas narinas Tira do vento coragem Vê lá dentro das retinas Como a vida é vadiagem
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Sentença
Foste a força de muita razão Acordar de um sonho novo Apocalipse da minha paixão Onde o amor foi um estorvo Fruto saído da raiz Fumos de que sou herança Sou tudo o que me fiz Na força desta esperança És um ponto na ortografia Uma imagem de sintonia Uma vírgula na fotografia Preenchimento de agonia És um vinho feito d’água Uma orquestra muda Na melodia desta mágoa És a esperança que flutua Serás a minha montanha verde Flor plantada no horizonte Aprendi agora que perde Quem se senta no maior monte És o meu espaço fingido O meu templo querido Único pedaço sofrido És o meu tempo perdido
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Sorrir a dormir
Eu tenho uma senha É o meu Anjo da Guarda Quando me apanha É ar que me consagra Tecemos a nossas teias Nem sempre de frente Vivemos a meias Distraídos na mente Falamos nos turnos Em que estou a dormir São luares diurnos Na noite a sorrir Somos amigos só por vontade Juntos lascamos o espaço Numa comunhão de liberdade Temos de umbigo um baraço Nessa energia que se produz Quando sonho com o seu rosto Parece que cresce uma luz Na vaidade do meu gosto Neste ir e voltar Do acordar até dormir Fica este gosto de sonhar Que até assim sei sorrir
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Nas traseiras deste sono Quero ficar a fingir Que eu seja o abono Deste sorriso a dormir
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Nem eu sei
Era já tempo De me ir embora Nem sei porque acalento Levar-te pela vida fora Já caíram as promessas Já ruíram as juras Já o amor pede meças Nas formas das agruras Não te encontro nem te vejo Nas tuas próprias entranhas Mesmo assim ainda almejo Perder-me nas tuas manhas Quando te olho Dói-me a alma, dói-me a vista Nem sei como te molho Nesta fatia de ser maxista Na força do meu arrasto Serás tu que me empurras No ranger do meu repasto Serás o gemido que me sussurras
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Esse poeta dentro de ti É uma chama Que chama É um grito que grita Um berro que berra Um estado que agita Esta vida na terra É um estorvo que se arrasta por dentro Uma estrela que brilha por fora É como um desalento Que nos enamora É um fumo na imagem Uma marca d’ água Como se houvesse margem Para tanta mágoa São as palavras que rimam São os dedos que mexem São rimas que animam Estes textos que crescem É um ir e voltar A nascer e morrer Até Aprender a amar Sem ter que sofrer É um saber aprender Aprender sem esquecer Até aprender A ser poeta sem saber 24
Outra vez Pousa devagarinho O corpo nu nesta mensagem Deixa que eu toque baixinho Os dedos desta massagem Leva-me à terra dos mitos Dá-me o teu frasco de mel No meio dos teus gritos Arrepia a minha pele Comunga comigo a visão Faz comigo uma história De forma a que desta paixão Sobre apenas uma memória Sê côncavo no meu convexo O contrário do meu direito E esta questão de sexo Sussurra-a no meu peito Sê a minha taça de vinho E eu a noção violenta Para que no seio de tanto carinho Eu seja explosão ciumenta Abraça comigo a vaidade De possuir um privilégio Sabendo que na verdade Amar assim não é sacrilégio
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Une a força que nos abraça Geme o grito que nos renova Para que eu com essa graça Seja a força da desova Rompe comigo este sustento Desunha comigo este bailado Mostra-me o que acalento Neste destroço abençoado Vem comigo olhar de frente Ao espelho da vontade Inventar um fim diferente A um final de saudade
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TRÉGUAS
