100% Corrida Setembro 2017

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MIGUEL CARNEIRO Correu trĂŞs maratonas consecutivas (antes nadou 11,4 km e pedalau 540 km...)


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SPEEDCROSS SERIES


SUMÁRIO AS LESÕES E A RECUPERAÇÃO NA MARATONA

O «TORMENTO» DAS FÉRIAS

MIGUEL CARNEIRO ELE CORREU TRÊS MARATONAS CONSECUTIVAS (DEPOIS DE NADAR 11,4 KM E PEDALAR 540 KM)

FICHA TÉCNICA

REGRESSO AOS TREINOS

CORRER COM DOR

Diretor Pedro Justino Alves Design e paginação Bárbara Viana & Ian Estevens hola@elrucanonim.com Morada Rua Ferreira Lapa, n.º 2 – 1.º andar 1150 – 157 Lisboa Número de contribuinte 199003092 Contatos (redação e publicidade) Telemóvel +351 964 245 271 Endereço eletrónico mail@corredoresanonimos.pt

DE ELÉTRICA PELAS COLINAS DE LISBOA

Colaboradores fixos Belino Coelho Tiago Marto EXS Exercise Training School

N. de registo na Entidade Reguladora para a Comunicação Social: 127011

A GRANDIOSIDADE DE JAVIER MARÍAS

Estatuto editorial disponível online www.corredoresanonimos.pt www.facebook.com/corredoresanonimos.pt twitter.com/correranonimo


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AQUECIMENTO

AS LESÕES E A RECUPERAÇÃO NA MARATONA A Maratona é a prova rainha do Atletismo e a ambição de qualquer corredor. Devido a sua dificuldade, já que é necessária uma entrega muito grande aos treinos, pelo menos durante quatro meses, muitos acabam por desistir ou nem sequer dão o passo decisivo de a correr. Todavia, os 42,195 km não têm de ser sinónimo de dores, incómodos ou lesões. Texto:Pedro Justino Alves


AQUECIMENTO

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Evidentemente que, para a preparação de uma Maratona, o ideal é termos um planeamento e um acompanhamento de um profissional nos treinos, por vários motivos. O principal é sermos acompanhados por um treinador que, dia a dia, acompanhará a nossa evolução, adaptando os treinos de acordo com nossas necessidades. Todavia, é evidente que grande parte do pelotão de qualquer Maratona não tem um treinador. E o principal problema do corredor amador é que, devido a exigência dos treinos e o aumento gradual da quilometragem semanal, inevitavelmente existirá uma maior probabilidade do surgimento de lesões. Várias pesquisas apontam os principais motivos do aparecimento de contusões, dados que devem ser olhados com cuidado pelos corredores populares.

«Devido ao enorme desgaste provocado ao corpo, é necessário ter em atenção a recuperação, algo bastante ignorado pela maioria dos corredores do pelotão, que descansam um ou dois dias e voltam normalmente aos treinos que estavam a fazer antes da prova.»

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AQUECIMENTO

"Os especialistas defendem inclusive que não se deve concluir outra Maratona antes do prazo de quatro meses, tempo indicado para a recuperação total do nosso corpo." Resumidamente, os motivos do surgimento de lesões na preparação para uma Maratona são os seguintes:

Excesso de quilómetros Abuso de superfícies duras (estrada, pista, etc.) Descompensação de alguns grupos musculares Stresse articular Stresse emocional Falta de descanso e recuperação Má alimentação Má higiene postural Sapatilhas inadequadas Entretanto, a Runningguru revelou recentemente os problemas físicos e lesões mais comuns dos maratonistas. É importante olhar com cuidado para a tabela ao lado, que pode ajudar o corredor a identificar um possível problema físico futuro. A mesma apresenta ainda alguns conselhos que o corredor deve ter em atenção caso identifique uma das contusões apresentadas. De salientar que a Maratona não termina após o cruzar da meta. Devido ao enorme desgaste provocado ao corpo, é necessário ter em atenção a recuperação, algo bastante ignorado pela maioria dos corredores do pelotão, que descansam um ou dois dias e voltam normalmente aos treinos que estavam a fazer antes da prova. Os especialistas defendem inclusive que não se deve concluir outra Maratona antes do prazo de quatro meses,

tempo indicado para a recuperação total do nosso corpo. Embora, evidentemente, este número seja bastante subjetivo, o importante a salientar é a necessidade da recuperação plena. Para tal, é aconselhável fazer um treino suave, que favorece a circulação sanguínea, promovendo a eliminação do ácido láctico e de outros metabolitos tóxicos que provocam dores musculares e atrasam a recuperação. O ideal é rolar entre 30-40 minutos nos dias seguintes a Maratona, sem preocupações de quilómetros. Também é recomendado a massagem depois da prova, mas não só. O ideal é fazer mais massagens nas 72h00 seguintes à Maratona, já que ela previne contraturas e promove a recuperação muscular ao nível das pernas, mas também da zona lombar e restantes grupos musculares. Evidentemente que a nutrição também deve ser considerada no nosso plano de recuperação. O objetivo principal é favorecer a recuperação do tecido muscular. Para isso, é necessário aumentar ligeiramente a ingestão proteica. Procura ingerir pelo menos 1,5g de proteína por kg de peso por dia nos sete dias seguintes. Ao seguir estes conselhos, a recuperação da Maratona estará no bom caminho, facilitando detse modo o regresso em pleno aos treinos. Como escrevemos no início, a prova mais emblemática do Atletismo não pode ser sinónimo de dores, incómodos ou lesões.


