Para quem pensa, decide e vive o agribusiness
AS LETRAS DO AGRO SUSTENTÁVEL Por que a onda ESG deve trazer mais valor à produção responsável FRONTEIRA COMO UMA FRUTA PODE MUDAR DESTINOS NA CAATINGA
MÁQUINAS
A MEMÓRIA E A BELEZA DE COLECIONAR TRATORES ANTIGOS
PANDEMIA
O trabalho na linha frente do #agroquenuncapara
TECNOLOGIA
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AS COOPERATIVAS DEMOCRATIZAM O AGRONEGÓCIO DIGITAL PLANT PROJECT Nº24
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E d ito ri a l
Por qualquer ângulo que se observa, o agronegócio brasileiro é um espanto.
O CONTÁGIO POSITIVO DO AGRO
No ano em que as economias mundiais em geral – e a brasileira em particular – sofreram um baque histórico, números positivos continuaram a ser colhidos no nosso campo, impulsionando negócios em diversas áreas e impedindo um desastre ainda maior nas finanças do País. Segundo os cálculos do IBGE, responsável pela mensuração oficial do Produto Interno
Para quem pensa, decide e vive o agribusiness
Bruto (PIB), o agronegócio foi o único dos segmentos avaliados a crescer em 2020. Ficou positivo em 2%, enquanto o cômputo geral foi negativo em 4,1%.
AS LETRAS DO AGRO SUSTENTÁVEL Por que a onda ESG deve trazer mais valor à produção responsável
A indicação mais clara do papel do agronegócio na conta final foi revelada
FRONTEIRA COMO UMA FRUTA PODE MUDAR DESTINOS NA CAATINGA
pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em conjunto com o Cen-
MÁQUINAS
A MEMÓRIA E A BELEZA DE COLECIONAR TRATORES ANTIGOS
tro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea). Ao avaliarem o
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agronegócio de forma ampliada, indo além da produção dentro das porteiras (como faz o IBGE), as entidades apontaram um crescimento de incríveis 24,2% em relação ao ano anterior. Como fazer isso em meio a uma pandemia global? Sendo eficiente e resiliente e promovendo uma onda positiva de contágio econômico. Somadas, as capacidades da agropecuária, da agroindústria, dos serviços financeiros e outros associados servem de colchão no momento da queda e como combustível para uma possível e desejável retomada. O agro não pode nem deve ser visto como um mundo à parte, independente das atividades urbanas. Não pode nem deve comemorar seu resultado enquanto os demais segmentos sofrem terríveis impactos de uma crise global sem precedentes. Não pode nem deve se sentir imune aos efeitos devastadores do coronavírus. Mas pode e deve se orgulhar do que fez – ou melhor, do que tem feito, historicamente, pelo País nas últimas décadas. E preparar-se para liderar o Brasil em mais um ano desafiador.
Luiz Fernando Sá Diretor Editorial
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D i r etor E ditoria l Luiz Fernando Sá luiz.sa@plantproject.com.br D i r etor Comerc ia l Renato Leite Marketing e Publicidade Multiplataforma renato.leite @plantproject.com.br D i r etor Luiz Felipe Nastari A rt e Andrea Vianna Projeto Gráfico e Direção de Arte E d i tor Romualdo Venâncio romualdo.venancio@plantproject.com.br R e p órt er André Sollitto andre.sollitto@startagro.agr.br Col ab o ra dores: Texto: Evanildo da Silveira, Irineu Guarnier Filho, Lívia Andrade, Ronaldo Luiz Fotos: Eduardo Scaravaglione Produção: Daniele Faria Design: Bruno Tulini Ev e n to s Simone Cernauski A d m i n i st ração e Fina nç as Cláudia Nastari Sérgio Nunes
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GLOBAL
O lado cosmopolita do agro
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Os grãos extraídos de uma alga colhida no litoral espanhol podem ser o início da produção em fazendas oceânicas
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GLOBAL
O lado cosmopolita do agro
León e a pesquisa para produção do “arroz marinho”: vantagens ambientais e nutricionais
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ARROZ COM SABOR DE MAR O espanhol Ángel León é um dos mais influentes chefs do mundo. Sua curiosidade o levou a ingredientes pouco usuais, que ele transformou na marca registrada de sua gastronomia premiada e que colocaram o Aponiente, seu restaurante na cidade portuária de Cádiz, no sul da Espanha, em um endereço cobiçado entre os gourmets. Olhos de peixe cozidos até se transformarem em base para molhos espeços, microalgas que tomam o lugar de claras de ovos, mortadelas feitas com carne de robalos, uma epécie de pururuca da pele de moreias ou um ossobuco da cabeça do atum são algumas de suas especialidades, tão exóticas como saborosas, segundo alguns dos maiores críticos gastronômicos. León é fascinado pelo mar e as possibilidades que ele pode oferecer a um mundo carente de alimentos. Durante décadas ele pesquisou dezenas de alternativas, até que fechou o foco em uma descoberta: a 8
Zostera marina, uma espécie de alga, comum na sua região, de cuja ponta se pode colher aglomerados de pequenos grãos comestíveis. Uma espécie de arroz marinho, com enorme potencial nutritivo. A partir dessa descoberta, León passou a sonhar com enormes campos cultivados com essa planta que se projeta de dentro do próprio mar. Há pelo menos três anos ele decidiu fazer do sonho uma realidade. Através de uma parceria com a Universidade de Cádiz, ele iniciou um processo de “domesticação” das algas, de forma a permitir que elas sejam cultivadas. Seria uma dupla conquista. Além de utilizá-las na alimentação, ajudaria na reconstrução econômica e ambiental da região e do mundo. Para os cientistas, as ervas marinhas são um dos ecossistemas mais vitais na luta contra as mudanças climáticas. "Viramos o mar de cabeça para baixo. Queríamos realmente olhar para o fundo do
oceano para ver que segredos ele tinha", disse León em uma entrevista à revista Time. Seus cardápios comprovam isso. Neles, pode-se encontrar um pouco de tudo o que ele encontrou debaixo d'água e pode comparar aos alimentos tradicionais: peras marinhas, tomates marinhos, alcachofras do mar. Mas foi uma lembrança de sua infância que lhe trouxe uma revelação. Ele recordava de observar vastos campos de arroz ao longo das margens da baía de Cádiz. Percebeu, então, que o pensava, quando criança, ser arroz, era na verdade a Zostera marina, abundante em várias regiões do mundo. Consulton Juan Martín, biólogo residente no seu restaurante, que conhecia a espécie, mas nunca tinha pensado nela como uma planta comestível. A curiosidade de León o levou a um artigo de 1973, publicado na revista Science. Ali havia o relato de comunidades de coletores mexicanos que se alimentavam de algas semelhantes. Foi o ponto de partida para que seu time passasse a estudar os pequenos grãos, triturando, torrando, cozinhando, processando-os de toda forma possível. As possibilidades estavam postas à mesa. Bastava estudar como transformá-las em produtos comerciais, a partir do cultiuvo da Zostera. A parceria com a universidade visa a responder essa pergunta, definindo as condições ideais de crescimento: corrente de água, temperatura, salinidade, profundidade, luz solar. Os primeiros 50 quilos da alga – colhidos da planta ainda selvagem, num estuário de Cádiz – permitiram as análises nutricionais e experimentos na
cozinha. Conclusões: uma planta perene, com crescimento exponencial e um perfil nutricional robusto, sem glútem e com alto teor de fibras e gorduras ômega-3. O sabor lembra as sementes de chia. Os estudos continuam e León está entusiasmado. Ele e os parceiros transplantaram mudas da planta em diferentes áreas da costa espanhola e, no próximo verão europeu, pretendem fazer a colheita em uma área equivalente a 5 hectares. Esperam uma safra de 22 mil quilos do grão. Desses, 3 mil irão para a cozinha do Aponiente. O restante, para a próxima fase do projeto. Apenas na região de Cádiz, a cerca de 5 mil hectares de baías e estuários “cultiváveis”. Mas León olha muito além. Grandes arrozais surgindo no mar não são um sonho apenas do espanhol. Cultivado em mais de 100 países, o cereal é uma mas commodities mais consumidas no mundo. Sua produção ultrapassa as 700 milhões de toneladas anuais, que são a base da alimentação de mais de 3,5 bilhões de pessoas. Em função do intensivo uso de água nas plantações, é também uma das culturas mais desafiadoras – e mais questionadas em um planeta com recursos hídricos limitados, sobretudo quando falamos de água doce. Por isso, sua produção em
água salgada tem sido objeto de pesquisas em vários países. Um projeto internacional chamado Golden Rice, por exemplo, aposta em alternativas como a modificação genética das plantas para permitir seu cultivo em fazendas marinhas. É essa a abordagem da empresa americana Agrisea, que desenvolve uma variedade tolerante ao sal, que pode ser produzida com água dos oceanos, sem o uso de solo ou fertilizantes. Seus cientistas identificaram genes que controlam a expulsão do sal das células e estão trabalhando para que eles se manifestem de maneira a protege-las, preservando assim as plantas. Luke Young, CEO e co-fundador da Agrisea, explicou à revista Forbes: "Nós apenas os encorajamos os caminhos que a natureza formou em plantas que podem prosperar em um ambiente salgado." Young afirma que já está em negociações para estabelecer fazendas marinhas em países como Nigéria, China, Vietnã e Bangladesh, Nova Zelândia, EUA, Japão e Chile. Ainda em 2021, algumas delas, voltadas para testes, devem estar funcionando. As suas sementes também poderiam ser lançadas em solos salgados, como regiões costeiras do Japão inundadas por tsunamis. A refeição, assim, teria um sabor ainda melhor. PLANT PROJECT Nº24
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ÁRVORES QUE VIRAM TECIDOS... A indústria da moda vive sob pressão. Ambientalistas questionam, por exemplo, o uso de materiais sintéticos, derivados de petróleo, que representam hoje 70% das 100 milhões de toneladas de fibras têxteis utilizadas anualmente. As fibras de algodão são naturais, mas consomem grandes quantidades de água e químicos na sua produção, o que também desagrada um grupo de consumidores. Buscar alternativas, assim, pode ser um bom negócio e uma startup da Finlândia parece estar próxima de ter sucesso nisso. A empresa chama-se Spinnova e desenvolveu um processo inédito e sustentável para produzir fibras a partir de celulose. Não se trata de um material inovador para a indústria têxtil, que usa celulose como matériaprima para a produção de fibras viscose, donas 7% do mercado. O inovador, no caso da Spinnova, é o processo. O da produção de viscose exige o uso de solventes químicos. A startup finlandesa desenvolveu um processo mecânico para chegar a um material conhecido como MFC, sigla em inglês para celulose microfibrilada, em que a reduz a dimensões nanométricas. É esse material, semelhante ao utilizado por aranhas na confecção de suas teias, que compõe as fibras. A tecnologia começou a ser pesquisada há uma década e está pronta para ser testada em 10
escala. Uma unidade industrial, que exigirá investimento de US$ 22 milhões, deve começar a funcionar em 2022 e tem como sócia a brasileira Suzano, uma das maiores fabricantes de celulose do mundo, que é dona de 23% da Spinnova. “Tem muito desafio pela frente, mas queremos ter grandes linhas de produção, eventualmente até plantas de fibra têxtil acopladas a nossas plantas de celulose no Brasil”, disse o diretor de novos negócios da Suzano, Vinícius Nonino, ao site Capital Reset. A Suzano pesquisa o uso da MFC em áreas como papéis, tintas, resinas e até em cosméticos. Mas é nos tecidos que surgiram as primeiras expectativas mais promissoras.
G I N G L AT E R R A
...E PLÁSTICO QUE DÁ EM ÁRVORES
A química verde, produzida a partir de insumos renováveis, é uma realidade cada vez mais promissora. No Brasil, por exemplo, o etanol de cana é a base para uma série de aplicações que substituem o petróleo. Pesquisadores da Universidade de Bath, na Inglaterra, acabam de acrescentar uma nova matériaprima à lista de substitutos dos combustíveis fósseis. Eles desenvolveram um polímero sustentável usando o segundo açúcar mais abundante na natureza: a xilose extraída da madeira. "O polímeros biodesíduos - aqueles derivados de matérias-primas renováveis, como plantas - são parte da solução para tornar os plásticos sustentáveis", afirma Antoine Buchard, pesquisador da Royal Society University e do Centro de Tecnologias Sustentáveis e Circulares, que liderou o estudo. "Estamos muito entusiasmados por termos sido capazes de produzir esse material sustentável a partir de um recurso natural abundante”. Segundo os pesquisadores, o polímero desenvolvido é bastante versátil. Suas propriedades físicas e químicas podem ser ajustadas facilmente, podenso ser utilizado em materiais distintos, como espumas para colchões, solas de sapato, ou como alternativa ao polietileno glicol, um produto químico amplamente utilizado na biomedicina e até mesmo para óxido de polietileno, utilizado como eletrólito em baterias.
G E S TA D O S U N I D O S
PASTAGEM VERTICAL Fazendas verticais surgiram como uma opção para ocupar espaços vazios nas grandes cidades para produzir alimentos em ambientes com condições controlados a uma distância mais cirta dos mercados consumidores. Pecuaristas do estado americano de Utah usaram a mesma solução e adaptaram o conceito para alimentar seus rebanhos. Em uma estrutura com jeito de indústria, que desponta em meio ao cenário rural de sua fazenda, a agtech americana Grov Technologies construiu uma estrutura futurista para cultivar, durante o ano todo, diferentes espécies de capim utilizados na nutrição dos 20 mil animais de uma fazenda de gado de corte e leite. O projeto piloto, montado nos mesmos moldes das suas similares urbanas,
ocupa cerca de 857 metros quadrados de espaço (com seis estruturas de plantio de 25 metros de altura) para produzir o equivalente ao que seria colhido em uma área de 20 hectares. O custo da produção é bem superior, mas a empresa defende o modelo com o argumento de que as fazendas verticais usam 95% menos água do que na agricultura convencional, além de permitir o cultivo em todas as estações. O ciclo da cultura, do plantio à colheita leva de cinco a sete dias.
E S TA D O S U N I D O S
UM ÍCONE EM PERIGO Os cactos da espécie saguaro são o símbolo Oeste americano. Seu corpo esguio, com braços abertos, representam a resiliência da vida no deserto que ocupa boa parte da superfície de estados como Texas, Arizona e Califórnia, se estendendo ao Sul até além a fronteira com o México. Mas esse ícone está em risco, alertam cientistas, em virtude de uma combinação inflamável de mudanças climáticas e plantas invasoras. Com chuvas ainda menos frequentes, mesmo essa vegetação adaptada a secas mais longas e severas tem sofrido em função do avanço do buffelgrass (capim-búfalo, numa tradução literal), espécie oriunda da África do Sul e que se tornou uma praga na região. O capim seco tem sido combustível farto para 12
incêndios, que se alastram com rapidez e devastam toda a flora nativa, inclusive os cactos. Em 2020, milhares deles queimados, provocando um desastre ambiental que preocupa as autoridades locais, que agora promovem mutirões com voluntários para arrancar o invasor em áreas de preservação.
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O SHOPPING VERDE DO EATALY Em plena pandemia, um novo endereço comercial de Turim, no Norte da Itália, atrai cerca de 4 mil visitantes por dia. Aberto em setembro passado, o centro comercial Green Pea (ervilha verde, em Inglês) rapidamente se transformou em um ícone do consumo na cidade. O que explica tamanho sucesso? A marca e o conceito por trás do empreendimento. O Green Pea foi criado pela família Farinetti, a mesma que revitalizou a gastronomia e a indústria de alimentos italianas com a rede de lojas Eataly, presente em diversos países, inclusive o Brasil, e depois com um verdadeiro parque temático da comida local em Bolonha. No Green Pea, a ideia dos produtos locais permanece, mas a bandeira do shopping center, anexo à loja do Eataly, é a sustentabilidade. Todas as mais de 100 marcas parceiras – todas grandes nomes do consumo – tiveram de se comprometer a seguir padrões rígidos nas suas lojas. O prédio foi erguido seguindo também certificações ambientais. A fachada é revestida com madeira das árvores derrubadas pela tempestade Vaia, em 2018, no nordeste da Itália. Por dentro, a pintura foi feita 14
com uma tinta especial, que converte as paredes em purificadores de ar, eliminando 99,9% das bactérias. Mais de 2 mil árvores foram plantadas dentro e fora do edifício e mais de 100 mil litros de água de chuva são armazenados para uso no prédio.
Estreia da série PLANT SUSTENTÁVEL: A força das letras ESG na transformação do campo
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Empresas e líderes que fazem diferença
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Empresas e líderes que fazem diferença
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ESG. O SEMÁFORO DAS FINANÇAS MUNDIAIS ESTÁ VERDE PARA O AGRO A sigla em inglês para as melhores práticas ambientais, sociais e de governança é o novo parâmetro para atração de investimentos e um indicador efetivo de mudanças rumo à agricultura de baixo carbono
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início de 2021 marca um capítulo importante da história recente. Além das vacinas, que trazem a perspectiva de que o fim da pandemia do coronavírus não está mais tão distante, a posse do democrata Joe Biden na maior potência do planeta sinaliza uma guinada da política ambiental global. Uma das primeiras atitudes do presidente americano foi voltar ao Acordo de Paris, um pacto em que mais de 190 nações do mundo se comprometem a implementar uma série de medidas para conter as emissões de gases do efeito estufa (GEE) na atmosfera e, consequentemente, o aquecimento global. O peso do compromisso oficial dos Estados Unidos se espalha para além dos canais diplomáticos. No mundo dos negócios, tal direcionamento fortalece a temática de ESG, sigla em inglês para melhores práticas ambientais, sociais e de governança. Essas três letrinhas definem um conjunto de critérios, que tem sido o parâmetro adotado por investidores na hora de decidir se vão ou não aportar recursos nos títulos de uma determinada empresa. “O universo ESG é uma evolução da agenda de desenvolvimento sustentável, que começou pelo viés ambiental, evoluiu para o social até que caiu a ficha que, sem o braço econômico, fica difícil fazer acontecer”, explica Rodrigo Lima, diretor da Agroicone, empresa de pesquisa aplicada em agronegócio. Pelo lado econômico chega-se ao viés financeiro, ao crédito necessário para impulsionar projetos socioambientais – em todos os setores e, é claro, no agronegócio. “O que está acontecendo é que os fundos de pensão, estes fundos globais, estão dizendo para as empresas: ‘ou vocês adotam políticas [na direção de contenção] de mudanças climáticas ou vão ficar sem financiamento’”, diz Lima. “Por isso enxergo toda discussão sobre ESG como uma evolução do desenvolvimento sustentável, que tem um potencial de mudança mais profundo do que tinha há dez anos, porque tem o viés financeiro puxando a agenda”, complementa o diretor da Agroicone. Prova disso é o posicionamento de grandes gestoras globais de ativos como a BlackRock e a Aviva. A primeira, que se destaca em qualquer lista dos maiores investidores privados do mundo, tem cobrado das empresas de seu portfólio a apresentação de planejamento de como seus negócios vão se tornar carbono neutro, além de pressionar as companhias para um aumento da diversidade étnica e de gênero nos conselhos e na força de trabalho. Na mesma toada, a Aviva, também uma potência do setor, comunicou que irá desinvestir em empresas que não tenham um plano robusto de transição para uma economia de baixo carbono. No mercado doméstico, a XP, maior corretora do País, anunciou a decisão de incorporar a análise ESG em suas recomendações de investimentos.