És longe visto de perto Intimidade ao lado do sonho Serás por certo Destino em que me amanho Dedo fugaz de carinho Arrepio de pensamento Contigo lá vou sozinho És tu meu cata-vento Onda de vento em que me afogo Crista do ar que navego Vento que alimenta o fogo Destas palavras que escrevo És tudo isso e no entanto És também esquecimento Chego ao futuro com um manto Vendo-te em mim sentimento Olho o Sol novo deste dia Reparo na noite desta aurora Sabendo que já sabia O mesmo percurso de outrora São riscos, traços e letras Palavras que são história São verdades obsoletas És tu na minha memória
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Espiral de um fumo rugoso Á mendiga de um carinho Como se fosse vergonhoso Amar na margem do destino Desisto de pensar porque me canso Da medida desta régua Que no despertar de um dia manso O dia anterior pede uma trégua És um vício sistólico És uma unha encravada Um sonho diabólico Que rasga a minha estrada Dá-me a ponta da tua meada O lóbulo do teu peito No seio desta encruzilhada Vem correr a vida a jeito
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Por aí Olho para ti dormindo Na ânsia de te ver sorrir Mas na verdade sentindo Que está na hora de partir Nessas teclas preto alvo Onde que me envolvo em segredo Peço para ficar a salvo Não sejas o meu degredo De nós dois resta um sumo Como se a vida fosse um prazo Sou eu então que durmo É minha a vida em atraso Parei para inspirar Este ar de dromedário Vi então que respirar É um acto voluntário Nunca poderás estar perto Jamais poderás estar longe Sendo a vida um deserto Deixa-me ser o teu monge Não recuses esta oferta Não recues na vontade Não feches uma porta aberta Só por questões de vaidade
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Não penses esmorecer Pensa antes em andar Seremos dois a perder E muitos mais a ganhar Nestas teclas preto alvo Onde componho em segredo Sei que fico a salvo Doutras teclas alvo negro É então que inspiro Um arrepio de confiança Por cada trago que respiro Trago sede de esperança Na pena deste segredo Que guardo e não revelo São duas penas de degredo Porque amar é severo. Nunca pensei um dia Estar acompanhado sozinho Sempre pensei que a maresia Tinha uma sereia ao cantinho Repito o que penso quando digo Berro e grito quando falo Gemo o desespero de um abrigo Fico na dependência do que falo
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Do fundo dos olhos
Parece maldição. Um único Euro no bolso. Uma única moeda e uma manhã interminável de cafés e cigarros a despontar, fresca, inteirinha para meu gozo pessoal. Mas não. O dia não podia ser perfeito. O dia, não podia ser apenas um dia de Sol de Dezembro em vésperas de Natal. Não. Este dia não se podia limitar a passar como tantos dias que já esqueci. Tinha que ser um dia incomodativo. Tinha que ser um dia de paixões, de olhares, de mágoas a fugir de vista. Antes do primeiro semáforo, lá estava a Pedinte para me atormentar. Do outro lado do carro, no vidro do passageiro, aqueles toques infernais a bater nos óculos de sol e a entoar na minha Árvore de Natal. 12? 13? 14 Anos? E de criança a tiracolo! Um planeamento familiar alinhado pelos parâmetros de uma qualquer balança. Aquelas unhas que eu nem vi a apontarem para dentro de uma boca ainda com dentes de leite. E já uma criança a tiracolo! Atirei um olhar fugaz pelos óculos de sol e acenei ligeiramente a cabeça. Mas não. Ela tinha que ficar ali para me atormentar. Insistiu e voltou a empurrar a alma pelo toque dos dedos no eco do vidro. 31
Insisti no meu olhar de sovina com uma única moeda e percorri o percurso anterior. Acenei ligeiramente e atirei um olhar pelos óculos de sol. Vi naqueles olhos uma condensação solidificada e na imprudência de passar a manhã sem café, atirei um “mete-as no meu saquinho gente”. Algures, no fundo daqueles olhos estava uma profundidade tão jovem, uma esperança desfalecida, um calendário de vida. Algures naquele fundo dos olhos, estava uma força estática, um explosivo inofensivo e um misto de insulto e indiferença. Foi demais para tanto ego. Tive que a deixar escrita para que não fosse comigo para a cama. Traidora.