AQUECIMENTO

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LESÃO

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PREVENÇÃO

Bolhas

30,90

Usar meias técnicas e utilizar creme hidratante

Joelhos

22,70

Fortalecer e alongar quadricípites e massagens de descarga

Banda iliotibial

15,60

Alongar a zona lombar, glúteos e piramidais

Fascite plantar

14,00

Ter boas sapatilhas e fazer alongamentos e mobilidade

Periostite

12,70

Evitar pisos muito duros e fortalecer os ísquios

Isquiotibiais

12,40

Pés

12,00

Anca

11,90

Lombares

10,40

Fortalecer excentricamente e com massagens de descarga Ter boas sapatilhas e fazer alongamentos e mobilidade Fortalecer o core e alongar todos os músculos das ancas Fortalecer o abdómen e alongar os lombares

De salientar que a Maratona não termina após o cruzar da meta. Devido ao enorme desgaste provocado ao corpo, é necessário ter em atenção a recuperação, algo bastante ignorado pela maioria dos corredores do pelotão,

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PREPARAÇÃO

O «TORMENTO» DAS FÉRIAS Setembro é tradicionalmente um mês onde muitos corredores voltam aos treinos, após alguns dias de descanso. No entanto, é necessário ter algum cuidado neste regresso, como defende o nosso especialista Belino Coelho, que admite que, para ele, «as férias são um tormento». Texto: Belino Coelho

Eu, como treinador, tenho a seguinte opinião sobre o tema “O regresso aos treinos após as férias”: para um corredor amador, o ideal é as suas férias coincidirem com o período de transição dentro de um planeamento de treino. Nesse período em concreto há o predomínio do trabalho de baixo volume e baixa intensidade, já que o principal objetivo é a recuperação do atleta tendo em vista a que ele chegue descansado ao próximo ciclo. Aliás, também o principal intuito das férias... No entanto, essa conciliação nem sempre é possível de alcançar em função do desafio escolhido pelo atleta, muitas vezes por ignorar esse importante detalhe ou simplesmente por não conseguir encontrar uma prova que vá ao encontro dos seus desejos antes do período de férias. Pessaolamente, as férias são um tormento, já que os meus atletas acabam por viajar

e nem sempre conseguem treinar, pelas mais diversas razões. Obviamente que, ao voltarem das férias, estão mais pesados, interromperam a sequência de treinos e, o pior de tudo, perderam a condição aeróbia adquirida nos meses anteriores.

determinada distância ou a busca por uma melhor marca pessoal. Portanto, no regresso, o treinador deve obrigatoriamente reajustar o planeamento de treino e avaliar o seu atleta para descobrir o quanto de Se esse atleta for de férias no condição física foi perdida período de transição (período durante as férias, para assim destinado a recuperação do prosseguir com um novo atleta), o problema é menor, ciclo de treino. Porém, nesse pois a perda da condição recomeço, alguns cuidados física já é esperada e inclusive devem ser tidos em atenção necessária (não podemos pelo atleta para que não haja esquecer que o seu objetivo já alguma desmotivação ou foi alcançado. No entanto, no o aumento do risco de uma regresso, essa perda, devido a inapropriada lesão. Tais falta de treino durante as férias, como… desejar correr ao ritmo é evidentemente maior). em que se encontrava antes das férias, algo que ocorre A grande tragédia é quando devido a memória desportiva. essas férias acontecem O melhor é se conformar com aquando do meio do ciclo a nova condição e respeitar de treino, interrompendo o que foi prescrito pelo a sequência de trabalho treinador… querer recuperar realizado até então e o tempo perdido, exagerando colocando em risco o sucesso no volume ou na intensidade do objetivo proposto, seja do treino e até acrescentando completar uma prova de uma mais sessões no mesmo


PREPARAÇÃO

dia… insistir no objetivo, tendo consciência de que não haverá tempo disponível para concluir o mesmo de forma a preservar com segurança a integridade física… procurar seguir a sequência de treinos de outro atleta que treinava regularmente, sem interrupções. Portanto, para que as férias não se tornem numa espécie de “vilão” e que não comprometa o objetivo final, deixo aqui umas dicas a reter: • Escolha objetivos que possam ser realizados antes das férias. Caso tenha alguma dúvida, planeie o objetivo com o treinador • Na impossibilidade de definir um objetivo para antes das férias, escolha aquele que possa ter tempo disponível depois para se preparar adequadamente com segurança e que minimize os riscos de lesões • Se não houver alternativas, ou seja, com as férias a acontecer durante o meio do ciclo do treino, converse com o treinador de modo a que ele possa fazer uma programação especial, onde exista um comprometimento por parte do atleta de cumprir com os treinos de curta duração. O objetivo é tentar manter a condição já adquirida • Escolha passar as férias em locaios onde seja possível prosseguir com os treinos, mantendo viva a ambição do êxito no objetivo traçado • Converse com o treinador sobre o ciclo de treino e faça com que o período das férias aconteça imediatamente após o objetivo proposto.

