Para quem pensa, decide e vive o agribusiness
PRESSÃO SENTIDA NA CARNE Da Covid aos novos hábitos do consumidor, setor de proteína animal vive uma pandemia de desafios FINANÇAS VERDES
OS GREEN BONDS DÃO NOVO IMPULSO AOS PROJETOS QUE COMBINAM AGRONEGÓCIO E PREOCUPAÇÃO AMBIENTAL
PERSONAGEM O JOVEM CHEFE DA PROVOCAÇÃO DO GRUPO AMAGGI FRONTEIRA A HORA DA CASTANHA SAIR DA CASCA E CONQUISTAR NOVOS MERCADOS
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AS MISSÕES DE PAULO SOUSA NO COMANDO DA CARGILL PLANT PROJECT Nº22
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Qual a mensagem que o agronegócio brasileiro passa ao mundo? Dependen-
A MENSAGEM DO AGRO DO BRASIL
do do interlocutor externo com quem falamos, podemos ter uma resposta diferente. Há quem olhe para nós com brilho nos olhos, que enxergue uma potência agroindustrial com papel estratégico no desafio de alimentar populações crescentes ao redor do mundo. Há quem olhe para nós com sangue nos olhos, que enxergue um exército de predadores ambientais, dispostos a
Para quem pensa, decide e vive o agribusiness
ignorar leis e boas práticas produtivas em busca de lucro fácil. Há quem nos PRESSÃO SENTIDA NA CARNE
veja como uma incógnita, ora mocinho, ora vilão. O que somos, talvez, nem mesmo nós consigamos responder porque não nos dispusemos a tratar esse
Da Covid aos novos hábitos do consumidor, setor de proteína animal vive uma pandemia de desafios
tema como uma verdadeira questão nacional, como seria desejável acontecer
FINANÇAS VERDES OS GREEN BONDS DÃO NOVO IMPULSO AOS PROJETOS QUE COMBINAM AGRONEGÓCIO E PREOCUPAÇÃO AMBIENTAL
com o setor que responde por mais de um quarto do PIB e mais da metade de
PERSONAGEM O JOVEM CHEFE DA PROVOCAÇÃO DO GRUPO AMAGGI
nossas vendas externas.
FRONTEIRA A HORA DA CASTANHA SAIR DA CASCA E CONQUISTAR NOVOS MERCADOS
Devemos enxergar o agronegócio brasileiro como uma empresa global, com
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AS MISSÕES DE PAULO SOUSA NO COMANDO DA CARGILL PLANT PROJECT Nº22
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bilhões de consumidores em todos os continentes. Dentro desse universo, há clientes governamentais, institucionais, corporativos, assim como o destinatário final, aquele que se alimenta e se veste com produtos cuja origem está em nossos campos. Uma corporação global de qualidade atua com planejamento e estratégia, preocupa-se em conversar com cada segmento como se fosse único, mas dando o mesmo sentido para a comunicação em todos eles. Faz pesquisa, entende tendências de mercado, ouve as necessidades e as demandas do seu público. E, a partir de um diagnóstico claro, define seus objetivos, que imagem quer passar, os atributos que deve ressaltar, como abordar os clientes, quem são os porta-vozes e qual o tom de voz que deve ser usado. O trabalho deve ser coordenado, com base em premissas claras e bem difundidas entre os diversos integrantes das cadeias produtivas. O Agro do Brasil tem potencial para ser esse grande empreendimento global. Não nos faltam atributos – eficiência, tecnologia, produtividade, sustentabilidade, por exemplo, fazem parte do cotidiano de grande parte dos nossos produtores, sérios e responsáveis. Deveríamos nos unir em torno deles, não transformá-los em cabo de guerra entre diferentes grupos políticos. É fundamental entender o que o mercado espera de nós e alinhar discurso e prática para atendê-lo cada vez melhor. Ao invés de ignorar eventuais pressões externas, administrá-las através de conversas e busca de entendimento. Construir uma imagem verdadeira demanda transparência e unidade. Não é falar mais alto, mas dizer o que é real, inclusive reconhecendo eventuais problemas e a disposição de solucioná-los. Há bilhões de consumidores dispostos a nos ouvir. Eles precisam do que o Agro do Brasil produz. Mas não estão dispostos a pagar qualquer preço por isso.
Luiz Fernando Sá Diretor Editorial
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D i r etor E ditoria l Luiz Fernando Sá luiz.sa@plantproject.com.br D i r etor Comerc ia l Renato Leite Marketing e Publicidade Multiplataforma renato.leite @plantproject.com.br D i r etor Luiz Felipe Nastari A rt e Andrea Vianna Projeto Gráfico e Direção de Arte E d i tor Romualdo Venâncio romualdo.venancio@plantproject.com.br R e p órt er André Sollitto andre.sollitto@startagro.agr.br Col ab o ra dores: Texto: Amauri Segalla, Irineu Guarnier Filho, Lívia Andrade, Suzana Barelli, Tiago Dupim. Design: Fabiano Duarte, Rica Ramos, Bruno Tulini Produção: Daniele Faria Design: Revisão: Rosi Melo Ev e n to s Simone Cernauski A d m i n i st ração e Fina nç as Cláudia Nastari Sérgio Nunes
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O mistério das sementes chinesas: Investigações sobre envio não solicitado acontecem em vários países
G GLOBAL
O lado cosmopolita do agro
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G
GLOBAL
O lado cosmopolita do agro
E S TA D O S U N I D O S
O MISTÉRIO DAS SEMENTES Consumidores que fizeram compras on-line recebem ervas daninhas da China. Caso assusta, mas não há sinais de bioterrorismo internacional No início de outubro, a Amazon, a marca mais valiosa do mundo, tomou uma decisão que, à primeira vista, fere um de seus princípios fundamentais. A empresa, defensora da ideia de que é possível negociar qualquer coisa pela internet – desde que não sejam produtos ilegais –, barrou a venda de um item aparentemente inofensivo: sementes. A gigante de Jeff Bezos fez isso depois de milhares de americanos receberem pelo correio pacotes com carimbos da China que continham pequenos e desconhecidos grãos. Ninguém, porém, havia pedido por eles. A história fica um pouco mais estranha: várias remessas 8
estavam rotuladas como joias, brinquedos e livros, as mercadorias mais vendidas pela Amazon. Ao abrir as embalagens, a surpresa. Em vez de colares ou bonecas, os invólucros escondiam sementes. Com o tempo, o que parecia ser um simples engano ganhou proporções inesperadas. Descobriu-se que, além da Amazon, a Wish e o eBay, outras companhias americanas de comércio eletrônico, enfrentavam a mesma situação. E a mesma situação acontecia com entregas de produtos chineses em vários países do mundo, inclusive o Brasil. Não deveria, portanto, ser mera coincidência.
Alerta internacional: autoridades sanitárias de dezenas de países indicaram que havia riscos no plantio das sementes
Uma investigação iniciada pelo Serviço de Inspeção de Saúde Animal e Vegetal do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos identificou que várias das sementes eram de espécies de ervas daninhas, como cigarrinhas e espinafred’água, mas há também repolho, mostarda e menta. Em apenas um mês, o órgão coletou 20 mil sementes para análise. Destas, 2,5 mil eram comprovadamente pragas agrícolas. A partir daí, perguntas começaram a ser feitas. Estariam os chineses interessados em destruir as lavouras estrangeiras, muitas delas fornecedoras de alimentos para a própria China? A operação foi arquitetada por produtores asiáticos que, em uma grande ação internacional, pretendiam eliminar a concorrência? Por mais que nessas ocasiões, e especialmente na era das redes sociais, as teorias conspiratórias acabem sendo disseminadas a toda velocidade, é improvável, para não dizer impossível, que exista um movimento desse tipo. “As descobertas até o momento não geraram preocupação significativa”, disse ao jornal The Wall Street Journal Osama El-Lissy, chefe do Serviço de Inspeção do Departamento de Agricultura. Segundo o executivo, as sementes continuarão sendo monitoradas e qualquer anormalidade será
imediatamente comunicada aos produtores americanos. Tudo indica que o envio das sementes esteja relacionado a uma iniciativa mais prosaica, embora questionável. Especialistas em fraudes on-line acreditam que o episódio é característico do que chamam de “brushing” (algo como “varrer” ou “espalhar”, neste contexto em inglês). Trata-se de uma estratégia na qual vendedores enviam produtos com códigos de rastreamento para endereços reais. Em vez de remeter a mercadoria verdadeira, geralmente cara e pesada, eles enviam um material barato e leve, como as sementes, o que reduz significativamente o valor do frete. As pessoas que recebem os pacotes quase sempre acreditam que se trata de presentes inesperados e não entram em contato com as autoridades. A operação aumenta o número de negócios do vendedor on-line, que também escreve comentários falsos – sempre positivos, obviamente – sobre os seus produtos. Tudo isso apenas e simplesmente para aumentar a visibilidade nos sites de e-commerce. Em alguns casos, os consumidores recebem produtos maiores ou de valor superior ao que foi encomendado. Isso ocorre quando o brushing tem o objetivo de melhorar a
avaliação do produto em si, não só de uma loja. Por que então as sementes vêm apenas da China? Segundo os especialistas em fraude digital, a estratégia do brushing foi inventada justamente pelos chineses, que acabaram se tornando especialistas no assunto. Além disso, como o país da Muralha lidera com folga o comércio eletrônico mundial – o Alibaba está aí para provar isso –, é natural que existam mais golpistas por lá. Ressalte-se que, sob diversos aspectos, a ação equivale a um golpe, mas está muito longe de representar uma ameaça sanitária global. Não foram apenas os americanos que se depararam com as sementes misteriosas. Consumidores da Alemanha, Canadá e Reino Unido também receberam encomendas do tipo, e investigações preliminares chegaram à mesma conclusão dos americanos. As sementes são em geral de ervas daninhas, mas nada que, pelo menos por enquanto, deva preocupar os produtores. Elas também chegaram ao Brasil. Segundo o Ministério da Agricultura, consumidores de todos os estados receberam os pacotes indesejados, mas não se tem notícia de riscos para o agronegócio nacional. Mesmo assim, as autoridades recomendam que as sementes não sejam plantadas ou descartadas em lixo comum. PLANT PROJECT Nº22
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G EMIRADOS ÁRABES
A MAIOR FAZENDA INDOOR DO MUNDO Abu Dhabi, a capital dos Emirados Árabes Unidos, é obcecada por projetos imponentes. Em julho do ano passado, inaugurou a maior fazenda solar do mundo. Agora, anuncia a construção da maior fazenda indoor. O projeto, que deverá ser oficialmente aberto em outubro de 2021, é resultado de uma joint venture entre empresas da Holanda e dos Emirados Árabes Unidos e consumirá US$ 177 milhões em investimentos. Segundo os idealizadores da GreenFactory Emirates, ela será totalmente
coberta, o que deverá fazer com seja menos impactada pelas oscilações climáticas. Estima-se que, a partir de 2022, o local produza 10 mil toneladas de alimentos por ano, volume que poderá dobrar até 2025. As autoridades de Abu Dhabi
afirmam que a iniciativa representa o futuro da agricultura e pode ser uma importante solução para as grandes cidades. O problema é o seu custo de implantação, ainda 20% superior em relação a uma fazenda convencional.
TA I L Â N D I A
Patos em vez de pesticidas Fazendeiros tailandeses adotaram uma estratégia inusitada para atacar pragas e ervas daninhas das plantações: em vez dos tradicionais pesticidas, os agricultores usam patos como defensores das lavouras. Funciona assim: de tempos em tempos, milhares de aves são soltas nos campos para que se alimentem. E elas, conforme os tailandeses aprenderam, adoram comer ervas daninhas, pragas e moluscos como caracóis – tudo o que pode destruir uma plantação. Não é apenas isso. Os excrementos dos patos se transformam em adubo e a força produzida 10
pelos seus passos é capaz de deixar o solo mais plano, diminuindo a necessidade de lavrar a terra. Em uma semana, 10 mil patos eliminam pragas em uma área de 15 acres (cerca de 6 ha) de plantação. A iniciativa parece excêntrica, mas a utilização das aves vem ganhando espaço na agricultura. China, França, Irã e Japão também são adeptos do método.
G REINO UNIDO
O ROBÔ QUE FAZ TUDO
O simpático robô Thorvald arranca suspiros por onde passa. Parecido com um pequeno quadriciclo, só que sem espaço para o condutor, ele realiza uma série de tarefas no ambiente agrícola, da colheita de frutas à aragem do solo, dos banhos de luz nas plantas à pulverização das lavouras, da coleta de
dados para a previsão de safras ao corte da grama para forragem. Produzido pela britânica Saga Robotics, Thorvald se tornou um sucesso nos campos europeus graças à sua notável independência. Dotado de inteligência artificial, ele faz tudo sozinho, o que o levou inclusive a colecionar premiações na área de tecnologia. Agora, a Saga Robotics quer desenvolver uma versão mais avançada da máquina, capaz de realizar afazeres ainda mais complexos. Dinheiro não será problema: no final de setembro, a Saga Robotics captou cerca de R$ 61 milhões com três diferentes fundos de investimentos.
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O IPO DO ABACATE Nem só das empresas de tecnologia vive o mercado acionário dos Estados Unidos. A Mission Produce, uma das maiores produtoras e distribuidoras de abacate do mundo, fez a sua oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) no início de outubro, em plena crise do coronavírus. Fundada nos Estados Unidos em 1983, a empresa californiana fatura cerca de US$ 900 milhões por ano e possui instalações próprias nos Estados Unidos, no México e Peru, além de 11 centros de distribuição espalhados por
diversos países. Com os recursos captados no mercado, a Mission pretende comprar novas terras produtivas, especialmente na América Latina. Os números do segmento de abacates
justificam as ambições da companhia. Espera-se que esse mercado cresça 5,5% ao ano até 2023, o que se deve em parte aos millennials, adeptos da alimentação mais saudável. PLANT PROJECT Nº22
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G O que é O cânhamo é uma variedade da Cannabis sativa, a mesma planta que produz a maconha
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A vez do cânhamo Os Estados Unidos vivem uma verdadeira febre do cânhamo. O surgimento de novos estudos que comprovam os seus benefícios e a legalização do cultivo têm levado a um crescimento sem precedentes do consumo de produtos à base da planta. Segundo especialistas, poucos segmentos ligados ao agronegócio são tão promissores. Confira a seguir os motivos que fizeram com que o cânhamo se tornasse o queridinho dos americanos.
Características Ele é repleto de nutrientes e proteínas, além de possuir 20 aminoácidos diferentes, incluindo os 11 que são considerados essenciais para os humanos
Legalização Nos últimos anos, começou a ser legalizado em diversos países. Nos Estados Unidos, seu principal mercado, é liberado desde 2018
Aplicações Além de fornecer matéria-prima (CBD) para medicamentos, suas fibras podem ser usadas na indústria têxtil, no setor petroquímico e na construção civil
Mercado em alta Estima-se que, até 2024, as vendas de cânhamo possam ultrapassar US$ 26 bilhões anuais nos Estados Unidos, ou 50% mais do que os negócios gerados pela planta atualmente
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No Brasil A legislação brasileira é incompleta. Ela proíbe o cultivo de qualquer espécie de Cannabis em território nacional, mas pacientes e empresas têm conquistado na Justiça o direito de cultivar a planta para fins medicinais
Baixo efeito alucinógeno O cânhamo possui baixo índice de THC, o componente que provoca a reação psicoativa da maconha
Na agricultura Na comparação com outras culturas, o cânhamo exige poucos herbicidas, fungicidas ou pesticidas e é reconhecido pela sua capacidade de regenerar o solo
Vantagens ambientais As plantações de cânhamo sequestram grande quantidade de carbono da atmosfera e ele pode ser usado como substituto de madeira e combustíveis fósseis
Benefícios à saúde Pesquisas comprovam que o cânhamo ajuda na digestão, mantém a flora intestinal e assegura bons níveis de açúcar no sangue. Além disso, pode ser usado para o tratamento de dores crônicas, inflamações e no combate ao estresse e à ansiedade
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G FRANÇA
BACTÉRIAS CONTRA ALERGIAS
Estudos recentes mostram que 1% da população mundial sofre algum tipo de alergia associada ao consumo de alimentos à base de trigo. Por isso mesmo, nos últimos anos cientistas de diversos países dedicam tempo e recursos para buscar soluções para o problema. Uma das mais promissores é resultado de ampla pesquisa realizada pela brasileira ForC (Food Research Center) e as instituições francesas Inra e Oniris. Segundo a descoberta, algumas bactérias são capazes de combater reações inflamatórias ligadas ao glúten. Como elas se alimentam de aminoácidos causadores das alergias, podem sem usadas, portanto, para diminuir a probabilidade de alergias. O projeto consumiu 18 meses de estudos e agora busca financiamento para a segunda etapa da pesquisa: o desenvolvimento em escala de produtos que eliminem a toxicidade do glúten.
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Flores sofrem com mudanças climáticas Não é novidade que as mudanças climáticas exercem influência significativa no planeta. O que se desconhecia é o impacto que elas causam em um dos habitantes mais notáveis da Terra – as flores. Segundo estudo realizado por botânicos das universidades de Pittsburg, Virgínia e Clemson, todas nos Estados Unidos, as flores mudaram a sua pigmentação por causa das mudanças no clima. Nos últimos 75 anos, a pigmentação aumentou nas flores cujo pólen foi exposto à radiação provocada pela diminuição da camada de ozônio. Nas espécies em que o pólen é protegido pelas pétalas, a pigmentação diminuiu com o aumento da 14
temperatura. Parece um pequeno detalhe, mas as transformações podem ter efeitos devastadores. “Isso tem implicações para a reprodução das plantas, tanto de flores silvestres nativas quanto de espécies de culturas domesticadas que têm padrões florais para o ultravioleta, como os girassóis”, diz o botânico Matthew Koski, um dos autores do estudo.
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AGRO É PARA JOVENS
Em 2015, o produtor de ovelhas australiano Jamie Heinrich quis contratar jovens para trazer novos ares à sua fazenda, mas ele descobriu que havia poucos profissionais disponíveis na Austrália. Surpreso, tentou encontrar recém-formados em outros países – e nada. Foi aí que teve uma ideia. “Decidi viajar o mundo para conhecer projetos que
busquem engajar a juventude no agronegócio”, disse em entrevista recente. “Por mais que a agricultura tenha se modernizado radicalmente nos últimos anos, ela ainda não é associada a oportunidades interessantes de trabalho para jovens. Quero mudar isso e provar que o agro pode ser cool.” Nos últimos cinco anos, Heinrich visitou 17 países e conheceu iniciativas inusitadas. Em Trinidad e Tobago, por exemplo, a agtech WhyFarm inventou um super-herói, o AgroMan, que ensina, de maneira divertida, a origem das comidas para crianças. De volta à Austrália, o criador de ovelhas quer agora reunir sua experiência em um documentário para levar a mensagem agrícola a crianças de diversas partes do mundo.
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HORTA NO DESERTO Um dos países mais pobres da África, o Djibuti será palco de um projeto tão inusitado quanto ousado. Conhecido como Marvella Farms, ele consiste na construção de 30 fazendas hidropônicas de alta tecnologia em pleno deserto. A ideia é produzir alimentos frescos durante todo o ano para serem vendidos localmente e, mais adiante, exportados para outras nações do continente africano. Como se dará o milagre da produção em condições tão adversas? 16
Segundo os idealizadores da iniciativa, estufas climáticas inteligentes, que fornecem calor, água e nutrientes na medida certa, tornarão possível o cultivo de tomates, cebolas e folhas verdes durante o ano inteiro, faça chuva ou faça sol. Além disso, as lavouras verticais
automatizadas irão assegurar alta produtividade, a despeito do espaço restrito. A Marvella Farms está sendo financiada por um grupo de empreendedores com sede em Denver, nos Estados Unidos, e deverá entrar em operação no início do ano que vem.
Os desafios da proteína animal: Do pasto ao prato, setor enfrenta momento de adaptação
Ag AGRIBUSINESS
foto: Tony Oliveira - CNA
Empresas e líderes que fazem diferença
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Ag Empresas e líderes que fazem diferença
foto: Shuttestock
PRESSÃO SENT
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TIDA NA CARNE A cadeia produtiva de proteína animal enfrenta uma série de desafios, do abastecimento de comida e a segurança de suas equipes em meio à pandemia da Covid-19 à mudança de hábitos do consumidor. E precisa se adaptar para enfrentá-los
P or R omualdo V enâncio
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foto: Wenderson Araújo - CNA
agronegócio é um dos setores mais desafiados pela pandemia da Covid-19. Além da questão de sobrevivência, manter o ritmo dos negócios, com equilíbrio entre produtividade e segurança, era primordial para garantir o abastecimento de comida no Brasil e no mundo. Das fazendas ao varejo, empresas de todos os tamanhos tiveram de adaptar infraestrutura, estabelecer novas rotinas de trabalho, redobrar os cuidados com a saúde e o treinamento das equipes, reforçar a prevenção e acelerar a transformação digital. A exigência foi ainda maior para a cadeia produtiva de proteína animal, pois o ambiente interno das unidades industriais favorece a disseminação do coronavírus. O que seria um desafio imenso para qualquer setor, torna-se ainda maior quando se vislumbra a conjuntura que a indústria de proteína animal já encarava quando a pandemia começou a se alastrar. Custos de insumos, mudanças de hábitos dos consumidores e uma pressão cada vez maior quanto à preservação ambiental criavam um cenário complexo, que exigia atenção especial em todas as etapas da cadeia produtiva de carnes. As respostas a esses desafios requerem seriedade, informações seguras, diplomacia e muito trabalho para manter a sintonia entre teoria e prática, a boa imagem conquistada pelo agro e os espaços alcançados pela indústria de proteína animal.
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Matéria de capa
As questões trazidas pela Covid-19 demonstram bem o impacto sentido. Após a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter decretado estado de pandemia pela Covid-19, no mês de março, o Ministério Público do Trabalho (MPT) publicou uma recomendação de cuidados e medidas a serem tomados nos frigoríficos, descritos no documento como “ambientes de trabalho propícios para disseminação do vírus causador do coronavírus – Covid-19, diante das características científicas evidenciadas da forma de contágio”. Ainda segundo o MPT, nessas unidades industriais há “elevada concentração de trabalhadores em ambientes fechados, com baixa taxa de renovação de ar, baixas temperaturas, umidade e com diversos postos de trabalho sem o distanciamento mínimo de segurança de acordo com os parâmetros estabelecidos pelas
Ag
autoridades sanitárias nacionais e internacionais”. De uma forma ou de outra, as empresas tiveram de agir rápido para implementar medidas rigorosas de segurança de seus colaboradores e dar satisfação à sociedade do que e como estavam fazendo. “Quando vimos que a pandemia chegaria ao Brasil, tivemos duas preocupações, proteger o trabalhador e manter o abastecimento, pois a situação seria bem pior se as pessoas não tivessem alimento”, diz Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA). O executivo assumiu a presidência da entidade no dia 19 de agosto, sucedendo Francisco Turra, já com um cenário bem diferente em relação ao coronavírus. A ABPA representa mais de 140 empresas e entidades da avicultura e da suinocultura nacionais, um grupo que responde por exportações superiores a US$ 8 bilhões.