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“O universo ESG é uma evolução da agenda de desenvolvimento sustentável, que começou pelo viés ambiental, evoluiu para o social até que caiu a ficha que, sem o braço econômico, fica difícil fazer acontecer” Rodrigo Lima, diretor da Agroicone
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POTENCIAL BILIONÁRIO Sob o guarda-chuva dos princípios ESG, há uma série de títulos, que têm sido denominados pela mídia como títulos verdes, embora tenham outras classificações. Os famosos green bonds sinalizam para o investidor que seus recursos vão para projetos que terão um impacto ambiental positivo. Os títulos sociais, por sua vez, indicam que os aportes serão destinados à melhoria de habitação e renda das pessoas. Já os títulos de sustentabilidade englobam tanto o âmbito ambiental quanto o social. E o sustainability-linked está vinculado a indicadores de desempenho, como o comprometimento de redução de GEE. Têm ainda os títulos ODS, atrelados aos Objetos de Desenvolvimento Sustentável da agenda 2030 das Organizações das Nações Unidas (ONU) e os títulos de transição, que estão relacionados a metas criadas para empresas carbono-intensivas migrarem para uma atividade de baixo carbono. Especificamente no agro, uma nova modalidade são os CRAs (Certificados de Recebíveis Agrícolas) Verdes, também atrelados a compromissos ambientais por parte dos emissores. O fato é que o mercado de capitais pode, sim, injetar bilhões em investimentos na economia nacional – e o agro, como mais pujante setor, deve ser amplamente recompensado. “Só em títulos verdes, mapeamos R$ 700 bilhões em oportunidades para o Brasil até 2030 na agricultura, no setor florestal, de energia e infraestrutura”, diz Leisa de Souza, coordenadora de Agricultura da Climate Bonds Initiative (CBI) no Brasil. A ONG britânica foi a primeira a desenvolver critérios de rotulagem para os green bonds e também certifica quais empresas estão aptas a emitir esses títulos.
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Desde 2019, a CBI e o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) vinham conversando e, no ano passado, lançaram o Plano de Investimento para Agricultura Sustentável. “Queremos ser protagonistas dessa nova tendência. Daí a importância de se fortalecer esse mercado de finanças verdes no Brasil, que é uma potência agroambiental, comprometida com a sustentabilidade”, disse a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, na ocasião. A parceria entre Mapa e CBI resultou num relatório que aponta as oportunidades de curto prazo que já existem no País e poderiam ser rotuladas como verdes. “Dentro do agro, os segmentos com mais potencial de captação são o de biocombustíveis e as tecnologias já contempladas pelo Plano ABC [Agricultura de Baixo Carbono], como Integração LavouraPecuária-Floresta”, diz a coordenadora da CBI. Para não ocorrer de uma empresa ser verde no marketing e poluente na prática, a CBI adota critérios rígidos baseados no escopo do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), que vão além do cumprimento do Código Florestal. “Estamos falando de desmatamento zero e a nossa data de corte é janeiro de 2010”, diz Leisa. A partir dessa data, o máximo permitido de derrubada de árvores para ajuste de área para o preparo de solo é um hectare. A exigência é uma demanda do investidor, que quer seus recursos destinados a aumentar a produtividade e a 20
eficiência em propriedades rurais que preservam o meio ambiente. Mas esta é a régua da CBI. A outra forma de emitir títulos verdes é por meio de opinião de segunda parte, que é dada por consultorias que têm sua própria metodologia e seguem as diretrizes da Associação Internacional de Mercados de Capitais (ICMA). “Podem ter empresas que considerem que é possível [o desmatamento legal], mas dentro da certificação da CBI, estamos falando em desmatamento zero”, explica Leisa. SEGMENTO EM CONSTRUÇÃO O mercado de títulos ESG é algo novo, que está em fase de lapidação. Prova disso é que as entidades europeias de supervisão, como a Esma – a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) do continente, iniciaram consultas no ano passado para aperfeiçoar a forma de divulgação ESG das empresas, a fim de reforçar a proteção dos investidores. Hoje, há muitos ratings ESG com conclusões diferentes, o que causa confusão. Outra problemática é que muitas organizações têm criado modelos para esse universo de finanças verdes. Nesse sentido, a Agroicone tem trazido à tona a necessidade de se definir o que é ESG na agropecuária brasileira. “Isso é fundamental para o Brasil não ficar refém da taxonomia europeia, que é crítica a biocombustíveis e a florestas plantadas”, diz Lima. No entanto, o diretor ressalta que tal
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definição tem que ser construída “conversando com quem é dono da grana lá fora”. Não restam dúvidas, no entanto, de que as emissões de títulos de dívida com lastro verde ou com garantias ao investidor de que o projeto contempla melhores práticas ESG (ambientais, sociais e de governança) vieram para ficar. A porta de entrada mais fácil de ser comprovada é pelo viés das energias renováveis. Nesse nicho, BRF, Suzano e Klabin foram as primeiras a ingressar nesse mercado. Segundo a coordenadora de Agricultura da CBI, desde 2015 foram emitidos US$ 6,8 bilhões em títulos verdes no Brasil no escopo do uso da terra, que é onde entram os setores florestal e agro. O apetite pelos bonds atrelados a parâmetros ESG ficou evidente na estreia da produtora de commodities agrícolas Amaggi no mercado internacional de capital no início deste ano. A empresa planejou levantar US$ 500 milhões com a venda de títulos de sustentabilidade – papéis vinculados ao financiamento de projetos de gestão ambiental relacionados a uso do solo e recursos naturais, biodiversidade, mitigação das mudanças climáticas, desenvolvimento socioeconômico e segurança alimentar – com vencimento em 2028 a uma taxa de 5,25%. “A procura foi seis vezes superior à esperada, por isso elevamos o volume da emissão para US$ 750 milhões, pois tínhamos envergadura para acomodar a demanda”, diz Juliana de Lavor Lopes, diretora de Sustentabilidade da Amaggi. E detalhe: um terço da procura foi de fundos ESG de longo prazo. Na pecuária, o interesse também se mostra alto. No final de fevereiro passado, a Marfrig, uma das maiores empresas processadoras de proteína animal do mundo, levantou US$ 30 milhões em um título do tipo sustainability-linked. Os recursos serão destinados à busca de uma cadeia de fornecimento livre de desmatamento na Amazônia e no Cerrado. “Esse investimento vai impulsionar uma série de ações que buscam equilibrar produção e preservação, sempre com a perspectiva de inclusão dos pecuaristas”, afirmou, em nota, Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade e Comunicações da Marfrig. CRÉDITO MAIS COMPETITIVO Segundo estimativa da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), a agropecuária brasileira precisaria de R$ 900 bilhões em financiamento. No entanto, o montante previsto para o próximo Plano Safra 2020/21 é de R$ 236,3 bilhões, 6% superior ao ciclo anterior, mas muito aquém da demanda. Nesse contexto, o mercado de títulos ESG
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“Queremos ser protagonistas dessa nova tendência. Daí a importância de se fortalecer esse mercado de finanças verdes no Brasil, que é uma potência agroambiental, comprometida com a sustentabilidade Tereza Cristina, minstra da Agricultura
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“Só em títulos verdes, mapeamos R$ 700 bilhões em oportunidades para o Brasil até 2030 na agricultura, no setor florestal, de energia e infraestrutura” Leisa de Souza, coordenadora de Agricultura da Climate Bonds Initiative (CBI) no Brasil.
é uma importante ferramenta para atrair investimento internacional para o agronegócio brasileiro. De acordo com os dados do Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea), apenas 21% de todo o crédito acessado pela cadeia da soja no estado tem algum tipo de comprometimento socioambiental. “Só estamos arranhando a superfície. Mas com uma eventual mudança na política de equalização de juros do crédito rural federal e uma escassez de crédito subsidiado, as empresas vão ter que ir ao mercado”, diz José Pugas, head de ESG e Agro na JGP Crédito. “E a única forma de conseguir crédito competitivo de médio e longo prazo no Brasil hoje é através de ESG”, acrescenta. Quanto maior for a pontuação ESG de uma empresa, maior será a chance de ter vantagens do ponto de vista financeiro. As benesses podem ser uma taxa de juros menor e/ou um prazo para pagamento maior. No entanto, nem sempre um título sob o guarda-chuva ESG apresenta tais atrativos. “Os green bonds nem sempre têm, mas, mesmo que não haja um diferencial de preço, há um ganho reputacional e o acesso a novos investidores”, explica Leisa. Normalmente, as emissões que costumam ter melhores taxas são as de títulos sustainability-linked, em que o emissor se compromete a implementar metas de sustentabilidade para pagar menos no final. De qualquer forma, os papéis ESG costumam atrair não só o investidor habitual, mas o de impacto, aquele interessado em financiar projetos que tenham efeitos socioambientais positivos. Por causa dessa finalidade, ele estaria disposto a ter um retorno financeiro menor. DESAFIOS PELA FRENTE As empresas nacionais têm muito a amadurecer no mercado de capitais. “É algo em nascimento no Brasil, se compararmos com outros países desenvolvidos”, diz Fabiana Alves, diretora executiva de clientes corporativos do Rabobank. “Até pouco tempo, tínhamos taxas de juros e remuneração de renda fixa tão altas que não havia incentivo para o mercado de capitais”, explica. O ingresso nesse novo universo, no entanto, não é tão simples, está atrelado à profissionalização da gestão. “No agro, há muitas empresas familiares que não têm uma governança à altura do mercado de capitais, mas recentemente isso vem evoluindo”, explica Fabiana, que entrou no Rabobank pelo braço de consultoria que auxilia os clientes na implantação de uma administração empresarial. Quando o assunto é títulos verdes, o custo de estruturação desses
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papéis inviabiliza o acesso de produtor pessoa física. “O ticket médio no mercado interno está girando em torno de R$ 200 milhões”, diz a coordenadora da CBI. Uma opção para esse público seria o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) pulverizado, ou seja, atrelado a uma carteira de crédito de diversos devedores. Esse modelo começou a sair do papel no início de março passado graças ao CRA Verde.Tech, modelo desenvolvido, em parceria, por três empresas com expertises complementares: a Produzindo Certo, especializada no diagnóstico socioambiental e na transformação de cadeias produtivas; a Traive Finance, fintech voltada para soluções financeiras tecnológicas para o mercado agro; e a Gaia Impacto, uma das maiores securitizadoras do Brasil. Com ele, sete produtores de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul levantaram R$ 63 milhões em uma inédita operação de CRA Verde pulverizada. Os recursos serão utilizados como uma alternativa – mais barata e vantajosa – ao crédito agrícola tradicional. Em média, eles obtiveram taxas de 10% ao ano, já computando todos os custos adicionais envolvidos em operações de crédito, que podem chegar a 15% ao ano. Os esforços socioambientais dos produtores (cujas fazendas somam juntas mais de 78 mil
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hectares) foram valorizados pelo CRA Verde.Tech, que tem potencial de atrair até R$ 6 bilhões nos próximos anos, segundo Fabricio Pezente, CEO da Traive. “O modelo de negócios e a tecnologia utilizada nessa operação abrem inúmeras possibilidades de replicarmos essa mesma estrutura com volumes ainda mais expressivos, beneficiando mais produtores e investidores conscientes”, afirma. “Desde o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, houve um despertar de consciência dentro da empresa em relação à responsabilidade que o nosso investimento tem sobre externalidades para a população”, diz José Pugas, head de ESG e Agro na gestora de recursos JGP Crédito. No final do ano passado, a JGP foi selecionada pela Rede Integração Lavoura-PecuáriaFloresta (ILPF) – uma parceria público-privada que congrega Embrapa, John Deere, Syngenta, Cocamar, Ceptis, Soesp, Bradesco e IABS – para ser a gestora do fundo Saff, sigla em inglês para financiamento facilitado para agricultura sustentável, o primeiro fundo ESG a ser lançado pela JGP. Endossado pelo The Global Innovation Lab for Climate Finance, mais conhecido como Climate Lab, o projeto piloto do Saff terá US$ 62 milhões (aproximadamente R$ 350 milhões) para financiar os produtores que adotem a ILPF. Mas o valor pode chegar a US$ 1,4 bilhão (R$ 7,9 bilhões) até 2026, montante que, se confirmado, será superior aos R$ 3,4 bilhões recebidos pelo Fundo Amazônia até 2019. Além do Saff, a JGP está estruturando outros cinco fundos voltados para o crédito ESG no agro. Hoje, o setor agropecuário domina o portfólio ESG da gestora. “A JGP tem como estratégia zerar o impacto ambiental no que se refere às mudanças climáticas e, dentro das cadeias produtivas, o agronegócio é a única com capacidade de ser carbono positivo, ou seja, capturar mais carbono do que emite”, acrescenta Pugas. PLANT PROJECT Nº24
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"O mundo demanda que o Brasil garanta a sua sustentabilidade. E toda a cadeia do agronegócio precisa colocar o assunto como prioridade estratégica para preservar o que a gente chama lá fora de ‘licença para operar’” Fabiana Alves, diretora executiva de clientes corporativos do Rabobank
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QUALIFICAÇÃO ESG Apesar de não haver uma padronização global quanto às metodologias usadas nos ratings ESG, é para isso que os investidores olham no momento de decidir se vão ou não aportar recurso em determinada empresa. Além dos aspectos ambientais, hoje muito focados em avaliar riscos climáticos à carteira de investimentos, os relatórios ESG contemplam governança e aspecto social. Neste último quesito, há muitas empresas do agro antenadas com o 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da agenda 2030 da ONU, que é a “Igualdade de Gênero” e também com o empoderamento de populações vulneráveis. Companhias como a fabricante de máquinas agrícolas John Deere têm metas definidas para aumentar a diversidade. Seu compromisso é atingir 30% de mulheres e 25% de negros no quadro de funcionários no Brasil até 2025. A Corteva é outra gigante com forte atuação nessa área. Em 2019, 51% dos estagiários contratados eram negros e as mulheres já representavam 50% da liderança na área comercial. No âmbito de governança, as companhias do agro também têm se destacado. A Ihara, empresa brasileira com capital japonês focada em pesquisa e desenvolvimento de defensivos agrícolas, é um bom exemplo. Desde 2018, ela vem sendo reconhecida pelo Mapa com o selo “Mais Integridade”, que é dado às empresas que se destacam por suas práticas de sustentabilidade, de governança, bem como iniciativas para mitigação de práticas de fraude, suborno e corrupção. Outra companhia em evidência é a UPL, uma das maiores fornecedoras de soluções agrícolas do mundo, que – no ano passado – foi classificada em primeiro lugar no setor agro pela gestão de riscos ambientais, sociais e de governança no ranking da Sustainalytics, uma das líderes globais em rating ESG. Na ocasião, Jai Shroff, CEO da UPL, atribuiu a conquista “ao compromisso inequívoco com a sustentabilidade, impulsionado pela visão OpenAg [de inovação aberta]”.
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Por sinal, esse conceito tem sido algo recorrente entre as empresas do agro. Inclusive, no último mês, a Bayer promoveu um encontro virtual global sobre como a inovação aberta e um ambiente colaborativo podem ajudar na construção de um futuro cada vez mais sustentável. A revista PLANT PROJECT teve oportunidade de conversar com Bob Reiter, chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Divisão Agrícola da Bayer, que destacou “a tecnologia e a inovação como chaves para ofertar alimentos em abundância, com segurança alimentar e, ao mesmo tempo, equilibrar isso com os imperativos da sustentabilidade ambiental”. Reiter frisou a importância das ferramentas digitais para ajudar o agricultor no manejo da propriedade, de forma que ela sequestre mais carbono do que emita. “Os brasileiros são os melhores do mundo em manter carbono no solo”, salienta. ECONOMIA REPAGINADA Com o tema em alta, há uma verdadeira competição entre as instituições financeiras para ver quem consegue estruturar a primeira ferramenta para o comércio de crédito de carbono. “O Rabobank está com esforços para criar o primeiro banco de carbono, ou seja, estruturar o comércio de carbono globalmente”, diz a diretora do Rabobank. Hoje, existe o mercado de carbono voluntário e regulado, que certifica e gera créditos. “Mas ter um projeto aprovado é uma trajetória longa e custosa por envolver diversas verificações/ auditorias e processos de aplicação da metodologia até as verificações e validações”, explica Renata Fragoso Potenza, coordenadora da área de clima e cadeias agropecuárias do Imaflora. As discussões estão a todo vapor. Nos Estados Unidos, senadores democratas apresentaram um projeto de lei que estabeleceria protocolos certificados pelo Departamento de Agricultura Americano (USDA) para os fazendeiros desenvolverem projetos de agricultura de baixo
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carbono e receberem por isso. Paralelamente, há uma série de iniciativas de empresas do agro. Uma delas é o programa piloto da Bayer, anunciado no ano passado, que irá pagar aos agricultores pela captura de CO2 em áreas agrícolas do Brasil e dos Estados Unidos. Em solo nacional, foram selecionados 50 produtores que receberão pagamentos em dinheiro ou em créditos para a compra de produtos na plataforma Impulso Bayer. Nessa direção, companhias como Nestlé e Danone firmaram parcerias com startups e institutos para mensurar o impacto da adoção de determinados pacotes tecnológicos na redução das emissões de GEE. A finalidade é ter subsídios para montar projetos de compra de crédito de carbono dentro da própria cadeia. Nesse contexto, uma novata que tem sido bastante acionada é a ReNature, nome que remete à regeneração da natureza. “Apoiamos as grandes corporações dando assessoria para ajudá-las a identificar quem são os agricultores pioneiros na cadeia de suprimentos deles para aplicar as práticas regenerativas”, diz Felipe Villela, fundador da ReNature e empreendedor que figura na lista da Forbes dos 30 brasileiros de destaque em 2020. “Damos assistência técnica e fazemos mensuração de impacto, medição de carbono no solo, do aumento da biodiversidade e da rentabilidade por hectare”, complementa. O fato é que a agenda ESG e os projetos de transição para uma economia de baixo carbono são muito mais do que algo politicamente correto e bacana. “É uma questão de sustentabilidade do negócio, da economia do País, que é dependente das exportações do agronegócio e dos clientes lá fora”, diz Fabiana. “O mundo demanda que o Brasil garanta a sua sustentabilidade. E toda a cadeia do agronegócio precisa colocar o assunto como prioridade estratégica para preservar o que a gente chama lá fora de ‘licença para operar’”, finaliza a diretora do Rabobank. PLANT PROJECT Nº24
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UMA RELAÇÃO TÃO DELICADA Pesquisa aponta que mais da metade dos produtores agrícolas sofre prejuízos na convivência de suas lavouras com animais silvestres. O manejo controlado das espécies pode ser a difícil solução para esse sério problema ambiental
foto: Shutterstock
Por Evanildo da Silveira
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Inimigo número 1: javalis respondem por um terço dos danos às lavouras, segundo pesquisa da UEPG
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s conflitos entre produtores e animais silvestres, como aves e mamíferos – sem falar nos insetos, vermes, vírus, bactérias e outras pragas –, vêm de longe. Eles surgiram a partir da chamada revolução agrícola, ocorrida há 12.500 anos, quando os seres humanos deixaram de ser caçadores-coletores nômades e se transformaram em agricultores e domesticadores de espécies. Começaram, então, a ocupar cada vez mais espaço para suas plantações e criações, visando alimentar uma população sempre crescente. Até hoje a luta continua, com prejuízos constantes para ambas as partes. Mesmo no Brasil, que tem apenas 521 anos de história, os agricultores sempre tiveram que lidar com ataques de animais silvestres às suas lavouras. Os primeiros habitantes do território, os indígenas, já tinham esse tipo
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de problema. Depois, os plantios feitos por portugueses e outros que chegaram ao Brasil séculos atrás e a colonização por imigrantes mais recentemente, nos últimos 150 anos, também foram prejudicados. “Onde se planta muita coisa junto, que tenha algum valor nutritivo e seja atrativo para as aves e mamíferos, seja uma grande plantação, seja uma horta no fundo do quintal, haverá ataques de animais em busca de alimentos”, afirma o biólogo Rômulo Ribon, do Departamento de Biologia Animal da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Segundo ele, roças de mandioca eram – e ainda são – atacadas por tatus e porcos-domato, e as de milho por estes últimos e aves como periquitos, maritacas e papagaios. “Isso é comum”, diz. Para dar números ao
problema, pesquisadores do Paraná realizaram um levantamento dos danos causados por espécies da fauna silvestre nativa e exóticas na produção agropecuária no estado, principalmente na região dos Campos Gerais (MG). “Avaliamos 42 propriedades, nas quais verificamos que os tipos de estrago foram consumo de plantas (57,14%), arranque delas (42,86%), buracos no solo (38,09%), nidificação (9,52%), morte de animais (16,67%) e outros (14,29%)”, explica Verônica Oliveira Vianna, chefe do Departamento de Zootecnia da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), que participou da pesquisa. Quanto às culturas, o milho e a soja foram as mais afetadas, com 64,29% e 28,57%, respectivamente. Os animais que causaram mais danos foram javali (33,33%), aves (30,95%), tatu (28,57%), capivara
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(16,67%), quatis (14,29%), catetos (11,90%), lebres (7,14%), lobo-guará e ratos (4,76%), e ouriço, cachorro-domato, lontra, cutia, serpentes e gato-do-mato, macaco-prego e graxaim-do-campo (2,38%). Os produtores foram também indagados se os prejuízos têm aumentado ou diminuído ano após ano. Para 52,38% eles vêm aumentando, para 23,81% estão diminuindo e para 14,28% são constantes. Com esses resultados, verificou-se a necessidade de reconhecer padrões de danos e avaliar os problemas ano após ano, para possibilitar maior confiança na tomada de decisões com o objetivo de minimizar tais conflitos. O certo é que há relatos desses problemas por todo o Brasil. Entre os maiores causadores de estragos estão tanto animais nativos como exóticos (invasores). Entre os mais comuns, estão o javali (Sus scrofa), aves (pombas, chupins e maritacas, principalmente), a lebre-europeia (Lepus europaeus), tatus (há várias espécies, todas da família Dasypodidae), capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris) e, na pecuária, onças-pintadas (Panthera onca) e onças-pardas (Puma concolor). Desses, um dos invasores é o javali. De origem europeia e asiática, ele foi introduzido no Uruguai na década de 1990, para a criação em cativeiro com o objetivo de produzir uma carne exótica para o mercado sulamericano. Mas, como é comum acontecer, quando se tenta criar
espécies selvagens em cativeiro, vários deles escaparam. Por ser o ancestral dos porcos domésticos atuais, que têm inclusive o mesmo nome científico, e haver um grande parentesco entre eles, podem acasalar com grande facilidade, gerando animais férteis, chamados javaporcos. E foram eles, e não o javali puro, que se espalharam pelo País e causam os maiores danos às plantações. Eles são muito maiores, podendo chegar a 300 kg, e têm uma taxa reprodutiva bem mais elevada. “O javaporco é muito pior do que o javali ou porco puro, porque acaba somando o melhor de cada um, ou seja, a rusticidade e a alta taxa reprodutiva do primeiro com o porte e a eficiência alimentar do segundo”, explica o engenheiro agrônomo Rafael Salerno, criador da Rede Aqui Tem Javali e que atua em todo o País no controle da espécie. Além disso, os javaporcos são onívoros, ou seja, podem se alimentar tanto de plantas como de outros animais, como insetos, vermes, pequenos vertebrados e, às vezes, até aves e cordeiros. “Na agricultura, as principais culturas atacadas no Brasil são o milho, a mandioca e o amendoim”, diz Salerno. “Eles causam também grandes danos ambientais, prejudicando aguadas para o gado, transmitindo doenças e atacando as criações.” De acordo com ele, os prejuízos econômicos causados pelo javaporco são grandes. “Em alguns casos de pequenos
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Lebre-europeia e javaporco mostram os riscos da introdução de espécies exóticas. O gavião ajuda a afastar pombos das lavouras de arroz no RS
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Maritaca em lavoura de sorgo: ave busca alimentos em plantações de grãos e pomares com frutas
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produtores, ele pode chegar a 100% da lavoura”, diz. “Nos médios, pode ser de 50% e para os grandes já foram observadas perdas que podem superar os 10%. Em termos de valores, pode variar de R$ 10 mil até mais de R$ 500 mil em um ano, mas às vezes pode inviabilizar a cultura na propriedade ou até a própria atividade rural.” A lebre-europeia também é uma espécie que veio da Europa e está devastando lavouras brasileiras. Conhecida como lebrão – mede 25 cm sentada (sem contar as orelhas) e 70 cm quando salta com as pernas esticadas –, ela foi introduzida na Argentina e no Chile, na primeira metade do século passado, para caça esportiva. As fêmeas começam a se reproduzir aos 5 meses de idade, e cada uma tem de quatro a sete gestações anuais, podendo chegar até 28 crias por ano. Não é de surpreender, portanto, que ela tenha se proliferado naqueles dois países e chegado ao Brasil. Seu primeiro registro em território nacional data de 1952, em Santa Vitória do Palmar (RS). De lá para cá, vem subindo o mapa do País a espantosos 45 km por ano, já tendo sido detectada no Mato Grosso do Sul, em Goiás e em Minas Gerais. Onde se estabelece, o lebrão causa grandes prejuízos, que podem chegar a 100% nas plantações de brócolis e couve-flor, por exemplo, e a 20% nas de laranja, limão e tangerina (neste caso, elas roem o caule e as plantas morrem). Os lebrões
atacam ainda outras culturas, como soja, feijão, café e mandioca, para citar algumas. As espécies invasoras não são as únicas, no entanto, que causam estragos nas lavouras brasileiras. As nativas não ficam atrás, principalmente as aves. Que o diga, Renato José Laguardia de Oliveira, presidente do Sindicato Rural de Barbacena (MG), que reúne produtores rurais desse município e dos vizinhos. “Nosso problema são as maritacas (Aratinga leucophthalma)”, conta. “Elas atacam os pomares de frutas, como pêssego, maçã, nectarina, goiaba, além das plantações de milho, causando grande prejuízo para os produtores e para a região. Elas bicam os frutos (furam e danificam), impossibilitando sua comercialização.” Do milho, elas arrancam grãos das espigas. No caso das lavouras da Estação Experimental do Arroz (EEA), do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), em Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, os danos foram causados por outras aves, o pombodoméstico (Columba livia) e o chupim (Molothrus bonariensis). O primeiro se alimenta das sementes de arroz e soja durante todo o processo de plantio e colheita e das primeiras folhas, no início do desenvolvimento da oleaginosa. O segundo come avidamente gramínea semeada ou no cacho. Ambos têm um ciclo reprodutivo rápido e, na ausência de predadores, aumentam sua população com facilidade.
