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BANGUE-BANGUE NO SERTÃO

O Nordestern, gênero cinematográfico que retrata o fenômeno do cangaço, ganha mostra na Cinemateca e mostra que o interesse pelos lendários bandidos continua vivo

Por André Sollitto

Logo após os créditos iniciais, a câmera mostra o céu repleto de nuvens sobre o ambiente árido. Um grupo de homens, todos montados em cavalos e fortemente armados, se aproxima lentamente. À medida que avançam, espalham o medo pela região. Cientes da chegada dos bandoleiros, os fazendeiros buscam abrigo para evitar o confronto. Por onde passam, deixam um rastro de destruição.

A cena poderia fazer parte de algum clássico filme de faroeste norte-americano dirigido por John Ford, com seus cowboys de moral duvidosa, tiroteios em bares e perseguições a cavalo. Mas trata-se da sequência de abertura de O Cangaceiro, o clássico longa-metragem de Lima Barreto (1906-1982), lançado em 1953 – completa agora, portanto, 70 anos. É o seminal representante de um gênero que passou a ser conhecido como Nordestern, uma junção de Nordeste, ambientação principal dessas produções, e western, ou os populares bangue-bangues de Hollywood.

O termo foi cunhado pelo crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva, ainda na década de 1960, para se referir aos filmes que buscam retratar, de forma bastante ficcional, o período do cangaço, o fenômeno do banditismo que dominou o sertão nordestino até meados do século 20. Já naquele tempo os filmes de cangaceiros eram populares. Mas ficariam ainda mais, e continuariam a despertar o fascínio do público. No final de janeiro, a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, exibiu 16 filmes na Mostra Nordestern: Bangue-Bangue à Brasileira. Pouco antes, a Netflix havia lançado a série de comédia O Cangaceiro do Futuro. E apenas alguns anos antes o longa Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, recebeu o importante Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2019. Figuras como Lampião, Corisco e Jesuíno Brilhante podem ter morrido há tempos, mas a memória de seus atos de terror – e, para alguns, de heroísmo – continua viva.

Definir as características do que é o nordestern não é tarefa fácil, dada a diversidade de produções do gênero. A relação com o western norte-americano fornece algumas pistas. “O que

Imagens de O Cangaceiro , de Lima Barreto ( foto maior ), e de O Cangaceiro do Futuro , série do Netflix: um gênero que resiste ao tempo todos eles têm em comum é o povo. Um grupo de fora invadindo um território, e o povo originário daquele lugar se organizando para defender”, afirma o produtor cultural César Turim, organizador da Mostra Nordestern na Cinemateca. “Há uma ambiguidade entre os heróis e os anti-heróis. Lampião é um bandido, mas também um herói, de certa forma. Há um código de valores claros, repetidos dos cowboys”, diz Turim. Hoje, há produções que olham para o tema sob a ótica do riso, ou da ação, ou do drama.

Boa parte do imaginário que existe hoje foi consolidada a partir das imagens de O Cangaceiro “Ele estabeleceu o Nordeste como gênero”, diz Turim. E fez isso ao não escolher entre ser um filme de arte ou de entretenimento. Há cenas de ação e trilha sonora envolvente, mas a crítica social também está lá, ao retratar as agruras vividas pelo povo no sertão.

Mas o tema rendeu obras fundamentais da cinematografia brasileira. É o caso de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, recentemente restaurado. O filme retrata o cangaço e a figura de Corisco (vivido por Othon Bastos), do bando de Lampião, e é considerado um marco do Cinema Novo, movimento que se distanciou de Hollywood e se inspirou na vanguarda europeia dos anos 1960 para retratar a desigualdade do Brasil. O cineasta voltaria ao tema em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969, seu primeiro longa-metragem colorido. Anos depois, em 1996, Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, foi outro marco da retomada do cinema brasileiro. É baseado na história real do mascate libanês Benjamin Abrahão, que conviveu com o bando de Lampião e produziu as únicas imagens em vídeo do cangaceiro.

O próprio sucesso de Bacurau mostra o quanto a figura do cangaceiro ainda desperta interesse, não só no Brasil. Ambientado no futuro próximo, na cidade fictícia de Bacurau, mostra como os habitantes do povoado se defendem dos ataques de estrangeiros que viajam para lá apenas para caçar seres humanos. A resistência é organizada por Lunga (Silvero Pereira). “O longa nordestino pode, também, ser enquadrado como legítimo representante do New Cangaço. Como não ver o personagem Lunga (Silvero Pereira) como uma espécie de Lampião dos tempos contemporâneos?”, escreve a crítica de cinema Maria do Rosário Caetano, organizadora da obra Cangaço – O Nordestern no Cinema Brasileiro. Além de prêmios e exibições em festivais internacionais, o filme recebeu críticas positivas da imprensa mundo afora. Apesar das liberdades tomadas pelos cineastas, são obras que traduzem um sentimento de revolta contra as injustiças. “Cinema é isso. Pegar o que está acontecendo e reproduzir de um jeito, a partir de um olhar de subjetividade dos autores”, afirma César Turim. “São produções que dão poder aos personagens. Eles olham o horror e a miséria, pegam em armas e lutam contra ela”, diz. rA Cinema Pôster de Baile Perfumado, cena de Bacurau e o clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol: reconhecimento da crítica

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