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« Portanto, no regresso, o treinador/atleta deve obrigatoriamente reajustar o planeamento de treino e avaliar o seu atleta para descobrir o quanto de condição física foi perdida durante as férias, para assim prosseguir com um novo ciclo de treino »


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CRÓNICA

MIGUEL CARNEIRO ELE CORREU TRÊS MARATONAS CONSECUTIVAS (DEPOIS DE NADAR 11,4 KM E PEDALAR 540 KM) Miguel Carneiro foi o primeiro português a nadar 11,4 km, pedalar 540 km e correr 126,6 km, ou seja, três Maratonas. O desafio começou numa sexta-feira e terminou no domingo. No total, três Ironman consecutivos, em 52h47m36. No final, ainda pedalou mais 22 km (perfazendo 700 km) para homenagear a Marinha, onde trabalha, que este ano comemora 700 anos. Esta é a sua crónica deste feito inédito para o desporto português. Texto:Miguel Carneiro

O objetivo de completar três Ironman consecutivos era superar-me em qualquer um dos segmentos. Até o dia do evento nunca tinha feito qualquer uma das distâncias a nível individual. Ao conseguir ultrapassar-me nas três modalidades estaria a concluir um triplo “Homem de Ferro”. Portanto, desde o tiro de partida, nunca houve um momento em que eu pudesse dizer para mim próprio: «Eu já fiz esta distância!»

As previsões do tempo eram de chuva, vento forte, trovoadas e queda de granizo. O despertador tocou às 4h00 para tomar o pequenoalmoço. Preparei as últimas coisas e, por volta das 6h10, desloquei-me para a piscina para colocar o material no parque de transição e começar a vestir o fato com calma, além de acertar as últimas coisas com a minha equipa. De manhã, embora

se sentisse o tempo fresco, estava um dia bonito de Sol, ao contrário do que era previsto. Às 6h50 todos os atletas tinham de estar na água e aproveitei para fazer algumas piscinas para aquecer e me ambientar a temperatura. Os 11,4 km eram feitos em 228 voltas numa piscina descoberta de 50 metros. A partida era feita no lado onde se encontravam os


CRÓNICA

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CRÓNICA

«O Luís tinha feito um suporte para a bicicleta onde eu conseguia colocar um copo. Sempre que passava pela tenda de apoio, fazíamos a troca de copos, que continha comida e servia para eu conseguir me alimentar enquanto pedalava sem ter de ficar parado na tenda»


CRÓNICA

juízes que faziam a contagem e, no lado oposto, encontrava-se a equipa de apoio (a qualquer momento podia fazer uma paragem e receber líquidos e sólidos por parte deles). Sentia-me bastante bem, motivado, confiante e, acima de tudo, bastante relaxado. A partida foi emocionante devido a todo o ambiente que nos rodeava. A contagem decrescente foi feita em alemão e eu andei um pouco perdido, mas, assim que vi os primeiros a nadar, também segui, sempre com uma natação descontraída e relaxada, pois sabia o que tinha pela frente nos próximos dias. Decidi fazer a primeira paragem perto dos 4000m, onde tomei um gel e isotónica. Tinha a segunda paragem programada para os 8000m para tomar novamente outro gel

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e isotónica. Aproveitei a paragem para colocar um pouco de “tape” no pescoço, já que o mesmo estava ferido devido a fricção do fato. Depois segui para os últimos 3,4km, sempre a um ritmo confortável.

O início do ciclismo Terminei a natação e desloquei-me aos balneários para fazer a transição e vestir confortavelmente o equipamento que tencionava levar por longas horas no corpo. Parti para o ciclismo a me sentir muito bem e confiante: no total, 67 voltas de cerca de 8km, 540 km no total. Logo na primeira volta percebi que as longas distâncias que tinha de percorrer não seriam a única dificuldade. Na verdade estava preparado para um percurso


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CRÓNICA

"De vez em quando a minha mãe aparecia com uma sopa quente e deliciosa que outros atletas também comiam. A minha equipa tratava de tudo e de todos."

minimamente plano. «Em 67 voltas não podem colocar nenhuma subida…», pensava eu nos treinos em Portugal. Mas não foram uma, nem duas, nem três subidas, foram mais... E tinha de lá passar por 67 vezes! Mas havia mais contrariedades: o vento era forte e inconstante, soprando por todos os lados. Logo aí percebi que tinha várias outras dificuldades, mas os obstáculos é que nos tornam mais fortes e nos fazem aprender. E preparei-me com o meu “mental coach” para qualquer adversidade que pudesse aparecer na Alemanha. O retorno do ciclismo era feito num local onde a população estava a assistir e aplaudir e o speaker estava sempre a dizer palavras agradáveis e a motivar os atletas. Das

primeiras vezes que passei ele disse: «O Miguel Carneiro, a representar a Marinha Portuguesa. É o primeiro atleta português a terminar um triplo “Homem de Ferro”». E nós ainda estávamos no início do ciclismo, com dois longos dias de prova pela frente… O Luís tinha feito um suporte para a bicicleta onde eu conseguia colocar um copo. Sempre que passava pela tenda de apoio, fazíamos a troca de copos, que continha comida e servia para eu conseguir me alimentar enquanto pedalava sem ter de ficar parado na tenda. Este método resultou bastante bem nos primeiros 100km, mas depois o lindo Sol foi trocado for fortes chuvas.