foto: Divulgação
Segundo a engenheira agrônoma e mestre em fitotecnia Flávia Miyuki Tomita, gerente da Divisão de Pesquisa do Irga, a localização e a atividade desenvolvida na Estação Experimental favorecem o aparecimento de aves. “Somos uma ‘ilha’ entre Porto Alegre e Cachoeirinha e temos fartura de comida (arroz, soja e milho), que é um grande atrativo para os pássaros”, explica. Flávia relata que, com o passar dos anos, a população das duas espécies foi aumentando e estava ficando inviável continuar a experimentação em campo na Estação. “Nenhuma das alternativas de controle que tentávamos estava dando bons resultados”, conta. “Usávamos redes para proteger pequenas parcelas de arroz e rojões (fogos de artifício) para espantar os pássaros com o barulho. Nada deu certo.” Foi então que resolveram empregar outros animais silvestres para controlar os pombos e chupins, no caso, seus predadores naturais, os falcões, devidamente treinados para isso
por uma empresa de falcoaria. Por meio de um estudo preliminar, a equipe do Irga identificou quais as espécies causadoras de danos à lavoura e, com base nisso, estão sendo utilizados seus predadores naturais diretos. Um deles é o falcão-peregrino (Falco peregrinus), que é o predador natural do pombodoméstico. Para controlar os chupins, são utilizados falcões menores, no caso, o falcão-decoleira (Falco femoralis). “Com o uso da falcoaria, respiramos aliviados, comemora Flávia. “As perdas com pássaros atualmente são pequenas e isso viabiliza a continuidade do nosso trabalho de pesquisa em campo.” Nem sempre, no entanto, é fácil encontrar uma solução para o problema. “Aqui na região, já foram feitas várias tentativas para inibir os ataques das maritacas a pomares e roças de milho”, conta Oliveira. “Todas falharam, no entanto. Com o passar dos dias, elas se acostumam com as medidas inibidoras e voltam a atacar. Uma das ações que poderiam amenizar os prejuízos
seria um manejo controlado dessa espécie, mas para isso necessitamos de autorização do Ibama. O Sindicato já fez pedidos nesse sentido, mas ainda não teve resposta.” Por isso, há quem defenda soluções de longo prazo e estabelecidas caso a caso. “Elas devem ser diversificadas, pois cada local tem uma história diferente da de outro”, diz Verônica. “O dano pode ser o mesmo em áreas distintas, mas será que a causa é a mesma? Então, cada local tem que ser investigado, avaliado, para promover medidas que possam minimizar tais prejuízos.” De acordo com Flávia, para encarar esse tipo de situação, é importante entender que os animais não são a causa, e sim a consequência do problema. “ Eles sempre estiveram lá, mesmo antes das plantações”, explica. “Mas as áreas de cultivo representam um ambiente com o equilíbrio alterado, nas quais a comida está amplamente disponível, tornando o risco de ser predado muito pequeno, se comparado com a oportunidade de encher o papo.” PLANT PROJECT Nº24
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UM NOBEL PARA O BRASIL Indicação do ex-ministro Alysson Paolinelli evidencia ao mundo que o agro brasileiro, que se desenvolveu ancorado em ciência e práticas sustentáveis, é a via mais confiável para garantir a segurança alimentar mundial Por Ronaldo Luiz
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foto: Claudio Gatti/Agência IstoÉ
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ex-ministro da Agricultura (1974 a 1979) Alysson Paolinelli, engenheiro agrônomo mineiro, nascido em Bambuí [(1936), considerado o pai do modelo de tecnologia agrícola tropical, que alçou o Brasil ao rol das potências do agronegócio mundial, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz 2021. A nomeação foi protocolada no Conselho Norueguês do Nobel (The Norwegian Nobel Committee), no último dia 22 de janeiro, pelo diretor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), professor Durval Dourado Neto. A nomeação recebeu cartas de apoio de 119 instituições do Brasil e do exterior, representando 24 países. A academia (educação, ensino, pesquisa) e o setor primário foram os maiores apoiadores, mas destaca-se também o reconhecimento mostrado por instituições da indústria e dos serviços. O professor Durval destaca que a indicação do ex-ministro está baseada “em sua enorme contribuição para a paz, pelo grande salto de produção da agricultura brasileira, que foi obtido de forma sustentável, promovendo crescimento, inclusão social e segurança alimentar no Brasil e no mundo. “Paolinelli reinventou a agricultura brasileira, e seu trabalho é um legado mundial. Sempre foi obstinado na valorização da ciência, da pesquisa e da
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difusão de tecnologia.” Para o também ex-ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, Paolinelli é o maior brasileiro vivo, é o visionário da maior revolução agrícola tropical sustentável que ocorreu no Brasil. “Ele é um grande construtor da paz, pois alimento é paz, sustentabilidade é paz.” De acordo com Rodrigues, todo o esforço que será feito em torno do nome de Paolinelli e, quem sabe, sua eventual vitória do Nobel da Paz poderão contribuir para ressignificar a imagem do agronegócio brasileiro em nível global, especialmente no tocante à sustentabilidade. “Nossa expectativa é de que o prêmio possa evidenciar que a agricultura brasileira foi e é feita com base em ciência e práticas sustentáveis. Existem problemas, sim, de desmatamento ilegal, de grilarem de terras, que precisam ser combatidos, mas não correspondem ao setor produtivo moderno do agro brasileiro. Que a indicação mostre a verdadeira realidade de nossa agricultura”, enfatiza Rodrigues. Aos 84 anos, com a humildade que apenas os grandes têm, Paolinelli faz questão de ressaltar que, em caso de vitória, “o premiado não serei eu, e sim a agricultura brasileira”. Confira mais na entrevista a seguir:
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O senhor costuma pontuar que o Brasil é a via mais confiável para a segurança alimentar mundial. Por quê? O Brasil foi indicado como a via mais confiável para garantir a segurança alimentar do planeta por diversos órgãos internacionais, com destaque para FAO/ONU, OCDE, Banco Mundial, entre outros. Com base em diversos estudos, até 2050 o mundo precisará produzir 61% a mais da oferta atual de alimentos para atender a demanda global. E ao Brasil reserva-se o desafio de arcar com 41% deste percentual. Para isso, temos que elevar nossa produção agrícola em 10% ao ano, a fim de podermos obter uma safra de grãos entre 620 a 630 milhões de toneladas ao final dos próximos 30 anos. De maneira contínua, o agro brasileiro gera oferta, qualidade e diversidade de grãos, proteínas, fibras e energia renovável a preços compatíveis, assegurando o abastecimento interno e gerando excedentes exportáveis. De país importador, nos tornamos um dos maiores exportadores de produtos agrícolas e a tendência é que este posicionamento se acentue ainda mais. A despeito da força do agro brasileiro, temos observado uma alta acentuada nos preços dos alimentos no mercado doméstico. Como isso se explica? Observa-se uma certa
anomalia no mercado, com uma demanda elevada, que não estava totalmente calculada, devido, por exemplo, aos efeitos da pandemia, isso sem contar o dólar alto, intempéries climáticas, que levaram a perdas na produção, o que acarretou na atual pressão altista nos preços dos alimentos. Contudo, a realidade é que as cotações internacionais relacionadas aos produtos agrícolas irão cada vez mais influenciar os preços praticados no mercado interno. É algo dado, diante da crescente demanda global por alimentos e pelo fato, claro, de o Brasil ser um player importantíssimo em termos de produção e capacidade de exportação. Por outro lado, o Brasil ainda carece de uma política agrícola estratégica, lastreada em preços mínimos efetivos e gestão de estoques de alimentos, que possa assegurar o abastecimento interno a preços remuneradores para o produtor e acessíveis ao consumidor, bem como a manutenção de excedentes exportáveis e consequente geração de divisas para o País. Porém, não acredito que o governo federal constituirá grandes estoques reguladores – podendo fazer apenas em alguns produtos. Uma correta política de preços mínimos é crucial para que o produtor seja remunerado adequadamente e o consumidor possa pagar menos pelo alimento.
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Nos tempos de ministro, pilotando um trator em abertura de nova fronteira agrícola: desenvolvimento com ciência
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Política agrícola: desde jovem, levou as causas do campo para o setor público
A pesquisa rural é um dos pilares do sucesso do agro brasileiro. Qual é o cenário atual de apoio? O Brasil não pode de maneira alguma abdicar de investimentos em pesquisa, caso queira manter-se competitivo no agronegócio. A Embrapa só tem verba para subsistência. Diante do elevado endividamento público, o governo terá dificuldades para usar o orçamento na área agrícola. Um dos caminhos é a busca de recursos junto ao setor privado, inclusive de investidores internacionais. Universidades e outros órgãos de pesquisa, bem como de assistência técnica e extensão rural também passam por dificuldades financeiras. A Empresa Brasileira de Extensão Rural (Embrater) acabou, a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater) não avança, está só no papel. O governo federal precisa assegurar recursos para as ciências agrárias, com foco em inovação, geração e transferência de tecnologia. O senhor é um ferrenho defensor do seguro rural. O que falta para que ele deslanche, seja massificado? No seguro rural, a subvenção ao prêmio é insuficiente para que haja uma maior expansão da área segurada. Vale ressaltar que o agronegócio brasileiro não advoga por subsídios. A massificação do seguro rural é um caminho muito mais lógico e
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racional para a nossa realidade. A ministra Tereza Cristina vem atuando de modo impecável nesse sentido, elevando o apoio para auxiliar no pagamento do prêmio, mas os recursos sabiamente ainda são insuficientes para atender o gigantismo do agro brasileiro. Neste aspecto, reitero a existência de proposta que sugere a criação de um fundo privado – com aportes de diversos players do setor, entre os quais, indústrias de insumos, fabricantes de máquinas, tradings – para apoiar o subsídio ao prêmio. O senhor também é um entusiasta da irrigação. Como a expansão da área irrigada pode contribuir para elevar a produtividade agrícola? Infelizmente, ainda irrigamos muito pouco. Por outro lado, produtores que estão tendo a oportunidade de investir em sistemas de irrigação vêm observando ganhos contínuos de produtividade em suas lavouras. Agricultores de milho do Brasil central que adotam a tecnologia, já há alguns anos, produzem corriqueiramente três safras, obtendo, por exemplo, rendimentos acima de 200 sacas por hectare. A irrigação reduz demais o risco climático, principal causa de variações na produção. É preciso democratizar a irrigação, assim como outros modelos, como os sistemas integrados entre lavoura-
foto: Divulgação Agropalma
pecuária-floresta. Melhores variedades, avanços nas técnicas de manejo, incorporação de novos insumos são outros fatores cruciais para que possamos prosseguir nessa espiral de aumento de produtividade. Com esses avanços, vamos, uma vez mais, reafirmar que a agricultura tropical sustentável, desenvolvida no Brasil, é realmente imbatível. O senhor é presidente executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho). Quais são os desafios e as oportunidades para o grão? A demanda global pelo milho só tende a aumentar. Com a limitação de áreas de grandes produtores, como EUA e China, a janela de oportunidade para o Brasil está aberta. Há também uma nova dinâmica no mercado de milho, com o Brasil também passando a ser um importante exportador em sintonia com a
disponibilidade de oferta interna. O ano de 2020 foi excelente para o produtor, devido à demanda aquecida, especialmente internacional, e preços remuneradores, turbinados pelo câmbio favorável. O Brasil vem ano a ano se posicionando nos mercados internacionais como fornecedor do milho de melhor qualidade. Na comparação com outros grandes produtores, nosso grão apresenta melhores características nutricionais, que favorecem a conversão alimentar, considerando menor tempo e maior ganho de peso, para produção de proteína animal, seja na suinocultura, avicultura, bovinocultura e também na piscicultura. E a China, também poderá passar a importar milho? A gripe suína africana, que nos últimos anos praticamente dizimou o plantel chinês de "fundo de quintal" de porcos, fez com que Pequim tomasse
a decisão de mudar a estrutura local de produção. Com isso, os chineses passaram a investir na implantação de sistemas altamente tecnificados para fabricação de carne suína, o que inevitavelmente demandará grandes volumes de ração e consequentemente de matérias-primas como milho e farelo de soja. No ano passado mesmo, a China demonstrou interesse em adquirir mais milho brasileiro, mas faltaram estoques. E é neste ponto que reside uma de minhas principais preocupações, porque precisamos produzir muito mais, no mínimo, entre 10% e 15% pelas próximas duas, três décadas, a fim de conseguirmos continuar atendendo com constância o mercado doméstico e a crescente demanda global. Contudo, essa equação passa, impreterivelmente, por uma remuneração satisfatória para o produtor rural, que, a despeito do viés altista para as cotações, enfrenta enormes desafios. PLANT PROJECT Nº24
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Primeiro, porque países concorrentes subsidiam a produção, como, por exemplo, China e Estados Unidos. Segundo, é que o milho em grão, tradicionalmente, tem valor baixo nos mercados internacionais, o que impacta na margem do produtor, que anualmente só vem observando alta nos custos de produção. E terceiro, é que o agricultor nacional sofre com o atual sistema de impostos – assim como todo o setor produtivo – sendo alvo de tributação indireta. E o que está por vir no mercado mundial de alimentos? Não é nem o que está por vir, e sim o que já está aí. Estamos na era da alimentação saudável, e o Brasil não pode ficar de fora desse mercado. É o que o mundo quer, alimentos que tenham em sua composição menos aditivosquímicos, e que primem pela saudabilidade, segurança, sabor, nutrição, qualidade em geral. Produtos que tenham mais a “mão do homem” em seu processo de fabricação. E isso não é só demanda da Europa, dos Estados Unidos ou do Japão. Na China mesmo, cerca de um terço da população já tem renda suficiente para adquirir e consumir esses alimentos. Esta é uma grande oportunidade para o Brasil. Somos grandes exportadores de commodities, de alguns produtos mais beneficiados, e 38
podemos também ser gigantes em alimentos de maior valor agregado. Mas, para tanto, precisamos de políticas públicas e modelos de negócios que estimulem o desenvolvimento dessas cadeias produtivas. A imagem do agronegócio brasileiro, do ponto de vista ambiental, tornou-se negativa na comunidade internacional nos últimos anos. Como mudar isso? Nesse aspecto, é preciso entender que muitos países produtores agrícolas têm medo da força e competência do agro brasileiro. Eles estão perdendo sua capacidade produtiva e competitiva e reagem com um discurso, muitas vezes, de caráter ideológico-protecionista. O desmatamento ilegal que existe no Brasil hoje não é coisa de agricultor, e sim de grileiros, de gente que não atua, e - se atua, precisa ser extirpado da cadeia produtiva do agro responsável. Se existe produtor que age contra a legislação ambiental, ele está, obviamente, errado, e precisa ser reprimido e penalizado. No entanto, também falta fiscalização, o governo tem que monitorar, vigiar, agir e prender. Agora, a retórica da atual administração federal também não ajuda. É pouco diplomática, e o discurso precisa ser calibrado. O Brasil precisa ser visto como uma grande potência agroambiental, o que nós, de fato, somos.