EXPORTAÇÕES DE FRANGO E SUÍNO
Exportações de carne de frango e suína (in natura e processada) – janeiro a setembro
VOLUME 2020 (toneladas)
2019 Comparação 2020 (toneladas) (US$)
Frango 3,178 milhões 3,137 milhões 1,3% Suíno 764,9 mil* 534,9 mil 42,9% * O volume foi maior do que o registrado no ano todo de 2019
RECEITA 2019 (US$)
4,619 bilhões 5,253 bilhões 1,677 bilhão 1,597 bilhão
Comparação - 12,1% 51,9% Fonte: ABPA
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PRODUÇÃO DE CARNES PRODUÇÃO DE CARNE SUÍNA (2019)
PRODUÇÃO DE CARNE BOVINA (2019)
• 13,2 milhões de toneladas • 2º maior produtor mundial • 69% da produção foi para o mercado interno • 31% da produção foi exportada para 150 países • 1º lugar em exportação • 35% do mercado global é atendido pelo Brasil • 396 milhões de pessoas, em média, são alimentadas no mundo, por ano, com frango brasileiro
• 4,1 milhões de toneladas • 4º maior produtor mundial • 82% da produção foi para o mercado interno • 18% da produção foi exportada para 90 países • 4º lugar em exportação • 8% do mercado global é atendido pelo Brasil • 247 milhões de pessoas, em média, são alimentadas no mundo, por ano, com suíno brasileiro
• 213,7 milhões de cabeças – maior rebanho comercial do mundo • 44,2 milhões de cabeças abatidas • 2º maior produtor mundial • 10,5 milhões de toneladas equivalente carcaça (TEC) • 76,3% da produção foi para o mercado interno • 23,3% da produção foi exportada para 154 países • 1º lugar em exportação • 22% do mercado global é atendido pelo Brasil
Fonte: ABPA
Fonte: ABPA
Fonte: Abiec/USDA
foto: Wenderson Araújo - CNA
PRODUÇÃO DE CARNE DE FRANGO (2019)
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Matéria de Capa
Segundo Santin, é extensa a lista de medidas tomadas pelas indústrias: adoção de máscaras e face shield, anteparo entre as pessoas, redução nos refeitórios, cuidado nos transportes, desinfecção triplicada das plantas industriais e contêineres, tapetes de desinfecção. “Não entra ninguém com Covid-19 nas plantas. Em algumas delas foram instalados até equipamentos de leitura de temperatura por imagem. Caso algum colaborador tenha contato com alguém contaminado já fica em casa”, comenta o dirigente, acrescentando que nesse período de pandemia foram contratados quase 20 mil trabalhadores. Os protocolos para cuidados nas unidades industriais são bem abrangentes e, segundo Santin, foram validados pelo Hospital Israelita Albert Einstein e pela Portaria Conjunta nº 19, legislação interministerial publicada no Diário Oficial da União em 19 de junho que envolve as pastas da Economia, por meio da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, da Saúde e da Agricultura. Essa portaria visa a “prevenção, controle e mitigação de riscos de transmissão da Covid-19 nas atividades desenvolvidas na indústria de abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano e laticínios”. Vale ressaltar que algumas das principais empresas associadas à ABPA também estão entre
as líderes de produção de carne bovina. QUESTÃO DE PROPORÇÃO Com esse período de pandemia, a relevância do agronegócio para a economia nacional ficou ainda mais nítida, sob diversos aspectos. Além de representar mais de 20% do PIB brasileiro, a agropecuária continua sendo destaque em geração de empregos. Dados apresentados pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) mostram que entre os meses de janeiro e agosto o setor foi responsável por mais de 98 mil novas vagas, o que ajudou a reduzir o impacto do déficit no quadro geral do País, com o fechamento de quase 850 mil postos de trabalho. De qualquer ângulo que se olhe para o agronegócio, as proporções são sempre grandiosas, até mesmo pelos desafios. O avanço da Covid-19 trouxe mais notícias sobre a contaminação de trabalhadores de frigoríficos, tanto no Brasil como em outros países, aumentando a pressão sobre a indústria em relação às medidas preventivas. Nos Estados Unidos, desde março, mais de 42 mil funcionários de quase 500 frigoríficos testaram positivo para o novo coronavírus e 203 morreram, conforme o jornal norte-americano The Washington Post. Os dados são de um levantamento feito pela Food & Environment Reporting Network
Ag
(FERN), agência de notícias independente e sem fins lucrativos voltada aos setores de alimentos, agricultura e saúde ambiental. O jornal aponta ainda demora das autoridades para cobrar de forma mais incisiva mudanças nas unidades industriais que garantissem a segurança dos trabalhadores. Por aqui, a questão também preocupa. Até o mês de julho, o MPT havia confirmado 6,2 mil casos de trabalhadores testados positivo para o novo coronavírus em frigoríficos instalados no Rio Grande do Sul, por exemplo. A declaração do órgão envolve 39 unidades industriais, localizadas em 29 municípios e que somam quase 36 mil empregados. Em Mato Grosso, desde o início da pandemia o MPT ajuizou seis ações civis públicas e instaurou 15 inquéritos civis após a confirmação de casos de Covid-19 em plantas frigoríficas. Segundo o próprio MPT, devido a indícios de que não estariam sendo adotadas as medidas necessárias para reduzir o risco de exposição dos funcionários ao coronavírus no ambiente de trabalho. Por conta da gravidade do risco de contaminações no setor, o órgão apresentou uma análise, descrita em nota técnica, comparando legislações sanitárias publicadas em estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e a Portaria Conjunta nº 19. Para o MPT, as legislações locais relativas à pandemia são, em certos pontos, mais eficazes e mais protetivas. PLANT PROJECT Nº22
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Ag Matéria de capa
foto: Édi Pereira
Santin, presidente da ABPA: espaço para diversidade de oferta, mas com diferenciação clara entre animal e vegetal
Paralelamente às questões de legislação, a indústria frigorífica ainda é alvo da manifestação de entidades que representam profissionais do setor. A Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (CNTA), a Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação da CUT (Contac-CUT) e a União Internacional de Trabalhadores em Alimentação (Uita) lançaram em agosto a campanha “A carne mais barata do frigorífico é a do trabalhador”. O intuito, como descreve o presidente da CNTA, Artur Bueno de Camargo, é conscientizar a sociedade sobre a seriedade da contaminação de Covid-19 entre os funcionários de frigoríficos. Para amplificar o volume da cobrança sobre as indústrias de proteína animal, foi realizada em setembro uma mobilização em frente à B3, a 24
Bolsa de Valores do Brasil. A entidade questiona, inclusive, a proporcionalidade entre a valorização das ações das grandes empresas do setor durante a pandemia, pelo fato de a produção de alimentos ser considerada atividade essencial, e o quanto elas investem em proteção para suas equipes nas linhas de produção. Outra consequência desse cenário de pandemia é uma aceleração da automação de processos por empresas do setor frigorífico. Como noticiado pela revista Globo Rural, fornecedoras de soluções nessa área confirmam o crescimento na demanda após o surgimento do coronavírus e o início da implementação de medidas de isolamento social, o que impacta na redução das equipes nas plantas e reduz a produtividade. Alguns relatos confirmam se tratar de uma mudança natural, uma evolução
que já estava em curso e foi acelerada, como aconteceu com a digitalização – avanço que muita gente afirma ser permanente. Além disso, essa transformação pode trazer melhorias para o setor como um todo em termos de rastreabilidade e segurança dos alimentos. A PLANT tentou ouvir a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) e algumas das principais companhias e cooperativas do setor de proteína animal sobre todo esse panorama da pandemia e outros aspectos relacionados aos atuais desafios da cadeia produtiva, mas, por diferentes motivos, elas não quiseram se pronunciar. De qualquer maneira, a mensagem transmitida pelos representantes da cadeia pecuária na coletânea de artigos publicada na nossa edição nº 20, com o tema #OAGRONUNCAPARA, foi de
foto: Lucas Scherer
comprometimento do setor com a segurança em relação à Covid-19. O presidente da Abiec, por exemplo, Antônio Jorge Camardelli, citou a rigidez na higienização dos uniformes, EPIs e materiais utilizados na manipulação direta ou indireta, e a adoção das práticas específicas recomendadas pela OMS, entre outros fatores, além de destacar a garantia do fornecimento de carne bovina no Brasil, evitando o risco de desabastecimento. O CEO Global da JBS, Gilberto Tomazoni, reforçou a afirmação de Camardelli e acrescentou a preocupação com a coletividade, com as pessoas, pois a empresa opera unidades de produção em 140 municípios brasileiros, sendo que em 80 deles representa a principal atividade. DIPLOMACIA COM ALICERCE Em agosto, o poder de reação da indústria brasileira de proteína
animal foi posto à prova. Autoridades da cidade chinesa de Shenzhen informaram que uma embalagem de frango congelado exportado pelo Brasil havia apresentado traços de Covid-19. Sendo o Brasil o maior exportador de carne de frango e a China nosso principal cliente, o impacto poderia ser desastroso. O histórico sanitário da indústria nacional e a habilidade diplomática do setor foram determinantes naquela situação. A rápida ação do Mapa, mesmo antes de um comunicado oficial dos chineses, com os adidos agrícolas em Pequim, e da ABPA foi crucial para entender o que estava acontecendo e dar uma resposta ao mercado. “Fomos identificar até as palavras em mandarim sobre o tema para compreender bem, na fonte, o que havia ocorrido. O problema foi encontrado em uma caixa, mas tínhamos inclusive de saber se era PLANT PROJECT Nº22
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Ag Matéria de capa
dentro ou fora”, diz Ricardo Santin, presidente da entidade. O esforço não evitou que Hong Kong suspendesse temporariamente as importações da unidade da Cooperativa Central Aurora Alimentos em Xaxim (SC), de onde saíram as embalagens supostamente “contaminadas”. Mas prestar os devidos esclarecimentos, com o apoio também da Aurora, contribuiu para que a suspensão caísse tão logo se comprovasse a ausência de riscos de contaminação. “O conhecimento técnico-científico prevaleceu”, comemora Santin. O episódio na Ásia deixou claro o quanto o agro brasileiro precisa estar preparado para responder a quaisquer questionamentos ou acusações, tenham ou não fundamento. Como potência global do agro, o Brasil é monitorado por quem reconhece tal potencial e busca 26
parcerias e também por quem o vê da mesma forma, mas na posição de concorrente. Ou até por quem não está em nenhum dos dois grupos, mas diante de notícias sobre queimadas e desmatamento levanta bandeira de preservação das florestas e cobra providências. Tudo indica que a curto prazo não haverá relaxamento nessa conversa. COBRANÇAS, FATOS E ESTRATÉGIA Outro exemplo da ação diplomática – e estratégica – do agronegócio brasileiro é a recente viagem da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, a Portugal para tratar do acordo de livre-comércio entre os países do Mercosul e da União Europeia. Até porque Portugal vai assumir a presidência do bloco europeu no próximo semestre. Anunciado em 28 de junho do ano passado, o acordo ainda não foi assinado,
em parte por conta da pandemia da Covid-19, mas também por questões relacionadas à agenda ambiental no Brasil. Representantes do bloco europeu, sobretudo franceses, cobram do governo brasileiro, por exemplo, respostas e ações em relação à evolução do desmatamento na Amazônia. Tereza Cristina levou na bagagem argumentos técnicos e científicos que costuma ter na ponta da língua, como os dados da Embrapa de que 66% do território nacional é coberto com vegetação nativa, condição ambiental que nenhuma outra potência do agro pode apresentar, e que mais de 20% das áreas preservadas estão dentro de propriedades rurais. E certamente uma ampla lista de contrapontos sobre preservação e sustentabilidade da produção agropecuária do Brasil, até porque esse acordo é muito valioso.
O Ministério da Economia estima que pode representar um aumento de US$ 87,5 bilhões no PIB brasileiro, em um período de 15 anos. Considerando a redução de barreiras não tarifárias e o que se espera em termos de aumento de produtividade, esse acréscimo pode chegar a US$ 125 bilhões. Frente às cobranças vindas de fora, surgem também iniciativas de diferentes grupos ligados à cadeia pecuária para sair do confronto baseado em troca de farpas. A Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, movimento multissetorial criado em 2015 e que já conta com a participação de mais de 200 empresas, associações empresariais, centros de pesquisa e organizações da sociedade civil, elaborou um amplo estudo sobre a rastreabilidade na produção de carne bovina. O documento apresentado na Climate Week, em setembro, na cidade de Nova York, traz um panorama sobre o setor e os sistemas de rastreabilidade e monitoramento, além de 42 recomendações para otimizar a aplicação desses processos. “Assim como o agronegócio brasileiro é altamente competitivo em produtividade, somos igualmente
competitivos na capacidade de produzir sem desmatamento ilegal e o que esse estudo mostra é que temos como provar isso”, diz Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e cofacilitador da Coalizão Brasil. A própria indústria também vem adotando medidas nesse sentido. A JBS, que também integra a Coalizão Brasil, acaba de anunciar o programa “Juntos pela Amazônia”, projeto baseado em quatro pilares: desenvolvimento da cadeia de valor, conservação e recuperação de florestas, apoio às comunidades e desenvolvimento científico e tecnológico. Uma das iniciativas desse primeiro pilar, a Plataforma Verde JBS, é baseada na tecnologia de blockchain e abrange uma das principais preocupações do setor, a rastreabilidade. A ideia é que até 2025 os fornecedores de seus fornecedores de bovinos façam parte de sua base de monitoramento. Também foi criado o Fundo JBS Pela Amazônia para financiar os outros três pilares, já com aporte de R$ 250 milhões da companhia nos primeiros cinco anos, podendo chegar a R$ 300 milhões PLANT PROJECT Nº22
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até 2030, quando a JBS espera alcançar um total de R$ 1 bilhão com o apoio de seus stakeholders. DESAFIO, OPORTUNIDADE E VICE-VERSA Paralelamente às frentes sanitária e ambiental, o setor de proteína animal precisou se armar para combates também no front de consumo. O mercado de proteínas alternativas, à base de plantas, é uma das coqueluches dos investidores em todo o mundo e uma tendência que parece irrefreável também no Brasil. Faz menos de dois anos que os alimentos plant based abriram de vez a porteira do mercado brasileiro, com a startup Fazenda Futuro e seu Futuro Burger, em maio de 2019. De lá para cá, o segmento já se tornou uma opção de negócios mais que saborosa. Prova disso é a própria Fazenda Futuro. Logo nos três 28
primeiros meses de existência, foi avaliada em US$ 100 milhões (algo próximo de R$ 410 milhões à época). Mesmo em meio à pandemia, o apetite dos investidores pela empresa continuou alto. No início de setembro passado, a startup anunciou a conclusão de uma nova rodada de investimentos, com a captação de R$ 115 milhões, o que fez com que o valor da foodtech passasse a ser estimado em R$ 715 milhões. Já seria um fato bastante relevante se fosse uma iniciativa isolada. Mas basta olhar nas prateleiras de supermercados para notar que as proteínas alternativas ocupam cada vez mais espaço – e em diversas gôndolas. Um levantamento recente do The Good Food Institute Brasil (GFI) sobre esse novo segmento no País encontrou produtos alternativos
em pelo menos 19 categorias de carnes, queijos, ovos e leites. Dez empresas competem na área de carnes, seis na de queijos, seis na de ovos e 13 na de leites à base de plantas. Apenas entre os hambúrgueres, há dez competidores. Como grandes players do mercado global, os principais frigoríficos nacionais entenderam a relevância da nova concorrência e, ao invés de combatê-los de fora, juntaram-se a eles na corrida da proteína alternativa. As gigantes da indústria de carnes se apressaram em apresentar seus próprios itens (incluídos na lista do GFI), que se tornaram linha de produto e unidade de negócio: a Seara começou com o Incrível Burger; a Marfrig lançou hambúrguer vegetal em parceria com o Burger King e criou a linha Revolution; e a BRF investiu na linha Sadia Veg & Tal. O mercado
(GFI), em parceria com o Snapcart, 59% dos entrevistados afirmaram que a preocupação com a saúde era a principal motivação para reduzir o consumo de alimentos de origem animal. Ao entrarem numa área que ainda pode ser vista como nicho, as grandes companhias de proteína animal fazem um movimento de olho no futuro. Visam ampliar sua atuação e não perder esses consumidores, que não são necessariamente vegetarianos, mas também quem apenas quer diversificar ou reduzir a participação das carnes na dieta. Pesquisa realizada pela Ingredion, empresa do setor de ingredientes, em parceria com a
consultoria Opinaia reforça essa tendência. Foram entrevistadas mais de 5,7 mil pessoas em cinco países: Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e Peru. Por aqui, foram pouco mais de 1,5 mil pessoas, e 90% afirmaram estar dispostas a consumir alimentos plant based. Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), afirma que há espaço no mercado para essa diversidade de proteínas, mas faz uma ressalva sobre a descrição dos produtos: “Se não tem carne, não chame de carne. Se não tem leite, não chame de leite. É um alimento vegetal, então chame de maneira correta”.
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atraiu um diverso leque de empresas, como Superbom, Behind the Foods, The New Butchers, Sotille e o Grupo Mantiqueira, com o N.Ovo, opção vegetal para substituir os ovos na panificação e na confeitaria. A expansão do setor plant based é motivada pelo aumento da demanda, que tem duas razões básicas. A primeira é que cada vez mais os consumidores relacionam sua condição de saúde ao que comem. Daí vem a segunda, a multiplicação do público “flexitariano”, o pessoal que está reduzindo o consumo de carnes, mas sem parar de vez. Em pesquisa realizada em 2018 pelo The Good Food Institute Brasil
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Ag Sustentabilidade
A PRIMEIRA SAFRA DAS FINANÇAS VERDES Preocupação crescente com práticas sustentáveis faz deslanchar o mercado brasileiro de green bonds e dá novo impulso aos projetos agrícolas que priorizam a preservação ambiental Por Amauri Segalla
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os últimos anos, a agricultura brasileira consolidou-se como uma das mais sustentáveis do mundo. A adoção de novas tecnologias, a gestão responsável dos recursos naturais e a busca permanente pelo equilíbrio entre produção e preservação tornaram algumas das lavouras do País símbolos internacionais de respeito ao meio ambiente. A revolução verde agora se prepara para dar um passo adiante – transformar a reputação positiva em investimentos rentáveis. A melhor maneira de fazer isso é por meio de green bonds, como são chamados os títulos emitidos para o financiamento de projetos destinados a salvaguardar o planeta, e que necessariamente devem ser auditados por organizações ou empresas independentes.