CRÓNICA

As chuvas eram geladas e, com os ventos e velocidade da bicicleta, ficava difícil pedalar sem gelar. Chegou mesmo por vezes a cair granizo. O método do copo deixou de funcionar porque rapidamente o copo ficava cheio de água e a comida virava “sopa”. Tivemos que optar por paragens no local de apoio. Estas paragens tinham de ser breves porque, devido ao frio, o corpo arrefecia rapidamente. Se isso acontecesse implicava a mudança para um equipamento seco. A minha equipa estava constantemente a secar a roupa na máquina e eu constantemente a ficar molhado. O tempo estava um pouco incerto: hora chovia a potes, hora fazia Sol, mas o vento durante todo o trajeto veio para ficar.

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Pouco tempo depois comecei a sentir uma pequena quebra, especialmente um pouco de perda de força e energia durante as subidas. Expliquei a minha equipa que algo não estava bem porque tinha treinado para conseguir andar naqueles registos sem quebras. Eles explicaram o sucedido ao meu treinador. Desde o início da prova que o meu irmão estava a fazer a contagem de alimentos que eu ingeria e ambos chegaram a conclusão de que eu estava com um pequeno défice calórico e de hidratos. Assim, quando passei novamente por lá, mandaram-me parar para comer e recuperar o que tinha até então perdido.


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CRÓNICA

Miguel Carneiro luta contra o vento gelado e o sono Numa das pausas do ciclismo devido a forte chuva fiz uma paragem para me alimentar. O tempo que fiquei parado foi o suficiente para o meu corpo gelar. Então decidimos secar e vestir uma roupa seca, mas, ao mesmo tempo, começou a chover torrencialmente e cair granizo. Optamos por esperar um pouco por uma melhoria do tempo. Foi então que me deitei no chão por cima de uns plásticos e a minha equipa cobriu-me com alguns casacos. Dormi uns 30 minutos! A chuva ainda se mantinha quando acordei, mas estava mais calma e resolvi continuar a pedalar. Quase antes do dia nascer comecei a sentir a fadiga de um dia e noite a pedalar. Os olhos começaram a fechar, sentia sonolência e já deixava as rajadas de vento desviarem a bicicleta para a outra faixa. Basicamente já andava a fazer muitos “Ss” e portanto estava a se tornar algo bastante perigoso. Foi então que decidi fazer mais uma paragem para descansar. Cerca de 30 minutos depois estava como novo. Praticamente no fim do ciclismo estava completamente gelado. Vesti roupa quente para as últimas quatro voltas e colei jornais junto ao peito e as costas para tentar ficar aquecido. No entanto, fiz uma volta completa e não consegui parar de bater o dente e tremer. Por mais que pedalasse, o corpo já tinha arrefecido. Não estava fácil de recuperar e foi quando pensei que era melhor tomar uma atitude antes de entrar em hipotermia e ter de fazer uma paragem forçada por mais tempo para que o corpo voltasse aos parâmetros normais. Foi então que me dirigi a tenda de apoio e disse que tinha de ir aos balneários para tomar um duche quente e ver se recuperava alguma temperatura. Deixei a bicicleta e fui a correr para os chuveiros, onde me meti por baixo de água a escaldar durante alguns minutos. Quando comecei a

secar o corpo, o Luís chegou com roupa seca para vestir. Quando me tocou no corpo, disse que eu continuava gelado. Mas todavia já me sentia bem e pronto para terminar as últimas três voltas. Fiz-me a estrada e terminei o ciclismo com pouco mais de um dia de prova. Pés completamente enrugados e sensíveis dificultam a Maratona Já só faltavam três Maratonas, 126,6km em 96 voltas de sensivelmente 1300m. A parte positiva da corrida foi acontecer numa zona urbanizada, onde o vento não se fazia sentir muito e a chuva já não era tão intensa como tinha sido durante as longas horas do ciclismo. A parte negativa foi que, até então, estive quase cerca de 30 horas com os pés molhados. Tinha os pés completamente enrugados e sensíveis, ou seja, não se encontravam no melhor estado para quem tinha de correr 126,6km. A corrida era o meu maior receio neste desafio devido a fascite plantar que me acompanhou durante toda a preparação e que em muito me condicionou nos treinos. E agora parecia ter uma agravante... Posso dizer que a parte frontal dos pés doeu precisamente durante todos os 126,6km. Na corrida tinha de fazer paragens para me alimentar ou então a minha equipa dava-me a comida sempre fracionada, em copos e bebidas. De vez em quando a minha mãe aparecia com uma sopa quente e deliciosa que outros atletas também comiam. A minha equipa tratava de tudo e de todos. Sempre que ingeria este tipo de alimentos, fazia-o enquanto caminhava. Depois de terminado, voltava novamente a correr. Chegou a uma altura em que senti uma grande dificuldade em passar da caminhada para a corrida, sentia que as pernas já estavam fatigadas de tantas horas de pé e a correr. Então decidi fazer uma paragem de 40 minutos para descansar e dormir.


CRÓNICA

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O “bimaratonista” Luís Segui com a equipa toda para a sala de aula e todos dormimos nos colchões de ginástica para descansar. Meti o despertador para tocar 40 minutos depois. Segui para a corrida quando acordei. Na altura trovejava, chovia bastante e estava prestes a terminar a segunda Maratona, mas já sentia o meu corpo fresco e solto para correr. O meu irmão tinha deixado uma mesa toda organizada com comida perto do percurso onde parei umas vezes para comer e beber. A equipa voltou pouco depois aos seus postos e o Luís veio correr comigo, acabando por fazer quase duas maratonas durante os 126,6km, uma ajuda importantíssima.