Confira destaques do dossiê sobre Paolinelli, que foi encaminhado ao Conselho do Prêmio Nobel: :: Revolução agrícola sustentável Um dos fatos mais marcantes na segunda metade do século 20 foi a revolução agrícola sustentável realizada nos trópicos. Esse evento, que aconteceu a partir da década de 1970, no Brasil, mudou o cenário da segurança alimentar no País e no mundo, com a ocupação econômica do Cerrado brasileiro. Foi uma revolução pacífica e embasada na sustentabilidade, liderada por Paolinelli. Ele abriu uma nova página para a história da agricultura mundial. Como professor, secretário de Estado, ministro da Agricultura, membro do Congresso Nacional e líder rural, Paolinelli comandou o desenvolvimento de sistemas de produção para os biomas do Cerrado, dando origem à revolução agrícola tropical sustentável. Dedicou-se a essa tarefa a vida inteira e hoje mantém sua cruzada pela segurança alimentar e pelas contribuições que a agricultura tropical pode oferecer para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
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:: Principais dimensões Na década de 1970, o Brasil era importador líquido de alimentos básicos e a revolução agrícola garantiu a autossuficiência alimentar e a redução do peso da alimentação nos gastos de consumo das famílias. O País se transformou no fiel da balança da segurança alimentar mundial, representando hoje 16,2% da exportação mundial de alimentos básicos. Para impulsionar esse salto agrícola, Paolinelli priorizou a ciência. Estruturou um sistema de pesquisa agropecuária tropical único no mundo, cujo grande destaque foi a Embrapa, a maior empresa de tecnologia agropecuária do mundo tropical. Paolinelli também estabeleceu as raízes que a revolução agrícola tropical sustentável precisava para crescer e frutificar. Como ministro criou instituições, políticas e organizações que viabilizaram a modernização da agricultura tradicional. Uma das principais foi o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (Polocentro), que formulou políticas agrícolas para a região. Essa e outras iniciativas foram essenciais para institucionalizar a estrutura de governança que impulsiona a expansão da revolução agrícola tropical até hoje. :: Alimentos e efeito poupa-terra Atualmente, os 1.102
municípios situados no bioma Cerrado produzem 46% da safra de soja do País, 49% do milho, 93% do algodão e 25% do café. Na pecuária é responsável por 32% do rebanho de bovinos, 22% dos frangos e 22% dos suínos, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre 1970 e 2020, a produção brasileira de grãos, que era de 39,4 milhões de toneladas, cresceu 6,4 vezes e atingiu 251,9 milhões de toneladas, enquanto a área plantada apenas dobrou, passando de 32,8 para 65,2 milhões de hectares. Esse aumento da produtividade proporcionou um efeito poupa-terra de 128 milhões de hectares, de 1961 a 2018. Essa seria a área adicional necessária para atingir a produção de cereais e oleaginosas do Brasil em 2018 (230,6 milhões de toneladas), caso não tivessem ocorrido ganhos notáveis de produtividade no período. Como resultado dessa eficiência, o Cerrado brasileiro conserva 54% de área com cobertura vegetal natural, sendo que 35% é protegido por lei e vedado à exploração econômica. :: Desenvolvimento humano e energia limpa O salto produtivo proporcionado pela revolução agrícola tropical sustentável reduziu o custo relativo da
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alimentação dentro do orçamento familiar e liberou renda para outros consumos, dinamizando a economia brasileira. Também interiorizou o desenvolvimento, gerando empregos, aumento de renda e melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) nas regiões de base agropecuária, com elevação de 73% de 1990 a 2010. Paolinelli ainda participou da criação do Proálcool (1975), o primeiro programa mundial de produção em larga escala de combustível limpo e renovável a partir de biomassa. :: Sustentabilidade e paz Do fomento tecnológico à segurança alimentar, dos saltos de produtividade ao desenvolvimento econômico e melhoria social – todas as conquistas alinharam-se com conceitos de sustentabilidade. Tanto que 11 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU recebem até hoje impactos positivos do legado da revolução agrícola tropical sustentável de Paolinelli. Por meio do Instituto Fórum do Futuro, que também preside, Paolinelli se mantém atuante, mobilizando organizações científicas para a realização do Projeto Biomas Tropicais, sonhando com nova revolução científica e sustentável na agricultura dos trópicos, a favor das pessoas e pela paz. PLANT PROJECT Nº24
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foto: Shutterstock
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SUPERAÇÃO NA LINHA DE FRENTE
O agro não parou – e não vai parar – diante da pandemia da Covid-19, mas para isso é preciso muita dedicação, persistência, resiliência e capacidade de adaptação de quem está no front dessa batalha diária Por Romualdo Venâncio
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Enquanto ainda navegamos em águas turvas no que diz respeito ao combate à pandemia da Covid-19 e proteção da população, situação precária resultante da combinação entre a gravidade da doença e os desencontros das mais diversas autoridades governamentais sobre como podemos e devemos combater essa doença, representantes de todos os elos das cadeias produtivas do agronegócio não arredam pé do campo de batalha. O agro não parou, e nunca vai parar. Exatamente por isso, trouxemos aqui alguns relatos de profissionais que estão na linha de frente dessa jornada para mostrar como o setor está se adequando, se superando e se renovando diante dessa nova realidade para garantir o abastecimento da sociedade, dentro e fora do País. Acompanhe.
QUALIDADE NO CAFÉ E NA SAÚDE ANDERSON MITSUHIRO MINAMIHARA Administrador de empresas e diretor de Qualidade e Estratégia da Café Minamihara
Quando a Covid-19 começou a aterrorizar o mundo, Anderson Minamihara vivia uma dupla jornada de trabalho, com uma agenda bastante concorrida e dividida entre os negócios da família, que têm o Café Minamihara como carro-chefe, e o cargo de secretário do Desenvolvimento da cidade de Franca (SP), que ocupou de dezembro de 2018 até dezembro do ano passado. O fato de estar envolvido com a prefeitura foi até favorável naquele início da pandemia, pelo acesso a um volume maior de informações sobre o que estava acontecendo. Por outro lado, se desdobrava para manter o ritmo da empresa familiar. “Uma grande mudança foi a interrupção das visitas de estrangeiros a nossa propriedade, clientes que querem 42
conhecer a produção”, diz o empresário. Anderson tem um relacionamento comercial intenso com diversos países, sobretudo na Ásia, como mostramos aqui na edição 10 da PLANT PROJECT, na série Top Farmer Nova Geração. Na ocasião em que fomos a Franca visitar a sede do Café Minamihara, por exemplo, a família Minamihara recebia Yuko Yamada Itoi, proprietária da Cafe Time, empresa japonesa de torrefação e comercialização de cafés especiais de Kyoto, e jurada internacional do Cup of Excellence (COE). A situação mudou completamente de março do ano passado para cá. “Tivemos de buscar uma triangulação via Europa para enviarmos amostras de café ao Japão. E
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mesmo assim era complicado, pois o material, amostras verdes, tem de ficar em quarentena, sem sabermos como é armazenado e por quanto tempo. Isso impacta nas características que definem a qualidade do café”, afirma o empresário. “Além disso, estão vindo poucos navios para o Brasil, a fila de embarque de contêineres teve alterações. Já estava complicado no ano passado, e continua este ano.” No mercado nacional, também houve entraves porque muitos clientes, donos de restaurantes, tiveram de interromper suas atividades, como Alex Atala. Dentro de casa, os desafios não foram menores. “No início, até meu pai estava meio receoso, com dúvidas se acreditava ou não no que estava acontecendo. Agora está mais seguro, usando máscara, falando a respeito. E continua muito na lida”, comenta Anderson. Seu pai, Getúlio Minamihara, participa ativamente das atividades agrícolas, tanto do café quanto do abacate, atividade que responde por 40% do faturamento da empresa. Ambas são trabalhadas de forma totalmente orgânica. Se o processo de conscientização exigiu paciência na própria família, não foi diferente com as equipes. Anderson comenta ter sido complicado no começo da pandemia, pois houve uma resistência de parte das pessoas a entender a gravidade do momento e a se adequar aos protocolos de segurança. “Embora já usassem máscara na rotina diária, muitos não queriam mantê-las nas áreas comuns. O pessoal da segurança do trabalho procurou conversar, orientar”, diz. Em casos extremos, foi necessário aplicar advertências para quem recusava as novas regras. Entre as medidas de prevenção, a empresa distribuiu álcool gel por todas as áreas comuns e fez uma adequação do transporte dos colaboradores. O
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deslocamento dentro da propriedade, antes feito só por um veículo, passou a contar com dois, reduzindo o número de pessoas por viagem e, dessa forma, minimizar as possibilidades de contágio. Houve uma mudança de hábitos para que todos cuidassem melhor de sua saúde. A equipe do administrativo, por exemplo, passou a ter aula de ginástica laboral todas as manhãs. Uma nova equipe formada por profissionais vindos de São Paulo, dedicada a projetos mais recentes, adotou a bicicleta como meio de transporte. Tudo isso fortalece a prevenção, reduz as possibilidades de contágio, mas não blinda as pessoas, que podem ser infectadas pela Covid de diversas maneiras. E nem sempre é possível saber como isso ocorreu. Um dos membros dessa nova equipe do Café Minamihara foi contaminado, ficou três meses afastado para se tratar e está retornando agora. “Ele trabalha com qualidade de café, então o olfato é essencial. No momento, está treinando, provando café e ajudando na preparação dos manuais que estamos desenvolvendo sobre tudo o que é feito na empresa”, diz Anderson. O empresário afirma que o reforço no rigor dos protocolos de higiene permanecerá. “Como também temos um posto de combustível, já pensávamos em protocolo de higiene como no Japão. Lá, os banheiros são limpos a cada uma hora, mesmo que ninguém os tenha usado. Hoje, na nossa nova estrutura, limpamos todos os equipamentos antes e depois de usá-los”, diz Anderson. Essa nova estrutura é um espaço com beneficiamento e torrefação de café, que até gerou reforço para a equipe. O Café Minamihara contratou como gerente de operações Martha Grill, vencedora do Campeonato Brasileiro de Barismo em 2019. Ainda sobre mudanças e conceitos que PLANT PROJECT Nº24
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vão continuar, Anderson é categórico: “O que vou levar para a vida é a importância de ser mais saudável. A pandemia deixou isso muito claro, quem já tinha algum problema de saúde teve sintomas mais complicados”.
Adepto do crossfit, o empresário ficou afastado das práticas esportivas quando estava na Secretaria de Desenvolvimento e tinha dois empregos. Agora não quer mais se afastar.
MUDANÇA DE VIDA NA PANDEMIA JAIME DIAS agroecólogo, especialista em segurança do trabalho e coordenador operacional da Produzindo Certo
A Produzindo Certo assessora empresas do agro para garantirem uma rede de fornecedores segura, confiável, verificada sob os mais rigorosos padrões de comprometimento socioambiental. Em novembro de 2019, a partir de um projeto piloto em parceria com a Philip Morris, a plataforma integrou ao sistema 123 propriedades que produzem tabaco no Sul do País. A maioria está em Santa Cruz do Sul (RS), cidade que desde o início deste ano se tornou a nova residência de Jaime Dias, coordenador operacional da Produzindo Certo, até então morador de Goiânia (GO), onde está a sede da empresa. Considerando que ele é o profissional à frente dessa aliança, a mudança de endereço não chega a surpreender. Mas nada é previsível nesse trajeto quando no meio do caminho há uma pandemia mundial provocada por um novo vírus, 44
ainda cheio de mistérios, e que já dura um ano sem previsão de terminar. No início da pandemia da Covid-19, Jaime estava em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. “A gente passou a ouvir as notícias de que o problema começou na China, que muitos brasileiros no exterior passaram a ser repatriados. Até que tudo começou a fechar. Eu tinha uma visita agendada a uma propriedade e o dono cancelou”, recorda. “Veio toda aquela coisa de álcool em gel, ainda não sabíamos direito o que estava acontecendo. A gente passou a pedir comida, em vez de sair para almoçar. Na semana seguinte entramos em home office.” Jaime decidiu então retornar para sua cidade natal, Ponte Nova, também em Minas Gerais, e ficou um mês por lá. Com o crescimento da demanda dos produtores e os trabalhos sendo retomados, Jaime precisava ir para Santa Cruz do Sul,
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dar andamento nas atividades. “Como já não tinha voos, fui de carro. A viagem durou uns dois dias, pois são cerca de 2 mil quilômetros de distância, e foi tensa, porque havia barreiras nas estradas. Não sabia se conseguiria chegar”, conta. Desde o princípio da pandemia, a Produzindo Certo estabeleceu um protocolo de segurança: visitas somente agendadas, com proteção dos dois lados. “A gente só ia às propriedades após negativar no teste de Covid. Eu fazia praticamente toda semana. Era horrível aquele cotonete no nariz o tempo todo, mas se não nos cuidássemos, poderíamos nos tornar agentes de transmissão. Eram 123 propriedades, eu ia a quatro por dia”, diz Jaime. A primeira etapa do projeto com a Philip Morris, que envolve uma visita mais completa para conhecer os produtores e as
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propriedades, aconteceu antes do coronavírus. As duas fases seguintes, para entrega dos protocolos e vistoria das evoluções, ocorrem já em meio à pandemia. “Aí reduzimos as visitas para apenas o necessário, garantindo a execução do trabalho, nossa segurança e a do produtor. Cortamos até o cafezinho e o chimarrão, tão importantes nessa relação”, conta Jaime. Nas visitas, o coordenador também levava um kit criado pela Produzindo Certo para os agricultores, contendo um frasco de álcool em gel e duas máscaras. “Foi muito bem aceito.” Entre outubro de 2019 e outubro de 2020, a equipe da Produzindo certo visitou três vezes cada uma das 123 propriedades. O resultado desse trabalho foi a ampliação do projeto para todos os fornecedores da Philip Morris – um total de 5 mil propriedades..
PROTOCOLO SANITÁRIO EM DIA GUILHERME COELHO engenheiro agrônomo, proprietário da Santa Felicidade Agropecuária e presidente da Abrafrutas
Uma das grandes preocupações da fruticultura, no início da pandemia, foi com a segurança das pessoas, por ser o segmento agro que mais emprega, segundo o presidente da Abrafrutas (Associação
Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados), Guilherme Coelho. “Ficamos assustados”, diz ele. De acordo com a entidade, são cerca de 5 milhões de empregos. Outro receio da atividade vinha PLANT PROJECT Nº24
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do risco de queda no consumo. “Quando começou mesmo a pandemia, acreditamos que o consumo de alimentos ficaria mais concentrado em carne, arroz, feijão, café, porque as pessoas estariam comendo mais em casa”, comenta Guilherme. Para seu alívio e de todo o segmento, o cenário foi bem diferente. Em relação ao consumo, além de não haver redução, as pessoas passaram a se conscientizar ainda mais sobre a importância nutritiva das frutas. Isso se refletiu também nas vendas para o mercado externo, que seguiram crescendo em 2020. “Ao final do ano, o balanço das exportações foi de 1,2 milhão de toneladas de frutas com faturamento de US$ 875 milhões, respectivamente, 6% e 3% a mais do que em 2019”, afirma Guilherme. Quanto à segurança dos trabalhadores, o dirigente conta que o fato de já conviverem com diversas exigências para obter certificações, o processo de adequação aos protocolos de saúde da Covid-19 foi tranquilo. Guilherme produz uva sem semente e manga no norte da Bahia, bem próximo da divisa com Pernambuco. Sua propriedade, a Santa Felicidade Agropecuária, está localizada no município baiano de Casa Nova, a cerca de 65 quilômetros de Petrolina (PE), onde mora. Durante o período de safra, no segundo semestre, a empresa chega a contar com 600 pessoas, incluindo equipes de campo e do packing house. “Fora da safra são 400”, diz o produtor. “Durante esse período de pandemia, não tivemos demissões”, acrescenta, orgulhoso. Engenheiro agrônomo formado na Unesp, de Jaboticabal (SP), Guilherme garante que está sempre no campo, presença importante para garantir a implementação das medidas de segurança contra a Covid-19. “Na plantação de uva, 46
por exemplo, temos filas de 3 em 3 metros. Para a colheita, fazemos fila sim, outra não. As pessoas também devem manter a distância de 3 metros umas das outras”, descreve. “Intensificamos a orientação para as equipes, os coordenadores estão mais atentos à rotina de trabalho e de prevenção e espalhamos uma série de avisos pela empresa.” Na área do packing house, também já havia uma série de protocolos sanitários, boas práticas de higiene. Na seção das uvas, por exemplo, ninguém usa esmalte nem anéis e a cada duas horas é preciso lavar as mãos. São informações que as pessoas já recebem assim que são contratadas. “O que tivemos de implementar foi a sanitização com pulverização dos ônibus que transportam os funcionários, o uso de máscara e de álcool em gel e o distanciamento”, diz Guilherme. “A adesão foi tranquila, porque as equipes já são mais esclarecidas para essas questões de higiene.” Mudança importante que Guilherme destaca neste período de pandemia está na relação das empresas, de maneira geral, com seus colaboradores. “Antes da Covid a maior preocupação das empresas era o resultado do negócio, depois passaram a se preocupar mais com a saúde das pessoas, inclusive a condição psicológica. Tem muita gente abalada pela falta de liberdade, sem poder encontrar familiares e amigos”, diz o empresário. Ele cita, inclusive, dados de uma pesquisa realizada pela consultoria Grant Thornton, veiculados na revista Exame: antes da pandemia, “atingir objetivos” era a prioridade número um para 31% das empresas pesquisadas em relação a seus funcionários; após a pandemia, 52% dessas companhias elegeram “estar aberto a mudanças” como item principal.
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ATENDIMENTO À DISTÂNCIA PAULO GAROLLO engenheiro agrônomo e especialista em Desenvolvimento de Mercado da Bayer Brasil
Cada vez que Paulo Garollo visita uma fazenda para verificar algum talhão com seu cliente, o que só acontece em situações de extrema necessidade, cada um vai até aquele determinado ponto da lavoura com seu próprio carro. Durante todo o tempo que estiverem juntos no campo, têm de permanecer de máscara, mantendo pelo menos 2 metros de distância entre si, e carregar seu frasco de álcool em gel. Essa é a nova rotina de Paulo, engenheiro agrônomo e especialista em Desenvolvimento de Mercado da Bayer Brasil, após a pandemia da Covid-19. Dele e de toda a equipe técnica da empresa. Paulo conta que cerca de 60% do seu trabalho era feito presencialmente, e que visitava fazendas de clientes diariamente. Agora, idas ao campo somente se permitidas após consenso com a diretoria da empresa. O cuidado com a prevenção vem também do outro lado. “Muitas propriedades, quando solicitam nossa visita física como imprescindível, exigem agendamento e só permitem nosso acesso se estivermos dentro das regras de segurança da OMS para o momento de pandemia”, diz o agrônomo. Aprender a lidar com o atendimento à distância, sem o contato “olho no olho”,
foi um dos principais desafios de Paulo nesse período, pois essa relação sempre foi muito forte no agro. As soluções tecnológicas e as ferramentas digitais ajudaram a contornar essa situação. Na verdade, até intensificaram a conexão. “Deixamos de estar presentes fisicamente, mas no virtual estamos cem por cento presentes. Haja tempo para tantos encontros on-line”, comenta. A pandemia acelerou a transformação digital no meio rural, e agora é preciso ajustar o processo. “Depois do período de adaptação, o desafio foi ter que lidar com a presença constante da tela pra tudo, né? Nossos celulares e computadores passaram a ser nosso contato diário com o mundo, e se desligar desse universo também acaba sendo difícil”, diz Paulo. No entanto, essa mesma intensidade da presença digital comprovou que muita coisa pode ser resolvida remotamente. Tanto que aplicativos de mensagens como o WhatsApp se tornaram ferramentas indispensáveis na relação equipe técnica e clientes, da mesma forma que as plataformas de reuniões. “Tecnologia e colaboração são as palavras de ordem para garantirmos a produção de alimentos”, afirma o agrônomo. “O cenário que vivemos hoje também PLANT PROJECT Nº24
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acabou colocando, de maneira mais próxima e tangível, o valor da agricultura e da ciência para a sociedade.” Para reforçar a importância dos protocolos de segurança na pandemia e dar suporte a produtores e funcionários das propriedades, a Bayer criou um treinamento
MAIS CUIDADO NO FRIGORÍFICO DOUGLAS HAAS DE OLIVEIRA médico veterinário e fiscal federal agropecuário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
Desde 2012, o médico veterinário Douglas Haas de Oliveira trabalha na unidade frigorífica da empresa Barra Mansa Alimentos, em Sertãozinho (SP). Ele é fiscal federal agropecuário do Mapa e faz a inspeção dos animais antes e depois do abate, ou seja, é um dos profissionais responsáveis pela liberação para que os produtos recebam o selo do Serviço de Inspeção Federal, o S.I.F., vinculado ao Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa). Pelo tempo que está alocado na planta, 48
virtual, chamado “Lidando com a Covid-19 na fazenda”. Trata-se de um novo módulo da iniciativa BayG.A.P., fruto da aliança com a Global G.A.P. e que fica disponível gratuitamente por meio de uma parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para Agricultura (IICA).