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A árvore e o estore
Depois de alguns pensamentos e raciocínios, impõem-se um registo para que a evolução dos pensamentos não deva ser tão veloz que as ideias não se esfumem na presença de outros pensamentos, ainda mais acutilantes e menos misericordiosos. Viajemos pois neste espremer de vida na busca de mantas, de pedaços, de recordações e memórias que nos digam que tivemos efectivamente uma vida que se reconheça pelas suas histórias da mesma forma que um currículo se identifica pelos seus documentos. Isto, vestido na pele de um homem que pouco ou nada se preocupa com o seu próprio currículo, já que, como missionário, se diverte a oferecer currículos inteiros a quem, com ele se cruza e lhe desperta as simpatias. De repente, o pintor descobre que tem muito mais identificações com a aguarela, do que com o carvão. Não que não goste de fotografias a preto e branco, só não lhe apetece viver a vida todos os dias a respirar nostalgias. Devagarinho, abriu as cortinas, e ainda a medo porque se tinha acordado durante o dia ou durante a noite, porque se perdera no tempo, escancarou as portadas sentindo arrepios da temperatura que estava para lá do sono. Timidamente, foi deitando a cabeça na almofada na esperança de 33
que fosse dia. Lentamente, foi subindo o estore, de forma a que apenas se vislumbrassem finos recortes de luz que se espalmavam no soalho. Esquecido que podia levantar todo o estore, optou por espreitar por um desses tímidos orifícios por onde o sol se dividia em mil sóis como um mapa de quadradinhos desenhados na parede do lado oposto. Aproximou a vista de tal forma para espreitar bem a cor do dia, que a pupila inchou até que ficasse do lado de fora do orifício. E só porque a pupila tinha cabido dentro de tão pequeno sol, todo o cérebro se identificava com a vista. Esqueceu-se de levantar o estore e quando se lembrou que o podia fazer, teve medo que o dia já estivesse a escurecer. Afinal, 40 estavam para 12, como 12 estavam para 40. Estranha, esta matemática que nos dá grades em forma de sol, pensando nós que nos podemos aquecer em lume brando. Que também produz vapor. Pedaços que se vão colhendo, têm memórias muito curtas e apenas o detalhe é nitidamente identificado. O que o provocou e o que é que o detalhe promoveu em seguida, são películas queimadas de onde os registos se apagaram. Meu Deus. Que terei feito para merecer penas com tantos dias... Que terei feito eu de tão grave para que leve a vida a esconder-me....
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Deste, daquele, do outro e da outra, dos outros e das outras, para dar comigo a fugir exclusivamente de mim mesmo? Heim ? Acho que me devo um grande pedido de desculpas. Desculpa por tudo e desculpa por nada. Desculpa por pedir desculpa. Não é efectivamente uma vida. Não é de todo uma história. E a prova de que também não é insanidade é que isto está aqui. É uma espiral (Voltamos nós à matemática, logo eu que detesto ciências). Num movimento que corre da anca até ao retorcer do pescoço, lanço uma visão alargada para as costas. E de facto, a paisagem agrada-me. Ainda me recordo da primeira vez que a vi. Continua. Continua e contínua porque é estática. Porque nunca se moveu na vida. Não envelheceu e não deu novas árvores com frutos frescos e sombras jovens. Não experimentou atravessar as estações de cada ano, e as cores estão queimadas por navegar por tantos verões. Não deixou que o vento lhe seleccionasse os melhores ramos e galhos, e agora o tronco ganha dificuldade em suportar mesmo as folhas outonais. A árvore mirra e pede novos sóis que o estore oferece sem resistência. Mostrando pequenos brilhos na escuridão que sendo a única luz, era muita, a árvore, aproveita tudo o que pode para a conversão química. Mas não é 35
regada. A paisagem era de tal forma estática, que foi feita num dia solarengo e assim permaneceu por muito tempo, por isso, por muito grande que fosse o estore, nunca seria capaz de substituir uma boa rega e a terra está ressequida. Quando a pupila atravessou esse pequeno orifício e viu que estava a chover lá fora, deixouse ficar a beber até que relaxou. Enquanto o cérebro, continuava a assimilar que estava a chover, vítima da pupila distraída com tanta barriga cheia. A árvore, agoniava no desespero de quem não vê o tempo passar porque está na posição de espera e com dores. O único desejo que tem potência de vapor para crescer, é aquele que fará de todos aqueles milhares de sóis, um único sem interrupções. Grande como a pupila o vê. Sem sombras ou teias que filtrem a cegueira de quem não vê e não entende porque não vê se nem sequer é invisual. Aos poucos, os ramos mais fortes e menos debilitados, vão estendendo os seus braços para a luz, a única luz, na tentativa de alcançar os buracos e rasga-los todos até que se unam e sejam um único buraco de onde podemos aspirar a novos estores. Só as raízes parecem profundas. E apodrecidas. Não lhes resta senão definhar e pedir para que não seja por muito tempo. Ou darlhe uma terra mais saudável onde possa
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desenvolver novas raízes. Fortes, que rasgam a terra à procura do seu próprio destino.