Conseguíamos nos abstrair da dureza da prova enquanto falávamos e contávamos histórias. Sempre que não chovia fazíamos diretos para a minha página do Facebook e filmes para enviar aos amigos que nos apoiavam de Portugal. Lia os comentários e mensagens de apoio que nos enviavam e, durante uma certa zona do percurso, o Luís teve o papel importantíssimo de me guiar. Dávamos um género de um abraço lado a lado e eu fechava os olhos e descansava a vista, com ele a guiar. Não era possível adormecer enquanto corria, mas dava claramente para descontrair a vista.

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O resto da corrida correu bastante bem e, quanto mais perto do final, mais energia tínhamos. Cada vez que passávamos no tapete e o chip apitava, íamos conferir o número de voltas ao ecrã. Era doloroso ver baixar apenas um dígito. Praticamente em todas as voltas fazíamos contas aos quilómetros que restavam e por vezes parecia que o número da volta não se alterava... A semelhança do ano passado, no campeonato do mundo do duplo Iroman, a última volta era feita no sentido inverso, levando a equipa e a bandeira connosco, de maneira a cruzar e cumprimentar todos os atletas que ainda estavam em prova. Depois de mais de 50 horas com o símbolo nacional num pequeno quadrado no dorsal, foi altura de poder levar uma bandeira real nas minhas costas durante os últimos 1300m. É sempre um orgulho enorme. Antes do grande momento de passar por baixo do pórtico da chegada, decidi fazer um direto para a minha página do Facebook de maneira a partilhar aquele momento com todos aqueles que me apoiaram, me motivaram e acreditaram tanto em mim quanto eu durante toda a fase de preparação e durante o desafio, acabando por passar aquela meta com a minha equipa e com todos os que estavam do outro lado a apoiar. Depois de chegar ao fim, respirar fundo, descontrair e disfrutar o momento, foi altura de pegar novamente na bicicleta e fazer mais 22km. Esta distância, somada ao total da prova, iria dar precisamente 700km. O objetivo era homenagear a Marinha Portuguesa pelos seus 700 anos de existência. Destes sete séculos alguns foram vividos pelo meu pai, por mim e, mais recentemente, pelo meu irmão. Foi na Marinha que dei as minhas primeiras braçadas ainda em tenra idade e onde mais tarde me iniciei no triatlo. E é na Marinha que encontro hoje em dia todas as infraestruturas e apoio para atingir os meus objetivos.

CRÓNICA

Ao longo do mês de setembro, no site corredoresanonimos.pt, leia as considerações da equipa de Miguel Carneiro em Lensahn, na Alemanha, concretamente da mãe Maria Rosa, do irmão João Carneiro e do amigo Luís Melato


Mapa


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Regresso aos treinos

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ENQUANTO CORRO


ENQUANTO CORRO

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Tiago Marto

Fisioterapeuta e ex-atleta de Alta Competição de Atletismo

Para muitos, setembro é sinónimo de regresso ao trabalho e à rotina que levamos no resto do ano. O tempo de recuperação e de descanso já ficou para trás e é altura de planear os meses que se seguem. Para quem treina, esta é uma fase muito importante do ano competitivo, dado que é uma altura em que o número de provas é menor, o que permite que se possa descansar e recuperar para a próxima época. Apesar de por vezes ser difícil nos afastarmos da rotina dos treinos, até porque a corrida é também uma forma de equilíbrio emocional para muitos corredores, para quem tem aspirações mais elevadas e um calendário de treino e competitivo mais preenchido, esta fase deve ser um momento em que se permite ao organismo a recuperação completa para a fase seguinte. Nunca devemos negligenciar a componente da recuperação. Muitos dos maratonistas de alto nível, após uma Maratona importante, têm períodos de recuperação de cerca de um mês. Por essa razão, devemos sempre dar o tempo necessário para recuperar e planear a próxima época.

Muitos dos erros nesta fase prendem-se com o facto dos atletas iniciarem os treinos de forma muito intensa logo no início. E, nessa intensidade, esquecem-se de dar a importância a outras componentes que não sejam só o trabalho cardiovascular. É nesta fase que se deve dar importância ao treino de força, adaptado à corrida, e ao treino da técnica de corrida, que vai permitir uma corrida mais eficiente. Todos estes pormenores vão fazer a diferença para uma época longa e com sucesso. Nunca saltar passos! Devemos desenhar o planeamento da época para que esta seja bem sucedida e pensar sempre que o treino tem de ser diferenciado ao longo da época, com intensidade crescente, com variabilidade e adaptado às necessidades de cada um.

Para isso, devemos analisar ao pormenor a temporada anterior. Devemos perceber o planeamento dos treinos, o planeamento das Bom regresso aos treinos a todos! provas, a recuperação que fizemos, as lesões que tivemos para assim podermos alterar tudo o que possa ter corrido de menos bem.