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O mercado como um todo (incluindo emissões feitas por empresas de energia como a CPFL, indústrias de papel como a Klabin e até redes de alimentos como o Burger King) vive uma explosão sem precedentes. Em 2019, os títulos verdes movimentaram no Brasil US$ 1,2 bilhão, quase seis vezes mais que no ano anterior (US$ 209 milhões), segundo dados da certificadora inglesa Climate Bonds Initiative (CBI). No mundo, foram US$ 260 bilhões, 50% acima do montante de 2018. O crescimento é notável, mas o potencial do setor certamente é maior. “Há uma demanda gigantesca por produtos verdes”, diz Thatyanne Gasparotto, diretora da CBI para a América Latina. “Estão faltando emissões.” Os green bonds são similares aos
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títulos comuns existentes no mercado financeiro, mas com a diferença de que só podem ser usados para bancar projetos sustentáveis do ponto de vista ambiental. Como seus parentes próximos, eles são negociados na bolsa de valores, corretoras ou outras instituições autorizadas pelo Banco Central. Desde 2015 e até agosto de 2020, o Brasil celebrou 50 emissões sustentáveis, que totalizaram US$ 8,1 bilhões. Os dados atualizados, levantados pela empresa de soluções financeiras Sitawi, mostram que a maioria deles está atrelada à exploração de florestas (38%) e à geração de energia renovável (24%). A agricultura descobriu apenas recentemente os incontestáveis benefícios dos green bonds, e seu poder de fogo provavelmente irá desencadear uma tempestade no setor. Nos últimos meses, inúmeros projetos começaram a germinar, e espera-se que a maioria deles dê frutos no futuro próximo. “É na agricultura que o mercado de finanças verdes tem grande potencial de crescimento, impulsionado pelo uso de tecnologias modernas, práticas sustentáveis e aumento da produtividade”, diz Aline Maldonado Locks, CEO da Produzindo Certo, empresa que conecta produtores e companhias comprometidas com a correta gestão dos recursos naturais. “O Brasil é um
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país de enorme potencial para o desenvolvimento de green bonds devido à grande quantidade de projetos na área ambiental.” Uma iniciativa criada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) deverá fomentar os títulos verdes. Em junho, a pasta lançou o Plano de Investimento do Agronegócio Sustentável, que tem por objetivo atrair especialmente investidores estrangeiros para financiar a agropecuária brasileira e, em última análise, fortalecer a imagem de sustentabilidade do país. Em outras palavras: a ideia é capturar bilhões de dólares com o lançamento de títulos atrelados a práticas de conservação ou redução de emissões de carbono. De olho nesse mercado, a Produzindo Certo associou-se à fintech Traive Finance, especializada no agronegócio, e à Gaia Securitizadora, uma das líderes do mercado de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), para estruturar e colocar na praça, ainda na atual safra, uma inédita operação de finanças verdes. “Com os recursos obtidos, pretendemos formatar um modelo de crédito agrícola inovador para produtores rurais”, afirma Luís Eduardo Lapo, diretor de riscos da Traive. Segundo o executivo, o projeto está na fase de captação de recursos e a ideia é que o dinheiro chegue ao destino – o PLANT PROJECT Nº22
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produtor – antes do final do ano. Estima-se que o programa acumule R$ 100 milhões para financiar até 50 projetos. A participação da Produzindo Certo não apenas dá credibilidade à iniciativa como torna os processos mais dinâmicos. A empresa, que se originou da ONG Aliança da Terra, conta com 1,5 mil propriedades cadastradas em sua plataforma, todas elas reconhecidas pela produção sustentável em diferentes biomas de 14 estados brasileiros. No total, são 5 milhões de hectares monitorados, incluindo análise da situação socioambiental das fazendas, identificação das ações necessárias para que elas possam se adequar aos parâmetros legais e assistência técnica na execução de medidas sustentáveis. Todos os requisitos, ressalte-se, são indispensáveis para a emissão de títulos verdes. Em razão de sua expertise, a Produzindo Certo mantém parcerias com grandes empresas de diversos setores. Entre outras ações, ajudou a identificar para a operação brasileira, da britânica Unilever, fornecedores de soja que incorporam a proteção do meio ambiente em suas lavouras e qualificou para o GPA, maior grupo de varejo alimentar da América do Sul, pecuaristas da raça bovina Rubia Gallega, cuja carne é fornecida com exclusividade 34
para a corporação. O mercado brasileiro de green bonds é, de fato, um dos mais promissores do mundo. No final de julho, a alemã Bayer lançou um programa que tem como ideia central remunerar quem é capaz de produzir e, ao mesmo tempo, preservar o planeta. Chamado de Iniciativa Carbono Bayer, o projeto pagará a produtores pela captura de carbono em áreas agrícolas. Por ora, apenas Brasil e Estados Unidos integram a proposta, o que confirma a relevância dos dois países para a agricultura global (a Alemanha, nação origem da Bayer, não foi contemplada por enquanto). No Brasil, a empresa selecionou 500 produtores de soja e milho de 14 estados, o que assegura a presença de diferentes biomas nas análises. Segundo a empresa, os agricultores receberão assistência para a implementação de ações sustentáveis, além do acesso a conteúdos técnicos e acompanhamento permanente das safras pelas equipes da Bayer. A ideia é medir a quantidade de carbono sequestrada nas lavouras e, a partir daí, pagar aos produtores um valor equivalente ao volume de CO2 removido da atmosfera. Ou seja: a empresa cria uma ponte que encurta a distância entre os produtores brasileiros e o mercado mundial de compra e venda de carbono. A Bayer
investirá R$ 5 milhões no programa. “Existe uma pressão muito forte da sociedade para que as empresas ajudem a preservar o meio ambiente”, diz Eduardo Bastos, diretor de Sustentabilidade da divisão agrícola da Bayer no Brasil. “O nosso projeto está sintonizado com esses anseios.” A Iniciativa Carbono Bayer conta com o apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que ajudará na medição e análise do carbono capturado no solo. Imagens de satélite e lasers, entre outras técnicas, serão utilizadas na leitura das áreas produtivas. “Um dos nossos desafios é realizar a medição da maneira mais confiável possível”, diz Luís Barioni, pesquisador da Embrapa Agropecuária Informática. E isso, claro, sem aumentar custos, o que tornaria a iniciativa inviável. No primeiro momento, a Bayer selecionou 50 produtores, que darão início imediato ao projeto. Uma das primeiras fazendas escolhidas foi a Nossa Senhora Aparecida, localizada em Água Fria de Goiás (GO). Exportadora de soja para a China e produtora de milho, feijão e trigo, entre outros itens, a unidade é parceira da Bayer há três anos. “A produção sustentável está se tornando um diferencial para os agricultores”, afirma Kaio Fiorese, diretor agrícola da fazenda. “Com o novo projeto, manteremos nosso compromisso com a preservação,
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mas também seremos remunerados por isso.” Trata-se de uma grande transformação. Até pouco tempo atrás, a adoção de práticas sustentáveis na produção agrícola era dispendiosa, o que acabava afastando muitos fazendeiros. Com o avanço tecnológico, isso começou a mudar. Ser sustentável, afinal, não precisa necessariamente ser caro. Agora, os agricultores também descobriram que preservar o meio ambiente é, acima de tudo, uma questão comercial. Quem não se preocupar com o tema será excluído do novo tabuleiro econômico global. A sustentabilidade tornou-se uma espécie de mantra do mundo atual, e as empresas que não estiverem atentas ficarão fora do jogo. A Bayer acrescenta um novo elemento a esse cenário. Agora, ser sustentável significará ter dinheiro no bolso. Além de recompensar financeiramente os agricultores pelo sequestro de carbono, a empresa fornecerá créditos para a compra de produtos. Os títulos verdes são mesmo um caminho sem volta. No início de setembro, o Grupo Ecoagro e a Rizoma Agro fizeram a primeira emissão de green bonds do mundo a partir de novos critérios estabelecidos pela Climate Bond Initiative (CBI) para o setor agrícola. A captação resultou em R$ 25
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Diniz, da Rizoma, e Aline Locks, da Produzindo Certo: agricultura pode gerar salto de operações com títulos verdes
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milhões convertidos em Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), títulos de renda fixa lastreados em negócios rurais. Segundo a Rizoma Agro, os recursos serão destinados para a expansão da agricultura regenerativa orgânica, uma das especialidades da empresa, em uma área de 1,2 mil hectares onde são cultivados milho, soja e feijão, entre outros alimentos. “Esse é um marco importante para o agronegócio brasileiro, que agora conta com uma nova fonte de financiamento para projetos de regeneração ambiental”, disse Pedro Paulo Diniz, sócio-fundador da empresa e ex-piloto de Fórmula 1, durante a apresentação do negócio. Criada em 2018, a Rizoma é a maior produtora de 36
grãos e leguminosas orgânicas do Brasil. A agricultura brasileira deverá receber no futuro próximo uma avalanche de investimentos oriunda dos green bonds. Segundo estimativa feita recentemente por Justine Leigh-Bell, diretora de Desenvolvimento da CBI, o mercado nacional tem potencial para captar R$ 700 bilhões em emissões verdes em um período de poucos anos. Sob qualquer ângulo, é sem dúvida muito dinheiro. Para efeito de comparação, isso corresponde a quase metade do PIB do agronegócio brasileiro. De todo modo, o país está atrasado. Segundo os dados mais recentes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a América Latina e o Caribe
respondem por apenas 2% do volume total de recursos movimentados todos os anos por intermédio dos títulos verdes. Não faz sentido um país como o Brasil, um dos maiores produtores agrícolas do mundo, ficar na lanterna desse mercado. Por isso mesmo, provavelmente os projetos irão deslanchar. O carimbo da sustentabilidade é inegavelmente um atrativo para investidores. Na Conferência do Clima da ONU, a COP-25, realizada no final do ano passado em Madri, na Espanha, 600 investidores institucionais, que controlam US$ 37 bilhões em ativos, assinaram um compromisso com as metas do Acordo de Paris, que prevê a transição para uma economia de baixo carbono. Nesse
Sustentabilidade
contexto, os títulos verdes são a bola da vez. “Para nós, isso não é caridade, mas business”, disse Octavio de Lazari Jr., presidente do Bradesco, em videoconferência recente transmitida pelo jornal O Globo. O executivo foi além. “Se a percepção do investidor estrangeiro sobre o Brasil se tornar melhor, os brasileiros e as empresas brasileiras vão ganhar também.” No mesmo evento, Sergio Rial, presidente do Santander, destacou o tremendo potencial do mercado da sustentabilidade. “O Brasil pode se tornar referência econômica na área”, disse. Em 2015, o Santander estruturou a primeira operação com um emissor brasileiro, com a captação de 500 milhões de euros para um projeto da BRF. No mercado nacional, já participou de dez emissões, que totalizaram R$ 4 bilhões. O mercado de investimentos ligados a questões ambientais pode até estar no estágio inicial no Brasil, mas a largada foi dada – e já provoca impactos em diversos setores. A B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, prepara uma reformulação do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), principal referência para destacar a atuação sustentável das empresas. Surgido há 15 anos, o ISE é formado atualmente por 36 ações e 30 companhias que, juntas, têm valor de mercado de aproximadamente
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R$ 1,6 trilhão. Agora, a B3 quer tornar o ISE mais atrativo para os investidores. Uma das propostas é alterar as métricas de avaliação das empresas, adotando principalmente o conceito ESG (do inglês Environmental, Social and Governance), que consiste em melhores práticas ambientais, sociais e de governança. Apenas no segundo semestre, a indústria global de fundos ESG alcançou US$ 1 trilhão de patrimônio, o que dá a dimensão da força do segmento. Melhor ainda: um levantamento feito pela BlackRock, a maior gestora do mundo, constatou que 94% dos investimentos sustentáveis que seguem os princípios ESG tiveram desempenho melhor do que os seus pares. Entre as mudanças consideradas pela B3 para inserir o Brasil nesse mercado está a incorporação de relatórios do Carbon Disclosure Project (CDP), entidade sem fins lucrativos que opera um sistema global de divulgação da pegada de carbono das companhias. Ao mesmo tempo, a Bolsa de São Paulo trabalha no desenvolvimento de uma plataforma para a negociação de crédito de carbono, o que certamente dará impulso extra ao mercado brasileiro de green bonds. Como se vê, seja na agricultura, seja nas finanças, o futuro é verde. PLANT PROJECT Nº22
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O PORTO DO AGRO Vantagens geogrรกficas, capacidade para atrair investimentos e infraestrutura moderna fazem do Porto do Itaqui, no Maranhรฃo, um dos mais eficientes para o agronegรณcio brasileiro
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No início de setembro passado, o Brasil ganhou um novo marco logístico. Trata-se da segunda fase do Terminal de Grãos do Maranhão (Tegram) do Porto do Itaqui, uma das mais importantes obras de infraestrutura para o desenvolvimento do agronegócio brasileiro. O projeto recebeu R$ 260 milhões em investimentos da iniciativa privada e abrirá caminho para que o Itaqui quase dobre a movimentação anual de grãos, que poderá chegar a impressionantes 20 milhões de toneladas – para efeito de comparação, o número equivale a quase 10% de toda a produção nacional de grãos. Sob diversos aspectos, a iniciativa representa um grande passo para reforçar o papel do porto público como um dos mais relevantes do País. “Com o Novo Tegram, o Itaqui se fortalece como o grande porto da agricultura brasileira”, diz o governador do Maranhão, Flávio Dino. De fato, a nova fase colocará definitivamente a saída pelo Maranhão como uma das mais eficientes e rentáveis opções para a exportação de grãos e importação de insumos para as lavouras das mais pulsantes fronteiras agrícolas do País. O novo terminal beneficia diretamente os produtores da região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e do nordeste do Mato
Grosso, mas estende seus benefícios também para outras regiões. Graças à sua proximidade desses polos agrícolas, onde avança sobretudo o plantio de soja e milho, ele irá proporcionar maior agilidade no escoamento da safra para mercados estratégicos, como o europeu e o asiático. “Estamos cada vez mais preparados para contribuir para a expansão do agronegócio brasileiro”, diz Ted Lago, presidente do Itaqui. O novo terminal trouxe diversas inovações. Segundo Marcos Pepe Bertoni, diretor do consórcio Tegram, a segunda fase do projeto foi baseada na duplicação da moega ferroviária do porto, na instalação de novas esteiras de recepção e na aquisição de um shiploader com capacidade para carregar 3 mil toneladas por hora. “Tudo isso irá contribuir para a duplicação de nossa capacidade atual”, destaca Bertoni. O consórcio que administra o Tegram é formado pelas empresas Terminal Corredor Norte (ligada à trading NovaAgri, do grupo japonês Toyota Tsusho), Glencore Serviços (da trading Glencore), Corredor Logística e Infraestrutura (braço do Grupo CGG) e ALZ Terminais Portuários (das tradings Amaggi, Louis Dreyfus e Zen-Noh Grain). Os projetos de modernização, os investimentos
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Carregamento de soja, granel líquido e Embarque de celulose, (da esq. para a dir): novas áreas garantem movimento recorde no Itaqui
constantes e a gestão profissional colocaram o Itaqui em um lugar de destaque no mapa portuário brasileiro. Em 2019, os 25,2 milhões de toneladas de cargas transportadas representaram um avanço de 12% sobre o resultado de 2018 – nenhum público entre os cinco maiores no Brasil cresceu tanto no mesmo período. As exportações foram responsáveis por 13,7 milhões de toneladas em 2019, ou 54% da movimentação total. O principal mercado atendido pelo Itaqui é o de grãos, mas o transporte de combustíveis, fertilizantes e celulose também é vital para a solidez do porto. Não é só. A gestão da Empresa Maranhense de Administração Portuária (Emap), que administra o Itaqui, é reconhecida internacionalmente. O porto conta com dupla certificação, uma de qualidade de serviços (ISO 9001:2015) e outra ligada à gestão ambiental (ISO 14001:2015). Em 2020, outras duas certificações (nas áreas de segurança da informação e segurança do trabalho) estão previstas, o que diferenciará ainda mais as operações do Itaqui em relação aos seus pares. A visão da Emap é ser, até 2022, uma empresa referência em gestão portuária no Brasil. MAIS PERTO DOS MERCADOS O que explica o crescimento expressivo das cargas transportadas, muito acima da média nacional, e o reconhecimento do Itaqui como um dos mais completos portos do País? Inúmeras razões justificam o notável desempenho e a ótima reputação. Uma vantagem inquestionável do Itaqui diz respeito à sua localização geográfica. Entre os grandes portos, ele é um dos mais próximos dos principais mercados internacionais do agronegócio brasileiro (veja no infográfico ao final da reportagem). Uma simples comparação demonstra por que está à frente nesse aspecto. A distância do Porto do Itaqui para o Porto de 40
Valência, na Espanha, é de 3.566 milhas náuticas. O Porto de Santos, por sua vez, fica a 4.764 milhas náuticas daquele destino. Em termos logísticos, a diferença é significativa. Para a Europa e os Estados Unidos, a vantagem geográfica equivale a cinco dias a menos de viagem. Outra virtude do Itaqui diz respeito a suas amplas conexões. No País, nenhum outro porto utiliza tanto o modal ferroviário, que responde por 55% no total de cargas transportadas. Além de ser o sistema mais eficiente do ponto de vista operacional, as ferrovias encurtam distâncias. Atualmente, o Itaqui utiliza as ferrovias para receber grãos, celulose e cobre e para expedir combustíveis para as principais cidades de sua área de influência e futuramente a utilizará também para fertilizantes e contêineres, inclusive refrigerados. Elas também permitem que o porto atenda estados em três regiões brasileiras. Teresina, no Piauí (Nordeste), é acessada pela Transnordestina. Palmeirante, no Tocantins (Norte), pela Carajás/ Norte-Sul, ferrovia que também chega a Anápolis (GO), no Centro-Oeste. Esses são apenas alguns exemplos que confirmam os amplos campos de atuação do Itaqui. Se forem consideradas todas as conexões, o complexo portuário é ligado pelas ferrovias Norte-Sul (da VLI), Norte-Sul (da Rumo), Estrada de Ferro Carajás (EFC) e a Transnordestina. “A intermodalidade entre a VLI e o Porto do Itaqui vem colhendo bons frutos para as cargas de grãos, combustível e celulose”, diz Rodrigo Ruggiero, diretor de Planejamento e Integração da VLI. “O Itaqui é parte crucial de um sistema que conecta malha rodoviária, ferrovia e porto, permitindo ao agronegócio contar com uma rota mais eficiente e adequada para grandes volumes.” Ruggiero destaca que o Terminal Portuário São Luís, administrado pela VLI, movimentou 4,1
milhões de toneladas de grãos no ano passado, um avanço de 22,7% sobre o ano anterior. A soja liderou os negócios, com 2,6 milhões de toneladas, seguida do milho, com 1,4 milhão. A soja é, de fato, o carro-chefe do Itaqui, que se consolidou como um dos três portos que mais exportam o grão no País. Os combustíveis representam o segundo maior mercado atendido pelo Itaqui. Em 2019, foram movimentados 8 milhões de toneladas, o equivalente a 32% do volume total. Como resultado, o Itaqui firmou-se como o terceiro maior porto de movimentação de graneis líquidos do Brasil. A maior parte dos combustíveis vem dos Estados Unidos, que respondem por 78% do total, à frente da Holanda (10%) e dos Emirados Árabes Unidos (5%). A infraestrutura para granéis líquidos está em fase de ampliação, com projetos liderados pela Granel Química, Raízen e Ultracargo, além da perspectiva de licitação para o arrendamento de mais quatro áreas para novos terminais. Iniciativas como essas devem gerar mais de R$ 500 milhões em investimentos. A vocação eclética do Itaqui faz com que outras áreas também se destaquem. De janeiro a junho, a movimentação de fertilizantes atingiu a marca expressiva de 1,2 milhão de toneladas, o que corresponde a um crescimento recorde de 50% em relação ao mesmo período do ano passado. Novas marcas deverão ser quebradas com a entrada em operação do novo terminal de fertilizantes da Companhia Operadora Portuária do Itaqui (Copi), o que deve ocorrer nos próximos meses. O projeto receberá aportes de R$ 140 milhões, um sinal inequívoco da renovada confiança no porto. “O Porto do Itaqui hoje é a principal porta de entrada de fertilizante para o Arco Norte, e este empreendimento garantirá um rápido desenvolvimento para o agronegócio da região do Matopiba, incluindo o Vale
do Araguaia/MT e o sudeste do Pará". diz Clawiston Mantovani, diretor Administrativo e Financeiro da companhia. Segundo o executivo, os fertilizantes movimentados pelo Itaqui são originários principalmente do Egito, de Israel e da Rússia. Ao chegar ao país, o produto é distribuído para a região do Matopiba. Uma das explicações para o crescimento do Itaqui nos últimos anos se deve à parceria entre a administração pública e a iniciativa privada. A gestão transparente, pautada em regras severas de governança, traz a confiança necessária para que empresas de diversos setores se interessem em investir no porto. Há inúmeros exemplos. No ano passado, a fabricante de papel e celulose Suzano venceu o leilão para operar uma área de 53 mil metros quadrados no Itaqui. A concessão do local por um prazo inicial de 25 anos resultará em investimentos de R$ 215 milhões para a construção de um novo terminal portuário. Poucos empreendimentos no País têm captado tantos recursos. O atual ciclo de desembolsos prevê R$ 1,4 bilhão em projetos de expansão e modernização, considerando os investimentos públicos em infraestrutura portuária e, sobretudo, o aporte de capital privado no aumento da capacidade dos terminais. “O Porto do Itaqui se transformou em um grande polo de atração de investimentos”, diz o governador Flávio Dino. “Isso é ótimo não apenas para o Maranhão, mas para todo o Brasil.” A gestão da Emap, que administra o Itaqui, é reconhecida internacionalmente e tem dupla certificação, em qualidade de serviços (ISO 9001:2015) e gestão ambiental (ISO 14001:2015) Visão da Emap: Ser até 2022 uma empresa referência em gestão portuária no Brasil
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AOsROTA DO CRESCIMENTO números, as conexões e as vantagens competitivas do Itaqui MAIS PRÓXIMO DOS PRINCIPAIS MERCADOS INTERNACIONAIS Em milhas náuticas Porto do Itaqui Porto de Santos PORTO DE ALEXANDRIA Egito
PORTO DE HOUSTON EUA
4.977*
Porto de Valência
Porto de Houston
Porto de Alexandria
3.575 5.510
6.175* PORTO DE VALÊNCIA Espanha
Porto do Itaqui
3.566** 4.764** * via Canal do Panamá ** via Estreito de Gibraltar
Vantagem geográfica
Alcance global O Porto do Itaqui conecta o Brasil com os principais mercados internacionais. Em 2019, recebeu 830 navios e movimentou cargas para 81 países
5 dias a menos para acessar mercados da Europa e EUA Até
AP
MAIS PERTO DA PRODUÇÃO
Porto do Itaqui São Luiz
O caminho mais curto entre as principais fronteiras agrícolas e o mar
Fortaleza PA
MA Porto Franco
CE
RN PB
PI
PE
Confresa TO
AL
Porto Nacional
SE
BA
MT
788 km Itaqui – Porto Franco Sul do MA
ES
Itaqui – Confresa Alto Araguaia - MT
SP RJ
Ferrovia Norte-Sul VLI Ferrovia Norte-Sul RUMO Ferrovia Transnordestina Estrada de Ferro Carajás EFC
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Todos os caminhos levam ao Itaqui Participação dos modais de transporte no total de cargas movimentadas
15%
Transbordo
55%
Ferrovias
30%
Rodovias
1.600 km
MG
PR
para a Ásia, se comparado a portos do Sul e do Sudeste
1.693 km Itaqui – Porto Nacional TO
9 dias a menos
Ferrovias O Itaqui é o porto que mais utiliza o modal ferroviário. As conexões com importantes ferrovias possibilitam expedir e receber cargas de uma grande área de influência nos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará e Mato Grosso
Gigante em crescimento Condições únicas, propícias para navios de grande porte
8
berços de operação
37,5
O berço B-106 tem a maior profundidade natural do Brasil
R$ bilhões
foi o total de cargas movimentadas (em valor)
Armazenagem 510 hectares de área para infraestrutura 5 terminais de granéis sólidos 2 terminais de carga geral 5 terminais de granéis líquidos 2 pátios de contêineres
Nova fase Já entregues
Carga movimentada
Até o final de 2025 o Itaqui terá capacidade para movimentar
Principais mercados atendidos
36
milhões de toneladas
Agroindústria (grãos, fertilizantes e celulose) Energia (combustíveis) Mineração Varejo (contêineres)
de cargas
Investimentos A carteira de projetos do Porto do Itaqui está avaliada em
R$ 1,4 bilhão
, considerando obras em execução, leilões agendados e projetos em modelagem
Fonte: Plano Mestre do Porto do Itaqui
A rota da comida Commodities agrícolas são os principais produtos exportados pelo Itaqui, juntamente com ferro-gusa, cobre e manganês
da soja exportada pelo Itaqui segue para a Ásia. A África é o principal destino do milho, comprando 36% do total movimentado pelo Itaqui
Novo berço 99, novo terminal de celulose e quatro novos terminais de combustíveis
Novos terminais de fertilizantes e de combustíveis
12% de crescimento em relação a 2018 (o maior crescimento entre os cinco maiores portos públicos do Brasil)
89%
Até o final de 2022
Segunda fase do Tegram (Terminal de Grãos do Maranhão)
25,2 milhões de toneladas de cargas movimentadas em 2019
Na importação, os principais produtos são fertilizantes, carvão, trigo, arroz e clínquer para a fabricação de cimento
12 a 19 metros de profundidade
Grãos Representam 82% do total das exportações. É o terceiro porto no Brasil que mais exporta soja
Celulose Novo terminal com armazém, ramal ferroviário e berço para movimentação de cargas consolidará a exportação
Fertilizantes Em 2019, as cargas de fertilizantes chegaram a 2 milhões de toneladas, um avanço de 11% sobre o ano anterior
Combustíveis Um dos principais mercados atendidos, com 8 milhões de toneladas movimentadas em 2019 PLANT PROJECT Nº22
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Com Paulo Sousa Assista aos vídeos desta e de outras entrevistas na página da série Plant Talks. Use o QR Code para acessar.
PAULO SOUSA 52 ANOS, CASADO PRESIDENTE DA CARGILL NO BRASIL ZOOTECNISTA FORMADO PELA UNIVERSIDADE DE UBERABA MBA EM ADMINISTRAÇÃO PELA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
O
zootecnista Paulo Sousa usa uma ampulheta como analogia para explicar o papel da Cargill – empresa que lidera no Brasil há apenas um ano – e de suas concorrentes no complexo cenário da produção de alimentos. Segundo ele, gigantes globais como a companhia americana, responsáveis por grande parte do comércio internacional de commodities agrícolas, são como aquela parte estreita que regula a passagem de areia de uma metade para a outra do objeto. Uma dessas metades representaria o mercado consumidor. A outra, a cadeia produti-
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va. Entre elas, cabe às traders a função de filtrar e moderar informações, pressões e tendências, buscando soluções possíveis entre dois universos com interesses muitas vezes conflitantes. Não é uma posição corriqueira, sobretudo em uma conjuntura em que os debates são cada vez mais acalorados em questões como rastreabilidade e sustentabilidade da produção agrícola, modelos de comercialização e crescente digitalização dos negócios. Nesta entrevista para a série PLANT TALKS, ele fala abertamente sobre todas elas e aponta os desa-
fios de sua gestão. Confira, a seguir, os principais trechos. As traders enfrentam desafios em função de cenários de digitalização, de pressões referentes a questões de sustentabilidade dos fornecedores e da produção. Então, a ideia é começar justamente falando dos principais desafios que você encara nesses primeiros meses no comando da Cargill e que serão relevantes para o restante da sua gestão. De certa forma são os temas que você ressaltou aqui e eu anotei. Vou
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falar um pouco da empresa para contextualizar e depois podemos entrar em cada ponto. A Cargill é uma empresa que tem 155 anos de existência. É a maior empresa de capital fechado do mundo. Estamos aqui no Brasil há 55 anos. Aqui há dois fatores relevantes. Uma empresa muito tradicional. A família é presente no conselho. Ela não está presente em cargos executivos. Todo o gerenciamento do dia a dia dela é 100% profissional, tanto obviamente na matriz como aqui no Brasil. Temos um board composto de, mais ou menos meio a meio, conselheiros externos e pessoas que são acionistas da família. Isso, em si, já é um fato excepcional. Ter uma família no comando há tanto tempo, ainda que hoje esteja no conselho, uma empresa familiar com essa longevidade, mantendo o sobrenome é incrível, demonstra uma fortaleza da companhia... Exatamente. É um diferencial da Cargill. Isso traz uma agilidade de decisão forte. E ela não é gerenciada por quarters, não é focada em resultado trimestral. As empresas de capital aberto, principalmente nos Estados Unidos, têm muito esse foco de estar preocupado sempre com sua próxima declaração de resultados por trimestre. Os acionistas da Cargill, a empresa como um todo tem um foco muito grande de longo prazo. A maior parte dos nossos resultados é sempre reinvestida. Tem uma cultura dos acionistas da Cargill de grande peso em reinvestimento nos lucros na atividade. A
empresa vem crescendo de uma maneira bastante sustentável pelas últimas décadas. Estamos há 55 anos no Brasil, isso nos traz um conforto de lidar com as nossas idiossincrasias. Praticamente toda gestão aqui é feita por brasileiros ou por sul-americanos e estamos acostumados com esses solavancos que às vezes acontecem aqui abaixo do Equador. Existe um comprometimento muito grande com o Brasil, onde está a terceira maior operação global da Cargill. Éramos segundo até passado recente, por conta do nosso tamanho na China, que era grande, mas não proporcional ao tamanho do mercado chinês. A Cargill na China tem crescido nos últimos anos e acabou crescendo mais rápido do que a gente. É sempre bonito falar que é o segundo maior, mas eu prefiro ser o terceiro maior, sendo que o segundo é a China, que é um grande comprador dos produtos que o Brasil exporta, do que me gabar de ser o segundo e ter dificuldade de acessar o mercado Chinês. O crescimento lá garante resultado aqui, não é? Resultado aqui e crescimento aqui também. Se olhar até expandindo fora da Cargill, o que a agricultura brasileira cresceu nos últimos 20 anos foi quase par e passo com o crescimento da economia chinesa. A China é um grande comprador, de praticamente todas as commodities brasileiras, e nosso crescimento é bem conectado. Eu diria que há um cordão umbilical ligando nosso crescimento aqui, setor exportador dos commodities brasi-
leiras, com o mercado brasileiro para o mercado chinês. Como é a disputa por investimentos para o Brasil dentro de um cenário de empresa global? Na hora de discutir investimentos você tem que criar disputas por investimentos. Eventualmente nós temos aqui na região uma visão, uma proposta. Só que, claro, a empresa toma decisões de caráter global. Não necessariamente o nosso empreendimento aqui pode ser o que traz o melhor retorno para o capital do acionista ou o melhor alinhamento estratégico para a visão de futuro da empresa. Às vezes isso é meio frustrante. Comparada aos nossos concorrentes, a Cargill é muito mais diversa, tem um portfólio de produtos e de mercados bem mais amplo que os demais. Então às vezes tem aquela dor de cotovelo: “Ah, meu concorrente consegue investir nisso aqui para nós, às vezes é um processo um pouco mais completo, ou tem outras coisas na frente!”. O lado bom é que essa própria diversidade de portfólio nos protege. Nesse passado recente, em que o setor de trading mesmo ou o setor exportador agrícola esteve meio sobre pressão, o nosso portfólio global manteve os resultados da empresa no nível esperado pelos acionistas, e sem maiores solavancos. De novo, o principal desafio é a disputa por investimento, que é uma disputa muito saudável sobre o ponto de vista dos acionistas. Ainda mais quando se entra agora em termos mais de assuntos polarizantes como sustentabilidade. Essa é uma PLANT PROJECT Nº22
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Com Paulo Sousa
dificuldade de uma empresa global. Não acho que é um problema, mas é uma dificuldade. Por quê? Deixa eu dar um exemplo. Se você é uma empresa 100% brasileira, daqui do Brasil você exporta para o mundo, você está ouvindo feedback dos seus clientes, mas você está aqui e pensa: “Meu negócio é ser competitivo no Brasil”. Apesar de ser uma empresa que exporta para o mundo, vai ter um olhar bem local. Quando sua empresa é global de verdade, tem fábricas sua nos países de destino, aqueles que recebem as exportações de um país como o Brasil têm quartel-general em um país que não recebe exportação brasileira mas coordena todo mundo, e você está aqui no Brasil, inserido nesse ambiente, vira um balaio de gatos. Tem a pressão, muito forte às vezes, de grupos de consumidores, grupos de clientes, de ONGs em cima de um fluxo que, para nós no Brasil, parece uma coisa totalmente absurda ou totalmente distorcida, e a verdade não está nem conosco e nem com eles. Fica uma situação meio conflitante para achar qual caminho seguir. De novo, também é uma característica da empresa global. Acho que o lado positivo dessa dificuldade é que acabam surgindo soluções bem mais balanceadas, bem mais equilibradas entre países de origem e países de destino. Uma questão como essa de sustentabilidade pode ser um fator de desequilíbrio na disputa interna por investimentos? 46
Sim, tem peso. Nós já deixamos de fazer investimento aqui no Brasil por conta da falta de clareza, dessa visão em relação ao quão sustentável é o futuro daquele negócio específico. Uma aquisição que não aconteceu por conta de incertezas de como ela ia se adequar aos nossos compromissos globais de sustentabilidade. O negócio acabou saindo por outro lado, mas para nós foi um problema pela nossa falta de sincronia ou de capacidade de chegar a um denominador comum. Aí, creio, é falha nossa, como Brasil, de vender melhor a história. Falha também do lado da demanda de melhor caracterizar o problema, melhor definir: “Olha, o nosso problema é esse. Soluciona esse problema que a coisa vai!”. Esse foi um caso que serviu como uma lição para nós, de que primeiro o problema tinha que estar muito bem descrito, senão você acaba dispersando energia ou perde tempo para solucionar coisas que não são o real entrave. Aprendemos de maneira dura que temos que ser um pouco mais ágeis. Muitas vezes não dá para esperar ter todos os pontos de dúvida para serem corrigidos com investimento. Bem relevante também é a visão que criamos depois de um tempo de que as cadeias de suprimentos serão melhores com a nossa presença. Temos clientes globais ou mesmo locais que têm interesses e veem valor que a Cargill participe. Depois que conseguimos adequar essa filosofia e colocá-la em prática, se tornou bem mais fácil. É uma coisa que a gente tem que zelar. Nossos clientes que aplaudem
“Já deixamos de fazer investimento aqui no Brasil por conta da falta de clareza, dessa visão em relação ao quão sustentável é o futuro daquele negócio específico.”