é comum Douglas ser procurado pelos pecuaristas, vez ou outra, para perguntarem algo sobre os animais, se houve algum problema. Com a pandemia da Covid-19, essas consultas passaram a acontecer de forma muito mais restrita e sob rígidas medidas de prevenção. “A gente não deixou de atendê-los, mas tem evitado, e quando atende é com cuidado redobrado”, afirma o fiscal. Essa foi uma das providências tomadas dentro do frigorífico para reduzir as possibilidades de contágio da doença. Outra alteração relevante na rotina de trabalho de Douglas é o reposicionamento de sua área de atuação dentro da planta. Segundo o veterinário, o trabalho foi reorganizado para restringir um pouco esse espaço e evitar a necessidade de circular muito pelas estruturas do frigorífico. As boas práticas de prevenção sanitária foram apenas intensificadas, com o uso de face shield, por exemplo, pois já eram bem severas, inclusive com álcool em gel, higienização das mãos e limpeza de maneira geral. “Esse frigorífico tem mil funcionários, e o pessoal sabe da importância de limpar bem as mãos. Até porque, se não fizer a higienização de forma eficiente, pode contaminar uma peça de carne, e isso impacta em todo o processo”, comenta.
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Douglas conta que houve uma preocupação maior em reforçar esse entendimento, de manter mais clara essa necessidade. Os momentos de intervalo, por exemplo, ganharam mais atenção nessa rotina de prevenção, para que não haja aglomerações. As medidas de segurança aumentaram em relação aos caminhões, que passaram a ser desinfectados. Para o fiscal do Mapa, dificilmente esses cuidados serão reduzidos, até por não sabermos quando exatamente a pandemia vai terminar, e porque há uma exigência muito grande em outros países. “É um momento que gera transformação. Quando tem obstáculo no dia a dia, as pessoas precisam buscar soluções, e muitas são definitivas”, afirma. A pandemia chegou em um período no qual crescia a demanda dos países exportadores, gerando aumento de turnos e maior procura para os processos de habilitação de frigoríficos. Conforme a doença foi avançando, muitos fiscais foram
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poupados, pois devido à idade pertenciam ao grupo de risco. Essa combinação de fatores levou à abertura de concurso para possíveis contratações. “A ministra Tereza Cristina é bem atuante, sabe que é preciso ter mais gente e está trabalhando para isso”, diz Douglas. O fiscal do Mapa, que também já trabalhou na sede e na unidade regional do S.I.F., na cidade de São Paulo, mais em gestão, tem pelo menos uma percepção positiva de todo esse cenário de pandemia. “Ganhamos mais visibilidade na saúde pública para uma coisa que já fazíamos, mas em silêncio, ali aquele trabalho de formiguinhas. Agora as pessoas estão mais preocupadas com a segurança do que estão comprando e consumindo”, comenta Douglas. Para ele, esse novo quadro é favorável a toda a cadeia, pois o agro tem todo um cuidado com a produção dos alimentos do início até a chegada ao consumidor, e as pessoas vão deixar de se preocupar apenas com o preço da comida.
O ALIMENTO VAI CHEGAR RAFAEL PEREIRA GIMENES administrador de empresas e diretor executivo da G Martins Logística e Transportes Ltda.
No final do ano passado, por conta de uma viagem, Rafael Pereira Gimenes fez o teste da Covid-19. Era apenas por prevenção, mas foi surpreendido com o
resultado positivo, e sua maior preocupação era o risco de contaminar outras pessoas, sobretudo seu pai. “Ele é o dono da empresa, e acabou ficando PLANT PROJECT Nº24
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afastado”, diz. Rafael é administrador de empresas, com formação e mestrado pela FGV (Fundação Getulio Vargas), e há dois anos e meio passou a trabalhar com o pai na gestão da G Martins Logística e Transportes Ltda. A empresa, localizada em Osasco (SP), foi fundada há 45 anos e nos últimos dez se especializou no transporte de alimentos, com o foco bastante voltado a produtos lácteos e distribuição ampla na cidade de São Paulo. A G Martins é parceira, por exemplo, da Letti, a marca de produtos frescos da Agrindus S/A, que já mostramos aqui na PLANT PROJECT, na edição 18. Rafael conta que a adequação da rotina de trabalho no início da pandemia foi desafiadora, pois havia muitas dúvidas, seja em relação à contaminação, seja sobre prevenção. Com uma dificuldade extra devido ao tipo de prestação de serviço. “Somos em oito pessoas no administrativo, mas por se tratar de expedição e recebimento, não conseguimos adotar o home office”, diz o administrador. Uma coisa era certa: a empresa tinha de seguir como todo o agronegócio. “Quando começamos a falar em pandemia, sabíamos que não poderíamos parar. O transporte precisava continuar normalmente, porque se faltasse alimento seria o caos. Ainda mais por trabalharmos com alimentos perecíveis. Essa continuidade tranquilizou as pessoas”, afirma Rafael. Inclusive, foi importante deixar muito claro que tipo de itens transportavam. “Teve um período em que as empresas tiveram
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de fechar e recebemos a visita de guardas questionando nosso funcionamento. Explicamos que estávamos entregando comida.” Claro que foi necessário todo um processo de adequação aos protocolos de saúde, e Rafael preferiu pecar pelo excesso a pecar pela omissão. “No início compramos muito álcool em gel, só não foi mais para não tirar de outras pessoas, e contratamos uma costureira para fazer as máscaras. Passamos a medir a temperatura de todos e se alguém apresentasse nível elevado era encaminhado para fazer exames. Até consultei nossa advogada para saber se a empresa tinha de oferecer o teste”, conta o gestor. Rafael lamenta não terem mais flexibilidade, devido às leis trabalhistas, para organizar as agendas com os funcionários, como reduzir os dias e estender os horários. Embora o cenário de pandemia no Brasil ainda seja perturbador, Rafael diz que esse período trouxe mais surpresas positivas do que negativas. “Os primeiros três meses foram de muitas dúvidas, mas as pessoas têm um potencial de adaptação muito grande. E passamos a ver um lado diferente do ser humano. Houve motorista que adesivou o caminhão para mostrar que transportava alimento, até pelo orgulho de estar garantindo o abastecimento”, avalia. No e ntanto, Rafael sabe que há muito a ser feito. “Ainda tem gente que se refere à situação como ‘na época da pandemia’, como se tivesse acabado.” PLANT PROJECT Nº24
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Florada das amendoeiras na Herdade Vera Cruz: clima e umidade ideais permitem plantio superintensivo com alta produtividade 52
UM MINEIRO FORA DA CASCA Como o empresário David Carvalho trocou o Brasil por Portugal para implantar um inovador projeto de produção de amêndoas Por Luiz Fernando Sá
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uero fazer a primeira amêndoa rastreada com blockchain do mundo, da origem da planta ao saquinho de snack”, diz de forma nada mineira, o empresário mineiro David Carvalho. Ele não esconde suas ambições nem faz questão de trabalhar em silêncio. Desde que desembarcou na região lusitana do Fundão, próximo da divisa com a Espanha, há cinco anos, ele tem promovido um barulho transformador para a economia local. Em sociedade com o investidor português Filipe Rosa, comprou terras, traçou planos e começou a desenvolver um projeto que tem como objetivo revolucionar, com o uso de tecnologia, a produção de amêndoas em Portugal. Já está fazendo barulho. A Herdade Veracruz, empresa criada pela dupla luso-brasileira, nasceu mineiramente, segundo seu fundador. “Tudo começou numa conversa de bar”, conta Carvalho, administrador de empresas que prosperou no ramo de tecnologia. Foi entre petiscos em um botequim que ele ouviu falar pela primeira vez do projeto de cultivar amendoeiras em
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Portugal. O interlocutor português falava com entusiasmo dos planos de um grupo investidor dos Estados Unidos para investir no agronegócio da terrinha. Seis meses depois, ao reencontrar o amigo, perguntou se o negócio havia avançado. A resposta: os americanos migraram para outra aplicação mais conservadora e abandonaram a ideia. Carvalho pediu para ver o projeto. Impressionado com as margens indicadas no business plan, adotou-o como seu. “Eu tinha zero de ligação com o agro, meu background é tecnologia. Não sabia distinguir uma amendoeira de uma oliveira”, diz. O próximo passo foi mergulhar no assunto. O empresário foi para os Estados Unidos, responsável por 85% da produção mundial, e depois para a Espanha, segundo maior produtor, em busca de conhecimento para tirar o projeto do papel. Ainda morava no Brasil, mas iniciou a procura por terras em Portugal. A sorte estava lançada. Em 2018, dois anos depois daquele papo de boteco, a Veracruz era uma realidade. A
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Vista aérea de suas propriedades do grupo: tecnologia para mudar paisagem da região
primeira propriedade havia sido comprada, a terra preparada e as mudas plantadas. Um ano depois, Carvalho transferiu-se para Portugal, levando consigo o apreço pela tecnologia. “Acredito na tecnologia para a transformação do agro. A única certeza que eu tenho é de que é insustentável produzir como se fazia há cinco ou dez anos. Precisamos buscar a máxima produtividade usando menos recursos hídricos, retirando menos do solo, aplicando menos insumos. Tudo isso passa pela implantação de hardware, software e soluções tecnológicas.” A Veracruz tem hoje cinco propriedades (ou herdades, como chamam em Portugal), que somam 2 mil hectares. “Parece pouco pelos padrões brasileiros, mas para lá é um bocadinho”, afirma Carvalho, já adaptando o idioma para o novo endereço. O planejamento indica ocupar 1,5 mil hectares com os pomares de amendoeiras. Destes, 700 hectares já foram plantados. Outros 500 receberão as mudas em 2021. O ritmo é intenso, sempre considerando as dimensões do agro lusitano. À medida que novas áreas são incorporadas e preparadas, o pacote tecnológico é testado. Sensores para medir humidade e acidez do solo, cujos indicadores já estão integrados ao sistema de irrigação (ou rega, como se fala em Portugal) de microgotejamento trazido de Israel, Netafim por
microgotejamento, são uma inovação para a produção de amêndoas por lá. “É tudo controlado automaticamente, com uso de fertirrigação”, explica. “O projeto foi desenhado para fazermos a gestão por hectare, aplicar água e nutrientes dentro das necessidades de cada talhão. Podemos irrigar qualquer pedaço isoladamente.” Para implantá-lo, os sócios da Veracruz provocaram um incomum movimento de caminhões pela região. “Precisamos fazer a instalação de canos de irrigação por toda a área a ser cultivada. Era cano que não acaba mais. Provocamos um enorme congestionamento na via”, diverte-se. AMÊNDOA É TECH Uma plataforma de big data, com capacidade para integrar e interpretar dados vindos dos diferentes sistemas usados na gestão, foi desenvolvida sob
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medida. “Cada solução tinha a sua própria plataforma. Isso deixa o agricultor doido, não é user friendly”, diz o produtor. O lado tech do empreendedor aflora nas palavras. “Agora temos um único dashboard para acompanhar tudo, das estações meteorológicas ao uso de drones para a contagem de árvores.” Uma empresa foi criada especialmente para cuidar da área de inovação, a Veratech. “Podemos fazer um spin-off para comercializar as soluções que desenvolvemos.” O arsenal cresce. Além de contar as unidades, os drones dotados de câmeras com sistemas de infravermelho coletam dados sobre a saudabilidade das plantas, permitindo uma atuação preventiva. “Junto com o sistema de dimensionamento, isso nos permite fazer o planejamento de atividades, a automatização de tarefas de campo, o monitoramento de percurso das equipes e da realização do trabalho, permitindo gestão completa e, assim, controle de custos.” Com o apoio tecnológico, a Veracruz implantou o sistema de produção superintensivo. 56
Isso significa produzir com 1.300 árvores por hectare, três vezes mais que no sistema intensivo, utilizado nos Estados Unidos. A opção tem influência direta na evolução da produção das amendoeiras, cuja vida útil é de 25 anos, em média. No superintensivo, a árvore começa a produzir três anos após o plantio. Então, o primeiro ano produtivo atinge 20% de sua capacidade, evoluindo para 60% no segundo e 100% no terceiro. As unidades ficam bem próximas e mais baixas, facilitando o manejo. “O compasso é mais apertado e permite uma evolução mais rápida”, explica Carvalho. No sistema intensivo, as árvores, mais espaçadas, se desenvolvem mais, mas levam cinco anos para começar o ciclo produtivo e só no sétimo atingem a capacidade plena. As decisões agronômicas também buscaram uma eficiência maior. As variedades escolhidas foram as de maior adaptação às condições da Península Ibérica, mais macias do que as americanas. Na Veracruz, as mudas são enxertadas em bases de ameixeiras ou pessegueiros, que têm raízes mais
apropriadas aos solos da região. “A amêndoa não requer solos tão ricos e profundos”, afirma Carvalho. “Conseguimos fazer correções com calcáreo e outros produtos.” A meta da Veracruz é atingir uma produtividade de 2,5 mil quilos de pepitas (castanhas descascadas) por hectare. Isso levaria o projeto, quando chegar ao seu ponto de produção plena, a atingir 4 mil toneladas anuais. FRIO E ÁGUA A amendoeira precisa de água e muitas horas de frio por ano. Segundo Carvalho, cada planta consome em média 7 mil metros cúbicos de água por ano. Por esse motivo, a maior parte dos projetos de produção está localizada mais ao Sul de Portugal, na região do Alentejo, próximo à barragem de Alqueva, maior reservatório artificial de água doce da Europa ocidental. “O fato de irmos para o Fundão causou surpresa em muita gente”, diz. A primeira opção dos sócios foi também o Alentejo, mas consideraram que os imóveis na região estavam inflacionados. Eles então abriram o leque e foram estudar outras regiões.
“Acabamos achando nessa região, entre os municípios de Castelo Branco, Fundão e Idanha Nova, condições até melhores do que em Alqueva. Temos água e mais horas de frio e os terrenos tinham preços bem mais interessantes”, afirma. O frio é um componente importante para o controle de pragas, mas sobretudo para o ciclo reprodutivo da amendoeira. No inverno, as folhas caem e começa o processo de criação dos brotos. Surge uma bela flor, que dá origem ao fruto. O frio na dose certa permite que tudo aconteça de forma ideal. Se o calor volta antes da hora, a produtividade cai. Outro componente da escolha do Fundão foi o impacto social do projeto. Fora do principal circuito turístico de Portugal – injustamente, de acordo com Carvalho –, a região é menos desenvolvida economicamente. Assim, a presença de um empreendimento como esse gerará empregos e pode contar com incentivos oficiais. “Estamos transformando terras que estavam degradadas, abandonadas, e contratando mão de obra local. Vamos fazer agricultura sustentável possível, com resíduo zero”, diz. Além do cultivo, que deve chegar a 5 mil hectares no futuro, a Veracruz está instalando uma unidade fabril para fazer a transformação e a agregação de valor às amêndoas. O plano de negócios prevê a verticalização de
todo o processo produtivo, a criação de marca própria fina para o cliente, além da venda de parte da produção para fábricas de doces e geleias. Até o momento, todos os investimentos foram feitos com recursos próprios, mas a empresa já prepara uma candidatura para obtenção de fundos provenientes de programas de incentivo da União Europeia (UE) para a construção da fábrica. Na área tecnológica, esse incentivo já chegou. A plataforma de big data foi desenvolvida em consórcio com um instituto politécnico e contou com apoio de recursos da UE com essa finalidade. “Queremos transformar a região em um polo de desenvolvimento de tecnologia para o agro”, afirma Carvalho. Ainda este ano, ele pretende organizar um hackaton agro para estimular o desenvolvimento de soluções para a agricultura local, incluindo pequenos produtores. Para isso, veio buscar apoio do ex-secretário de Agricultura do Paraná George Hiraiwa, um dos responsáveis pela implantação do polo de inovação em Londrina. Chegar à amêndoa rastrea da por blockchain, assim, não parece um passo muito grande.
Os sócios David Carvalho (esq.) e Filipe Rosa: oportunidade ouvida em mesa de bar
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SUPERFAZENDAS PELO MUNDO Empreendimentos gigantescos ao redor do planeta surpreendem tanto pela área quanto pelo volume de produção e reforçam potencial do agronegócio como investimento
foto: Shutterstock
Por Romualdo Venâncio
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Manejo de gado em fazenda na Austrália: país tem as maiores propriedades para pecuária no mundo
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mundo dos negócios sempre pulsa mais diante da notícia de um empreendimento gigantesco, seja no segmento que for, seja onde for. Os que geram retorno financeiro compatível com sua magnitude chamam ainda mais atenção, pois, como dizem, há sempre o risco de que “quanto maior a altura, maior a queda”. No agronegócio, esse tipo de investimento é visto como algo ainda mais impressionante, devido a tantas variáveis que fogem ao controle dos produtores. Exatamente por isso, torna-se ainda mais relevante a busca por redução de custos e riscos e pelo ganho de escala, o que garante mais musculatura na hora de negociar, seja com clientes, seja com fornecedores. Ou até mesmo para ter uma voz mais potente junto a autoridades públicas na busca por melhores condições para o setor. É o que estão fazendo grandes grupos agrícolas brasileiros, se consolidando e se tornado ainda maiores. As megaoperações agropecuárias mundo afora vão ainda em outras direções, às vezes de forma literal, em busca de regiões com melhores condições para o desenvolvimento da atividade, como acontece na Austrália, ou mesmomotivadas pela necessidade
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de superar entraves políticos, comerciais ou até sanitários, como alguns exemplos da China. Grandes mudanças podem vir em menores proporções, mas com significativo impacto para atender novos conceitos e novas demandas da sociedade global. Confira aqui alguns dos projetos que estão redefinindo as definições de grandeza no agro. PRODUÇÃO DE LEITE: UM NEGÓCIO DA CHINA Neste caso, é um negócio também da Rússia, pois envolve a empresa chinesa Zhongding Dairy Farm e a russa Severny Bur. Com investimentos de mais de US$ 160 milhões, aproximadamente, as duas companhias criaram uma megafazenda de 9,1 milhões de hectares, na cidade de Mudanjiang (região norte da China), dedicada à produção de leite, com um rebanho de 100 mil animais e um volume de 800 milhões de litros por ano. Além da atividade em si, que já é atrativa, outra motivação para essa parceria foi um entrave diplomático entre a Rússia e a União Europeia, que gerou um boicote comercial e interrompeu o fornecimento anual de 300 mil toneladas de queijo do bloco europeu para os russos.
Produção
AUSTRÁLIA É DESTAQUE EM PECUÁRIA DE CORTE Anna Creek Station é considerada a maior propriedade do mundo dedicada à criação e engorda de gado de corte. São quase 2,5 milhões de hectares para um rebanho de aproximadamente 17 milhões de cabeças. A fazenda, que desde dezembro de 2016 pertence à Williams Cattle Company, está localizada mais ao sul da Austrália. Quando se olha uma imagem de satélite daquela região, a impressão que se tem é de que engordar gado por ali pode ser bem desafiador, pois a área se assemelha a um deserto. Originalmente, ali pela metade do século 19, a estrutura ficava em Strangways Springs, a cerca de 73 quilômetros de onde está hoje, e sua atividade era a criação de ovelhas.
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manter o abastecimento de proteína animal, a exemplo do aumento de importações do alimento. Outra iniciativa, inclusive estimulada pela valorização no segmento de carnes, foi o investimento em novos criatórios de suínos. A empresa Muyuan Foods, com sede na cidade de Nanyang, foi além, iniciou a estruturação de um complexo de 21 prédios, uma espécie de condomínio da suinocultura, que vai abrigar 84 mil fêmeas e suas crias e produzir 2,1 milhões de animais por ano. É o maior empreendimento do setor no mundo.