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ALONGAMENTO

CORRER COM DOR Sem sombra de dúvida que a corrida assume um papel importante na promoção de hábitos de vida saudáveis, não só pela sua difusão a nível mundial, como também pelo baixo dispêndio financeiro para quem a pratica de forma lúdica e recreativa. Ou até mesmo competitiva. Para os praticantes regulares, é comum que apareçam algumas dores, quer musculares, quer articulares, com durações variadas, podendo prolongar-se indeterminadamente no tempo. Texto: Samuel Corredoura | Formador EXS Orthopaedics by Exercise School | Certiifcado RTS-Professional, EXS Exercise School | Licenciado em Desporto e Educação Física | Personal Trainer

Caracterizadas como “picadas”, “esticões”, “músculos presos”, “moinhas”, “rigidez”, etc., estes episódios são entendidos pelo sistema nervoso central como uma ameaça. Segundo Wallwork et al. (2015), atualmente sabe-se que, estando intimamente unidos, embora sem diferenciação hierárquica, a dor gera alteração do controlo motor e, consequentemente, das habilidades requeridas pela atividade desportiva. Winter (1980) demonstrou que, quando uma articulação não contribui adequadamente na produção de força, as duas articulações mais próximas incrementarão a sua participação para compensar a articulação mais débil. Temos como exemplo um estudo de Castanharo et al. (2011), que demonstrou haver em situações de reconstrução do LCA uma alteração em 30% da potência da extremidade inferior, do joelho para a anca, no membro operado. A nitidez, ou qualidade, com que cada músculo está

representado no córtex motor será determinantemente influenciada e modulada pela nossa capacidade inconsciente de percecionar no mesmo alterações mecânicas que levem a um resultado de dor. Com esta modulação e entrada em modo de segurança do sistema nervoso central, terá de ser tido em conta que, quanto maior o tempo em que aí permanecer, melhor fará essa mesma função, tornando-se mais sensível e facilitando a sua relação com a dor (Moseley & Butler, 2015). Hodges & Smeets (2015) explicam que, de alguma forma, quando a carga excede a tolerância do tecido, com um sistema nervoso sensibilizado, é criado um input nociceptivo, podendo gerar dor, lesão ou perceção de ameaça. Alterações de vários níveis no SNC ocorrerão, desencadeando alterações subtis ou mais pronunciadas no comportamento motor, gerando incongruência entre output motor e input sensorial.


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PREPARAÇÃO

MAIS CANSAÇO APÓS O TREINO NÃO SIGNIFICA QUE SE TREINOU MELHOR, ASSIM COMO MAIS DOR MUSCULAR NO SENTIDO DE “NO PAIN, NO GAIN” TAMBÉM O COLOCAM MAIS LONGE DO RESULTADO PRETENDIDO.


PREPARAÇÃO

A curto prazo, resultará numa proteção pelo sistema da região lesada ou dolorosa, mas também numa diminuição da atividade e stress, diminuição do movimento e diminuição do potencial de erro. Por outro lado, a longo prazo terá as suas consequências, como o incremento do potencial de lesão e/ou provocação nociceptiva, assim como o incremento de carga, carga invariável, diminuição da capacidade de absorção e descondicionamento. Logicamente, neste último, a carga voltará a exceder a tolerância do tecido e a resposta voltará a ser este ciclo anteriormente descrito.

O TRUQUE PARA EVITAR A DOR O truque será aprender como encontrar a linha entre fazer o suficiente para que o sistema se adapte, mas não tanto que desperte o sistema de proteção. Ou seja, foco na segurança e na criação de contextos positivos, de forma a baixar o sistema de alerta (Williams et al., 2012). Qualquer exercício criado, um teste realizado pelo treinador ou fisioterapeuta, a comunicação com o desportista, etc. devem estabelecer segurança para o seu cérebro. A própria fadiga deve ser considerada como um output de proteção do sistema, que, de certo modo, despoleta uma sensação de perigo, sendo por isso

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necessário dosear muito bem os seus níveis. Mais cansaço após o treino não significa que se treinou melhor, assim como mais dor muscular no sentido de “no pain, no gain” também o colocam mais longe do resultado pretendido, afastando-o de uma melhoria de performance. O treino de força, ao alcance dos treinadores devidamente qualificados em conhecimentos de biomecânica, fisiologia neural, muscular e articular, revela-se uma ferramenta de elevada eficácia na melhoria da representação cerebral dos músculos envolvidos na corrida. Cabe a estes agentes avaliar a individualidade de cada atleta, sabendo identificar as suas particularidades.

A PRÓPRIA FADIGA DEVE SER CONSIDERADA COMO UM OUTPUT DE PROTEÇÃO DO SISTEMA, QUE, DE CERTO MODO, DESPOLETA UMA SENSAÇÃO DE PERIGO, SENDO POR ISSO NECESSÁRIO DOSEAR MUITO BEM OS SEUS NÍVEIS

Reconhecer assimetrias de força e de amplitudes voluntárias de movimento e criar exercícios adequados a estas mesmas particularidades, com perfis de resistência ajustados, respeitando sempre os níveis de força que o atleta tem à partida, potenciando assim as suas capacidades de forma segura, deve ser a norma. Desta forma, com as suas capacidades devidamente potenciadas em contextos positivos de estímulo e segurança, o atleta poderá experienciar novamente o prazer da sua corrida sem dor.