nossa participação, então essa questão já está um pouco mais domesticada, um pouco mais pacificada. Qual é o papel de uma empresa como a Cargill na melhoria desse ambiente de negócios? Digo ambiente em vários sentidos, na questão ambiental com a produção responsável pelos seus fornecedores e também no ambiente de mercado, com políticas que valorizem os produtores que investem para se tornar sustentáveis e agir dentro das melhores práticas socioambientais. Vamos dividir as duas perguntas, que são bem boas, bem relevantes. Enquanto você estava falando eu estava buscando uma coisa na minha mesa aqui. Tem um brinde nosso antigo aqui, está bem velhinho, é uma ampulheta. Esse setor que nós estamos, podemos generalizar como trading, é como esse gargalo [mostra a parte mais estreita no centro da ampulheta]. Na parte de cima
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você tem o mercado dos consumidores e aqui [na outra ponta] você tem o lado da oferta, a produção, agricultores. Nosso papel está aqui, fazer a conexão entre esses dois. Então o que acontece? Para você conseguir fazer uma alteração na parte de cima é um grau de energia grande que tem de gastar, porque é muita coisa, muita massa. Na parte de baixo também, boa sorte. Se for conectar, por exemplo, todos os produtores sobre alterações de tecnologia ou de uso da terra, vai ser um belo trabalho, mas um trabalho hercúleo. E o Hércules não está mais entre nós. Então é meio difícil de fazer. Agora, se você vem aqui no gargalo e consegue acertar de modo que nesse filtro só passe aquilo que esteja de acordo com o que a parte de cima quer, e vice-versa, tem que passar por nós e ir usando as ferramentas de mercado para que uma das partes sinta o interesse e a necessidade de agradar, por assim dizer, a outra parte. Então, o primeiro ponto é que as traders são a conexão entre o mercado de destino e o mercado de origem, entre o ponto de produção e o ponto de consumo. É o papel natural nosso transmitir de um lado e de outro o que querem e o que dá para ser feito, trazer e equilibrar as equações. Esse é o principal papel, social e econômico,
das empresas globais de distribuição de elementos. Também existe aí um papel nosso de alertar governos e outros stakeholders, outros influenciadores, sobre o que está acontecendo e o que pode acontecer. Indo para outra parte da pergunta, como fazer com que os produtores que estão na frente, estão em um caminho melhor, tenham benefício... Nós já temos um caso de sucesso que é a soja 3S, nosso programa de soja sustentável, soja em grão mesmo produzida de maneira sustentável que enviamos para a Europa. É um mercado com um pouco de nicho, mas paga um prêmio para o produtor que se enquadra nesse programa. Você saberia dizer quantos produtores estão envolvidos nesse projeto? Não sei te precisar o número, mas é bem pulverizado [são mais de 100 produtores e 170 propriedades, em seis estados]. Esse é um sistema que chega a remuneração para a frente. Isso eu diria que é um grande desafio que nós temos na sustentabilidade da cadeia da soja hoje, principalmente no que se refere ao desmatamento, que é o grande ponto de dor. Como beneficiar, como existe o curso de oportunidade para o produtor rural? Se ele tem terra
em bioma natural que pode ser convertida legalmente na agricultura, por que ele vai deixar de fazer? “Ah não, tem que ir em cima de área de passagem degradada”, essa é a resposta que a gente escuta mil vezes por dia. Legal. Mas e se você não tem área degradada na sua propriedade? Para o produtor, normalmente é muito mais barato ir em cima de área degradada do que fazer conversão de bioma natural para a agricultura. Mas uma vez que você esgotou a área degradada, você tem um cerrado nativo que está totalmente dentro do código florestal, vai deixar de fazer? Vai comprar outra área degradada? Vai vender as áreas nativas que tem para comprar degradada porque é mais bem aceita? E quem comprar a área nativa vai fazer o quê? Vai derrubar igual! Esse sistema só vai ser corrigido quando houver uma maneira de compensar o produtor por serviços ambientais, que é algo que infelizmente tem muita conversa, o que é bom, mas ainda vejo pouco tutano aí nessa conversa. Acho que ainda tem que amadurecer um pouco mais. Uma das discussões que tem acontecido é o pagamento para manutenção de carbono. Seria aplicável com certeza para o Bioma Amazônico. Para o Cerrado seria um pouco mais complicado, pelo menor volume de carbono armazenado, por assim dizer. Então é um dos dilemas de como monetizar para o produtor que está aliado nas melhores práticas de sustentabilidade e também de conservacionismo. Até agora o mercado ainda não logrou em chegar com a solução. PLANT PROJECT Nº22
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Com Paulo Sousa
A gente vê um avanço muito maior no mercado, por exemplo, de crédito carbono, e outras indústrias, como a de energia, em que o volume de créditos comercializado é enorme. Na agricultura ainda não é assim. Isso demonstra que a agricultura não consegue mensurar efetivamente o ganho do que tem no sequestro de carbono ou mesmo na manutenção do carbono? Acho que tem setores e setores. Vamos olhar o setor de açúcar e etanol e o que está acontecendo já com os CBios Começou agora, mas está indo bem, dá ânimo. Agora vamos colocar os outros setores da nossa agricultura: soja, milho, lavouras de ciclo curto. É uma conversa bem mais complicada. A grande dificuldade é a mensuração. Você já viu uma mensuração clara, exata, do balanço de carbono, da produção de soja no Brasil? Eu ainda não vi. Acho que o primeiro problema começa por aí. Depois, algo que possa ser auditado, certificado, que gera credibilidade para ser comercializado. Disse que, nos CBios, o começo é animador. Há quantos anos está falando de CBios? Uns quatro, que eu me lembre. Então leva um certo tempo. Esse ano aí, talvez em reflexo da pandemia e toda a indústria de carbono do hemisfério norte, o assunto tomou um impulso muito grande. Já dá para sentir que está bem mais perto de nós essa discussão, termos bem práticos aqui no Brasil. Tem lideranças do setor, todo mundo querendo saber, querendo entender. A coisa vem chegando e 48
temos que buscar maneiras de monetizar para aquele produtor que realmente presta serviços ambientais, querendo ou não. Quais são as políticas que hoje a Cargill adota em termos de aquisição de grãos principalmente, do ponto de vista de rastreabilidade, verificação de origem? Vocês têm uma meta de prazo para comprar só soja verificada, só milho verificado? Nós temos um código de compra de grãos que reza uma série de requisitos para comprar do fornecedor. Isso é aplicado. Em algumas regiões como o Amazonas, somos parte da moratória da soja. Então, desde 2008 o que é área de desmatamento está fora disso. Temos a checagem do trabalho escravo, essas coisas. Mas o grande desafio mesmo é na parte de conversão de biomas naturais para a agricultura. Hoje nós não temos uma data de corte por enquanto estabelecida. Temos o compromisso, como empresa, de ter todas as nossas cadeias livres de conversão de desmatamento em 2030, daqui a dez anos. Claro que para chegar lá vamos chegar por
parte. Aqui no Brasil o grande desafio nosso, no setor como um todo, é desmatamento legal e ilegal. Para saber o que é legal e ilegal, passa pela implementação completa do código florestal. Coisa que ainda não aconteceu. Outro ponto que gera muita confusão – e eu acho que até os termos utilizados não são corretos – é em relação a soja legal e ilegal quanto a desmatamento. Por quê? Hoje, partindo do pressuposto que você está 100% alinhado, toda documentação correta em relação ao código florestal, é legal. Se não está 100% correto, é ilegal. Isso quase que gera uma exclusão do produtor. Por que ele não está 100% alinhado com o código florestal? Às vezes a Secretaria do Meio Ambiente do Estado não soltou a licença... Os motivos podem ser uma variedade. O bom senso disso é que o desmatamento ilegal acontece quando em uma propriedade específica aquele percentual de conversão de bioma natural para a agricultura é maior do que o prescrito. Por exemplo, uma fazenda em um bioma da Amazônia que tem mais de 20% de área aberta tem problema. Ou se tem plantio
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“As tradings são a conexão entre o ponto de produção e o ponto de consumo. É o papel natural nosso transmitir de um lado e de outro o que querem e o que dá para ser feito.”
sobre área de proteção permanente, isso é ilegal, não tem discussão. Mas, pegando o exemplo da Amazônia que é mais fácil, aquele produtor que tem 15% da fazenda dele já desenvolvida e vai explorar mais 2% e não entrou em área de conservação permanente. Se ele foi para cima disso, porém, por motivos diversos ele não esperou, entrou com as guias pedindo liberação e plantou porque o preço estava bom, teve a motivação econômica de aumentar aquela área, isso é legal ou irregular? Eu acho que a maneira correta de chamarmos isso é irregular. O produto que sai dali é um produto irregular, não quer dizer que ele seja ilegal. Ele não está contra a lei, ele só não está 100% alinhado com todo processo, todo procedimento que a lei pede. Excluir esse produtor que eu chamaria de irregular das cadeias de suprimento é um erro, porque se você exclui, está marginalizando o produtor, e no fundo, ele está sendo tratado exatamente igual aquele cara que faz tudo errado. O setor é cobrado a ter uma visão mais transparente da produção de cada etapa das cadeias produtivas e a tecnologia ajuda muito nesse sentido. Como vo-
cês estão caminhando na digitalização, incorporando tanto as questões de rastreabilidade, até as questões de mercado, com o surgimento de marketplaces e a tendência da desintermediação das transações de exportações graças à tecnologia? Digitalização faz parte de todos os negócios. Todo mundo gasta tempo, energia e foco nisso, porque a digitalização na prática traz mais eficiência aos seus processos. Estamos gastando bastante tempo e dinheiro nisso, ou sozinho ou com alguns parceiros. Isso entra na parte de sustentabilidade, onde somos capazes de fazer o rastreamento de 100% do que a gente compra do produtor. Isso vem, claro, de acordo com o nosso fornecedor permitindo acesso a essa informação. Ferramenta para isso existe, mas tem que ter a parte legal do acordo dos fornecedores. Na parte comercial existem iniciativas também com parceiros. Sobre marketplace eu não quero entrar em muito detalhe, por razões de segredo comercial, digamos assim. Não é uma coisa que está pronta para ser divulgada, mas estamos investindo muito nisso. Aqui na América do Sul, nós temos parceiros, é algo que está em andamento. Logo vamos
ter algumas coisas aparecendo por aí. O setor agrícola, essa parte de venda de grão, por exemplo, não vai passar incólume dessa digitalização. Faz todo sentido. Hoje em dia muitos negócios são feitos por WhatsApp, e depois só manda a confirmação para os canais normais. Então eu acho que a tendência é que isso virá para esses marketplaces em uma velocidade bem maior do que a gente imaginava até um ano atrás, por conta dessas mudanças que o coronavírus trouxe para a humanidade. É um caminho sem volta. Outra fonte grande de mudança na digitalização é em relação aos nossos processos internos. Tem um espaço gigante para ganho de eficiência. Nós estamos investindo para padronizar processos, torná-los mais eficientes, com menos uso de horas/homem para obter o mesmo resultado. Isso não é uma coisa fácil. Poderia citar algum exemplo de como a tecnologia tem ajudado a transformar os negócios da Cargill? Teria por exemplo a parte de transporte rodoviário, em que nós já usamos plataformas digitais para fazer a captação de frete rodoviário. Logística é uma questão crucial no negócio de vocês? A digitalização está bem encaminhada. Vou falar grosso modo, nós trabalhávamos com 200 pessoas fazendo isso pelo Brasil afora na parte de grãos somente. Hoje já reduzimos a praticamente um terço disso, com crescimento de volume. PLANT PROJECT Nº22
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FORÇA RENOVADA Lançamento de linha de herbicidas da IHARA abre caminho para vencer a crescente resistência das plantas daninhas
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Nem mesmo os desafios logísticos impostos pela pandemia foram obstáculo. Nos últimos meses, os laboratórios da fabricante brasileira de defensivos agrícolas IHARA foram abastecidos com cerca de 20 toneladas de ingredientes ativos exclusivos vindos do Japão. Não havia nada rotineiro na operação. Primeiro, pelo meio de transporte utilizado para que a carga chegasse ao seu destino. Normalmente, as encomendas são enviadas do Oriente por via marítima, mas em função das dificuldades em se garantir que, em um período de restrições de locomoção, os prazos fossem cumpridos, a empresa optou pelo transporte aéreo. Segundo, pelo conteúdo transportado, que serviria de matéria-prima para a formulação de uma nova geração de herbicidas, com potencial para combater, com eficiência inédita, um problema crescente na agricultura brasileira e mundial nas últimas décadas: a resistência das plantas daninhas aos agroquímicos. O esforço extra da IHARA visava a permitir que estas tecnologias estejam disponíveis aos agricultores brasileiros na próxima safra de verão. Batizados como família Yamato, os novos produtos se encaixam no nicho de herbicidas pré-emergentes, aqueles que – como o próprio nome já diz – são aplicados antes da erva daninha emergir. Hoje, este nicho representa apenas 25% do mercado de herbicidas no Brasil, contra 70% nos Estados Unidos e 55% na Europa. “Eles eliminam a matocompetição inicial. A soja, por exemplo, sai no limpo, germina primeiro e ganha a dianteira competitiva”, diz o consultor e pesquisador Dr. Pedro Christoffoleti, professor da Esalq-USP (Piracicaba). “Outra vantagem é dar flexibilidade ao produtor na aplicação dos herbicidas pós-emergentes, o agricultor não precisa aplicar naquele dia determinado, pode aplicar um dia depois ou uma semana depois, porque o mato vem de forma menos agressiva”, acrescenta.
O cenário do combate às daninhas no Brasil explica a urgência de ações como a da IHARA. “A resistência é o problema número 1 no mundo nessa área”, afirma Rubem Oliveira, professor de Agronomia na UEM. Isso acontece pelo manejo inadequado, aplicação repetitiva e continuada de um mesmo produto ou produtos com modo de ação semelhantes por um longo período de tempo. Tal processo seleciona as plantas invasoras resistentes que não mais respondem àquele herbicida. O resultado é perda de produtividade. “A resistência tem feito com que o mato tenha mudado recentemente e esteja causando cada vez mais problemas, custando cada vez mais caro fazer seu controle em praticamente todas as culturas agrícolas”, diz Dr. Aldo Merotto Jr., professor na área de plantas daninhas na UFRGS. Os números comprovam. Segundo a Base Internacional de Dados para Ervas Daninhas Resistentes a Herbicidas (Heap, na sigla em inglês), o Brasil tem 50 casos de resistência que envolvem 28 espécies de plantas daninhas. Anualmente, só na cultura da soja são gastos R$ 4,2 bilhões no controle à resistência e ainda há perdas de R$ 9 bilhões em decorrência da matocompetição na cultura. A carência de novas moléculas para o controle das daninhas tem impacto nesse quadro. O último lançamento significativo de herbicidas para as culturas de grãos, por exemplo, aconteceu na década de 1980. “Estamos esperando que as empresas nos ofertem novos mecanismos, com novas moléculas e novas estratégias para serem aplicadas”, afirma Leandro Vargas, pesquisador da Embrapa Trigo. Ciente desse contexto, a IHARA trabalhou dez anos na adaptação de quatro novos produtos pré-emergentes – desenvolvidos em parceria com a Kumiai Chemical, uma de suas controladoras japonesas – para a realidade brasileira. “Estes herbicidas do futuro, que são moléculas inovadoras, e se adéquam melhor às PLANT PROJECT Nº22
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R$ 9 bilhões é o total de perdas
em decorrência da matocompetição na cultura da soja condições encontradas pelos produtores no campo”, diz André Nannetti, gerente geral de Marketing da IHARA. O grande diferencial da família Yamato é diversificar a forma como os herbicidas combatem às plantas invasoras. “A tecnologia inibe a síntese de ácidos graxos, que são os responsáveis pela formação da membrana celular [da planta] e, consequentemente, inibe a germinação da erva daninha”, explica Christoffoleti. A importância de controlar essas ervas daninhas está no seu poder de disseminação. “Uma única buva produz 200 mil sementes, o que significa que haverá 20 sementes por metro quadrado”, acrescenta. Um dos produtos da família, KYOJIN, é destinado justamente à mitigação de plantas invasoras de folhas estreitas e folhas largas (como buva, caruru, capim-amargoso, capimpé-de-galinha, entre outras) nas culturas de soja e milho. “Para algumas delas, não havia mais eficácia de controle com os produtos até então disponíveis”, diz Christoffoleti. “Essa nova solução se destaca por sua seletividade, capacidade de controlar a erva daninha sem injuriar a soja. A razão técnica para isso é que a tecnologia permanece apenas nos primeiros centímetros superficiais [do solo], não chega ao sistema radicular da soja, o que é importante do ponto de vista agronômico e ambiental”, diz. Os produtores de trigo do Sul do país, por sua vez, sofrem com a incidência do azevém. “Hoje o Brasil só tem moléculas para pósemergência [na cultura]. O nosso produto, o YAMATO, será o primeiro para manejo em pré-emergência na cultura”, diz Elton Visioli, gerente de produtos Herbicidas da IHARA. Para a cana-de-açúcar, a solução apresentada para combater ervas daninhas se destaca pela seletividade. “O produtor de cana reclama de problemas de injúrias de herbicidas que podem afetar o desenvolvimento da lavoura. Mas este produto (FALCON) é 100% seguro, desde que usado dentro das recomendações de 52
bula”, diz Christoffoleti. Versátil, a tecnologia pode ser utilizada para combater invasoras também em plantações de eucalipto, pínus, mandioca, café e citrus. Há ainda uma quarta tecnologia (RITMO)voltada exclusivamente para o combate de plantas daninhas de folha estreita e sementes grandes nos canaviais. “Nossa expectativa é alcançar vendas de R$ 200 milhões com estes quatro herbicidas no próximo ano”, diz Visioli. Não é nada fácil a tarefa de desenvolver novas moléculas para a agricultura. “Há 20 anos, eram necessárias 50 mil pesquisas para chegar a uma tecnologia. Hoje estimamos 160 mil pesquisas para chegar a uma nova molécula”, diz Nannetti. Nos últimos cinco anos, a IHARA investiu R$ 200 milhões em desenvolvimento no Brasil, o que tornou ainda mais robusto seu portfólio que conta atualmente com mais de 60 produtos para mais de 100 culturas. A empresa mantém o ritmo. Neste ano, aportou R$ 40 milhões na construção de novos centros de pesquisas, um em Primavera do Leste (MT) e outro em Sarandi (PR). Isso sem contar os R$ 20 milhões anuais aplicados em pesquisa. “Pretendemos a cada cinco dez anos renovar em torno de 80% do nosso portfólio”, diz o gerente geral de Marketing da IHARA. Tal renovação é essencial para a agricultura tropical, uma vez que as altas temperaturas e umidade contribuem para selecionar ervas daninhas cada vez mais agressivas. Porteira adentro, o agricultor também pode ajudar fazendo o manejo correto para que os herbicidas tenham vida longa.