SUÍNOS CRIADOS EM EDIFÍCIOS Em 2019, a China perdeu praticamente metade de seu rebanho de suínos por causa da peste suína africana. Desde então, o país vem buscando formas de reduzir o impacto da doença para PLANT PROJECT Nº24
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AGRICULTURA URBANA NO CENTRO DE PARIS Foi inaugurada no ano passado a Nature Urbaine, maior fazenda urbana da Europa. O projeto está na cobertura do centro de exposições Paris Expo Porte de Versailles, na capital francesa. São 14 mil metros quadrados – ou 1,4 hectare – com mais de mil frutas e vegetais de cerca de 20 espécies diferentes. O espaço, implementado e gerenciado pela empresa Agripolis, servirá para a realização de oficinas, passeios educacionais sobre agricultura urbana, eventos corporativos, cursos, entre outras possibilidades. Todo o cultivo, a cargo de 20 jardineiros, é feito por hidroponia ou aeroponia, ou seja, sem o uso de terra. Em alguns casos é usado substrato de fibra de coco. Também não há aplicação de defensivos nem utilização de fertilizantes. Para se ter ideia de alguns produtos, há o cultivo de tomate, berinjela e pepino em calhas; morangos, vegetais folhosos e ervas – cebolinha, salsa, manjericão, coentro, sálvia – em colunas verticais de PVC e bambu. 62
FAZENDA VERTICAL COMO PRESTAÇÃO DE SERVIÇO Fundada no ano passado, a agtech suíça Yasay criou uma fazenda vertical que é considerada a maior do mundo. A sede da empresa fica em Zurique, mas a infraestrutura agrícola está a cerca de 215 quilômetros, na cidade de La Sarraz, em uma área de 10 hectares onde antes existia uma pedreira. A estrutura tem potencial para produzir anualmente mais de 3,5 toneladas de produtos frescos. Grande diferencial do projeto é a eficiência ambiental, com capacidade de capturar 614 toneladas de CO2 por ano,
Produção
desempenho que pode ir além. O sistema de coleta de água de chuva no telhado abastece a irrigação, bombas de calor geotérmicas garantem o arrefecimento interno com tetos ativados e os biorresíduos são reutilizados para gerar energia elétrica. Essas e outras medidas resultam em uma compensação direta anual de mais de 3,1 mil toneladas de CO2. Outro fator que destaca a Yasay é a prestação de serviço para montar novos projetos de fazenda vertical, com atendimento desde o planejamento, passando pela operação e chegando até o desenvolvimento de mercado.
Ag
AGRICULTURA INDOOR NO DESERTO GreenFactory Emirates é o nome de um ambicioso projeto de agricultura indoor que está sendo implantado no deserto de Abu Dhabi e envolve investimentos de cerca de € 150 milhões. Dos 17,5 hectares do terreno, 16 serão área de cultivo, com produção de diversos tipos de hortaliças, como 56 variedades de alface, folhas verdes, ervas e couve. O objetivo dessa operação agrícola, baseada em tecnologia holandesa e cultivo tanto vertical quanto plano, é produzir 10 mil toneladas de vegetais frescos por ano sem nenhuma aplicação de defensivos. Todo o processo será monitorado permanentemente, e as informações geradas a partir desse acompanhamento serão utilizadas para o planejamento de projetos futuros, inclusive em outras partes do globo.
Fontes: Compre Rural, G1, Broadcast Agro, Farmfor, UOL
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Gigantes de grãos e fibras no Brasil SLC Agrícola – A empresa deu um grande passo para reforçar sua posição como uma das maiores corporações mundiais em produção de grãos e fibra. Com matriz em Porto Alegre (RS), a SRL contava com 17 fazendas, distribuídas em seis estados (Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Piauí), ocupando quase 450 mil hectares. Ao concluir a aquisição das operações agrícolas da Terra Santa Agro, em Mato Grosso, passa a contar com mais 133 mil hectares. No total, serão mais de 580 mil hectares. A capacidade agroindustrial da companhia, com 20 unidades de recebimento de grãos, é de quase 7,5 mil toneladas por hora, com potencial de armazenamento de 764 mil toneladas. Já no setor de fibras, a empresa dispõe de 11 algodoeiros para processar e beneficiar a colheita e gerar pluma, caroço, fibrilha e briquete.
A capacidade total é de mais de 8,4 mil fardos por dia, com espaço de armazenamento superior a 185,6 mil fardos de pluma e 72,3 mil toneladas de caroço. Amaggi – A empesa acaba de anunciar a aquisição do Grupo O Telhar Agro do Brasil, o que significa incorporar à sua operação cerca de 62 mil hectares de 14 fazendas localizadas em cinco municípios de Mato Grosso (Alto Paraguai, Nova Ubiratã, Novo Santo Antônio, Primavera do Leste e Santo Antônio do Leste). Essa área é cultivada com soja, milho e algodão e pode acrescentar 34% na capacidade produtiva da Amaggi, já uma das maiores corporações do setor no Brasil e no mundo.
Somando primeira e segunda safras, a companhia contava com 259 mil hectares de áreas produtivas, agora vai se aproximar de 350 mil hectares. Esse novo investimento tem uma função estratégica na expansão dos negócios da Amaggi, pois acrescenta a produção de grãos em áreas em que a atuação era apenas na comercialização, dando mais vigor a suas operações em Mato Grosso, o estado brasileiro que mais produz grãos. Outro fator positivo é que a negociação envolve ativos de armazenagem, logísticos e industriais, a exemplo da planta esmagadora de grãos e uma nova fábrica de biodiesel, que tem previsão de entrar em operação no ano que vem.
Correção do New York Times* Quando o jornal norte-americano The New York Times publicou um artigo considerando uma fazenda de pouco mais de 3,2 mil hectares como uma grande propriedade, um leitor do Cincinnati Enquirer, outro jornal dos Estados Unidos, fez questão de escrever ao NYT para contestar a informação. Isso aconteceu em agosto de 1866. O texto do leitor inconformado dizia que a propriedade em questão, que ficava no condado de Bureau, no estado de Illinois, não chegava nem perto daquela que ele considerava ser a maior do mundo. Tratava-se de uma fazenda de mais de 28,3 mil hectares, localizada no condado de Champaign, também em Illinois – antes instalada em Colum64
bus, Ohio –, e que supostamente pertencia a M. L. Sullevant, segundo o texto. “Eu arriscaria dizer que lá não se acha 5 acres [cerca de 2 hectares] de terra inservível nos 70.000 do senhor S. Sua produtividade é inatingível. Quase a totalidade da operação é conduzida com máquinas que economizam o trabalho. Assim, estima-se que um homem realiza o trabalho de quatro ou cinco, como é a realidade nas propriedades pequenas”, escreveu o tal leitor. Qual não seria sua reação se pudesse viajar no tempo e ver o que se tornou a produção agrícola atualmente, com a agricultura 4.0? *Com informações do site Farmfor
Com Tiago Fontes
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o final de fevereiro passado, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) deu um passo importante para que o Brasil avance uma geração em termos de conectividade. Com a aprovação do edital de concessão para a operação do 5G, a quinta geração da telefonia móvel, que permite transmissões de dados (e, portanto, voz e imagens também) a uma velocidade quase quarenta vezes superior à obtida com a tecnologia 4G. O leilão deve acontecer entre os meses de junho e julho. Foi várias vezes postergado em virtude de indefinições sobre a modelagem do edital, gerando dúvidas sobre a possibilidade do uso de equipamentos de alguns fabricantes. No centro da polêmica estava a empresa de origem chinesa Huawei, principal fornecedora de equipamentos de telecomunicações para as operadoras brasileiras. A definição da Anatel, porém, deu sinal verde para a tecnologia da companhia, que enxerga no agronegócio um grande mercado a ser explorado por operadoras de serviços de comunicação e para desenvolvedores de novas aplicações voltadas para o setor. Na entrevista a seguir, Tiago Fontes, diretor de Estratégia de Marketing da Huawei no Brasil, fala sobre a tecnologia 5G e seu potencial no campo.
TIAGO FONTES 41 ANOS, CASADO, DOIS FILHOS DIRETOR DE ESTRATÉGIA DE MARKETING DA HUAWEI FORMADO EM ENGENHARIA ELÉTRICA COM ÊNFASE EM TELECOM, MBA EM GESTÃO ESTRATÉGICA DE NEGÓCIOS, MBA EM GESTÃO ECONÔMICA E ESTRATÉGICA DE NEGÓCIOS
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"O principal problemas no campo é a conectividade. Não é ter internet, pois isso dão um jeito de colocar. Mas a conectividade em si não está presente."
A Huawei está no Brasil há 23 anos. Bem antes da questão do 5G, portanto. Qual a relação da empresa com o agronegócio brasileiro nesse período? Nesses 23 anos, o que a gente pode dizer é que foi uma jornada, trazendo a tecnologia mais próxima do povo brasileiro. Estamos aqui desde a implantação do 3G, do 4G, do 4,5G e até mesmo na instalação de fibras ópticas aqui dentro do País. As nossas tecnologias estão presentes em todas as operadoras. É uma grande oportunidade para trazer cada vez mais a tecnologia de informação e comunicação para o uso do dia a dia. Como você já tocou na questão do 5G, é importante dizer que ele vem para ajudar também a indústria. É aí que estamos tentando cooperar, trazer um pouco mais dessa tecnologia construtiva, de comunicação rápida, de rápida latência, que pode suportar muitos terminais conectados ao mesmo tempo. Isso pode fazer com que o agro, dentro do Brasil, possa se tornar mais eficiente e mais competitivo no mundo. Até pouco tempo atrás, quase não se ouvia falar da Huawei fora do ambiente das telecomunicações. Hoje, ela está no centro do debate sobre a implantação da 66
tecnologia 5G no Brasil e em outros países... A Huawei realmente não era tão conhecida e hoje se tornou uma empresa bastante popular no mundo inteiro, devido a todo esse questionamento, essas dúvidas sobre se o 5G vai ou não acontecer e como a Huawei vai poder ajudar. O que a gente pode falar com relação a isso é que a Huawei tem experiência global, é líder de mercado e, justamente, está aqui para fazer com que a concorrência seja saudável, para que todos os brasileiros não sejam afetados. Antes a Huawei não tinha tanta visibilidade porque isso não levava em conta a questão de bloqueio, a questão de haver restrições [a uma ou outra tecnologia]. O mercado sempre foi livre, competitivo, baseado em questões técnicas. A Huawei sempre trabalhou trazendo as melhores tecnologias e, devagarzinho, as empresas brasileiras, as operadoras, as indústrias e até mesmo empresas que necessitam de conectividade, do setor de TI, foram percebendo qualidade. Viram que os produtos da Huawei são muito bons, são eficientes. E têm uma melhor infraestrutura de tecnologia para qualquer segmento. Hoje, 95% das conexões dentro do Brasil passam por pelo menos um equipamento da Huawei.
A Huawei atua em projetos ligados diretamente a empresas do agro ou os projetos são sempre associados às operadoras e fornecedores de serviços de telecomunicações? A Huawei sempre esteve presente no agro. Temos produtos como a Rural Star, que é uma antena de baixo custo para levar conectividade a locais onde não chega de outra forma. É um produto de baixo custo para os produtores, e que permite levar uma boa conectividade para lugares remotos. E agora nós estamos trabalhando bastante para poder fazer com que as aplicações dentro do agro sejam mais inovadoras. Usamos 5G, usando uma nuvem, até mesmo inteligência artificial. E a Huawei é a única empresa que consegue fornecer essas três tecnologias para a indústria. Isso é o que deve estar mais dentro do agro. Essa antena utiliza qual geração de tecnologia? Existem três modelos da Rural Star. Um deles é um pouco mais simples, um pouco menor. Ela suporta uma antena 4G e tem capacidade para suportar uma antena de 5G. A dificuldade de conectividade é uma realidade em várias regiões do Brasil, sobretudo as áreas rurais. Para muitas delas, nem sequer o 3G chegou, portanto estão com duas gerações, ou pelo menos uma geração, atrasadas. É possível fazer um salto sem escala para o 5G? Como vocês imaginam o futuro da conectividade, sobretudo nas áreas rurais? Sempre quando eu vou fazer algum trabalho de campo, conversar com os produtores, começar a fazer as discussões, até mesmo com os
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sindicatos e as cooperativas, e a gente questiona qual é a principal dor, o principal problema que eles têm no campo, eles falam que é a conectividade. Não é ter internet, pois muitos colocam a internet nas fazendas por rádio, por satélite. Dão um jeito de colocar. Mas a conectividade em si não está presente. Há aí um grande desafio e também uma grande oportunidade de negócio para as operadoras e para as provedoras de acesso à internet. Por quê? Porque, com o 5G, o modelo da aplicação vai sofrer uma modernização, uma digitalização. Será possível analisar não apenas dados de telemetria, mas imagens, vídeos, o que hoje no campo é muito raro. Dessas análises de imagens em tempo real nascerão novos modelos de negócio que podem beneficiar ainda mais o agronegócio. A necessidade dessas aplicações vai fazer com que o próprio fazendeiro busque por uma tecnologia melhor de conectividade no campo, não apenas um ponto de acesso, em que ele tenha as suas máquinas conectadas. Eu acredito muito que, num futuro não muito distante, essa conectividade vai estar presente. Hoje, no campo, você tem caminhões, veículos de grande porte com tecnologias que não existem nos carros de rua. Essa conectividade é necessária para fazer com que esse seja um modelo de negócio rentável. Com certeza as operadoras e as provedoras de internet vão pensar com carinho para levar uma conectividade, uma tecnologia disruptiva como o 5G para dentro do campo. Sabemos que a tecnologia tem as curvas de preço. Novas tecnologias chegam com um preço mais
alto, mas à medida que vão se popularizando os preços caem com ganhos de escala. Falando do 5G, para que o produtor possa investir em levar essa conectividade para sua propriedade, isso será viável em um curto prazo? Acredito que sim, porque essas novas aplicações que estão nascendo com o uso de nuvem e de inteligência artificial em tempo real não serão possíveis com o que há hoje dentro de tecnologia de conectividade. Vamos pegar como exemplo uma prova de conceito que nós fizemos em parceria com o governo de Goiás em Rio Verde, para identificação de erva daninha. É preciso identificar no momento em que ela começa a surgir, é preciso ser reativo naquele determinado momento. Uma vez que você tem uma erva daninha em todo o talhão, compromete toda a sua produção de soja, por exemplo. Para essa detecção, para ter informação em tempo real, é necessária uma velocidade maior. Você citou essa prova de conceito que vocês fizeram em Goiás. Pode nos dar mais detalhes de aplicações em 5G que foram testadas lá ou mesmo de aplicações para o agro que tenham testado em outros locais, como na própria China? A Huawei, como empresa global, tem experiências em quase todos os segmentos das indústrias no mundo inteiro. Podemos pegar exemplos da China, no cultivo de arroz, ou na Suíça, com pecuária de leite, em que foi aplicado o 5G com muito sucesso. Similar ao que houve na China, nós trouxemos a agricultura de precisão como prova de conceito para Rio Verde. A ideia era justamente mostrar que, com o 5G,
a inteligência artificial pode estar dentro do agronegócio como tecnologia, junto às aplicações existentes. Na Suíça, onde há todo o controle da pecuária de leite, havia pequenos robôs que andavam dentro do recinto do gado para verificar, através de imagem e inteligência artificial, a saúde do próprio animal. Discutimos como poderíamos trazer algo similar aqui para o Brasil e pensamos: “Puxa, as máquinas agrícolas que estão aqui no Brasil são automáticas. Só que elas vão do ponto A para o ponto B, mas não fazem a curva e voltam. Você precisa do motorista para fazer a curva do caminhão e continuar passando por dentro de todo o talhão". Foi aí que, junto com o governo de Goiás, trouxemos um pouco mais de tecnologia para colocar a parte de navegação dentro da nuvem e sensores ao redor de um veículo autô nomo de pequeno porte para que ele possa fazer o trajeto automaticamente. Tudo isso foi feito na fazenda do seu Carlos Arantes, que é portador de deficiência física. Então, isso evitaria que ele fosse todos os dias ao talhão para poder verificar como que está o seu cultivo. Foi algo realmente espetacular. Muito da comunicação da própria Huawei está associada hoje no Brasil ao agronegócio, o que é natural, em virtude da relevância do setor para a economia brasileira. O agronegócio foi uma peça importante de convencimento, das autoridades e do mercado, para que a Huawei também pudesse ter os equipamentos dela homologados para participar da implantação do 5G no País? Seis meses depois do lançamento do 5G na China, mais de dez indúsPLANT PROJECT Nº24
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Com Tiago Fontes
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trias diferentes, de verticais diferentes, procuraram a Huawei para poder utilizar e fazer uma aplicação. Foram desenvolvidas mais de 100 aplicações, com mais de 500 parceiros. Isso ocorreu há apenas dois anos, em 2019. Quando isso aconteceu, nós, da Huawey, pensamos aqui no Brasil, que a gente precisava trazer um exemplo dessa disrupção da tecnologia do 5G. Trouxemos então um caso de uso dentro da nossa própria casa, que foi do nosso armazém em Sorocaba, onde nós tínhamos uma dor que era muito grande: movimentar todos os equipamentos que estão lá dentro, que pesam mais de 800 kg, desde o recebimento, colocar parte da embalagem e, depois, dentro de um caminhão para serem despachados. Nós utilizamos o 5G com veículos autônomos para fazer todo esse processo. Trouxemos isso para mostrar à sociedade do Brasil que a tecnologia vai andar junto da indústria, porque ela vai tornar mais automáticos aqueles processos que são repetitivos. A gente acredita que a Huawei participar do mercado é importantíssimo para o País ter uma competição e um mercado livre, para que se possa realizar esse leilão e as operadoras terem opções de compra para poder oferecer um preço competitivo e um produto bom para a sociedade brasileira.
zém em Sorocaba com o 5G e como também ajudamos a TV Bandeirantes a fazer a primeira transmissão ao vivo utilizando um terminal 5G, que evita toda aquela conexão via satélite. As provas de conceito servem para que possamos mostrar, principalmente para a indústria, que a tecnologia vai ajudar toda a produção.
Vou insistir na questão do agro como instrumento de convencimento junto a quem decide nas questões regulatórias... Não, isso não houve. O que nós fizemos foi uma prova de conceito, ajudar a indústria do agronegócio colocando a tecnologia. Assim como fizemos também em nosso arma-
Existe algum projeto para criar programas específicos para isso, já que quanto mais aplicações houver mais demanda haverá por equipamentos como os que a Huawei produz? Temos nossas estratégias, os nossos parceiros e estamos caminhando cada vez mais para fazer parcerias
Como é que Huawei se relaciona com indústrias específicas, como a de máquinas agrícolas? Como você citou, ela já oferece máquinas autônomas que, evidentemente, estão subutilizadas pela falta de conexão. Vocês têm uma política de incentivo ou de relacionamento com empresas que estão desenvolvendo, por exemplo, novas aplicações de agricultura digital e que podem ter um ganho de qualidade nas suas soluções com a utilização do 5G? A Huawei é fornecedora de equipamentos de tecnologia de informação e comunicação. Ponto. Não faz aplicações, não produz trator e nenhum equipamento para o agro. Estamos abertos a fazer parcerias, temos um departamento responsável por fomentar essas parcerias, de maneira que uma empresa possa pegar um produto, uma máquina, e fazer um upgrade de tecnologia para ela estar cada vez mais inovadora.