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Ai sim
Ai sim Agora que sei de mim Que a estrada foi rasgada Quero fazer uma tourada Por mim Agora que estou assim Quero correr essa estrada Que por mim foi lavrada Ai sim Quero ser uma constante Nesta vida de navegante A vida ĂŠ este instante Eu sou o seu montante Quero ser o meu contraste Quero ser o meu vidente Recuso ser o meu desastre Nem que seja por acidente Vejo-me comigo a brincar Sentado a navegar Dou comigo a descansar De tanta vida cavar
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Desta vontade de desistir Resta-me a força de andar Não desistindo de sentir Não desisto de amar Ai sim Agora que estou por mim Quero fazer uma largada Quero a minha estrada lavada Ai sim…
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Olé
A crista são cornos Os pedidos, ilusões Os sonhos nascem nos fornos A fazer da vida tesões Os apetites ficaram insossos Os desejos ficaram secos Restam-me os mucosos Na intimidade dos segredos Peço 10, 20 ou trinta Olé Acredito que nesta maré A caneta perdeu a tinta Peço 10, 20 ou cem Olé Acredito que nesta maré A vida ainda está mais além Não peço Agradeço Porque para lá desta humildade Está o Mundo que mereço Olé que não esmoreço Grito cheio de fé Enquanto penso que mereço Navegar noutra maré
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El Vino Foi árvore, foi dádiva Foi saber, Foi fontes de muitas marés. Foi saber viver. Foi tronco, foi galho, foi folha, Foi capa, lombada e embrulho, Foi chuva que tudo molha, Foi dono de muito barulho. Foi tudo o queria ser, Sem nunca deixar de ser quem era Pagou tudo para viver E foi comprar outra Primavera Foi gente de muitos nós no tronco De muita alma no pigarro, Saiu com muito estrondo Sem sequer ter entrado Muita gelra temperada Gelra crua e mal cozinhada Muita estrada, muita estrada Numa cozinha alcatroada. Sem saber se fica ou se volta Partiu o nó do galho Caíu como folha solta Foi viver outro trabalho.