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Personagem
O PROVOCADOR DA AMAGGI Quem é e o que pensa Leonardo Maggi Ribeiro, a nova face de uma dinastia do agronegócio brasileiro
foto: Divulgação
Por Luiz Fernando Sá
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Radar meteorógico do grupo: desafio para usar as informações obtidas de forma integrada com os sistemas de gestão agrícola
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eto de André e sobrinho de Blairo, Leonardo Maggi Ribeiro faz parte de uma dinastia do agronegócio brasileiro. Entre os integrantes da terceira geração da família, ele virou sinônimo de produção de soja no Mato Grosso nas últimas quatro décadas e é o único com assento no Conselho de Administração do Grupo Amaggi, que engloba os diversos braços de negócios do clã – nenhum deles tem função executiva nas companhias, conforme determina o estatuto do grupo. Mas Leo, como é chamado, tem um papel relevante para o futuro das empresas. “Sou o chefe da provocação”, resume, com humor, a função de head de Inovação que lhe foi conferida pelo comando da companhia. A provocação tem surtido efeito. Nos últimos anos, Leo tem sido o responsável por uma mudança na percepção, interna e externa, da Amaggi. Ficaram um pouco de lado os números superlativos do grupo, que já conferiram ao ex-ministro Blairo Maggi o título de rei da soja décadas atrás, e entraram no foco a mensagem de modernidade e a relação com a tecnologia. “O fato de a Amaggi ter começado a se expor mais nessa área de tecnologia é uma provocação mesmo para atrair soluções para cá”, explica Leo. O “cá” refere-se às operações do grupo nas diversas áreas de atuação – agrícola, comercialização de commodities, logística e geração de energia –, mas também ao Mato Grosso, estado em que a família de origem paranaense se estabeleceu há mais de 45 anos. “Em uma conversa com um amigo aqui de Cuiabá, que hoje tem uma startup em Portugal, ouvi dele uma frase que me despertou: ‘Como maior centro de produtividade do Brasil, é inadmissível que o Mato Grosso não seja o centro da
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tecnologia do agro’. Ele tinha toda razão”, conta. Recentemente, o próprio Leonardo passou a ganhar mais exposição, tornandose a jovem face dos Maggi em ambientes que antes eles pouco frequentavam, como encontros com jovens empreendedores e hubs de tecnologia. Nesta entrevista exclusiva à PLANT, ele revisita alguns episódios que levaram a essa mudança e clareia alguns dos planos que devem moldar os próximos anos do grupo – e, por que não, do agronegócio nacional. Confira a seguir alguns dos principais trechos. VIAGEM AO VALE O marco mais visível da transformação do grupo foi uma missão que levou a liderança executiva da Amaggi ao Vale do Silício, na Califórnia (EUA), há pouco mais de um ano. Ganhou publicidade graças a postagens de Blairo nas redes sociais (reproduzidas na reportagem “A Influência Leve de Blairo Maggi”, publicada na edição 19 da PLANT), em que o ex-ministro expressava seu espanto com o impacto que novas tecnologias poderiam trazer ao agronegócio. “Aquilo que o Blairo citou foi apenas a ponta do iceberg”, afirma Leo sobre aquela que chama de “a famosa viagem”. O jovem Maggi já havia estado na Califórnia antes. “Na primeira vez que vi tudo aqui, deu um nó na minha cabeça. A gente entende que o mundo está bombando lá fora e que precisamos ver outras coisas. Mas sobretudo a gente compreende uma coisa: se algo pode matar o seu negócio, por que não pode ser o seu próximo negócio? Ninguém quer ser uma Kodak”, diz ele, referindo-se à empresa que foi sinônimo de fotografia e, por não se atualizar, acabou
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sucumbindo ao universo das imagens digitais. “Mas é difícil mudar a mentalidade. Voltei convencido a levar o nosso pessoal da Amaggi para lá. Levou quase um ano entre minha primeira ida e a viagem. O Blairo foi, mas incrédulo. Depois, as reações lá eram incrédulas. Entendemos que o agro assim como a construção civil e a mineração são a bola da vez. São coisas fixas, pesadas e volumosas, por isso são as últimas a ser ‘disruptadas’”. “A gente via muita coisa e se perguntava: ‘Isso vai matar nosso negócio?’ Concluímos que é um meio de alimentação a mais, mas que não podemos ficar parados. Tem business para todo mundo.” “No pós-viagem, me colocaram como head de Inovação. Mas tem uma turma que entende muito mais de inovação do que eu, eu só fico provocando.” INOVAÇÃO INVISÍVEL Desde então, a empresa começou a associar sua marca a eventos de tecnologia e hoje é uma das patrocinadoras do AgriHub Space, uma iniciativa criada pela Federação da Agricultura do Mato Grosso
(Famato) para incentivar o desenvolvimento de soluções tecnológicas para os produtores do estado. Leonardo afirma, no entanto, que o espírito inovador permeia as ações da companhia, de maneira silenciosa, há várias décadas. “Temos feito inovações de forma orgânica, natural, sem ter uma área voltada para isso dentro da empresa. Aconteceram ao longo de sua história. Mato Grosso não produzia nada de soja quando meu avô, o Blairo e os dois genros chegaram. Começaram a produzir, construíram o maior armazém, trouxeram o transporte fluvial, no que fomos únicos durante muitos anos aqui no Brasil.” “Nosso sistema de originação foi desenvolvido há décadas e ainda é a base do que utilizamos hoje. E nos últimos 10, 12 anos tem ocorrido uma transformação muito grande, principalmente na gestão da produção, porque é o que podemos fazer. No preço das commodities, não temos gestão. Isso depende do mercado internacional. No clima, também não.” “Podemos ter gestão é nos custos da lavoura. Plantar na hora certa, fazer manejo o mais eficiente
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possível. É nessa janela que você consegue ter uma eficiência. Na Amaggi Agro, só de manejo o custo é de US$ 100 milhões ao ano. Imagine uma melhora de 1% de eficiência. É US$ 1 milhão no caixa, na veia.” “Um trabalho como esse não acontece da noite para o dia, sair do papel para o high-tech. Há mais de dez anos saímos do papel para o digital, para o mobile e para as pessoas de campo.” O JEITO MAGGI DE PRODUZIR TECNOLOGIA Longe dos holofotes, o grupo desenvolveu dentro de casa grande parte das soluções que estão na base da sua transformação digital. “Começamos a pensar em tecnologia buscando eficiência e economia. Mas entendemos que era um fator fundamental para termos processos e sucessão. Até então, o conhecimento estava no cara do campo, no gerente. Trocava a pessoa e corríamos o risco de a roda parar.” “Precisávamos de protocolos mais padronizados. Então, começamos a tirar do papel e levar para uma versão digital e levar o conhecimento para a ponta. Empoderar a ponta.” “Não há um modelo certo e um errado [para inovar]. Muita coisa foi feita dentro do grupo. O que mais nos trouxe benefício foi o mix. Quando foi decidido que tínhamos essa dor e precisávamos atender a essa necessidade, não havia uma receita de bolo pronta. PLANT PROJECT Nº22
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Trouxemos desenvolvedores externos. Nossa TI é apenas para fazer rodar.” “Contratamos uma software house de Mato Grosso, colocamos dentro da fazenda e dissemos: o nosso problema é esse. Eles foram aprendendo com a gente e fizeram um desenvolvimento a quatro mãos com nosso pessoal de campo. O projeto hoje continua sendo turbinado, mas foi feito assim.” “Nossos sistemas não são de mercado. Foi desenvolvido junto com a Amaggi, mas outras empresas utilizam. Tudo depende muito de o pessoal da ponta abraçar o sistema. Se ele não acredita, a informação não vai chegar. A informação errada é pior do que a não informação.” “Houve um trabalho muito grande de conscientização e educação digital das equipes, de qualificação. Temos treinamento pra todo lado. No pós-pandemia, é tudo em salas de aula on-line. Treinamento faz parte das metas dos líderes de equipe.” “A evolução vem de uns dez anos para cá. Hoje é uma das menos desorganizadas da 58
indústria agro no País. A gente consegue ter informação e ela é disseminada. Todos os gerentes das fazendas sabem o que as outras estão fazendo, produzindo. Sabem custos e resultados. Têm tudo na palma da mão. A informação existe e é utilizada.” FÓRMULA 1 NO CAMPO No cotidiano do grupo, os exemplos de adoção de tecnologia se multiplicam, seja no campo, seja nos escritórios do grupo. Grande parte das rotinas diárias das equipes já é distribuída de forma digital para as equipes, que contam com equipamentos móveis. Todas as fazendas do grupo são mapeadas talhão por talhão e tudo que é utilizado em cada um deles é controlado à distância pelos gestores da empresa. “Até pouco tempo atrás o pessoal ia fazer levantamento de praga, batia o pano e anotava o que via no papelzinho. Botava no bolso e repetia isso. À noite, jogava no Excel, mandava por e-mail para o escritório. No outro dia alguém ia pegar, para mandar pra Cuiabá,
produzir um relatório... O número não era confiável. Hoje o pragueiro vai com tablets ou celular. Lança o que tem lá, tira fotografia com coordenadas. Está tudo automático no sistema, não tem de passar por compilações de nada. Tem a coordenada do talhão.” “Temos controle na fazenda em que consigo ver quais as sementes que foram plantadas, que defensivo foi utilizado, quando entrou no estoque, quem aplicou, qual trator e o custo disso. Quanto de dinheiro foi aplicado em cada talhão de cada fazenda. Quantos dólares de óleo diesel está me custando cada talhão de cada lavoura.” “O que não é medido não pode ser comparado, melhorado. Esse controle começou a dar indicadores para a Amaggi. Toda manhã, a equipe já tem todo o serviço que precisa ser feito. É como se fosse a Fórmula 1, cada um sabendo o que precisa fazer para não perder tempo.” O DESAFIO DA CONECTIVIDADE Com a infraestrutura de TI já avançada, o grande desafio da
Personagem
Amaggi é o mesmo que aflige milhares de outros produtores, de todos os portes, em todo o País: conectividade. “Preciso fazer máquina falar com sensor, falar com natureza e falar com gestão. Como vou fazer as centenas de censores que têm no campo conversarem? Máquina nova com máquina de dez anos? Sensores de meteorologia, dosagem? Nossa principal frente no agro é a da conectividade. Para ter uma internet mais ou menos nos cafundós do Mato Grosso, tem que penar.” “Estamos muito próximos de ter um sistema totalmente integrado. Estamos investindo R$ 4 milhões nos últimos anos exclusivamente em conectividade, ativação de celular e torres 4G em parceria com a TIM. São mais de 100 mil hectares e 450 máquinas que precisam das informações de sensores de chuva e do radar meteorológico, que ainda estamos aprendendo a usar, interpretando o que nos traz. O projeto é ter tudo iluminado em 4G em dois ou três anos.” “Precisamos começar a olhar pra frente, para o dia seguinte. Não me traz nada saber que choveu ontem em tal lugar. Quero saber o que ainda vai acontecer. Com isso, as equipes vão ter poder de mudar a ordem de serviço automaticamente, conforme as coisas vão acontecendo.” A RELAÇÃO COM STARTUPS E O AGRO INVESTIDOR Uma gigante do agro como a Amaggi é o cliente dos sonhos de
toda agtech. Segundo Leonardo, as portas da empresa estão abertas a startups que tragam soluções para as dores da empresa. E não são poucas as que aparecem por lá. “O principal acesso para elas sou eu. Escreve para mim, me liga. Mas a verdade é que há muito tempo estamos trabalhando com startups. Elas como provedoras de solução, nós como provedores de problema. Meu avô costumava dizer: ‘O que essa molecada está fazendo, temos de dar ouvidos e olhos.’” “Temos olhado muita coisa. Aqui ainda não existe um braço de venture capital em que a gente faz aporte, investimentos. É um plano lógico, um movimento natural. Mas temos coparticipado em desenvolvimento de ferramentas em conjunto com algumas empresas. Um exemplo é o Cargueiro, que começou como ferramenta de digitalização de carta-frete e hoje é um marketplace para logística. Estamos lá com a Louis Dreyfus e há outras para entrar. Foi desenvolvido juntamente com outros investidores. Vimos esse tipo de ação como um caminho lógico, que vai reger todo o business e trazer ganhos para a companhia.” “Plantar é como montar uma startup todo ano. Renova a cada safra. Tem uma turma jovem no agro, de 30 a 40 anos, que quer e vai atrás da tecnologia. Vai haver um crescente investimento nessa área, acredito nisso.” “No agro não tem essa de ‘ eu
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preciso produzir mais que o fulano’. Quanto mais todos produzirem, melhor. O que fazemos não é fechado. Se contratei alguém para fazer algo que eu precisava e ele fez, ótimo. O agro é um setor mais aberto e isso favorece a inovação. Para a turma envolvida com inovação, a troca de informações enriquece os dois lados.” “Hoje fazemos corporate venture de uma forma brejeira. Na família Maggi, cada um tem seu business. Um ou outro faz pequenos investimentos em tecnologia, seja anjo, seja seed. Um fundo de corporate venture capital é um movimento natural para nós. Muito em breve vai acontecer de forma muito estruturada.”
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UM PRESENTE SUSTENTÁVEL Cada vez mais pessoas do meio urbano têm a oportunidade de assumir um pedacinho da alta conta da preservação de florestas e dos serviços ambientais que elas prestam, algo que os produtores rurais já fazem há tempos e em maiores proporções Por Romualdo Venâncio
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isele Bündchen, que hoje vive na Flórida, nos Estados Unidos, planejava comemorar aqui no Brasil seu aniversário de 40 anos, completados em julho deste ano. A supermodelo viria com a família para a Amazônia, e queria celebrar plantando árvores. O plano da viagem foi frustrado pela pandemia da Covid-19. Já o de plantar árvores foi até ampliado. Em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) e a Rede de Sementes do Xingu, Gisele criou a plataforma Viva a Vida para que seus familiares, amigos e quem mais se interessasse em presenteá-la o fizesse com doações para o plantio de mais árvores (R$ 5 por muda). A própria Gisele deu a largada com 40 mil unidades. E sua popularidade, projetada também nas redes sociais, ajudou a passar de 250 mil mudas de espécies nativas que serão plantadas, a
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partir de 2021, na região das bacias dos rios Xingu e Araguaia. A ação acaba jogando luz sobre outras iniciativas de maiores proporções e realizadas há mais tempo, muitas inclusive com a participação do setor produtivo, e sobre questões estreitamente relacionadas à preservação ambiental, como a agregação de valor para a floresta em pé e o pagamento por serviços ambientais. A Tree-Nation, por exemplo, contabiliza o plantio de 5 milhões de árvores em 33 países de quatro continentes. A plataforma de reflorestamento criada em 2006, com sede em Barcelona, na Espanha, atua por meio de 70 projetos que têm a participação de 118 mil pessoas físicas e 1,5 mil empresas. Outros 200 projetos com potencial para serem inseridos na plataforma estão em análise. Essa aproximação
acontece tanto por iniciativa da Tree-Nation como das organizações responsáveis localmente pelos projetos. O banco de 300 espécies diferentes de árvores oferece opções para reflorestamento em diversos lugares do globo. A cada muda plantada gera-se uma URL, um link específico para o acompanhamento da evolução da árvore e de informações como os níveis de compensação de gás carbônico (CO2). “Procuramos projetos com um impacto significativo para combater as mudanças climáticas, restaurar a biodiversidade e ajudar as comunidades locais”, diz Maxime Renaudin, fundador e diretor da plataforma. O combate citado por Maxime é dividido em três partes principais. Uma é a ação direta, com foco na captura de emissões de CO2, característica comum
GENTE QUE PRESERVA O perfil das pessoas responsáveis localmente pelos projetos de reflorestamento é um fator decisivo para que sejam escolhidos e façam parte da plataforma Tree-Nation. “Queremos garantir que a equipe seja profissional, experiente, adepta de boas práticas – como igualdade de gênero – e esteja
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nos projetos situados em áreas tropicais e que incluem espécies de rápido crescimento. Há também a atuação para limitar as causas dessas mudanças, “como o desmatamento e a agricultura moderna”, segundo o fundador da Tree-Nation. Considerando que a modernidade da produção agrícola e pecuária passa, necessariamente, pela preservação ambiental, a expressão “agricultura moderna” nesse contexto é questionável. O terceiro foco de ação é aliviar as consequências das mudanças climáticas, como desertificação, erosão da terra, desnutrição, pobreza e extinção de espécies. O avanço da atuação da plataforma deve-se também à flexibilidade dos projetos, podendo ser adaptados à realidade local, utilizando as técnicas de plantio que mais se adéquem às características de cada região. “É por isso que nossas técnicas variam desde as que imitam animais enterrando sementes até a utilização de drones e outras soluções mais sofisticadas”, afirma Maxime.
claramente alinhada à nossa missão”, comenta Maxime. A Associação Ambientalista Copaíba cumpriu esta e as demais exigências e desde o ano passado está na lista de instituições parceiras. A Copaíba é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), sem fins lucrativos, tem sede na cidade de Socorro, no interior de São Paulo, e já soma duas décadas de trabalhos voltados à restauração de matas ciliares em região de Mata Atlântica. Essa conexão é um exemplo de que “uma coisa leva a outra”. Por integrar o movimento Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, a Copaíba foi encontrada pela Ecosia, uma plataforma de busca que promove o plantio de uma árvore a cada busca realizada, e se tornaram parceiras. E foi por meio da Ecosia que a Tree-Nation chegou até a Copaíba. A ação da Copaíba começou pela bacia do Rio do Peixe, em São Paulo, e depois avançou para o Rio Camanducaia, no sul de Minas Gerais, abrangendo um total de 19 municípios. São quatro linhas de atuação interligadas: educação ambiental, viveiro de mudas nativas, restauração e reflorestamento. “Já produzimos mais de 2 milhões de mudas e plantamos 685 mil, restaurando 450 hectares”, diz Mayra Flores
Gisele Bündchen, ao lado, aderiu ao plantio de árvores como presente de aniversário. Acima, Maxime Renaudin, fundador da TreeNation, plataforma que já tem 5 milhões de árvores plantadas em 33 países
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Viveiro da Copaíba conta com 100 espécies nativas para atender diferentes projetos. Na página ao lado, Fabíola Zerbini, diretora regional da TFA para a América Latina (foto de cima), e Mayra Tavares, coordenadora de Restauração Florestal da Copaíba
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Tavares, coordenadora de Restauração Florestal da Copaíba. Engenheira agrônoma com mestrado em Recursos Florestais pela Esalq-USP, Mayra conta que essa parte de restauração e reflorestamento é feita em parceria com produtores rurais. Por conta da diversidade de perfis de proprietários e das diferentes condições das áreas, a Copaíba faz uma avaliação técnica para formular o projeto mais adequado e indicar espécies que favoreçam os objetivos do produtor. “Ele pode desejar árvores que atraiam mais abelhas, por exemplo”, afirma. A Copaíba conta com cerca de 100 espécies nativas em seu viveiro. Por se tratar de uma recriação de bioma, aumenta a importância de se trabalhar com produtos nativos. “Precisamos saber exatamente o que estamos plantando. Se inserirmos espécies exóticas nesse ambiente, pode haver um desequilíbrio devido à competição pelos espaços das nativas”, explica Mayra. A maior parte das parcerias feitas com a Copaíba é para projetos de recuperação de áreas de pastagens antigas e condições das águas, com proteção
de nascentes e margens. A organização pode apoiar o produtor com plantio, insumos, mudas e aporte técnico, ou elaborar um projeto de responsabilidade compartilhada. A área mínima é meio hectare, o produtor deve ter como objetivo a formação de floresta e não pode ter multa ambiental. Quando há potencial de conectividade entre os fragmentos florestais, o resultado é ainda mais interessante. “Aumentamos as possibilidades de formação de corredores ecológicos, o que evita a troca genética e aumenta a área para os animais transitarem. Se todo mundo conseguisse preservar em torno dos rios, formaríamos grandes corredores”, diz Mayra. Quem não é produtor rural ou nem sequer tem uma propriedade também pode “adotar” uma árvore. “Temos serviço de plantio de mudas como presente de aniversário. As pessoas estão trocando a lista de presentes por uma lista de mudas”, conta Mayra. Essa opção de adoção de árvores tem sido vista como uma oportunidade de compartilhar a responsabilidade pela preservação ambiental com a população
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urbana, que costuma estar mais na posição de cobrança pela conservação do meio ambiente. É o que pensa Caio Penido, presidente do Instituto MatoGrossense de Carne (Imac) e proprietário da Agropecuária Água Viva (Cocalinho, MT). “Acho fantásticas essas iniciativas de adoção de florestas, de compartilhar a conta da preservação com a sociedade urbana, que não tem fazenda, não tem terras”, afirma. Para ele, essa relação vai além do plantio de árvores, pode ser para preservação do que já existe, inclusive o excedente dentro das fazendas. “Muita gente se interessa por plantar árvores porque é bacana, dá projeção na mídia, mas pode adotar uma árvore que já está plantada e investir em um sistema de emissão de baixo carbono”, acrescenta o pecuarista, que participou da segunda temporada da série Top Farmers, criada pela PLANT, na categoria Sustentabilidade. Thiago Belote, especialista em
conservação do WWF-Brasil, também concorda que o custo pela restauração florestal é alto e, por isso, é necessário que a responsabilidade seja compartilhada, até para que existam condições de restaurar os biomas. “A partir da união dos esforços e recursos dos diferentes setores da sociedade, conseguimos dar escala e gerar impacto nas ações de plantio de árvores”, diz. Ele reforça que o engajamento da sociedade em prol do plantio de árvores nativas é o caminho para combater as mudanças climáticas, e ressalta quão benéfico é aproveitar o que já está pronto, identificando as sinergias e propondo soluções para seus desafios. “Dessa forma, o agronegócio é um player importante. E conectar os esforços do setor com as demais iniciativas é fundamental, sobretudo pela importância das florestas e seus serviços ecossistêmicos – disponibilidade hídrica, conservação de solos, polinização – para a agricultura brasileira”, diz. SERVIÇOS AMBIENTAIS O valor de uma árvore em pé ou deitada é uma variável constante na equação de conservação e reflorestamento. Em termos ambientais, ela é mais valiosa em pé, ainda mais diante das intensas discussões sobre sequestro de carbono. Mas no âmbito comercial a conversa tem outro viés. É por isso que Fabíola Zerbini, diretora regional da Tropical Forest Alliance (TFA)
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para a América Latina, defende que a preservação da floresta passe por uma discussão econômica. Segundo ela, é preciso haver valoração, um modelo de precificação, e dividir os custos entre a sociedade. “Ainda temos uma transição muito longa até que, como sociedade, passemos a entender a importância de manter a floresta em pé, a restauração e como valorar a bioeconomia. Não temos muito tempo para esperar as relações econômicas globais entenderem, se adequarem, precisa ser mais rápido”, comenta. Quando fala em valoração, Fabíola traz como referência o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), tema de um encontro virtual promovido pela TFA no início de agosto que teve a participação de cerca de 60 representantes da iniciativa privada, do governo, de instituições financeiras e de ONGs. “O PSA pode ser um ponto de inflexão, de mudança em direção ao agronegócio verdadeiramente sustentável, já que é um campo de convergência capaz de unir interesses diversos e de trazer resultados significativos em relação à redução da emissão de carbono e do desmatamento”, diz a executiva, destacando o estoque de carbono e de água entre os serviços ambientais. A Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais está no Projeto de Lei nº 3.791/2019, já aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado. Fabíola afirma ser PLANT PROJECT Nº22
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importante o governo entender o serviço ambiental como atividade econômica que pode ser tributada e entrar na nota fiscal, agregando valor inclusive para o Estado. “Outro aspecto relevante é trazer uniformidade para as questões de valoração, o que são serviços ambientais e como eles se conectam com várias definições. É preciso reforçar essa mensagem do público e do privado e das possibilidades da hora de agir, de transformar o discurso em ação, olhar o que é viável e botar mesmo em prática”, acrescenta. Quanto mais clareza e objetividade nessa conversa, mais fina será a sintonia. Diferenciar serviço ambiental de compensação ao produtor para que não desmate é um exemplo. Claro que se trata de desmatamento dentro da legalidade, na área em que o produtor ainda pode fazer a retirada de árvores sem infringir a lei. O que é ilegal nem se discute, é crime. “A compensação é algo paliativo, para segurar por um tempo, pois o produtor tem um 66
custo para não desmatar, então partes da cadeia se propõem a ajudar o produtor nessa questão”, diz Fabíola. Essa é uma pauta recorrente para Caio Penido, que sempre faz questão de lembrar que o Brasil tem mais de 60% de seu território destinado à preservação e que a importância da nossa biodiversidade para o mundo é o ponto de partida para várias discussões. Sobretudo porque, como diz ele, a principal contribuição da floresta preservada é a regulação do clima mundial, por meio dos serviços ambientais, como a preservação de nascentes, devolução da umidade para o ambiente e o estoque de carbono e da própria biodiversidade. “Precisamos criar valor para a floresta viva. Será difícil preservá-la enquanto um hectare de pecuária ou de soja valer muito mais do que um de floresta, de vegetação nativa. Nossos competidores não têm esse custo”, analisa. Esse desafio passa pela valoração das áreas preservadas dentro das propriedades, porque,
segundo Caio, os serviços ambientais não são contabilizados no preço da propriedade quando alguém vende suas terras. Por outro lado, quem compra precisa mobilizar parte do capital para manter a preservação e arcar com o custo eterno de manutenção dessa biodiversidade, inclusive jurídico, ambiental e de segurança. “Os recursos florestais ajudam a própria fazenda, o setor agropecuário e toda a sociedade. O desafio está em achar resposta para compartilhar esse custo”, afirma. A divisão dessa conta envolve a comunidade global, em especial os concorrentes internacionais do Hemisfério Norte. “A prioridade deles é reduzir a pegada de carbono, então olham para o Brasil como local de preservação, querem pressionar para continuarmos a fornecer comida barata e serviços ambientais de graça. É o colonialismo que precisa ser revertido. Consumidores europeus e norte-americanos desinformados associam tudo
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a desmatamento ilegal”, comenta. “Mas só quando conseguirmos regularizar o Código Florestal vamos mudar essa história.” O estudo Uma Nova Economia para uma Nova Era: elementos para a construção de uma economia mais eficiente e resiliente para o Brasil, coordenado pelo WRI Brasil, que faz parte do World Resources Institute, e pela iniciativa New Climate Economy, mostra que a efetiva implantação de políticas já existentes e o correto aproveitamento do capital natural do País poderiam gerar 2 milhões de empregos e PIB adicional de R$ 2,8 trilhões até 2030. “Adotar uma economia mais verde não é uma ruptura. O Brasil já tem boas práticas que, se incentivadas, podem gerar mais empregos e renda ao mesmo tempo que tornam o País mais justo, resiliente e sustentável”, diz Carolina Genin, diretora de Clima do WRI Brasil. A pesquisa, conduzida em parceria com especialistas de diversas instituições, como CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável), Coppe-UFRJ, CPI (Climate Policy Initiative), Febraban (Federação Brasileira de Bancos), Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e PUC-Rio, revelou, por exemplo, que é possível recuperar 12
milhões de hectares de pastagens degradadas nesses dez anos, o que geraria um retorno de investimentos de R$ 19 bilhões e uma arrecadação de R$ 742 milhões em impostos. “A transição para um modelo de baixo carbono é mais que uma opção real de recuperação econômica póspandemia: é a melhor opção para o desenvolvimento do País no médio e longo prazos”, afirma Roberto Schaeffer, pesquisador de Economia da Energia da Coppe-UFRJ e um dos autores do trabalho. Diante desse cenário, torna-se imprescindível separar o joio do trigo, diferenciar claramente as propriedades que mantêm preservadas as áreas exigidas por lei. “E fomentar o mercado de pagamento por serviço ambiental, crédito de carbono e green bonds. Aí você encontra um cluster de produtores mais valorizados, que servirão de exemplo até para os que ainda não estão devidamente regularizados”, diz Caio Penido, que também é integrante da Liga do Araguaia, movimento pela adoção de práticas de pecuária sustentável no Vale do Araguaia, com objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social da região por meio do aumento de produtividade e renda, respeitando a legislação vigente e os limites dos sistemas naturais.