"O 4G mudou um pouco a nossa maneira de viver. A gente assiste um videozinho no celular, a gente chama um taxi, está sempre conectado. Já o 5G vai mudar bastante a sociedade."
fortes. Mas ainda não lançamos um programa público. Tudo o que a gente realiza em parceria está relacionado à estratégia e ao planejamento interno da empresa. Estamos trabalhando juntos em alguns segmentos para poder trazer a tecnologia mais próxima da indústria. O 5G, não há dúvida, nos colocará em um novo patamar de velocidade de transmissão de dados e informações. Mas uma das questões que se coloca é sobre a cobertura territorial das estações de transmissão, menor que a das antenas do 4G, por exemplo, sobretudo em áreas de relevo com mais obstáculos. Como isso pode impactar o desenvolvimento dessa tecnologia nas áreas rurais? Essa é uma das dúvidas que o agro sempre traz, a de que o 5G vai trabalhar com algumas frequências, mas o alcance é menor. O 4G fun-
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fosse o 5G puro, da banda C. Isso, evidentemente, vai começar pelas grandes cidades, que é onde a infraestrutura mais sofisticada está concentrada. Isso vai depender muito da estratégia de cada operadora, não depende da gente decidir por onde começar. ciona com frequências que vão de 700 MHz até mais ou menos 2.6 GHz. Tecnicamente falando, à medida que você tem frequências mais baixas, tem maior alcance de cobertura, mas menor taxa de velocidade na transmissão de dados. O 5G é uma tecnologia de software, uma atualização da rede do 4G. Não depende apenas da frequência. Para você ter uma melhor otimização do uso dessa tecnologia, é preferível que tenha uma frequência na qual você tenha um maior espaço de largura de banda para trafegar mais dados. As normas globais, definidas por institutos renomados no mundo, indicam que a banda C, que é a banda de 3.5 GHz – ou seja, 3.500 MHz –, é a banda ideal para o 5G. Por quê? Porque você tem mais espaço para poder trafegar dados. Porém, ela tem um baixo alcance. Se a gente for levar isso para o agro, a gente tem algumas culturas como o café, que geralmente são produzidas em áreas de montanhas, de relevos. Isso implica um pouco mais de dificuldade de transmissão por interface aérea, não apenas do 5G. Agora, por exemplo, as plantações de soja, geralmente são terrenos mais planos, em que tem uma maior cobertura, pode ter um maior alcance. Tudo vai depender bastante do modelo de negócio para levar a infraestrutura, que não é algo que é barato. A tecnologia de transmissão pode ser via fibra, via
interface aérea, com micro-ondas, uma tecnologia de rádio, então você vai ter esse custo da antena, mais o custo da aplicação. Por isso é que eu menciono sempre que os novos modelos de negócio vão começar a surgir. A gente está ajudando a analisar a melhor maneira de empregar tecnologia para a indústria do agro, para oferecer conectividade para o campo. Uma vez acontecendo o leilão das concessões, quando é que a gente vai começar a ver o uso efetivo, o começo da operação comercial do 5G? O que eu posso dizer pra você é que grande parte da rede dos nossos clientes que estão hoje ativos, por exemplo, com 4.5G, 4G+. São tecnologias que necessitam hoje de uma antena 5G para ter um maior alcance, maior cobertura de área. Então, acontecendo o leilão, basta apenas fazer uma atualização de software e a operadora virar a chave do 5G. Eu acredito que o tempo para o mercado vai ser muito rápido. Hoje já se encontram algumas operadoras oferecendo produtos como o 5G DSS, que é justamente o 5G em cima das bandas do 4G. Ou seja, como você precisa da largura de banda, ele pega um pouquinho de uma banda de um determinado espectro, um pouquinho de outro determinado espectro, junta tudo isso e dá uma experiência como se
Quanto vocês imaginam que essa concessão do 5G vai atrair em investimentos das operadoras, do ponto de vista de mercado, nos próximos anos em termos de infraestrutura? A gente sabe que o investimento vai ser bastante alto, principalmente porque o 5G necessita de um pouco mais de antenas e cada vez mais novas aplicações vão começar a surgir. É fundamental que todos os fornecedores de tecnologia possam participar e possam oferecer os produtos competitivamente, baseados em questões técnicas e baseados de uma forma justa. E que as operadoras e as provedoras de acesso possam ter a oportunidade de ter essa tecnologia. Não sei como te responder por onde elas vão começar ou quanto vão reservar para investimento. O que eu digo sempre é que o 4G mudou um pouco a nossa maneira de viver. A gente assiste a um videozinho no celular, a gente chama um táxi, está sempre conectado. Já o 5G vai mudar bastante a sociedade. A gente sabe que muitas aplicações vão surgir e isso vai gerar muita demanda, que vai movimentar bastante a nossa economia. Espero que o Brasil, como um grande desenvolvedor de aplicações, com um grande mercado, bastante atrativo, principalmente no mercado agrícola, possa se destacar e ser um grande benchmarking de aplicações. PLANT PROJECT Nº24
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“Mais do que fiel companheiro, para muitos o café é um atributo mágico, capaz de elevar o ânimo e o pensamento a outros níveis”
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foto: Shutterstock
Ideias e debates com credibilidade
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POLÍTICA DE COMERCIALIZAÇÃO E PREVISIBILIDADE NO AGRONEGÓCIO POR JOSÉ CAIXETA* O agronegócio se desenvolveu muito nas últimas décadas, com diversos avanços na profissionalização e na aplicação de novas tecnologias nas propriedades rurais. O aumento de competitividade e da escala incentivou melhorias em aspectos como a qualidade da semente, a época do ano mais adequada para plantio e o melhor fertilizante, além de maquinário mais moderno. Nos últimos anos, é perceptível no setor que tão importante quanto planejar a produtividade da safra é implementar estratégias como políticas de comercialização e proteção de preços, essenciais para que os produtores tenham menor suscetibilidade às variações do mercado e melhores margens e resultados – da produção à venda. Uma comercialização feita no momento não ideal pode trazer, em termos de receita, o mesmo prejuízo de uma perda de produtividade. Hoje em dia, a avaliação sobre o momento da venda do produto ainda é feita, muitas vezes, de forma intuitiva, muito focada no preço, o que pode deixar o produtor despreparado para lidar com as constantes mudanças do mercado – principalmente em períodos de crise e alta volatilidade. Como funciona a Política de Comercialização Para uma abordagem mais assertiva, aliam-se conceitos modernos de economia comportamental e fundamentos da política de comercialização focados no agronegócio, nas avaliações dos ciclos das commodities e nas condições do mercado. Na prática, o primeiro passo é o produtor elaborar um planejamento pré-safra e estabelecer parâmetros de venda, ou seja, definir o custo, a margem esperada
e determinar o preço-alvo. A ideia não é ficar engessado nesses parâmetros, mas se orientar por meio deles. Imagine um produtor que tem o custo de 50 reais por saca de soja e o preço-alvo dele é de 80 reais. Quando o mercado atingir esse valor, ele já tem uma margem satisfatória predefinida para realizar a comercialização de 10 mil sacas, por exemplo. Porém, se ele observar que o preço chegou a 88 reais, em vez de vender as 10 mil sacas planejadas para o período, o produtor pode optar por comercializar 15 mil, já que está 10% acima do seu preço-alvo. O contrário também é válido. Se o preço-alvo para a venda da saca for 80 reais, mas o preço do mercado estiver em 70 reais, o produtor pode mudar a estratégia e vender apenas 3 mil sacas, e não o volume total programado para o período. É preciso levar em consideração que o preço pode piorar, por isso é importante garantir uma parte da venda em uma margem satisfatória. É muito comum o produtor observar o mercado em queda e não comercializar seu produto na esperança de que o preço se recupere e, de repente, vender tudo de uma vez, concretizando o seu prejuízo. Sem estruturar uma política de comercialização, o produtor se afasta da previsibilidade e da segurança dos números que moldam seu negócio. De acordo com a economia comportamental, as decisões financeiras equivocadas tendem a acontecer, em sua maioria, quando são tomadas de forma intuitiva, guiadas pelo excesso de confiança, pela vontade de lucrar mais, por se basear em cenários passados e pelo medo de perder. A ideia é que o produtor comercialize seu produto de uma forma mais estratégica e programada. De acordo com PLANT PROJECT Nº24
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as características de cada commodity, é possível mapear em qual intervalo o mercado pode oscilar e estabelecer faixas de negociação. Dessa forma, o produtor garante uma boa margem e, a longo prazo, pode torná-la menos volátil e mais previsível, aumentando a credibilidade do seu negócio e facilitando a captação de novos investimentos.
A política de comercialização é uma ferramenta de gestão financeira moderna, cada vez mais usada, que permite ao produtor mitigar riscos, definir melhor a margem, eliminar a subjetividade da decisão, programar melhor a venda dos produtos, diminuir a volatilidade dos resultados e reduzir ruídos entre os acionistas.
*Gerente executivo de Rural Sales do Rabobank Brasil
A CADA ANO UMA BOA DOSE POR RICARDO CAMPO*
Ao ano que se inicia, um brinde em forma de xícara, com muito sabor para nos trazer esperança e alegria. O café é um produto rural que reúne características sensoriais e culturais. Mais do que fiel companheiro, para muitos o café é um atributo mágico, capaz de elevar o ânimo e o pensamento a outros níveis. É daqueles produtos que fazem parte direta do nosso cotidiano, quase como um ritual, gerando uma conexão intimista e particular com quem o produz e com quem o consome. O setor traz consigo uma carga de histórias e lendas, como a do pastor etíope Kaldi, que, ao ver suas “cabras dançarem” depois de comerem um fruto vermelho, resolveu tirar a prova e, após algumas experimentações, descobriu a bebida que conhecemos como café. O Brasil é o maior produtor e exportador de café no mercado mundial e ainda figura como um dos maiores consumidores da bebida. Para dar uma ideia dessa dimensão, segundo estimativas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o País fechou 2020 com uma superprodução histórica de 63,08 milhões de sacas de 60 kg e exportou, até novembro, mais de 39 milhões de sacas
de acordo com o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé). Tomar um café, além de uma fonte de energia e prazer sensorial, no contexto dos negócios, é sinônimo de integração e update. Com a pandemia e o isolamento social, o “café virtual” por videoconferência é uma opção para manter o networking ativo, mas não é capaz de gerar o mesmo engajamento do encontro face a face. A conversa flui melhor nas cafeterias ou nos novos espaços como microtorrefadoras, que passaram a focar na experiência do preparo, na customização da bebida e na filosofia de “descommoditização” do grão, muito em linha com o que especialistas classificam como a “Terceira Onda do Café”. Por conta das restrições impostas pela Covid-19, esse mercado das cafeterias passa por um momento sensível, mas que de alguma forma abriu espaço para um ainda promissor nicho das residências que, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic), apresentou crescimento de 35% no início da pandemia, em março de 2020. Se tem home office, tem pausa para um café e para a praticidade das cápsulas.
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Para marcar os dias e a mente Para cada promessa de Réveillon, mais cafeína para conseguir chegar lá. E, para isso, aplicativos e agendas digitais podem nos ajudar um bocado no plano profissional e pessoal. Estamos conectados e virtuais, mas ainda há quem mantenha o hábito de usar o bom e velho calendário impresso. Em algumas comunidades essa ferramenta publicitária ainda está bem viva, sendo oferecida como brinde sazonal em varejistas locais e com uma usabilidade bem interessante para quem não abre mão de um “risco e rabisco” na hora de organizar a vida. Um dos principais atrativos dos calendários ainda é a sua estética com fotos e ilustrações que podem decorar ambientes ou até mesmo colocar a gente para pensar. Até parece papo de publicitário nostálgico**, mas é possível dar um choque nas ideias com produção visual de qualidade e, como no caso do calendário Lavazza, acompanhado de um bom café. Para cada edição, desde 1993, a empresa convida fotógrafos renomados para aplicarem seus olhares em ensaios que passam do rústico rural ao intangível da arte abstrata. Entre os artistas que já contribuíram vale o destaque para Annie Leibovitz (retratista de celebridades mundiais como John Lennon e a rainha Elizabeth II); Steve McCurry (reconhecido por sua obra documental na National Geographic); e David LaChapelle, fotógrafo badalado no mundo pop por seu estilo, que envolve irreverência, cores e corpos (café e sentidos andando juntos mais uma vez). Voltando os olhos para os seus consumidores e para temas como origem e aspectos socioambientais, a marca teve a sensibilidade de mudar o enfoque dos calendários, saindo de uma abordagem artística sensual que marcou as primeiras edições, para uma linha de engajamento direcionada para a sustentabilidade da produção, inclusive com geração de fundos para projetos sociais apoiados pela fundação Lavazza.
Neste ano, mesmo em meio à pandemia, a empresa lançou uma edição com o tema “The New Humanity”, que propõe criar pontes e aproximar as pessoas por meio da arte, por ser uma linguagem universal que é capaz de dialogar com o coração de todos. Ao longo dos anos e com investimento sólido em ações de marketing, como patrocínio de torneios de tênis do Grand Slam ao desenvolvimento da primeira máquina de café espresso para a Estação Espacial Internacional, a Lavazza elevou a sua marca de café ao status de arte. Mostrou que até mesmo o “Dolce far niente” – expressão italiana que remete ao ócio como uma pausa para aproveitar a vida sem fazer nada – fica ainda melhor se bem acompanhado de uma bela taça de café. Nitrogênio e nanolotes A Lavazza não é o único player desse segmento que soube aguçar os sentidos da massa para um consumo global. Talvez a cafeicultura seja um dos segmentos do agro que melhor souberam capturar o fluxo de geração de valor e interações do campo à xícara, que atualmente oferecem as certificações, a rastreabilidade e o marketing baseado na alta qualidade e sustentabilidade da produção. E, quando o assunto é café, sempre há espaço para mais uma dose, nesse caso para falar de inovação. Inovação que pode vir das fazendas assim como das cafeterias e seus diferentes processos de extração. Do tradicional espresso, que agora pode ser feito de microlote escolhido na hora pelo freguês, ao mais recente nitro cold brew, um café com cara de chope extraído por infusão prolongada em água fria e que recebe uma injeção de nitrogênio para um acabamento fino de textura cremosa. De dentro das porteiras, a inovação vem das tecnologias de produção, colheita e pós-colheita para obter o que os biomas oferecem de melhor para um café de perfil único como o brasileiro. Identidade que é mais acentuada pelo PLANT PROJECT Nº24
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conceito de terroir, com definição de características de solo, altitude, microclima e até mesmo produção em “nanolotes”, num movimento reconhecido como a “vinificação do café”. E, para uma visão de como os cafeicultores daqui estão inovando em suas propriedades, fica a dica do livro Coffee Consumption and Industry Strategies in Brazil, com destaque para o capítulo sete, “Farm innovation: Nine cases of Brazilian coffee growers”, elaborado por Decio Zylbersztajn, Samuel Giordano e Christiane Leles Rezende, pesquisadores do PENSA/FIA e da Università del Caffè Brazil (parceria do Pensa/FIA e illy Caffè). A partir do estudo de casos de produtores de MG e ES, os autores apresentam uma base conceitual de inovação-difusão-adoção para analisar as inovações do ponto de vista da experiência diária, inventividade e habilidade para resolver problemas. Como parte dos resultados, a pesquisa apontou que a inovação trouxe consequências positivas como a redução de impactos ambientais, adição de valor, redução de custos de produção, melhores contratos e comercialização, entre outras. A intenção não é uma análise exaustiva a ponto de “torrar demais” a atenção de você que chegou até aqui e ainda continua firme lendo essas linhas escritas num frenesi pós-cafeína (obrigado pela leitura!). Porém, falar de inovação sem mencionar o ecossistema das startups seria o mesmo que servir um café fraco e sem graça. Nesse ponto, sem citar as agtechs que atuam dentro das fazendas, dá para ser breve e enfático com a previsão da Fast Company de que o mercado das startups que atuam com o café da terceira onda poderá valer até US$ 85 bi em 2025. A espuma até pode abaixar, mas já tem ne-
gócio dando o que falar, como a aquisição, em 2017, por parte da Nestlé de uma participação majoritária da Blue Bottle, startup querida entre os hipsters, pelo valor de US$ 425 milhões. Brindar a vida, inovar na bebida Num mundo cada vez mais conectado, nossas experiências de consumo tendem a seguir para um ambiente Phygital (do inglês physical + digital), na tendência que o varejo está acelerando para unificar a experiência dos consumidores nos ambientes físico e digital. Um exemplo disso? Para dar um gole, bastará um clique. Imagine pedir sua opção de café preferida por aplicativo, retirar a bebida na cafeteria sem pegar fila ou receber por delivery, pagar por transação digital cashless e, para terminar, registrar o momento em foto com filtro criado pelo varejista antes de compartilhar aos amigos em suas redes sociais. Já dá até para ver o slogan: “Experiência garantida ou seu dinheiro de volta”. Uma pena que em algumas situações ainda pagamos o preço da adição de valor que poderia ter sido feita por aqui mesmo, com atributos de marketing e inovação tupiniquins, sem ter que deixar a commodity sair do País como matéria-prima de excelência para voltar bem empacotada e a peso de ouro. Mas o futuro é logo ali e ainda há muito espaço para consolidar tecnologias no Brasil. Dentro das porteiras e das xícaras, onde produção e consumo encontram o espaço ideal para fazer do nosso café, e do agro, motivo de mais orgulho a cada nova safra. E para um 2021 desafiador que se inicia, façamos um brinde diário com a certeza de que o café estará ali, intenso e forte, para nos ajudar e fazer companhia!
*Ricardo Campo é coordenador de inovação da Raízen e gestor do Pulse Hub. É técnico em artes gráficas pelo Senai Fundação Zerrenner, graduado em Propaganda e Marketing pela Universidade Mackenzie, especialista em Marketing de Varejo pelo Senac e possui MBA em Marketing pela Fundação Getulio Vargas (FGV) **Outro calendário que marcou época foi o da Pirelli, que há mais de 50 anos inseriu um produto de origem rural (borracha/seringueira) no mainstream do marketing e da moda. Quer saber mais? Dá uma espiada aqui!
Protagonismo feminino: Silvany Lima é uma das lideranças que estão transformando a Caatinga
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foto: Bruno Felin / WRI Brasil
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foto: Marcelino Ribeiro
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Umbuzeiro no interior baiano: planta foi chamada de "árvore sagrada do sertão" por Euclides da Cunha 76
CORAGEM PARA MUDAR A CAATINGA Com a sensibilidade de enxergar o que ninguém via e a ousadia para tomar uma atitude inusitada, um grupo de mulheres transformou a própria vida e a produção rural no semiárido da Bahia Por Romualdo Venâncio
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ilvany Lima nasceu e cresceu na zona rural do semiárido baiano, na cidade de Pintadas, região de Caatinga onde predomina a agricultura familiar. Ainda bem criança, acompanhava a rotina de sua mãe e de seu pai na roça, brincando sob a sombra de uma árvore com as bonecas feitas de milho ou da flor do mandacaru. Os pais plantavam mamona para vender na feira, além de milho, batata, feijão, abóbora e mandioca, e criavam algumas cabeças de gado para tirar leite, vendido in natura ou como requeijão. “Fomos criados com a produção da roça mesmo, vivíamos do alimento que plantávamos”, conta a produtora. Na estiagem, o pai buscava trabalho fora para dar conta do sustento de nove filhos. Silvany seguiu o pai na atividade, mas trilhou um caminho diferente, ajudou a impulsionar um empreendimento coletivo e se tornou uma liderança na cidade. Embora tenha se acostumado – e até se sinta confortável – com tal posição, prefere tratar de outra forma. “Como
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somos um conjunto, a liderança é de todas. Eu sou uma porta-voz”, afirma. Quando fala na primeira pessoa do plural, a produtora se refere à Cooperativa Ser do Sertão, a CoopSertão, criada em outubro de 2008 por um grupo de mulheres que, como ela, acreditaram na possibilidade de um bom negócio a partir da agregação de valor ao umbu, fruto tão comum no sertão nordestino e que, exatamente por isso, era tratado com indiferença. “Temos muitos umbuzeiros na região. Um dia nos perguntamos o que mais poderia ser feito com aquela grande quantidade de umbu além de virar doce ou alimento para os animais”, lembra Silvany. “Fomos pesquisar e descobrimos que poderíamos fazer polpa.” A partir dali, teve início uma jornada que mudaria a vida daquelas mulheres e de suas famílias e colocaria Pintadas, uma cidade com cerca de 11 mil habitantes, no mapa global de investimentos em projetos agropecuários mais sustentáveis. A CoopSertão abriu o caminho para o
protagonismo feminino e para uma transformação socioeconômica em meio à Caatinga. Nesse novo cenário, até o umbuzeiro, que vinha sendo derrubado para dar espaço à formação de pastagens, passou a se parecer mais com a descrição feita por Euclides da Cunha em sua obra Os Sertões, publicada em 1902. O escritor chamou a planta de “árvore sagrada do sertão”, por sua importância histórica e cultural. REVENDO CONCEITOS Como na maioria dos pequenos negócios, o início da CoopSertão foi modesto, com apenas 20 cooperadas. As fundadoras da cooperativa buscaram apoio na prefeitura de Pintadas e na dos outros 14 municípios que compõem o Território Rural Bacia do Jacuípe, e saíram à procura de oportunidades. Com a abertura da pequena fábrica de polpa, já foi possível colocar o umbu na merenda das escolas locais e fornecer para outras cidades. “Antes a árvore não tinha tanto valor, o umbu dava e se perdia, porque a gente não dava conta de consumir. E ainda faltava energia elétrica para poder guardar a produção de polpa”, comenta Silvany. Como se já não bastassem todos os obstáculos impostos pelas condições climáticas e pela falta de infraestrutura naquela região, as mulheres da CoopSertão ainda enfrentaram
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foto: Bruno Felin/WRI Brasil
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desafios como o descrédito e o preconceito. Girlene Almeida, presidente da cooperativa, conta que chegaram a ser motivo de piada ao anunciarem que comprariam umbu, pois o fruto era encontrado em qualquer propriedade, estava disponível em todo lugar. “Começamos pagando R$ 0,60 o quilo para quem era cooperado e R$ 0,50 para não cooperado. Chegamos a comprar quatro toneladas naquele primeiro momento”, afirma a dirigente. Os números que surgiram daquele início impressionaram os moradores e o olhar de deboche foi dando espaço à curiosidade. “A pessoa que mais vendeu para a cooperativa recebeu uns R$ 400, então logo surgiram os comentários sobre como era possível faturar aquele valor em cerca de 15 dias”, diz Girlene. Dali para a frente, a safra do umbu, que vai de janeiro a março, ganhou outro significado. A colheita é manual, seja apanhando os frutos maduros que já estão no chão, seja chacoalhando a árvore para facilitar a queda daqueles que estão no ponto. Apesar da
Silvany fez do umbu um importante complemento de renda para sua família e ajudou outras mulheres a perceberem a mesma oportunidade
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foto: Luís Fernando Ricci/WRI Brasil
Linha de produção na CoopSertão (esq.) e o mandacaru, planta característica do cenário no semiárido
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valorização financeira comprovada já na estreia da cooperativa, essa etapa de apanhar o umbu era chamada, pejorativamente, de “coisa de mulher”. “Diziam que não dava dinheiro, que trabalho de homem era a pecuária ou a colheita de outras culturas”, afirma a presidente da CoopSertão. Para Girlene, a evolução da cooperativa mudou esse conceito de gênero e deu sustentação ao empoderamento da mulher rural. “Eu sempre trabalhei na roça. Em muitas situações, quando não era safra e os maridos iam trabalhar fora, as mulheres tiravam leite das cabras, das vacas, e as notas vinham em nome deles. Mas elas é que faziam todo o trabalho”, comenta. Conforme o negócio foi ganhando força, os homens se aproximaram, até de maneira bem discreta no começo. “Alguns chegaram a entrar na fábrica, mas não aguentaram a lida”, diz a dirigente. Hoje, a participação masculina nessa cadeia do umbu está mais no transporte da colheita até a cooperativa.