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Pedidos Divinos
Um saquinho de gente Uma família inteira Dentro da mente Como um dia de feira Saúde e alegria Força e determinação E nas horas de agonia Fé nesta paixão
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São aqueles dias
Não é preciso usar relógio para saber que estamos na hora da refeição. Não é preciso ser vidente para saber que a noite caiu e está na hora de dormir. Tem graça a noite cair. Nunca tinha pensado que a noite andava ás quedas até que as quedas da noite me acordaram para o dia. Ás noites aprendi a destapar os dias. Tenho-os à volta da minha cabeça, em círculos, cada um com um número como nos calendários de parede. À medida que se vão aproximando, vão trocando de número conforme a oportunidade. Só os conteúdos se mantêm. De vez em quando, o que está mais próximo até tem um número distante, mas como é o que está mais bem posicionado, troca de número e entra primeiro. Olho para esse círculo de dias todos os dias. Observo-os; sei-os inevitáveis, fatais como o destino de ter nascido. Cada dia transporta o seu aroma e no requinte da noite, espraia um sonho que espelha um dos dias seguintes. Ao acordar, tenho a sensação de um
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39novo dia que entrou naquele circo à volta do calendário que não tenho na cabeça. Cheiro cada dia mas não consigo adivinhar quantos dias faltam para ser ele. Vejo-os sorrir para mim a mendigar a oportunidade de ser dia. Vejo-os em círculos, à volta da minha cabeça, como os quadradinhos do calendário de parede e quando me distraio a dormir, sou surpreendido ao acordar por um deles. Aleatório à minha vontade já que estou a acordar. Á vezes, são dias que eu já tinha visto e gostava de não ter nem visto nem vivido. Outras vezes, sufoca-me um clima de ansiedade por aqueles dias que se fartam de andar em círculos e que me cansam de distracção. São plenos, cheios, vigorosos e com bom tempo nem que esteja frio. São como o gavião. Atacam-me sem aviso e fazem os dias todos valer a pena. À medida que se aproximam, os seus aromas intensificam-se e correm todo o meu diário. Onde quer que eu vá, lá está o seu aroma. Quer eu entre na Taberna, quer eu entre na perfumaria, lá está o fedor daquele dia que anda perto disfarçado na multidão de oportunidades de ser o próximo dia.
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A seguir, esse dia distancia-se e até o vinho ganha um trago a outro dia que não quero viver. Absinto.
Gostava de ter só os outros dias. Os que cheiram bem. Os que dão momentos felizes e brincalhões oriundos das melhores colheitas. Mas, como reconhecer estes sem os outros? É bom poder escolher os dias.
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Fico a dependência do (que) falo
Vendo-te fora desta forma Desta ausência onde estou sozinho Fico este corpo que se entorna Para a cama de um vizinho Dentro de ti devagar Gemo em silêncio o que digo Dou-te armas para foguear O que me dás de castigo Espirro algas de carinho Para ver se te convenço E tu insistes num caminho A que sabes que não pertenço Vou procurar outro cenário Outro sol para viver Caçar outro canário Que não cante a sofrer Procuro ar com espaço Onde o papel não seja molhado Uma ponte que não seja cansaço Um beijo que não seja suado Procuro uns olhos de desejo Um gemido de entrega Uma explosão que seja um beijo Um corpo que seja refrega
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Nessa ânsia de rebolar Fico sozinho a sentir É então que a sonhar Descubro que estou a dormir
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Fico
Como casco em alto mar Rasgo os dentes e as marés Como um santo a rezar Oro paixão a teus pés Foi sede que deu a cura Luar que pariu estrelas Rua que deu censura De simples rimas singelas Rede que deu prisões Desejos que foram ilusões Amor que deu grilhões Gemidos sem tesões Espreito por esta escotilha Na fé de não te perder Vejo que a vida não tem braguilha E eu não tenho por onde te ver Nem a Lua me conforta Nem o sol me faz sorrir Este barco não tem comporta Que me dê nesga de sair Resta este tempo de pena Nesta vida tão pequena Peço para te ver na arena A brilhar no estoque desta faena
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Não ameaço, prometo Não sou, grito Não arregaço, alimento Não vou, fico
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Outros dias
Além de todos os dias em que me chuveste e nevaste, conto os dias em que me acordas-te com destinos de sol. Intercalados, uns no meio dos outros como se fosse um crochet em que me afundo sem resistências para ser outra coisa qualquer. São dias de trama e dias de teia num persponto em zig-zag a um nó por cada ponto. Nó vesgo. São parágrafos curtos e intensos como se ao mesmo tempo pudessem ser dias de Inverno muito frios com manhãs recheadas de trópicos. São quadras redondas sem rimas marcadas pelo sal dos maremotos. De noite, sonho com dias em que possa escrever à noite. De dia, sonho com escritos que à noite já quase esqueci. São estradas de farinha nos cumes das serras, pousadas como nenúfares a flutuar num espelho d’água.