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ÁRVORES NO APP Financiadores interessados em investir no plantio de árvores e projetos que fazem isso da maneira mais adequada já podem se encontrar por meio de um aplicativo, e dar “match” para ampliar as ações de reflorestamento e sequestro de CO2. O World Resources Institute (WRI), organização global de pesquisa que abrange mais de 60 países, desenvolveu o app TerraMatch, com base em uma tecnologia já utilizada em nove países da África e da América Latina e que promoveu o cultivo de mais de 2 milhões de árvores em fazendas em florestas. Ainda começando aqui no Brasil, o app já contribui para o cultivo de 300 mil árvores na Amazônia peruana e mais 40 mil em Ruanda, no continente africano. O algoritmo único do sistema TerraMatch combina as preferências dos financiadores, desde a geografia até o tipo de solo, com informações dos projetos, como quem é o proprietário da terra, de que maneira as árvores serão plantadas e restauradas e quanto financiamento será necessário para isso.
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“Não há paz onde há fome. A produção de alimentos é, assim, um instrumento para a preservação da paz”
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Ideias e debates com credibilidade
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A FOME E A CIÊNCIA POR LUIZ FERNANDO SÁ*
Em uma mesma semana do começo de outubro passado, os comitês encarregados da escolha dos agraciados pelos prêmios Nobel tomaram duas decisões aparentemente desconectadas. Na terça-feira, dia 6, eles anunciaram que duas cientistas, a francesa Emmanuele Charpentier e a americana Jennifer Doudna, receberiam o Nobel de Química pelo desenvolvimento de uma revolucionária ferramenta de edição genética conhecida como CRISPR. Três dias depois, o Nobel da Paz foi outorgado ao Programa de Alimentação da Organização das Nações Unidas (ONU), uma das mais ativas ações de combate à fome em todo o mundo. Parecem duas coisas sem relação direta, mas que, olhadas sob a ótica do agronegócio, podem ter um sentido único, como uma mensagem clara sobre a urgência que temos em agir para enfrentar o desafio da segurança alimentar no mundo. Como costuma dizer o ex-ministro Roberto Rodrigues, alimentar o mundo é uma garantia de paz. Não há paz onde há fome. A produção de alimentos, assim, é um instrumento para a preservação da paz. E o que o tal CRISPR tem a ver com isso? O primeiro passo para responder é explicar o que é essa tecnologia. CRISPR é uma sigla, em inglês para “agrupados de curtas repetições palindrômicas regularmente interespaçadas”, um processo cuja complexidade nem vou me arriscar a explicar. De forma simplificada, funciona como uma mira de alta precisão, que indica microscopicamente o ponto onde deve ser feito o corte no genoma de uma célula. Uma enzima identificada pelas duas pesquisadoras executa de forma cirúrgica esse corte. Com ela, cientistas podem cortar e colar sequências de genes dentro do DNA de células, possibilitando que es-
ses organismos possam assumir novas características. Assim, é possível acrescentar, inibir ou potencializar um gene de interesse e, dessa forma, adequar uma determinada característica para obter ganhos de produtividade. Ou aumentar a tolerância a situações estressantes, como falta ou excesso de água, evitar o impacto de pragas, doenças e plantas daninhas. Não por acaso, o melhoramento genético com base em novas técnicas de edição de genes se tornou a maior aposta da ciência para se chegar a uma nova geração de plantas e animais mais saudáveis e produtivos. Muita gente compara a edição genética que o CRISPR pode fazer com os organismos geneticamente modificados, conhecidos popularmente como transgênicos. A comparação é válida, mas há uma diferença básica entre as duas técnicas. De uma forma bem simplista, pode-se dizer que nos transgênicos os cientistas utilizam genes de um organismo para produzir os efeitos desejados em outros. Todo transgênico é um organismo geneticamente modificado, mas nem todo organismo geneticamente modificado é um transgênico. No CRISPR, a ferramenta ajuda a reordenar os genes do mesmo organismo, conferindo a ele novos poderes, por assim dizer. O CRISPR é conhecido há quase 40 anos. Há pouco menos de uma década, desde que as cientistas descobriram a “tesoura genômica”, passou a ser visto como uma inovação com potencial infinito em várias áreas, da medicina à agricultura. Nos últimos anos, as pesquisas com a técnica têm se ampliado em empresas e órgãos oficiais de ciências agronômicas. No Brasil, elas acontecem na Embrapa Soja, Milho e Sorgo, Agronergia, Informática, Agropecuária, entre outras. Há pesquisadores trabalhando em uma plataforma para modificar quaPLANT PROJECT Nº22
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Fo tro espécies – cana, milho, soja e feijão –, melhorando fatores agronômicos. Tolerância à seca é uma das características mais importantes, pois teremos cada vez mais períodos mais longos de estiagem e também de muita água. Temos também produtos em fase de registro na CTNBIO para utilização comercial. Aqui nas páginas da PLANT o CRISPR já foi tema de uma série de reportagens e apontado como uma das mais relevantes tendências para o futuro do agronegócio. O CRISPR permite uma série de avanços, com vantagens sobre outras técnicas. O desenvolvimento mais barato e rápido, com menos questões éticas envolvidas, que abre um ambiente cada vez mais propício ao surgimento de novas empresas, startups de biotecnologia. Isso, associado ao universo digital, com maior capacidade de processamento e análise de dados com inteligência artificial. Assim, forma-se um combo poderoso, que nos Estados Unidos já é visto
como uma nova categoria de empresas que tem chamado a atenção dos investidores: as agbiotechs. Vejam, por exemplo, o que diz Ranveer Chandra, um dos pesquisadores-chefes da Microsoft, em um texto enviado à PLANT: “A inovação em melhoramento de plantas vai democratizar, por exemplo, o tipo de semente que será usada nas fazendas. Dependendo do tipo de solo de uma propriedade será possível modificar o genoma de uma semente para que ela seja mais efetiva”. É o que os futuristas chamam de individualização do agronegócio, mas isso é assunto para uma outra conversa. A mensagem de hoje, que vem da Academia de Ciências da Suécia, é: precisamos produzir mais para alimentar mais pessoas, mas sem impactar mais o meio ambiente. Isso significa sermos mais produtivos. Quem tem nos levado nessa direção e continuará nos levando são a ciência, a boa utilização da tecnologia digital e da biotecnologia.
*Diretor editorial da PLANT, é sócio da AgTalk e colunista do Canal Terraviva
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MÃO DE OBRA NO AGRO POR MARCO RIPOLI* Recentemente, participei de uma entrevista especial no programa BELGO AgroPod, da empresa Belgo Mineira, para falar sobre a escassez de mão de obra no agronegócio brasileiro. Sabe-se que o agronegócio é um dos principais setores da economia de nosso país. Apesar dos bons resultados locais e das exportações apresentados e, mais importante, o que se projeta, o campo ainda sofre com a falta de capacitação da força de trabalho. Não existe a falta de mão de obra no setor. O que falta é a adequada qua-
lificação, especialmente no momento que estamos, onde cada vez mais se utilizam de novas tecnologias e ferramentas para redução de custos e aumento da produtividade. A Agricultura de Precisão, também chamada de Agricultura de Decisão, é uma das maiores demandantes por requerer profissionais mais integrados e conectados com as diferentes tecnologias devido à elevada quantidade de instrumentos embarcados. Não obstante, todos os demais elos da cadeia produtiva podem e devem investir em treinamento.
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É importante pontuar que a falta de qualificação não é um tema cultural, apesar de erroneamente por muitas vezes se atribuir ao campo e, especialmente, àqueles que vivem nele a falta de educação necessária (desde o ensino básico até o universitário e profissionalizante). Os centros urbanos devem olhar para o Agro como um mercado importante para oportunidades de trabalho e não apenas como o setor responsável por alimentar a população! Desde 1960 existe a escassez de mão de obra no Brasil. Muito lentamente se vê o aumento de investimentos na construção, apoio e expansão das escolas técnicas como Etecs, Senais, Fatecs etc. Se pararmos para analisar, dois terços destas escolas hoje se localizam no estado de São Paulo, maior mercado consumidor, mas longe de ser o maior mercado produtor. É preciso assim expandir esta malha de conhecimento
para atender à demanda existente. O estado e governo podem contribuir muito com este tema, alinhando políticas que foquem na geração de conhecimento. Contudo, grande parte do que vem acontecendo é oriundo da iniciativa privada, fundamental neste momento. Não existe ainda uma pesquisa realizada, que eu conheça, que mediu com precisão o quanto o setor agropecuário poderia crescer com o aumento da capacitação dos profissionais. Mesmo assim, é possível dizer que a qualidade dos serviços realizados, a satisfação dos profissionais e o índice de retenção aumentarão consideravelmente. O crescimento do agro não passa por desmatamento, e sim pelo melhor uso da terra, das variedades plantadas, das máquinas e equipamentos agrícolas, da gestão da operação e do trabalhador rural. O Agro não para!
*Marco Lorenzzo Cunali Ripoli, é Ph.D., engenheiro agrônomo e mestre em Máquinas Agrícolas pela ESALQ-USP e doutor em Energia na Agricultura pela Unesp. Proprietário da Bioenergy Consultoria e investidor em empresas.
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Índia Kayapó faz processamento de castanha na aldeia: Atividade com potencial para exportação e impacto social
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As regiões produtoras do mundo
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A Amazon nut, colhida na floresta: produção sustentável e apelo da alimentação saudável geram interesse nos mercados externos 74
HORA DE SAIR DA CASCA A pandemia e a busca por produtos saudáveis escancaram uma janela de oportunidades para as castanhas e nozes produzidas no Brasil, que buscam recuperar espaço no mercado internacional
foto: Aloyana Lemos
Por Lívia Andrade
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limentos que fortalecem o sistema imunológico estão em alta no mundo todo. Eles já eram uma tendência, mas tornaramse ainda mais cobiçados em função da pandemia do coronavírus. Castanhas e nozes estão entre eles – e, neste campo, o Brasil é um território promissor. Das oito castanhas e nozes mais consumidas no mundo, quatro delas são produzidas aqui. Entre as extrativistas estão a castanha-decaju e a castanha-do-pará, esta última mais conhecida internacionalmente como Amazon nut ou Brazil nut. Já no rol das exóticas – aquelas introduzidas para o cultivo comercial – estão a noz-pecã e a macadâmia. E temos mercados prontos para receber nossos produtos. Apenas nos primeiros 60 dias de 2020, o Brasil abriu o mercado da Arábia Saudita para a Amazon nut e o da Coreia do Sul para a castanha-debaru, produto típico do Cerrado que tem ganhado o mundo por suas propriedades nutricionais. Além disso, há gente de peso explorando a macaúba, uma palmeira da biodiversidade brasileira. Com novas janelas de oportunidades sendo escancaradas para nossos produtos, há quem já imagine um papel de protagonismo para o País nesse mercado. Para José Eduardo Mendes Camargo, diretor da Divisão de Nozes e Castanhas do Departamento do Agronegócio (Deagro) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), as castanhas e nozes têm potencial para estar entre os principais produtos da balança comercial brasileira. “A Califórnia tem 560 mil hectares com três nozes (amêndoas, noz e pistache), que vêm a ser 10% da área de cana-de-açúcar do estado de São Paulo, e exporta US$ 7,1 bilhões há dois anos”, diz. São os produtos carros-chefe das exportações agrícolas
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daquele estado americano, à frente dos famosos vinhos californianos. E os americanos também aproveitam o crescimento dos veganos no mundo, oferecendo subprodutos como o leite de amêndoas. O desempenho brasileiro ainda é tímido, mesmo diante de concorrentes com bem menos área para produzir. Pesquisa realizada pelo Deagro aponta que, em 2007, o Brasil exportou US$ 229 milhões em castanhas e nozes, enquanto as vendas externas do segmento no Chile foram US$ 96 milhões. “Em 2017, o Chile exportou US$ 586 milhões, ou seja, multiplicou por seis, enquanto o Brasil recuou e vendeu US$ 134 milhões para o exterior. Se tivéssemos pegado aqueles US$ 229 milhões e multiplicado por seis, teríamos vendido US$ 1,3 bilhão e as castanhas e nozes seriam o 15º produto da pauta de exportação do Brasil”, diz o diretor da Fiesp. São constatações como essa que demonstram quanto o Brasil tem a crescer no segmento. “A produção mundial de castanhas, nozes e frutas secas duplicou nos últimos 15 anos e o valor da produção aumentou 2,4 vezes no mesmo período”, diz o espanhol Antonio Pont, presidente honorário do Conselho Internacional de Castanhas e Frutas Secas (INC, na sigla em inglês). De acordo com um estudo da Embrapa e Deagro, só o estado de São Paulo tem 370 mil hectares de terra que, devido à mecanização da colheita da cana-de-açúcar, terão que ser usados para outra cultura. “A macadâmia é uma opção de diversificação para estas áreas”, diz Camargo, que é proprietário da QueenNut, empresa pioneira no cultivo dessa noz no Brasil, que processou mais de 2,3 mil toneladas no ano passado.
foto: Cooperativa Kayapó
o Brasil tem 12 mil hectares de nogueiras, a maior parte da área no Rio Grande do Sul. Uma boa lavoura produz mais de 4 toneladas por hectare, o que gera um lucro entre R$ 30 mil e R$ 40 mil por ano. A boa rentabilidade levou o governo do Rio Grande do Sul a estruturar em 2017 o Programa Estadual de Desenvolvimento da Pecanicultura (Pro-Pecã), que tem por meta organizar toda a cadeia nos próximos 15 anos. “O plano engloba regras para viveiros, a parte de pesquisas e programas de marketing que estimulem o consumo”, diz Edson Ortiz, diretor da Divinut, empresa que produz mudas de nogueira pecã, além de processar a noz. Espaço para crescer é o que não falta. Embora o Brasil seja o quarto maior produtor mundial, com 3,5 mil toneladas de noz-pecã em casca por ano, o País nem sequer produz o suficiente para o mercado interno e precisa importar de vizinhos como Chile e Argentina.
Extração de castanhas na Amazônia: três quartos da produção ainda são consumidos no mercado nacional
foto: Natura
EXÓTICAS E LUCRATIVAS Natural da Austrália, a macadâmia é rica em ômega-7 (óleo palmitoleico), que reduz o colesterol. Além dos benefícios à saúde, a lavoura da noz é interessante financeiramente. As processadoras costumam pagar R$ 10 por quilo de macadâmia com casca, o que pode dar ao agricultor uma renda líquida por hectare entre R$ 15 mil e R$ 20 mil ao ano. Hoje, o Brasil tem 7 mil hectares da cultura, sendo que 4 mil estão em produção. Mas a macadâmia é um investimento de médio prazo, já que as árvores levam quatro anos para começar a produzir. A noz-pecã é bastante similar à macadâmia, com a diferença que ela é natural dos Estados Unidos e se adaptou melhor ao Sul do Brasil por precisar de horas de frio abaixo de 7 C° para se desenvolver bem. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Nozes, Castanhas e Frutas Secas (ABNC) e Embrapa,
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CASA EM ORDEM A ABNC foi criada em 2018 com o intuito de organizar o segmento de castanhas e nozes do Brasil. A associação reúne o pessoal da macadâmia, noz-pecã, Amazon nut, castanha-de-baru, castanha-de-caju e macaúba. “Queremos dar visibilidade ao setor, trazê-lo para o patamar das grandes commodities que tanto contribuem com o País”, diz Camargo. Outro objetivo é reconquistar o espaço perdido ao longo dos anos. Só para se ter ideia, o Brasil chegou a ocupar 30% do mercado mundial de castanha-decaju, mas por causa de anos de seca no Nordeste, hoje tem 3%, atrás do Vietnã e da África. A boa notícia é que a Embrapa desenvolveu o cajueiro-anão, que é resistente ao estresse hídrico e pode ajudar a reverter a situação. “O Brasil também está começando a utilizar a tecnologia vietnamita, um maquinário [de processamento] mais barato, pequeno e de fácil operação”, diz o diretor da Fiesp. No ramo de castanhas 78
foto: João Pinheiro
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foto: Araponga
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oriundas do extrativismo, a Brazil nut é a que tem maior destaque por ser um produto da floresta Amazônica e a maior fonte natural de selênio, um mineral antioxidante. De acordo com o INC, a cadeia da castanha-dobrasil movimenta US$ 450 milhões no mundo por ano e o consumo tem crescido: saltou de 29,5 milhões de toneladas em 2014 para 35 milhões de toneladas em 2018. Embora a maior parte da floresta Amazônica esteja em território nacional, hoje o Brasil ocupa a terceira colocação no ranking dos exportadores, atrás da Bolívia e do Peru. Dados do IBGE sobre a safra 2018/19 apontam que o Brasil produziu 34 mil toneladas de Amazon nut. Segundo uma pesquisa do Imaflora, de 2016, 74% da produção fica no mercado interno, absorvida principalmente pela indústria alimentícia. Os 26% restantes são destinados à exportação, sendo que boa parte segue em casca para Bolívia e Peru, que beneficiam e reexportam com maior valor
agregado. Segundo Maurílio Santos Júnior, especialista em Mercados Verdes e diretor institucional da ABNC, “o extrativismo da castanha-dobrasil engloba 60 mil famílias e 100 cooperativas e precisa de capacitação para a formação dos agentes da cadeia, investimento em marketing, bem como a criação de um modelo [de certificação] de controle fitossanitário, que facilite a exportação para a Europa”. Para Gunter Viteri, consultor do projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável do Ministério da Agricultura e cooperação alemã GIZ, o momento é favorável às castanhas, sobretudo à castanhado-brasil. “As tendências do comércio global mostram um consumidor cada vez mais preocupado com saúde, longevidade e sustentabilidade, querendo conhecer toda a cadeia e priorizando produtos que contem uma história, o que é muito forte na castanha-do-brasil por causa do vínculo com a Amazônia e com
DESCRIÇÃO DA MACAÚBA (FRUTO): - Casca externa - Polpa - Caroço ou endocarpo - Amêndoa
PRODUÇÃO DE ÓLEO Matéria-prima Produção * Macaúba 9,0 Palma 3,8 Girassol 0,7 Soja 0,6 *Toneladas por hectare Fonte: Soleá
as comunidades tradicionais.” Além de fixar as pessoas no campo (moradores locais, comunidades tradicionais e agricultores familiares), o extrativismo sustentável contribui para a preservação da floresta Amazônica. “Nos anos 1990, eram coletadas em média 50 mil toneladas de castanha-do-brasil por ano. Em 2018, foram cerca de 34 mil toneladas, ou seja, sem a floresta em pé, as castanheiras irão desaparecer, bem como seus serviços ambientais prestados ao clima, animais, polinização e seres humanos”, explica Santos Júnior. RIQUEZA DO CERRADO Natural de outro importante bioma brasileiro, a castanha-debaru é mais uma preciosidade brasileira e vem ganhando mercado. Na realidade, ela é a semente do fruto do baruzeiro, uma árvore típica do Cerrado, que começou a ser explorada há uma década. O publicitário Edson Cunha é um dos pioneiros. Naquela época, ele deixou a capital paulista e voltou para
Jussara (GO), sua terra natal. Foi quando se lembrou da infância, dos baruzeiros e das propriedades nutricionais relacionadas à semente. A partir dali, começou a pesquisar e também a organizar e treinar as comunidades extrativistas, que hoje são mais de mil espalhadas por Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Minas Gerais. “Quando conseguimos a primeira tonelada de baru, foi uma vitória. Mas de 2018 para 2020 já passaram por nós mais de 40 toneladas de sementes”, explica Cunha, fundador da Flora do Cerrado, uma empresa focada nos produtos da região. Há seis anos, a Flora ganhou musculatura ao se fundir com a Labra, empresa focada na comercialização de produtos e ingredientes ecofriendly. Criada pelo brasileiro Ricardo Pavan, a companhia tem sede nos Estados Unidos, por isso o nome Labra, uma referência à conexão Los Angeles–Brasil. Com a fusão, a castanha-de-baru passou a ser exportada para os ianques e
Vários estágios da produção da macaúba: castanha nativa do Brasil tem grande potencial de exportação
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Castanhas
Solução inovadora: sem muitas pesquisas na área, o produtor Gustavo Grossi diz que tem mais perguntas do que respostas
O baruzeiro e a castanha-de-baru: natural do Cerrado, tem recebido investimentos para ganhar novos mercados
canadenses e a participar da Expo West, uma feira de produtos naturais da Califórnia, conhecida por lançar tendências no mundo. “Em 2016, fomos abordados por importadores e traders da Coreia do Sul e encaminhamos amostras de baru para eles fazerem o primeiro registro sanitário da castanha”, diz Pavan. A abordagem rendeu frutos. Recentemente, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, anunciou a abertura da Coreia do Sul para a castanha-de-baru. E os planos da Labra-Flora não param por aí. A empresa aposta nas dezenas de propriedades nutricionais do baru (antioxidante, alto percentual proteico, baixo índice glicêmico, rico em zinco e fibra), que o coloca na categoria de “superalimento” para abrir novos mercados. Enquanto a parte comercial apresenta a semente do Cerrado ao mundo, a equipe de campo investe na cadeia: treinamento das comunidades extrativistas, desenvolvimento de equipamentos para a quebra do fruto, construção de unidades de processamento e doação de 80
mudas de baruzeiro para estimular o plantio. O Brasil pode facilmente triplicar a oferta da semente. “Dos baruzeiros que existem no Cerrado, apenas 10% dos frutos são aproveitados hoje”, diz Cunha. A maioria das pessoas desconhece o produto. Por conta do trabalho da Labra-Flora, muitos pecuaristas da região descobriram a riqueza que há em seus pastos e vão começar a fornecer o fruto à empresa. É o caso da goiana Isabel Araújo, que desde pequena consumia o baru, muito utilizado por sua mãe na alimentação. Mas desconhecia o valor comercial da castanha até conhecer a LabraFlora. “Sou entusiasta da silvicultura, ou seja, como monetizar nossas árvores. Temos uma fazenda de 4.957 hectares no Vale do Araguaia e lá há 1,5 mil baruzeiros nativos”, conta a fazendeira. Este ano será a primeira colheita com fins comerciais e a pecuarista irá contratar mulheres da região para fazer a colheita. Dependendo de como for a empreitada, Isabel pretende ampliar o projeto baru na propriedade.