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HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA

DE ELÉTRICA PELAS COLINAS DE LISBOA Considerada por muitos como “inimiga” da bicicleta, Lisboa tem provado nos últimos anos que a afirmação que assolou as ruas da cidade durante décadas não passa de mais um mito urbano. Ainda mais com a nova aposta da Specialized, a bicicleta elétrica Turbo Vado, que alcança a velocidade máxima de 25 km/h e tem uma autonomia de até 100 quilómetros. Texto: Pedro Justino Alves Fotos: Specialized

Apesar de estarmos ainda longe, muito longe de muitos países europeus onde a cultura ciclística é um hábito diário, aos poucos as principais e médias cidades do país estão a alterar o seu “chip” mental, incluindo finalmente as duas rodas na sua dinâmica de transporte. No entanto, em Lisboa, essa mudança sempre foi olhada com enorme desconfiança, muito devido as inevitáveis Sete Colinas da capital, que, segundo muitos, impediam

a multiplicação do uso de bicicletas por parte dos seus moradores e visitantes.

capitais europeias, mas já com alguma relevância para provocar a ira dos… taxistas.

Esta falácia tem sido desconstruída nos últimos anos, com a existência de várias ciclovias espalhas pela cidade. O que parecia no passado uma miragem é hoje uma realidade, sendo normal verificarmos com alguma facilidade o movimento ciclístico que assola Lisboa, embora ainda muito ténue se comparado com algumas

Todavia, não podemos negar que as turísticas Sete Colinas acabem por limitar este novo movimento cultural, embora não o limite, já que há sempre a possibilidade de contornar estes “pequenos” percalços. Por exemplo, com uma bicicleta elétrica, como é exemplo a nova aposta da Specialized, a Turbo Vado, que recentemente testámos.


HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA

Resumidamente, e segundo o responsável da empresa norte-americana em Portugal, Nelson Risso, «a Vado é uma bicicleta urbana, elétrica e com pedalada assistida, ou seja, é uma bicicleta elétrica mas não tem um acelerador. O que a Vado faz é assistir o nosso esforço, cria um “input” à nossa pedalada. Nós exercemos uma determinada força sobre os pedais e a Vado multiplica essa força, o que faz com que andemos mais rápido.»

E a verdade é que a Turbo Vado anda. E muito! Concretamente, alcança os 25 km/h, o máximo permitido pelas leis nacionais para que não seja considerada uma motorizada. É realmente gratificante subir sem dificuldades, por exemplo, a Rua do Alecrim, que liga o Cais Sodré ao Chiado. Mesmo em pleno Verão e com o Sol do entardecer a chamar pela praia, subimos tranquilamente a íngreme colina, sem o mínimo de

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esforço. Confessamos que ficámos surpreendidos com a experiência e convencidos da utilidade da Turbo Vado, que a Specialized faz questão de salientar que é, antes de tudo, uma… bicicleta.

«Se não pedalarmos, a bicicleta não anda», salienta Nelson Risso. Bastante confortável e com um quadro que apresenta uma estabilidade assinalável e fundamental para este tipo


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de bicicleta, muito devido ao centro de gravidade estar muito baixo, a Turbo Vado não apresenta o mínimo ruído em andamento, apesar da presença do seu motor elétrico. Parece que estamos a pedalar uma bicicleta normal, algo que surpreendente tendo em vista toda a tecnologia que transporta. «O nosso intuito é que o utilizador pedale uma bicicleta elétrica mas que tenha a sensação de estar a utilizar uma bicicleta normal, tanto como

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experiência como a nível de design e a nível conceptual», refere o responsável da Specialized, que faz questão de destacar que o motor e a bateria estão incorporadas no próprio quadro da Turbo Vado, ao contrário do que acontece com as suas concorrentes, com o motor e a bateria em exposição. Nelson Risso realçou também que a bateria pode ser excluída para ser recarregada no «escritório» e que a Turbo Vado apresenta três níveis de condução: Eco, Sport e Turbo.

«O nosso intuito é que o utilizador pedale uma bicicleta elétrica mas que tenha a sensação de estar a utilizar uma bicicleta normal, tanto como experiência como a nível de design e a nível conceptual»


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Evidentemente que cada um destes níveis determinará a assistência que acompanhará a nossa pedalada, assim como a duração da bateria. Por exemplo, no Eco, a duração da mesma será maior do que no nível Turbo, «embora a assistência seja muito maior neste último», refere o responsável pela Specialized. Em relação a autonomia da bicicleta elétrica, Risso preferiu não dar um número concreto, já que esta «depende de uma série de fatores», como por exemplo o peso do ciclista ou se este utiliza a bicicleta com

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frequência para subir as colinas de Lisboa ou junto ao rio. No entanto, a autonomia da Turbo Vado oscilará entre os 70 e 100 quilómetros, números realmente bastante atrativos para qualquer ciclista urbano. Em suma, esta nova oferta do catálogo da Specialized é uma aposta mais do que ganha, um meio de transporte que cumpre em pleno com os seus objetivos, ao mesmo tempo que marca um antes e um depois em relação ao mercado das bicicletas elétricas. Definitivamente, nada será igual após a Turbo Vado.

Ao longo do próximo mês iremos sortear no site corredoresanonimos.pt o capacete “Centro”, da Specialized, concebido para os ciclistas urbanos para deslocações citadinas.