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São dias curtos ou porque não fui capaz de tos ganhar, ou são dias curtos porque tudo o que te consegui ganhar foi pouco para o que nos devemos.
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Um bilhete Luz prรณpria Sem timidez ร uma glรณria Com altivez
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A camisa do Zé A minha inveja. Oiço a generalidade dos portugueses, políticos, artistas, povo em geral a falar da inveja dos portugueses de uma forma que não entendo. Oiço e leio as missões religiosas falar da inveja como se fosse a porta de entrada num inferno onde a alma vai arder eternamente como se o nascimento tivesse morte mas a morte não tivesse nascimento. E eu, Zé Portuga, sinto-me condenado a morrer eternamente pelo acidente geográfico de ter nascido português, mesmo que não tenha nascido católico. Fechado nessa ave rara, sinto-me a arder nesse inferno de ser invejoso com todas as letras. Assumidamente invejoso. Todo invejoso. Inteiramente invejoso. Invejoso até não poder mais. Lembra-me o ditado português que diz que “Em terra de cegos, quem um olho é Rei” e discordo. Em terra de cegos, quem tem um olho, é deficiente.
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Imaginemos uma terra onde todos são cegos. Onde as cores não existem e onde os sinais são sonoros. Mesmo tendo um olho, quem for surdo, está tramado. E olho para a camisa nova do Zé; a televisão nova do Zé; o carro novo do Zé; o emprego novo de Zé; a mulher nova do Zé; O Zé novo. E encho-me de inveja do Zé. Quero ser o Zé? Não. Claro que não. Eu quero ser eu mesmo com tudo o que o Zé tem. Tenho inveja do Zé? Claro que tenho mas não quero ter o que o Zé tem. Eu quero ter coisas que o Zé tem mas não quero ter o que tem o Zé. É aqui que nasce a inveja em dois sentidos e até para invejar, é preciso saber fazê-lo. O Zé, tem uma camisa nova, e eu gosto da camisa do Zé. Eu invejo a camisa do Zé. Eu quero uma camisa igual à camisa do Zé mas não a camisa do Zé. Uma camisa com riscas, bolas ou quadrados. Lisa até ao infinito mas linda de viver (que não de morrer).
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Vou fazer tudo para ter uma camisa igual à do Zé. Não a camisa do Zé. O Zé que guarde a sua camisa; que a use; que seja feliz com ela e eu, quero uma camisa igual à camisa do Zé, só porque tenho inveja (eu gosto) da camisa do Zé. O Zé tem, uma camisa, eu tenho uma camisa igual à do Zé e todos podemos ter uma camisa igual à camisa do Zé. Podemos invejar o Zé sem limites. O Zé tem; eu tenho; tu tens; todos temos uma camisa igual à camisa do Zé sem que isso tenha que nos valer arder num inferno para a eternidade. A questão, está quando pensamos que o Zé tem uma camisa que eu não tenho e por isso o Zé não a pode ter. É a diferença entre o todos podemos ter, ou o Zé não pode ter porque eu não tenho. Tu tens, eu tenho, temos todos ou podemos ter, é uma inveja. Tu tens e eu não tenho, tu não tens nada que ter, é um pecado. Por mim, vou continuar invejoso. Tu tens, eu tenho, todos podemos ter. Invejoso até ao tutano.
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Alma do vazio Inverno de ponche quente Outro Algures dentro de mim Outros escritos O lugar onde não fui Sou vento Quero Procura de destino Sentença Sorrir a dormir Nem eu sei Esse poeta dentro de ti Outra vez Tréguas Por aí Do fundo dos olhos A árvore e o estore Ai sim Olé El Vino Pedidos divinos São aqueles dias Fico na dependência do (que) falo Fico Outros dias Um bilhete A camisa do Zé
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Um português em Inglaterra Zé Cabrio
Alcino G. Francisco, ĂŠ natural do Porto (Portugal) e reside em Londres desde 2009 onde ĂŠ jornalista e editor do jornal Palop News.