foto: João Pinheiro
MACAÚBA, A APOSTA DA FAMÍLIA PASTORI Fruto da palmeira nativa do Brasil, a macaúba é um produto versátil com potencial para conquistar o mundo. Tem polpa e amêndoa ricas em óleo, é fonte de biomassa e pode servir de matéria-prima para uma série de segmentos: indústria de alimentos, fabricantes de bioprodutos, setor de cosméticos, bem como a área de combustíveis renováveis. “O Brasil tem uma possível nova commodity global sustentável”, diz Felipe Morbi, CEO da Soleá, empresa que nasceu em 2010 para estruturar o projeto macaúba, que tem como pilares a sustentabilidade e a bioeconomia. A inciativa recupera áreas degradadas com o cultivo comercial da palmeira nativa e comercializa produtos sustentáveis com custo competitivo. A macaúba veio à tona em 2004, quando foi lançado o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). Só para se ter uma ideia, o óleo de palma (equivalente no Brasil ao dendê) é o mais consumido no mundo. Um hectare dessa palmeira resulta em 3,8 toneladas de óleo, enquanto a mesma área de macaúba produz 9 toneladas de óleo. Individualmente, a palma tem uma produtividade maior, mas é uma palmácea de grande porte. Já a macaúba tem porte médio, o que possibilita um adensamento três vezes maior de planta por hectare, fator que multiplica o rendimento. E as vantagens vão além. A palmeira macaúba está presente desde o sul da América do Sul até o México e é menos exigente em água. “Ela ocorre naturalmente em regiões com 1,2 mil milímetros de chuva anual e longos períodos de seca. Por essa característica, a macaúba pode ser cultivada em uma ampla faixa territorial e diferentes biomas", diz o CEO da Soleá. “Apenas como comparativo, a palma – que domina o mercado de óleos vegetais – se desenvolve bem em regiões mais úmidas, áreas de floresta equatorial [Amazônia e, principalmente, o Sudeste Asiático], com índice pluviométrico de, no mínimo, 2 mil milímetros bem distribuídos”, diz o CEO da Soleá. O plano audacioso de Morbi foi apresentado a Rafael Pastori, filho de Aurélio Pastori, empresário do ramo metalúrgico e inventor das bombas hidráulicas Anauger. Pai e filho se apaixonaram pelo projeto, especialmente o patriarca, que tem como missão de vida deixar um legado socioambiental para gerações futuras. Por meio da holding Pastori Participações, eles já investiram R$ 40 milhões na Soleá e na Acrotech, uma
empresa-irmã focada em tecnologia agrícola para o melhoramento genético, formas de cultivo e metodologias de colheita da macaúba. Atualmente, a Soleá tem uma grande área experimental de 700 hectares de macaúba em João Pinheiro (MG). “É um banco de germoplasma com uma variabilidade genética gigantesca para o programa de melhoramento genético, com a finalidade de transformar as variedades em clones”, diz Morbi. Na lavoura são realizados diversos experimentos: cultivos com espaçamentos diferentes; plantio no sistema agroflorestal (SAF), que pode consorciar a macaúba com pecuária e culturas como mandioca, feijão e palmito-juçara; bem como avaliação de tipos de solo, níveis de adubação e incidência de pragas e doenças. Neste ano será colhido o primeiro talhão, uma área de 206 hectares plantada em 2015. Na indústria, o fruto da macaúba rende diversos produtos. A polpa resulta em dois, um óleo com o perfil de ácidos graxos similar ao do azeite de oliva e um farelo fibroso, rico em carotenoides. Já da amêndoa se extrai um óleo similar ao de coco e um farelo proteico. Além disso, um hectare da lavoura gera 10 toneladas de biomassa por ano, restos do cacho da macaúba e as folhas e cascas que se desprendem da palmeira. “Ela tem uma versatilidade de produtos e aplicações que mitiga os riscos do negócio”, diz Morbi. A empresa vem trabalhando com parceiros para o desenvolvimento de produtos para a indústria de alimentos e mercado pet. Na área de bioprodutos, os trabalhos são voltados para plásticos e resinas verdes. No segmento de energia limpa, o foco é o diesel verde, o biodiesel, a bioquerosene a partir dos óleos e os biocombustíveis de segunda geração (etanol e diesel verde) a partir das biomassas. A verticalização é a base do projeto da Soleá, que domina todas as fases do processo, da semente à comercialização dos produtos (óleo e biomassas). Agora, o momento é de crescimento, aproveitando a demanda por matérias-primas sustentáveis, que foi acentuada pela pandemia. “Há uma série de opções, desde uma captação de recursos para ampliar a área própria, fomento a produtores ou atrair fundos de investimentos verdes para o plantio da macaúba”, diz Morbi. "A Acrotech forneceria o pacote tecnológico e, na outra ponta, a Soleá garantiria a compra dos frutos”, finaliza. PLANT PROJECT Nº22
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SUA REDE DE
CONEXÃO
COM O AGRO DO FUTURO
Todo dia é uma oportunidade de criar novas e relevantes histórias no campo. Com a Plant é assim: há 2 anos desenvolvemos conexões inteligentes, consistentes e decisivas entre o agro do futuro e as grandes marcas através de projetos transformadores. /PlantProjectBrasil
Quer transformar seus negócios no campo? Conecte-se com o agro do futuro. Acesse: www.plantproject.com.br 82
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O mirador da Adrianna Vineyards, diante da Cordilheira dos Andes: As videiras subiram montanhas para vencer adversidades
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A grande feira mundial do estilo e do consumo
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A grande feira mundial do estilo e do consumo
A intensidade da luz solar na Adrianna Vineyards 84
VINHOS EM TEMPOS DE CRISE Da temida filoxera à Covid-19, os 7 mil anos de história das videiras revelam como a união de resiliência e conhecimento ajudou a vitivinicultura a enfrentar os piores desafios Por Suzana Barelli
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videira é uma sobrevivente. Com registros de sua existência há mais de 7 mil anos, a vinha enfrentou as mais diferentes adversidades sem perder o poder de encantar ou de tornar mais felizes aqueles que se deixam inebriar com seus frutos. Nos tempos modernos, sua pior adversidade foi a filoxera, um pequeninho e feroz inseto que quase dizimou as plantas no continente europeu no século 19. Ele chegou à França em 1862 e, para as videiras, pareceu até mais letal do que a Covid-19 atual. Foram mais de dez anos de pesquisas para os cientistas encontrarem uma maneira de vencê-lo. Corriam contra o tempo, já que a filoxera começou no Languedoc, no sul da França, foi se espalhando e acabando com os vinhedos de toda a Europa. A salvação veio nos porta-enxertos feitos com vinhas Vitis labrusca, espécie mais resistente, de origem americana, e que não é atacada
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pelo inseto. A ideia de plantar a Vitis vinifera em uma raiz americana (o porta-enxerto) foi uma descoberta dos estudiosos da universidade de Montpelier, em 1874. Atualmente, porta-enxertos americanos são a base para as espécies Vitis viniferas sobreviverem na maioria dos vinhedos – a principal exceção são terrenos muito arenosos, onde o animal não consegue atuar. Por alguma razão, as raízes das vinhas americanas são resistentes ao pulgão. “A videira não sobreviveria sozinha. Precisou da ajuda de uma espécie inferior para, juntas, vencerem”, explica Felipe Campos, professor da escola The Wine School Brasil. Para a videira, a Covid não é um inimigo. Não traz perigo às plantas, por mais que obrigue muitos cuidados para os agricultores nos vinhedos e, principalmente, na vinícola. Pior para ela são as geadas, que vêm acontecendo em
Vitivinicultura
As variedades ancestrais nos vinhedos da família Torres, na Espanha: saga em busca de resiliência virou documentário
ritmo mais feroz nos últimos tempos. “Tem duas coisas que apavoram os enólogos na época da brotação: as geadas e as chuvas de pedra”, afirma o produtor chileno Mario Geisse. No final de agosto deste ano, por exemplo, uma geada chegou a destruir alguns brotos, de variedades precoces, na Serra Gaúcha. Na década passada, regiões clássicas francesas, como Borgonha, Bordeaux e Champanhe, perderam grande parte de sua safra pelo mesmo problema. Os anos de 2016 e 2017 foram, particularmente, terríveis para a Borgonha – e para os consumidores dos seus vinhos. Com a queda da produção e a lei de oferta e procura, o resultado imediato foi um aumento de preço dos vinhos destas safras. Com as previsões do tempo mais eficientes, muitos produtores vêm conseguindo restringir o impacto das geadas. Manter as plantas mais molhadas, colocar aquecedores entre as fileiras dos vinhedos são
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algumas ações possíveis para evitar que as geadas atinjam os vinhedos e matem as plantas. São, no entanto, opções caras, que necessitam de grande consumo de água e que obrigam o trabalho noturno dos agricultores. Muito diferente do que a geada de 1956 em Bordeaux. Forte e inesperada, ela teve uma consequência que mudou para sempre o perfil dos vinhos bordaleses. Com os vinhedos destruídos, seus produtores decidiram apostar apenas naquelas variedades bem adaptadas à região. Assim, a Malbec, que hoje brilha na Argentina, mas que tinha dificuldade de amadurecer em Bordeaux, perdeu lugar para a Merlot, hoje a variedade tinta mais plantada nesta região e que faz um par perfeito com a Cabernet Sauvignon. Outro medo das videiras são os incêndios, como os que os vinhedos australianos sofreram neste início de ano e os Estados Unidos, no último mês de agosto. Depois de as encomendas chinesas reduzirem drasticamente – a proximidade geográfica transforma a China em principal destino para o vinho australiano –, os australianos viram os seus vinhedos arder em chamas. Além da destruição das vinhas, que precisam ser replantadas, é preciso ter paciência. A videira só começa a dar frutos três ou quatro anos depois de plantada. Mas, nos primeiros anos, essas uvas ainda PLANT PROJECT Nº22
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Vitivinicultura
Maison Drappier, na França: cinzas de um incêndio ajudarama dar uma característica única ao champagne da marca.
não têm a complexidade desejada. A qualidade das uvas aumenta conforme as safras. A fumaça dos incêndios tem reflexos até no vinho. “As uvas absorvem os aromas de queimado, mesmo que a queimada seja a quilômetros do vinhedo”, destaca Geisse. O resultado é que os vinhos de regiões vizinhas aos incêndios ganham uma complexidade de aromas, nem sempre agradável. Mas há uma exceção. No norte da França nasce um champanhe batizado de Grande Sendrée, rótulo premium da Maison Drappier. O nome é uma referência a um incêndio no vilarejo de Urville, em 1838. Passado o fogo, os vinhedos foram replantados sobre as cinzas (cendrée, em francês) e suas uvas ganharam uma complexidade única, 88
sem as notas queimadas. As videiras temem mais o fogo do que os terremotos. Em geral, os tremores de terra são terríveis para as vinícolas. Tanques e barricas cheias de líquido não resistem e, não raro, estouram, fazendo jorrar todo o vinho em estoque, com grandes prejuízos financeiros. O último grande terremoto no Chile, que aconteceu há dez anos, acabou com os estoques de vinho e com muitas construções, ainda em adobe, no Vale de Colchagua. “Mas a safra seguinte aconteceu sem problemas nas vinhas”, lembra Geisse. As videiras sobrevivem até às guerras, uma adversidade humana e não da natureza. A Segunda Guerra Mundial escolheu muitos vinhedos europeus como campo de batalha. Com o avanço dos
alemães pelo norte da França, os viticultores trataram de preservar os seus bens mais preciosos. São inúmeras as histórias de produtores que esconderam seus vinhos dos alemães, como narram os autores Don e Petie Kladstrup, no livro Vinho & Guerra. Os franceses foram hábeis em erguer paredes falsas nas adegas e deixar as teias de aranha escondê-los, entre outras artimanhas, para evitar que o Exército alemão descobrisse suas riquezas. Não conseguiram proteger os vinhedos, mas, passadas as batalhas, as videiras foram replantadas e voltaram a produzir. O ano de 1945, que marca o fim dessa guerra, é tido como uma das melhores safras do século passado. Como se para abençoar a paz, no ano em que o armistício foi assinado. Dos fenômenos naturais,
o mais difícil para a planta são as mudanças climáticas. As videiras, no entanto, começam a aprender que podem se mover para novas zonas, em geral terrenos mais altos ou em regiões mais frias. “São as novas fronteiras do vinho”, resume Dirceu Vianna Júnior, o primeiro (e até hoje único) Master of Wine brasileiro, um dos títulos mais cobiçados do mundo do vinho. Um exemplo é que atualmente os espumantes da fria Inglaterra competem em qualidade – e em preço – com os champanhes franceses. A explicação é que o clima um pouco mais quente permite que as uvas amadureçam em vinhedos no sul da Inglaterra, o que era impensável décadas atrás. O sucesso dos vinhos da vizinha Argentina também se baseia em subir a montanha,
no caso a Cordilheira dos Andes. Entre os vinhedos mais promissores estão aqueles plantados a 1.500 metros do nível do mar, na região de Gualtallary, ao sul da cidade de Mendoza. “Os produtores procuram zonas mais frescas, para que a uva consiga amadurecer devagar”, explica Vianna. Além disso, os viticultores estão indo atrás de variedades mais resistentes aos novos climas. A saga da família espanhola Torres em busca de variedades autóctones e mais resistentes é tão rica que acaba de virar filme. É o documentário Recuperando Variedades Antigas, dirigido por Klaas de Jong, que será lançado ainda este ano. A história começa com a pesquisa da vinícola para encontrar variedades autóctones espanholas na região do Penedès. Como a vinha é uma planta muito
resistente, muitas sobreviveram em bosques e quintais das casas por dezenas de anos, mesmo sem cuidados e cultivo. A forma de encontrá-las foi colocar anúncios em jornais locais, perguntando quem tinha variedades plantadas e queria conhecer a sua origem. Receberam inúmeros telefonemas e cartas. Quando identificada como uma variedade desconhecida, essas vinhas foram tratadas dos vírus e plantadas em vinhedos da própria Torres. Atualmente, duas dessas variedades já são reconhecidas e estão disponíveis para qualquer produtor que queira cultivá-las. Foram batizadas de Moneu e de Forcada e já dão origem a alguns vinhos. São uma das melhores provas da resistência das videiras à adversidade da natureza e do homem. PLANT PROJECT Nº22
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A MÃE DE TODOS OS SUVS Mistura de carro de passeio e trabalho, a Renault Colorale, lançada nos anos 1950, foi pioneira em uma categoria que conquistou a cidade e o campo muitas décadas depois. Uma delas ainda circula no Rio Grande do Sul Por Irineu Guarnier Filho Fotos de Eduardo Scaravaglione
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a pequena Guaíba, às margens do lago de mesmo nome, na Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a Renault Colorale Prairie 1951 azul é conhecida por quase todos os moradores. O veículo está na cidade desde 1954, quando foi adquirido pelo ex-mecânico Cezar Hagel Maciel, que comprava e revendia pães pelo município com a caminhonete, até abrir sua própria padaria e a utilizar para a compra de trigo, sal e outros insumos. Maciel percorria moinhos de trigo pelo interior com sua fiel escudeira. Depois de cumprir uma longa e produtiva missão como “carro do padeiro”, a Colorale Prairie, já aposentada, esteve estacionada por muitos anos na garagem do empresário Cezar Augusto Maciel, filho e herdeiro
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do antigo proprietário, ao lado do hospital de Guaíba, motivo pelo qual também ficaria conhecida como o “carro do hospital”. Carro do padeiro ou do hospital, a Renault Colorale Prairie chegou ao Brasil no início da década de 1950, em caixas CKD, e foi montada pela empresa Cirei, que já produzia veículos da marca norte-americana Dodge em suas instalações em Porto Alegre desde 1944, e, a partir de 1946, também se tornara concessionária da marca francesa Renault. O pai do atual proprietário trabalhou nas oficinas da Cirei, conhecia bem o processo de montagem da Colorale, e acabou comprando o automóvel de um cliente de sua oficina em Guaíba, no ano de 1954. A manutenção da máquina não
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era problema para ele, visto que conhecia em detalhes sua mecânica simples e robusta. O carro permaneceu em uso na família Maciel até 1988, quando outro veículo foi adquirido. Enquanto viveu, o dono não permitia que ninguém além dele mexesse na Colorale. Parado, o automóvel se degradou. Em 2010, após o seu falecimento, o filho Cezar começou a pensar num projeto de restauro, cujo início acabou acontecendo em 2013. “Esta aparência que ela possui hoje, além de trazê-la à vida, é uma homenagem ao homem que a manteve durante todos esses anos e que tanto fez pela cidade e pelas Renault Colorale”, conta o filho. Cezar já teve propriedade rural e hoje cria cavalos crioulos em Guaíba. Ou seja,
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a Renault continua ligada ao campo. Admirada por todos que a veem nos encontros de antigomobilismo e premiada em concursos nacionais, como o 27º Encontro Sul-Brasileiro de Veículos Antigos, realizado pelo Veteran Car Club do Brasil/Porto Alegre em 2018, a Colorale de Maciel é uma das cinco existentes em todo o Brasil – uma verdadeira raridade. Carro de passeio e para todo o tipo de trabalho (também possuía versões furgão e picape), pode ser considerada precursora dos modernos SUVs. O nome – uma fusão das palavras “coloniale” e “rurale” – está associado à intenção da Renault, que a projetou para ser usada nas colônias francesas da África e da Ásia e em áreas rurais. É equipada com o “famoso motor 85” flathead, a gasolina, PLANT PROJECT Nº22
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de 48 HP a 2.800 RPM, com 2.383 cc e válvulas laterais, e com câmbio de quatro velocidades. Alta e espaçosa, serviu por muito tempo como táxi em Lisboa. O restauro deste exemplar durou cinco anos. A Colorale foi totalmente desmontada, teve todos os seus componentes recuperados e depois foi cuidadosamente remontada. As muitas peças sobressalentes guardadas pelo antigo proprietário facilitaram a restauração. “Esta ação precavida do meu pai ajudou muito na substituição e recuperação de peças e partes no restauro. As poucas peças
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que não conseguimos substituir com o estoque doméstico foram confeccionadas ou refeitas por hábeis torneiros mecânicos. O mais difícil, porém, foi suportar o longo tempo do processo de restauração e a ansiedade de vê-la de volta à vida”, conta Cezar. Utilizada regularmente para passeios, a Renault Colorale Prairie 1951 não deve mais sair da família Maciel. Pedro, filho de Cezar, que ajudou o pai na restauração, também é adepto do antigomobilismo e está comprometido com a missão de conservar com muito zelo o carro do avô.
Maciel, criador de cavalos, e sua relíquia sobre rodas: apenas cinco exemplares no País
Chico Bento Moço: Personagem clássico de Mauricio de Sousa cresceu e virou agrônomo
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Um campo para o melhor da cultura
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Um campo para o melhor da cultura
A ROÇA EM QUADRINHOS Com uma atuação que vai além das páginas dos gibis, Chico Bento e os personagens criados por Mauricio de Sousa encurtam a distância entre o campo e a cidade Por André Sollitto
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ualquer brasileiro que foi criança nos últimos 60 anos provavelmente já leu pilhas de gibis criados por Mauricio de Sousa. São comuns as histórias de pessoas que deram os primeiros passos da alfabetização lendo as histórias da Turma da Mônica, criação mais famosa do cartunista, e continuaram (e continuam) matando a saudade da Turminha, como é carinhosamente chamada pelos leitores. Mas tão querido e popular como Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão é o caipira Chico Bento. “O Chico está ali, empatadinho com a Mônica, na preferência dos leitores. As crianças das grandes cidades adoram conhecer os hábitos – alguns desconhecidos – dos meninos da roça. E a busca das revistas do Chico Bento pelos adultos demonstra uma saudade estranha do que não foi vivido. Uma ‘viagem’”, conta Mauricio. O personagem faz essa conexão do campo com a cidade desde meados da década de 1960. O que nem todo mundo sabe é que Chico Bento, na verdade, não foi o primeiro personagem da roça retratado por Mauricio. Ele havia sido convidado para escrever uma página em quadrinhos para a Coopercotia, a Cooperativa Agrícola de Cotia. Assim, nasceram “Zezinho e Hiroshi”, em 1961, como era chamada a página. Foi só em 1963 que Chico Bento apareceu. Ao contrário dos outros dois, usa expressões do campo e fala um português “incorreto”. Não se trata de uma caricatura, no entanto, mas uma homenagem. “Chico Bento tem muito de um tio-avô meu e um pouquinho de mim
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mesmo, que cresci no interior paulista", conta o cartunista. Mauricio nasceu em 1935, em Santa Isabel, mas mudou-se para Mogi das Cruzes com meses de vida. Trabalhou como repórter policial em São Paulo, ilustrando seus textos com desenhos próprios, até emplacar a primeira tira, protagonizada pelo cãozinho Bidu. Cebolinha veio depois, seguido por vários de seus personagens mais famosos. Hoje, comanda, ao lado da família, a Mauricio de Sousa Produções (MSP), um dos maiores estúdios de animação do mundo. Já lançou diversas revistas, transformou jogadores de futebol como Pelé e Neymar em temas de HQs, tem um parque temático na capital paulista, adaptou a Turma da Mônica para os cinemas e reconquistou o público adulto leitor de gibis graças a uma série de graphic novels com seus personagens reimaginados no traço de outros cartunistas. Já foi tema de samba-enredo da Unidos do Peruche, em 2007, e desde 2011 ocupa a cadeira 24 da Academia Paulista de Letras. Esse breve resumo de sua trajetória mostra que Mauricio não vive apenas de glórias passadas e continua se reinventando sempre. Chico Bento, por exemplo, passou por transformações. Foi criado com um perfil atemporal: “Chico é um menino esperto com as coisas da natureza, respeitoso com os pais, adora e curte as redondezas de sua casa, come frutas direto dos pés, nada no ribeirão e sua ligação com a cidade grande se dá via seu primo da cidade. Nas poucas vezes que vai visitá-lo tem muita admiração e sustos com o
O desenhista Mauricio de Sousa: a conexão com o campo vem de sua própria história pessoal
chamado progresso”, conta Mauricio. Mas como a situação do homem do campo mudou bastante desde que o cartunista fez as primeiras histórias para a Coopercotia, as histórias do Chico Bento também mudaram. Em 2013, foi lançada a revista Chico Bento Moço. “Moço porque na roça é assim que chamam gente jovem”, brinca o autor. “Ele faz 18 anos e entra em uma Faculdade de Agronomia para cuidar, com conhecimento de causa, das plantações nas terras do seu pai.” O gibi veio logo depois de Turma da Mônica Jovem, em que os personagens são retratados como adolescentes e a trama acompanha dilemas mais apropriados à faixa etária
de seus leitores. Ambas as revistas são feitas em versão mangá, como é chamado o estilo de quadrinho japonês. A atualização das histórias, no entanto, não quer dizer que o Chico Bento “tradicional” não exista ainda no Brasil. “Basta visitar as cidades do interior do País. Sempre tem aquele roceiro bondoso, sabido, ligado às coisas da natureza”, diz Mauricio. A preocupação com a natureza, inclusive, faz com que a atuação de Chico Bento não seja limitada às páginas dos gibis. Desde 2014 ele é “parceiro” da WWF-Brasil, uma das maiores organizações de conservação da natureza no mundo. O personagem já foi nomeado embaixador da proteção das nascentes no Pantanal. Em agosto deste ano, foi promovido e tornou-se embaixador oficial da organização. E o que isso significa na prática? Por meio de desenhos animados, livros e HQs customizadas, o projeto quer promover mensagens socioambientais que ensinem o descarte correto de materiais, o incentivo à reciclagem e a adoção de práticas de conservação. “Garantimos que o recado seja passado da maneira mais eficaz possível, de forma lúdica e didática”, afirma Mauricio. PLANT PROJECT Nº22
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As versões de Chico Bento: o personagem passou por diversas transformações ao longo de quase 60 anos
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“MAÇÃ DA MÔNICA” A ligação de Chico Bento e até da Turma da Mônica com o agronegócio também vai além das histórias em quadrinhos. O exemplo mais conhecido é o da Maçã da Turma da Mônica. “A história de como tudo aconteceu explica nossa proximidade com esses produtos in natura”, diz Mauricio. Ele conta que visitou uma plantação e ficou surpreso quando viu que as menores maçãs eram colocadas de lado para se transformar em suco ou alimento de animais, já que apenas as maiores maçãs eram separadas para serem vendidas. Ele achou aquilo um desperdício, já que as pequenas maçãs eram ideais para serem colocadas nas lancheiras das crianças. “Com a vantagem de que eram comidas inteirinhas, ao contrário das grandes, que eram descartadas na metade.” Sugeriu a criação dos pacotes de maçãs da Turma da Mônica. “Foi um sucesso imediato. E virou referência de mercado junto às crianças."