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A GRANDIOSIDADE DE JAVIER MARÍAS Demorou mas chegou. Após a D. Quixote ter editado há alguns anos o primeiro tomo, finalmente será editado em Portugal a trilogia completa «O teu Rosto Amanhã», de Javier Marías, considerada uma das obras mais marcantes da literatura contemporânea espanhola, com rasgados elogios a nível mundial. A edição é da Alfaguara. Texto: Pedro Justino Alves

Dificilmente o leitor sairá indiferente após o término de «O teu Rosto Amanhã», que a Alfaguara irá lançar em três volumes, em setembro («Febre e Lança», no dia 20), outubro («Dança e Sonho», no dia 18) e novembro («Veneno e Sombra e Adeus», ainda sem data definida). O próprio autor não saiu, já que, após o término da sua escrita, Javier Marías chegou a dizer que esse seria o seu último livro, já que não havia mais nada para ser escrito (uma consideração que felizmente não aconteceu. Por exemplo, em Espanha, na última semana de agosto, foi lançada a sua mais recente obra, «Berta Isla», que a Alfaguara editará entre nós em 2018). Entre o início e o fim, Marías levou oito anos da sua vida para escrever aquela que muitos consideram a sua principal obra (num curriculum invejável de grandes obras…).

E a verdade é que sentimos algum vazio após lermos os três volumes desta impactante trilogia, uma trilogia que absorve e exige do leitor uma entrega rara de encontrarmos nos nossos dias, algo que a leitura de Marías assim exige, aqui mais do que nunca devido a extensão da obra, que, no seu conjunto, aproxima-se das 1600 páginas na edição espanhola.


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Mas não devemos ficar “assustados” com o número. As 1600 páginas são “consumidas” com um enorme prazer, muito devido a enorme capacidade do autor de “convidar” o leitor a abandonar por momentos o frenesim do seu dia-a-dia para se entregar totalmente a um tempo cada vez mais raro de encontrar no presente, precisamente o tempo de leitura.

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Marías não escreve para ser lido de forma voraz, “exige” do leitor uma postura, já que a erudição da sua escrita é notória e gratificante. É normal termos ao longo da trilogia pequenos acontecimentos insignificantes que acabam por despoletar a nossa reflexão sobre o mundo que vivemos, mas principalmente sobre o relacionamento humano, o tema central da obra de Marías, o pilar da sua escrita. Evidentemente que o estilo de Marías, bastante pessoal, não é definitivamente para todos os leitores. Devido a sua invulgar escrita, aqui há um claro «ame-o ou deixe-o», não há concessões. É normal, por exemplo, Marías voltar a um momento da história e apresentar uma visão totalmente distinta da anterior, uma, duas, três ou mais visões (há inclusive elementos que aparecem nos três tomos, sempre de forma diferente). O que o espanhol oferece é uma interpretação diferenciada da primeira, enriquecendo a mesma de espessura e profundidade. E essa “matrioska” narrativa acaba por ser determinante na sua narrativa, onde jamais há certezas, como a própria vida, como gosta de salientar. Apesar das já referidas 1600 páginas, sentimos um enorme prazer por sermos levados para esse singular ato de leitura, primeiramente de forma sutil, de forma quase impercetível, depois de forma monopolizadora ao sermos absorvidos por completo pela história.


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A história… «O teu Rosto Amanhã» aborda vários temas, como o ódio, a violência, a traição, sem esquecer os grandes acontecimentos recentes da Humanidade, como a Guerra Civil, a II Guerra Mundial, as leis raciais, a repressão franquista, por exemplo. Narrado na primeira pessoa, o que aproxima ainda mais o leitor da obra, acompanhamos o pensamento e as considerações do espanhol Jacques/Jaime/ Jacobo Deza (sim, também protagonista de «Todas as Almas», outro livro de referência de Marías), que, em Londres após o seu divórcio, é recrutado para se incorporar a um particular grupo de espionagem. Particular porque os seus integrantes têm um dom muito

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singular: conseguem (ou devem) determinar os movimentos das pessoas através da interpretação dos seus rostos, dos seus gestos, das suas palavras, ou seja, se serão capazes de matar, de trair ou de se vender por dinheiro em determinado momento. De salientar que a trilogia «O teu Rosto Amanhã» (datas de lançamento em Espanha: «Febre e Lança», 2002; «Dança e Sonho», 2004; «Veneno e Sombra e Adeus», 2007) não é uma obra de espionagem, muito pelo contrário. Se nos thrillers temos um ritmo trepidante, aqui estamos perante uma novela “lenta”, com pouca ação. O que Marías pretende, como as grandes obras mundiais, é a reflexão sobre


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os mais variados temas. Apesar disso, a narração é fluída, o que estimula a sua leitura, principalmente por ter vários momentos dignos de grande literatura, com o espanhol, várias vezes referenciado para o Prémio Nobel, algo que muitos acreditam que chegará mais cedo ou mais tarde, a não se coibir de ditar o seu próprio ritmo, não se entregando as leis do mercado. Se tiver de escolher apenas um livro («O teu Rosto Amanhã» não deixa de ser um livro dividido em três…) para ler na enxurrada de novidades que invadirá o mercado entre setembro e novembro, a escolha destes três tomos é uma garantia de qualidade que dificilmente deixará defraudado o leitor. Literatura com um “L”… ENOOOOOOOOORME!

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"Evidentemente que o estilo de Marías, bastante pessoal, não é definitivamente para todos os leitores. Devido a sua invulgar escrita, aqui há um claro «ame-o ou deixe-o», não há concessões."


PERCURSO DESLUMBRANTE CASCAIS-LISBOA


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