Tanto virou referência que hoje é comum usar a expressão “maçã da Mônica” como sinônimo para as frutas diminutas. Elas são produzidas pelo Grupo Fischer, uma das maiores indústrias de suco de laranja do mundo. A empresa lançou também outras frutas com a “aprovação” dos personagens, como peras e kiwis. A Trebeschi Tomates, sob a gestão de Edson Trebeschi, Top Farmer Nova Geração, também tem uma linha de produtos com as criações de Mauricio. Chico Bento aparece na embalagem de um milho doce pronto para o consumo, enquanto a Turma da Mônica ilustra as caixinhas de tomates sweet grape. “Nós não apenas colocamos nossos personagens para estimular as crianças a comerem mais produtos naturais como ajudamos o produtor a conhecer melhor uma nova parte do seu público consumidor”, diz Mauricio.
Habitat Floema, em Porto Alegre: A inovação mais próxima do produtor
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As inovações para o futuro da produção
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As inovações para o futuro da produção
AgriHub Space, em Cuiabá: a rede de inovação do Sistema Famato ganhou espaço físico 102
OS NOVOS HUBS DE INOVAÇÃO DO AGRO Mais próximos dos produtores rurais, ecossistemas dedicados à busca de soluções tecnológicas estão surgindo em regiões com grande tradição agrícola
Por André Sollitto
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Startups O Agtech Garage, em Piracicaba, tornou-se referência no chamado AgTech Valley
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Radar AgTech 2019, maior levantamento já feito no Brasil sobre a inovação no campo, listou 1.125 startups desenvolvendo soluções para alguma etapa da cadeia de produção de alimentos. Um dos dados mais surpreendentes foi a concentração dessas empresas: 262, ou 23% do total, estão na cidade de São Paulo. Esse dado mostra que o desenvolvimento das startups do agro está relacionado à maturidade do ecossistema de inovação paulistano como um todo. Mostra também que regiões com grande tradição agrícola estão menos representadas. A situação, no entanto, está mudando rapidamente e o cenário de hoje já é diferente daquele apresentado pelo estudo. Um levantamento feito pela PLANT listou pelo menos 20 hubs dedicados à busca de startups para o agronegócio – e outros que olham para o setor como um dos pilares de interesse. Vários deles estão em regiões que já consolidaram um ecossistema de inovação. É o caso de Piracicaba, cidade conhecida como o AgTech Valley, que tem o Pulse, da Raízen, o AgTech Garage, o Animals Hub e a incubadora EsalqTec, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz. A cidade de Londrina, no Paraná, também se desenvolveu muito nos últimos anos e hoje a região, conhecida como AgroValley, apresenta um dos ecossistemas mais vibrantes do cenário agtech. Destaque mais recente são os espaços que estão desenvolvendo novos polos de inovação. Apenas a região Centro-Oeste, por exemplo, ganhou quatro. Dois deles estão em Goiânia: o Conexa, iniciativa da empresa de software Siagri, e o Campo Lab. Em Rio Verde, Goiás, há o Orchestra Innovation Center. E em Cuiabá, Mato Grosso, há o
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Agrihub Space. Minas Gerais agora conta com dois novos hubs: em Varginha, cuja localização é estratégica para a indústria do café no sul do estado mineiro, o AgVenture Hub dá os primeiros passos para fomentar a inovação na região; e em Uberlândia, o clube de investimentos AgroVen está fazendo aportes em agtechs importantes. Na região Sul, o Habitat Floema, o braço de inovação do ecossistema Fábrica do Futuro, no Rio Grande do Sul, surgiu com a proposta de fomentar a busca por soluções ligadas à sustentabilidade e que passam pelo agronegócio. PROXIMIDADE COM O PRODUTOR A principal vantagem desses hubs instalados em regiões produtoras é, justamente, essa proximidade com o produtor. Startups criadas em grandes centros urbanos, como São Paulo, às vezes desenvolvem soluções que são um pouco desconectadas com as dores reais de quem planta. “Vemos tecnologias que propõem uma grande disrupção”, diz Nathália Secco, CEO e fundadora da Orchestra Innovation Center. “Mas o mercado, às vezes, não está pronto. E é preciso dar um passo para trás.” Grandes plataformas de gestão são importantes, mas às vezes o agricultor tem de resolver algum problema mais imediato. Ele precisa de uma ferramenta para controle de daninhas, ou uma agfintech que resolva alguma certificação necessária. Um formato bastante explorado pelos hubs é propor desafios a partir de demandas de produtores e parceiros corporativos e buscar startups capazes de atendê-las. É um caminho mais eficaz do que desenvolver uma solução mirabolante e só então ir a campo para testá-la. Isso é importante por conta das diferenças de
cada região, de cada cultura. “Grandes produtores da região Centro-Oeste, por exemplo, precisam ser extremamente eficientes da porteira para dentro, porque da porteira para fora o frete acaba com eles”, diz George Hiraiwa, ex-secretário de Agricultura do Paraná e um dos criadores do AgroValley, em Londrina. No Sul do país, as propriedades são menores e os desafios, diferentes. No Matopiba, as dificuldades climáticas representam outro desafio. Entender as peculiaridades de cada região produtora é o que garante a eficiência. Inserir o produtor como parte dessa busca por inovação é importante. “Quando estruturamos um hub, é preciso fazer uma certa evangelização”, diz Nathália Secco. “Durante muito tempo, a discussão sobre digitalização no campo ficou apenas entre os players de inovação e não chegava ao mercado. Em Rio Verde, o mercado está aqui”, afirma ela. “Vamos ver muito mais aderência quando o produtor também se tornar um
investidor dessas tecnologias.” Hiraiwa tem uma opinião semelhante. “Sempre perguntam: quando vai ter o unicórnio do agro? Quando o ecossistema nacional entender e começar a divulgar as inovações para o produtor rural.” INOVAÇÃO SAUDÁVEL Ao olhar de perto o desenvolvimento de cada região, fica claro que não existe uma fórmula única que funcione em todos os lugares. “Um ecossistema tem que ter uma junção de pessoas que queiram discutir essa ideia de inovação. De muros baixos, sem vaidade”, diz Hiraiwa. Segundo ele, é importante ter sempre em mente que o objetivo principal é inovar o agronegócio. Nathália Secco, da Orchestra, concorda. “Inovação é cooperação. Quanto mais os hubs estiverem interligados, melhor para o setor como um todo”, afirma ela. O exemplo de Londrina é um pouco atípico, mas mostra como não existe uma receita única. O polo de inovação começou a se desenvolver a partir de eventos
como o Hackathon Smart Agro, promovido pela Sociedade Rural do Paraná, e do trabalho de fomentadores como Hiraiwa. Por um tempo, a região ficou conhecida como SRP Valley, mas recentemente a participação de cooperativas, da Embrapa e de outras instituições fez com que o ecossistema passasse a ser conhecido como AgroValley. Hoje, graças à presença na cidade de um importante centro de desenvolvimento de tecnologia da informação, a região ganhou status de polo de inovação com a chancela do Ministério da Agricultura e passou a focar em projetos para uso de inteligência artificial no agro. Criou-se uma governança e a cada 15 dias representantes de 30 entidades se reúnem em grupos de trabalho para discutir temas como políticas públicas, conexão com startups, etc. Agora que ele está estruturado, será construído um hub físico. “Vamos colocar um hub dentro da Sociedade Rural do Paraná para o nosso ecossistema, mas já temos todo esse trabalho sendo feito por trás”, diz Hiraiwa. PLANT PROJECT Nº22
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O Pulse, hub de inovação da Raízen, foi pioneiro na região de Piracicaba
Em Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, a situação foi completamente diferente. Lá, um hub está sendo responsável pelo desenvolvimento do ecossistema. A aceleradora Cyklo Agritech foi fundada em setembro de 2019 a partir de uma demanda de empresários da região, que queriam criar um fundo de investimentos em startups. Eles chamaram os executivos Pompeo Tadeu Scola, atual CEO, e Aguinaldo Gomes Marques, COO, ambos com experiência em inovação que já haviam trabalhado com a Darwin, aceleradora de Florianópolis que foi eleita a melhor do Brasil em 2018. Os empresários não sabiam em qual área investir, mas logo ficou claro que o agronegócio era o setor com maior potencial da região. Afinal, Luís Eduardo Magalhães é considerada a capital do Matopiba, fronteira agrícola que inclui Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. “Lá, os produtores são mais permeáveis à inovação por conta dos desafios de produzir na região”, afirma Marques. Eles abriram uma chamada para startups e a resposta foi bastante positiva. A partir disso, começaram a busca parcerias. 106
Os empresários e produtores já tinham embarcado na ideia. Seguiram para a academia e foram muito bem recebidos pela Universidade Federal da Bahia. Estão conversando com outras instituições da região, como a Faculdade Arnaldo Horácio Ferreira, a UNIFAAHF. A pandemia atrapalhou essas negociações. “A Covid nos tornou mais distantes. Nem tudo pode ser feito por videoconferência”, diz Aguinaldo Marques. Em abril, eles estavam conversando com a Embrapa e as negociações para firmar um acordo devem ser retomadas em breve. Alguns elementos, no entanto, são essenciais. Um deles é a parceria com instituições de ensino, já que não existem inovação sem conhecimento acadêmico. E também porque o interesse pelo empreendedorismo pode ser fomentado desde cedo. A participação de empresas do setor privado é importante não apenas pelo apoio que elas podem fornecer, mas pelo conhecimento do mercado. Empresas governamentais também são imprescindíveis, como a Embrapa, que nos últimos anos passou a olhar com atenção para
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a inovação no campo e, além de desenvolver as próprias iniciativas envolvendo startups, tem dado apoio ao desenvolvimento desses ecossistemas. Dependendo da região, a ação de cooperativas também é fundamental. Por fim, é necessário contar com o interesse dos fundos de investimento. São eles que aportam os recursos necessários para que as startups e as inovações saiam do papel e atinjam um público mais amplo. O mais interessante é perceber que, ao contrário de outros players desses ecossistemas, os fundos de venture capital não precisam estar presentes na região. À medida que os polos de inovação atingem um certo grau de maturidade, investidores do mundo inteiro passam a olhar com interesse para
cá. “Recebo contatos de pessoas da Ásia, dos Estados Unidos. Está todo mundo de olho no que está acontecendo aqui”, diz Nathália Secco. Em tempos de digitalização e com a facilidade de encontros remotos, o Brasil pode finalmente cumprir seu potencial de se tornar um exportador de tecnologia para o agronegócio.
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O Orchestra Innovation Center, em Rio Verde, Goiás, e a Cyklo Agritech, em Luís Eduardo Magalhães, na Bahia: os hubs se espalham pelo Brasil
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QUEM É O DONO DO DADO? Para obedecer ao isolamento social, medida crucial na contenção da Covid-19, sem deixar de produzir, o agronegócio teve de apertar o passo da digitalização. Processos que poderiam levar anos aconteceram em meses Por Tiago Dupim
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agricultura digital é uma realidade nas lavouras brasileiras. Com o uso da tecnologia, as operações agrícolas ficam mais eficientes e as colheitas, mais fartas. Muito mais abundantes, porém, são as informações coletadas por máquinas, sensores e sistemas integrados aos processos produtivos. Elas são insumo valioso para a tomada de decisões pelos produtores – e também para uma infinidade de empresas e atividades que orbitam em torno das propriedades rurais. Até o mês passado, havia muita dúvida sobre a quem pertencem os dados obtidos pelos sistemas de agricultura digital, assim como as informações sobre consumidores e transações efetuadas em qualquer atividade econômica ou no nosso cotidiano. A questão começou a ser respondida com a sanção da Lei nº 13.709/2018, conhecida como
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LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), aprovada pelo Congresso em agosto passado. Com ela, o Brasil começa a se adequar às melhores práticas internacionais de regulamentação à proteção das informações pessoais. É um avanço grande na regulamentação das relações entre pessoas e empresas no ambiente virtual. Mas, na prática, ainda há muito para se entender sobre a sua aplicação e os efeitos que terá sobre o agronegócio. É inegável que a chegada da tecnologia mudou a vida do ser humano em praticamente todos os aspectos. Processos antes demorados foram simplificados e novas máquinas e sistemas surgiram para facilitar a vida de todos. Com isso, cada vez mais verificou-se a necessidade de regras que resguardassem a privacidade do indivíduo quanto aos seus dados pessoais diante das empresas e do poder público.
Por conta da pandemia, talvez a LGPD não tenha ganhado o destaque que merece. Mas, nos próximos meses, ela tende a se tornar mais presente nas manchetes e debates. Originalmente, o Poder Executivo havia proposto que a nova lei entrasse em vigor apenas em 3 de maio de 2021. No entanto, na última semana de agosto, veio uma virada: o Senado decidiu não votar o dispositivo que abordava o adiamento da vigência da LGPD. Com isso, ela passou a valer após a sanção do presidente Jair Bolsonaro, em meados de setembro. BIG DATA NO AGRO O agronegócio foi um dos setores que mais positivamente absorveram o impacto da tecnologia. A agricultura de precisão, que eleva a automação no campo, passa pelo conceito de big farm data. A busca por cada
vez mais eficiência na produção colocou a inovação tecnológica em primeiro plano no setor rural, desenvolvendo um sistema de gerenciamento agrícola baseado no controle tecnológico das variáveis de espaço e tempo no que se refere à unidade produtiva. Ninguém duvida que, atualmente, o dinamismo do agro depende da capacidade de potencializar a atividade agrícola com base em um grande volume de dados obtidos e compartilhados em tempo real a respeito da produção. Foi esse casamento perfeito entre a agricultura e a tecnologia que fez com que, nas últimas décadas, a produção agropecuária brasileira
se desenvolvesse de forma tão intensa e robusta. O fluxo de dados produzido no agronegócio é imenso. Os empresários do campo contratam empresas dos mais variados tamanhos e segmentos para fazer diferentes tipos de trabalho de levantamento de informações nas lavouras. Por meio de GPS e de sensores instalados nas máquinas utilizadas no campo, consegue-se obter dados de diversos tipos. São essas informações que guiarão as decisões estratégicas do empresário rural. Mas, afinal, quem fica responsável por elas? As empresas parceiras ou o fazendeiro? Esse é um impasse que a LGPD promete resolver
ou, ao menos, minimizar. Para o economista Daniel Latorraca, superintendente do IMEA (Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária), o ponto crucial da LGPD é amparar o produtor em caso de um possível vazamento de dados. “Temos que partir do princípio de que fazendeiro é o dono das informações. Agora ele estará respaldado pela LGPD e poderá solicitar para o proprietário de um determinado software apagar todos os dados existentes na plataforma. Podemos dizer que a LGPD chega para, de alguma maneira, organizar essas relações comerciais e fazer com que o fazendeiro tenha mais poder”, resume. Já Luís Fonseca, sócio da área de consultoria da Deloitte, acredita que é complexo afirmar de quem realmente é o dado, pois há diversos fatores envolvidos. Para ele, a partir do momento que lidamos com uma máquina operando no campo que extrai informação do solo e do ambiente com coordenadas geográficas, há várias interpretações possíveis. “A terra é de propriedade individual, mas tem a questão do solo ser da União. A máquina que coletou as informações muitas vezes é alugada. O produtor analisa o resultado como um todo, mas há pouca preocupação sobre a propriedade desse dado em si”, analisa. Na América Latina, o Brasil era um dos países com a regulamentação de proteção aos PLANT PROJECT Nº22
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dados mais atrasada. No Chile, a legislação de proteção de dados foi decretada em 1999 e, na Argentina, em 2000. Outros países, como Colômbia, Uruguai, Peru e Paraguai, também já avançaram na elaboração das suas próprias regras. A LGPD chega por aqui seguindo o modelo de lei vigente na União Europeia. A GDPR (General Data Protection Regulation) regulamenta a proteção de dados de todos os países que pertencem ao bloco. Os cidadãos europeus têm o direito, por exemplo, de saber quais informações as empresas estão coletando sobre eles e para quais objetivos. Há ainda regras que fiscalizam como as empresas realizam o tratamento de dados, sob pena de multa de 2 a 4% do faturamento anual. É preciso ter atenção especial sobre como os dados das pessoas estão sendo manipulados. Antes da lei, essas informações eram compartilhadas com terceiros, via e-mails e aplicativos de mensagens, ou mesmo armazenadas por tempo indeterminado, sem nenhum controle de segurança ou de acesso. Assim, podiam chegar às mãos de um concorrente ciumento ou mal-intencionado. Agora, nada disso é permitido sem a devida autorização do dono do dado. Se por um lado a LGPD se torna ainda mais relevante para as empresas de tecnologia agropecuária, que têm acesso 112
ou armazenam os dados dos produtores agrícolas, por outro as novas regras ganham destaque também no dia a dia das empresas que trabalham com escore de crédito, ou seja, na avaliação de risco relacionado à concessão de financiamento à produção rural. Nesse caso, o acesso e manuseio de informações é fundamental. Atualmente, a regulamentação do crédito rural (tanto para custeio como para o investimento) é extremamente bem definida. A liberação de um empréstimo para o produtor geralmente é feita conforme o histórico de pagamento. São raras as organizações que consideram o risco com base nas condições operacionais da propriedade, por exemplo. Na hora de conceder o crédito, aqueles que trabalham com georreferenciamento, máquinas conectadas ou agricultura de precisão acabam não levando nenhuma vantagem. Para Fonseca, os produtores que usam a agricultura digital deveriam ter o acesso ao crédito mais facilitado, pois a utilização de tecnologias minimizaria o risco de inadimplência. “Com isso, seria possível conseguir uma condição competitiva melhor junto à instituição financeira. Aumentaria o interesse de todos os envolvidos”, comenta. O que ainda não está claro com a nova lei é se os bancos privados terão acesso às informações de manejo
(localizadas em máquinas, sensores e drones) que mostram como está o desempenho operacional do produtor. Esses dados dizem muito sobre o gerenciamento do negócio e, consequentemente, podem interferir na capacidade de pagamento de dívidas. “As normativas para o acesso a essas informações ainda precisarão ser esclarecidas”, avalia Fonseca. Também é possível que, na questão do crédito rural, financiamento ou até mesmo a liberação de um seguro, o cumprimento à LGPD seja exigido como pré-requisito. “A desobediência às regras de proteção de dados pode acarretar em multas pesadas, que podem interferir diretamente na saúde financeira da empresa”, explica. Para Marcos Fava Neves, professor da USP e da FGV e uma das maiores referências do agronegócio brasileiro, o ideal é que estas informações sejam seguras no âmbito individual, mas públicas no que se refere às médias setoriais, para que prevaleça a transparência. “Incomoda muito o fato de que dados individuais possam vazar e serem utilizados de forma oportunista. Tudo o que vem
para prezar pela segurança de dados e ao mesmo tempo prover transparência nas informações coletivas junto aos setores produtivos vem para somar”, esclarece. TEMPO PARA ADAPTAÇÃO A tendência é que grandes empresas multinacionais, até por conta da experiência em lidar com esse tipo de lei nos Estados Unidos e na Europa, sofram menos com a implantação da LGPD. Elas já seguem procedimentos que estão alinhados com a prática das suas respectivas matrizes. É o caso, por exemplo, da gigante alemã Bayer, que tem tradição na produção de insumos agrícolas para proteção de cultivos e ingressou na agricultura digital há cerca de dois anos com a aquisição da Climate Corporation. A empresa oferece a plataforma Climate FieldView, que integra informações de plantio, monitoramento, pulverização, colheita e solo em um só lugar. Tudo é acessível pelo celular, tablet ou computador. Com isso, o produtor pode gerenciar suas operações com mais eficiência e maximizar a produtividade. “Culturalmente
falando, para a Bayer não é nenhum choque a chegada da LGPD no Brasil. Sempre seguimos os regulamentos dos Estados Unidos e também alguns requerimentos da União Europeia”, comenta Elaine Stoicow, consultora de privacidade de dados da Bayer para o Brasil. No entanto, com as pequenas e médias empresas rurais as coisas não funcionam bem assim e será preciso uma mudança cultural. Nessas, é bastante comum existir um banco de dados de clientes, funcionários e colaboradores temporários que são contratados apenas para o período de safra. Os dados pessoais ficam arquivados em planilhas ou livros de registros e são utilizados para muitas finalidades, que vão além da simples coleta do dado em si. “A longo prazo a LGPD será muito boa, pois as pessoas passarão a olhar para os dados de maneira diferente e proteger essa informação enquanto ela trafega entre os parceiros e empresas. A lei traz um empoderamento do titular do dado. No final será benéfico”, opina Elaine. PLANT PROJECT Nº22
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A CONTÍNUA DIVERSIFICAÇÃO DO SETOR SUCROENERGÉTICO, AGORA EM DIREÇÃO AO BIOGÁS Po r Pl i n i o N a s t a r i
Desde a década de 1970, o setor da cana, açúcar e etanol vem implementando um contínuo processo de diversificação quando se intensificou a produção de etanol. Esta diversificação tem sido instrumento de apoio à superação dos desafios de um mercado competitivo e ainda infelizmente permeado por distorções como subsídios, barreiras ao comercio, e outros tipos de intervenção ao livre mercado, e tem sido o principal fator viabilizador do seu crescimento. Na última safra de 2019/20 na região Centro-Sul, 65,7% da cana foi direcionada para o etanol e apenas 34,3% para o açúcar. A flexibilidade industrial passou a ser uma grande vantagem da indústria brasileira em relação aos seus concorrentes. Isso fica evidente novamente esse ano, quando a redução da demanda por Plinio Nastari, Presidente da DATAGRO
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combustíveis devida ao isolamento social está sendo superada por uma alteração do mix de produção, com uma redução na proporção da cana direcionada ao etanol de 11,7%. O mercado de etanol continua em crescimento, no mercado doméstico e externo, à medida em que cresce a percepção e o reconhecimento de que é energia praticamente neutra em emissões de carbono, de alta densidade energética, escalável, replicável, sem barreira tecnológica à entrada, e que gera renda e emprego de forma descentralizada agregando valor a matérias primas de biomassa, estimulando a economia circular. O etanol é crescentemente valorizado por ser fator fundamental de redução da poluição do ar, contribuindo dessa maneira para amenizar a morbidade e a mortalidade causadas por
diversas doenças, incluindo a mais recente pandemia relacionada ao Covid-19. Em paralelo à diversificação com o etanol, o setor implementou a diversificação com a bioeletricidade gerada a partir do bagaço e da palha da cana. Esse aproveitamento foi alavancado pelo enorme esforço de mecanização da colheita e do plantio realizado principalmente nos últimos 15 anos que permitiu ao setor alcançar níveis de sustentabilidade incomparáveis em todo o mundo, com a capacitação de colaboradores para operar equipamentos sofisticados que hoje incluem mais computadores do que a espaçonave Apollo 11. Atualmente, a cogeração existente a partir de todas as fontes conta com 18,5 GW de capacidade instalada em operação comercial, sendo que a biomassa da cana
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representa 62% deste total, com gás natural representa 17%, e com licor negro responde por 14%. A nova onda de diversificação se concentra agora no desenvolvimento do potencial do biogás, e do biometano, a sua versão purificada que equivale em termos energéticos ao gás natural fóssil, com a vantagem de ser totalmente renovável. O potencial de geração de biogás no Brasil é estimado em 82 milhões de metros cúbicos por dia (m3/d), o que equivale a mais do que o dobro da capacidade do gasoduto Brasil-Bolívia. Desde potencial, 56 milhões de m3/d representam potencial a ser gerado pelo setor sucroenergético, 20 milhões de m3/d a serem gerados pelo aproveitamento de outros resíduos agroindustriais, e 6 milhões de m3/d pelo aproveitamento de resíduos sólidos urbanos. Este potencial é equivalente a 115 mil GWh por ano, ou 24% da demanda total de
energia elétrica, 44% da demanda de diesel, e 73% do gás natural fóssil consumido no Brasil. Com uma pequena parcela deste potencial o setor poderá em pouco tempo se tornar independente do uso de diesel em operações agrícolas, visto que já há fabricantes de caminhões, tratores e colhedoras oferecendo produtos capazes de utilizar esse energético. Com o biogás, a pegada de carbono do etanol de cana produzido no Brasil, que já é a mais baixa do mundo, poderá reduzir ainda mais, indo na direção da emissão negativa quando for computada a incorporação de carbono no solo, que é uma realidade há décadas mas ainda não incluída no cálculo. A mobilidade sustentável está relacionada ao etanol, à bioeletricidade e ao uso do biogás e do biometano. A contínua diversificação do setor de cana, açúcar e etanol coloca-o na vanguarda desse desenvolvimento e das considerações relacionadas ao meio ambiente e à saúde.
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