A presença feminina também cresceu em outras áreas. “Há uma associação de lanchonetes e restaurantes só com mulheres, cerca de 80% do corpo docente da cidade é formado por professoras e ainda temos as ‘mulheres sambadoras’ na manifestação cultural do samba de roda”, diz Silvany. Ela explica que isso acontece porque as mulheres foram se aproximando, conversando mais entre si e ocupando seu espaço. Pintadas virou referência nesse campo, tanto que passou a ser comum a visita de mulheres de outras regiões para conhecerem o que era feito por lá, e depois levarem consigo esse conceito de que juntas podem ser mais fortes. “As crianças, como minha filha de 11 anos, crescem vendo isso e já entendem esse potencial”, acrescenta a produtora, que já trazia essa referência de sua própria mãe. “Ela era muito batalhadora e sempre foi uma inspiração para mim.” Superação em escala – O processamento do umbu pela CoopSertão começou com uma despolpadeira que tinha capacidade de 100 quilos por hora, os frutos eram lavados à mão e a polpa era colocada nas embalagens com o uso de uma caneca. Ainda que fosse limitada, aquela estrutura mostrou um horizonte jamais imaginado na região. “Começamos a conversar sobre o excedente de outras frutas e pensamos em montar uma pequena indústria.
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Passamos a contar a nossa história e isso chamou a atenção”, diz Girlene. Os relatos chegaram até o Adapta Sertão, uma coalizão de organizações que dá suporte a produtores da agricultura familiar que vivem na Caatinga, bioma bastante fragilizado. Um estudo veiculado no Climatic Change, publicação científica voltada aos impactos das mudanças climáticas, mostra por exemplo que desde 1962 o volume de chuva da Bacia do Jacuípe, que variava entre 600 mm e 800 mm por ano, caiu pela metade, aproximadamente. Foi por meio do Adapta Sertão que a CoopSertão conseguiu acesso a equipamentos mais potentes. A nova conquista trouxe também outros desafios. “Não tínhamos onde colocar esses novos equipamentos, onde armazenar”, lembra Girlene. Com o apoio da Companhia de Abastecimento Rural da Bahia, foi possível entrar em outro projeto que viabilizou a questão do espaço e abriu a oportunidade de trabalhar com uma diversidade maior de frutas, mantendo a valorização das nativas. “Passamos a falar ainda mais com as mulheres para valorizarem o umbu. Quem vinha desmatando passou a mudar de ideia”, diz a presidente da CoopSertão. O conceito de preservação dos umbuzeiros foi intensificado com mais uma parceria, um
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projeto que chegou até a CoopSertão por meio do WRI Brasil, organização integrante do World Resources Institute e que atua no desenvolvimento de estudos e implementação de soluções sustentáveis em clima, florestas e cidades. Ou seja, criar oportunidades de melhorias socioeconômicas em equilíbrio com a preservação ambiental. “Recebemos o contato de uma instituição internacional interessada em investir em algum projeto no semiárido”, diz Mariana Oliveira, analista
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de Pesquisas do WRI Brasil. Mariana conta existir um ambiente, uma espécie de fórum, em que representantes de fundações, agências de desenvolvimento, investidores e organizações conversam sobre essas oportunidades. “Cada um tem lá seu tema de interesse, como a Caatinga, a fome, entre outros. E a base dessa busca é a ciência, com muitos dados e informações”, acrescenta. “Esse pessoal que decidiu investir na CoopSertão tinha preferência por um projeto de restauração da vegetação, mas de forma que o negócio se tornasse capaz de andar sozinho depois.” Outro fator favorável a essa parceria, segundo Mariana, é que o investidor também queria trabalhar com a questão de gênero, então foi bem positivo ser uma cooperativa formada por mulheres. CAATINGA RENOVADA Entre os objetivos do trabalho de restauração iniciado com o apoio do WRI Brasil estavam o fim da derrubada de umbuzeiros e o incentivo ao plantio de novas árvores, pois era possível desenvolver uma convivência harmoniosa entre as atividades agrícolas e 82
pecuárias. “A gente não vai lá falar para a pessoa plantar árvore e perder espaço de pastagem, a proposta é de uma alteração, um ajuste, uma adaptação”, diz Mariana. Para isso, foi imprescindível conhecer bem o cenário e suas dimensões. “Visitamos cerca de 600 propriedades para saber quantas árvores havia para coletar frutos e fornecer à cooperativa. Praticamente metade dos produtores se mostrou interessada em participar.” Esse garimpo também foi desafiador. Mariana conta que, no início, houve desconfiança por parte dos moradores de Pintadas. A relação vai mudando conforme passam a entender que a ideia é otimizar o que já existe na região, tornar mais eficiente, e não mudar o ambiente das pessoas. Poder contar com uma liderança, mesmo que informal, ajudou muito nesse processo. “Houve a necessidade de se fazer um trabalho de capacitação, de entendimento das questões ambientais e da restauração. A Silvany foi muito importante nesse momento”, afirma a analista do WRI Brasil. Mais do que a posição de liderança na cidade, a influência
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O reflorestamento da Caatinga com umbuzeiros foi reforçado por cultivares desenvolvidas pela Embrapa. A pesquisa, iniciada ainda nos anos 1980, foi concluída em outubro de 2019 com a geração de quatro novos materiais genéticos já registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa): BRS 48, BRS 52, BRS 55 e BRS 68. Seus frutos são maiores e pesam mais do que os do umbu tradicional (entre 20g e 30g). As variedades 48 e 68 pesam, em média, 85g e 96g, respectivamente, e ambas são indicadas para o
de Silvany veio também por ela estar convencida do quão positiva é a restauração da vegetação local e o sistema agroflorestal. “A gente não tinha ideia da importância do umbu, mas quando descobrimos que também poderia virar dinheiro, faturamento, passamos a cuidar melhor”, conta a produtora. “Com essa mudança, até meus filhos começaram a se preocupar mais. Um deles conseguiu comprar um computador com o dinheiro do umbu que colheu.” Ao fazer parte da CoopSertão, Silvany passou a ter
MELHORAMENTO GENÉTICO DO UMBU consumo in natura ou de mesa. Já a 52 teve peso médio de 42g, enquanto a 55 chegou a 51g, em média. Essas duas também podem ser consumidas in natura ou utilizadas como matériaprima nas agroindústrias. Essas variedades ampliam as possibilidades de se utilizar uma árvore tão tradicional da Região Nordeste como veículo de reflorestamento, de recuperação da vegetação na Caatinga. Para o pesquisador da Embrapa Semiárido, Viseldo Ribeiro, que participou dessa pesquisa, a disponibilidade de mudas desses materiais será valiosa para o estabelecimento de uma fruticultura de sequeiro e da
uma dupla satisfação: pela evolução da cooperativa e pelas melhorias em sua própria vida. A produtora, que completou 54 anos agora em janeiro, é mãe de mais dois filhos além da jovem adolescente, um com 30 anos e outro com 20. O mais velho já com curso superior concluído e o mais novo, cursando. Quando se casou, Silvany continuou morando na zona rural, onde ela e o marido trabalham até hoje. Mas há 15 anos se mudaram para uma casa na cidade. A cooperativa completa 13 anos agora em 2021. “Nossa
agroindustrialização. “Além disso, é um passo significativo para domesticar a espécie e viabilizar seu cultivo comercial com materiais de bom potencial produtivo e frutos de qualidade”, diz Ribeiro. Outro fator positivo desse trabalho da Embrapa é a possibilidade de estender o período de colheita, restrito aos três primeiros meses do ano, porque a pesquisa considerou acesos mais precoces e tardios em relação ao período reprodutivo anual. E reduziu para cerca de oito anos o intervalo entre o cultivo e a primeira safra, que normalmente dura entre 15 e 20 anos.
maior renda vem da pecuária, e também temos uma quitanda de frutas e verduras. O umbu é um complemento da renda, até porque são só três meses do ano”, comenta. Em 2019, a CoopSertão processou 27 toneladas de umbu colhidas em Pintadas. “No ano anterior já havíamos conseguido esse volume, mas contando com a colheita de outros municípios”, diz Girlene, presidente da cooperativa, que hoje conta com 275 cooperados e trabalha com diversos itens. Com uma fábrica bem estabelecida, foi PLANT PROJECT Nº24
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possível até criar uma linha de produtos com marca própria, Delícias de Jacuípe, que pode ser encontrada até na cidade de São Paulo. É bem verdade que ainda em um único ponto, é uma exceção, no entanto, já um passo gigantesco. A capacidade de processamento de frutas da cooperativa é de 1,5 mil quilos de polpa por dia, mas pode chegar a 2 mil ao processar uma única fruta, como a acerola, que é menor. A produção é embalada por uma empacotadora automática com desempenho de 1,2 mil quilos por hora. Na produção de leite, por exemplo, são 5 mil litros diários coletados pela Betânia Lácteos em 14 tanques resfriadores, com capacidade de até 2 mil litros, distribuídos pelas comunidades. “Estamos sempre pesquisando para encontrar o melhor negócio. A Betânia, por exemplo, é nossa 84
parceira por ser a opção mais positiva de preço e de garantia de pagamento”, afirma. A meta é seguir crescendo e diversificando, inclusive nas porções, o que permitiria abrir mais mercado e tornar a marca mais conhecida. Atualmente, a cooperativa trabalha apenas com embalagens de um quilo e meio quilo. “Com medidas menores poderíamos aumentar as vendas, mas ainda não temos equipamentos para fazer embalagens diferentes”, explica Silvany. O histórico da CoopSertão indica que pode ser apenas uma questão de tempo. A valorização do umbu na região é prova disso: hoje a cooperativa compra o quilo do fruto por R$ 1,50, três vezes o valor pago lá em 2008. “Antes a gente tinha vergonha de oferecer suco de umbu a uma visita, hoje é nosso suco preferido”, afirma Girlene.
Velhinhos e valiosos: Colecionadores resgatam a memória do agro através da restauração de tratores antigos
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A grande feira mundial do estilo e do consumo
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DE SUCATA A OBJETOS COLECIONÁVEIS Aficionados de máquinas antigas recuperam tratores e, com eles, a memória de outras eras do agronegócio brasileiro Por Irineu Guarnier Filho Fotos de Eduardo Scaravaglione
O JD R Diesel, desde 1951 na família Wollmann: o motor foi reformado, mas a “pátina do tempo” ficou aparente em homenagem aos bons serviços prestados 86
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atual BR-290, que divide o estado do Rio Grande do Sul ao meio, de leste a oeste, nem era asfaltada em 1951 quando o jovem Telmo Armindo Wollmann, de 18 anos, pegou um ônibus em Cachoeira do Sul e viajou à capital gaúcha para buscar o trator John Deere R Diesel importado dos Estados Unidos que o seu pai, o produtor de arroz Ricardo Wollmann, havia adquirido na concessionária Figueiras, de Porto Alegre. O transporte de um trator de quase 4 toneladas e mais um arado de discos por si só já seria uma operação logística complicada naquela época, em razão da distância de mais de 200 quilômetros que separa as duas cidades e da precariedade das estradas de chão batido. Mas tornou-se uma aventura ainda mais ousada a partir do momento em que a família Wollmann decidiu levar o John Deere R... rodando! Com o arado acomodado sobre um reboque, a viagem de trator entre a capital
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gaúcha e Cachoeira do Sul demorou dois dias. Telmo saiu bem cedo de Porto Alegre. Ao anoitecer, precisou pernoitar em uma pousada à beira do caminho. Ainda dirigiu por muitas horas para chegar à fazenda da família, no final da tarde do segundo dia. Mas tudo correu bem na viagem e o valente John Deere serviria aos Wollmann por muitas décadas, até ser recolhido a um galpão da fazenda. Quem relembra essa proeza é o especialista em desenvolvimento de produtos Telmo Ricardo Wollmann, filho de Telmo Armindo, que após a aposentadoria decidiu recuperar o velho John Deere e trazê-lo de volta a Porto Alegre, onde reside (desta vez, porém, em cima de um caminhão). Telmo é um antigomobilista que costuma desfilar nos encontros do Veteran Car Club do Brasil/RS com uma impecável picape Ford F-100 1962. Não se conformava com a ideia de ver o velho JD R ser
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consumido pela ferrugem. Reativar a máquina que serviu por tanto tempo ao avô e ao pai foi mais fácil do que ele imaginava. Mesmo após 15 anos de imobilidade, bastou uma limpeza de magnetos para que o propulsor Diesel de 48 HP (acionado por um pequeno motor boxer a gasolina) voltasse a girar. “O motor pegou na hora. Foi emocionante”, relembra Telmo, que optou por não restaurar o trator. Para ele, a “pátina do tempo” ajuda a contar a história da máquina – que ele conserva em uma garagem e agora também já é cuidada pelo filho Ricardo. Só lamenta que as autoridades de trânsito da capital não permitam que o trator rode pelas ruas até os locais de encontro de veículos antigos... No final de 2018, quando foi exibido no 27º Encontro Sul-Brasileiro de Veículos Antigos, o John Deere R precisou ser transportado por um caminhão guincho. O colecionismo de veículos antigos congrega diversas categorias além dos clássicos automóveis esportivos, sedãs e cupês, que vão de viaturas militares a carros funerários, passando por picapes, ônibus, motocicletas e caminhões. Bastante difundido nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, o hobby de garimpar, restaurar e colecionar tratores começa a atrair um número cada vez maior de aficionados brasileiros – principalmente produtores rurais e empresários do interior do País.
foto: Precious Wood
O Farmall Cub dos anos 50 e detalhes do JD R em ação e, hoje, na coleção
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Pelo menos é o que acredita um dos maiores colecionadores de veículos antigos do Brasil, dono de máquinas de sonho como Ferrari, Porsche ou Corvette, que prefere não ser identificado. Com mais de 100 automóveis clássicos de alto valor alojados em um prédio de três andares construído especialmente para o acervo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, recentemente o colecionador gaúcho começou a se interessar também por tratores. Adquiriu, primeiro, um Ford dos anos 1960, movido a gasolina, em um leilão. Logo depois, um International Harvester Farmall Cub americano, ainda mais antigo. E agora restaura outros quatro tratores de diferentes fabricantes. Sua nova coleção inclui até um trator usado para manobrar aviões (pushback) da antiga Varig, que também foi comprado em péssimo estado e restaurado. “O Ford estava todo modificado, com rodas dianteiras e pneus de Fusca. Felizmente, existe um grande catálogo de peças novas para ele nos Estados 90
Unidos. Não foi difícil deixá-lo completamente original”, diz. Detalhe: o colecionador nunca teve nenhuma ligação com o campo e jamais dirigiu algum de seus tratores. A relação entre tratores e automóveis é mais antiga do que se imagina. Marca lendária no mundo dos carros esportivos, a italiana Lamborghini começou fabricando tratores. Quando já havia ganhado bastante dinheiro com suas máquinas agrícolas, o ex-fazendeiro Ferruccio Lamborghini comprou uma Ferrari. Não gostou do câmbio e reclamou diretamente ao comendador Enzo Ferrari – que se irritou com a crítica do rude fabricante de tratores e o desafiou: “Por que você não faz um carro melhor?”. Assim nasceu a principal rival da Ferrari na Itália. Ferdinand Porsche, o gênio austríaco por trás da criação do Volkswagen Sedan e do esportivo icônico Porsche 356, também fabricou tratores – mais admirados pelo design do que propriamente pela performance. Um Porsche Junior 1965 com
Ford da década de 1960 e o Farmall
motor monocilíndrico diesel é uma das atrações do Museu Agromen de Máquinas Agrícolas, de Orlândia (SP), a 361 quilômetros da capital. Maior do Brasil, e um dos maiores do mundo nessa categoria, o museu de Orlândia reúne mais de 200 tratores e quase uma centena de colheitadeiras e implementos agrícolas tão bem restaurados e conservados que parecem recém-saídos da linha de montagem. Distribuído em dois enormes pavilhões, esse magnífico acervo convive com a coleção de cerca de 200 automóveis clássicos do produtor rural José Ribeiro de Mendonça. O “museu do trator” de Orlândia, como é conhecido por aficionados de todo o País, começou com a restauração de um velho Ferguson 35, que serviu à fazenda Agromen a partir de 1953. Por meio de doações e aquisições, no Brasil e no exterior, o acervo multiplicou-se rapidamente nos últimos 15 anos,
e hoje exibe raridades como um International Harvester Titan, construído em 1912 em Chicago, nos EUA; um Lanz Bulldog 1949 alemão; ou um FG-ZM5 713, fabricado pela Case americana no ano de 1919 em madeira e aço – sem banco para o operador, que o conduzia em pé. Os tratores aparecem com frequência cada vez maior nos encontros de antigomobilismo, em passeios organizados por proprietários e em grupos de entusiastas nas redes sociais. Vendidos como sucata ao fim de sua vida útil até bem pouco tempo, hoje são disputados em leilões da internet a preços crescentes. Num país em que o agronegócio responde por cerca de um terço do PIB, o reconhecimento desses veículos como objetos de valor histórico até que demorou – mas, pelo jeito, veio para ficar. A história da mecanização agrícola no Brasil não está mais condenada ao esquecimento.
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Calendário desenvolvido pelos designers do Arado: Valorização da estética e da cultura rurais
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Um campo para o melhor da cultura
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Um campo para o melhor da cultura
A CULTURA VIVA DO INTERIOR DO BRASIL Em um momento em que uma população crescente deixa os centros urbanos e se instala em cidades do interior, o Instituto Arado se propõe a pesquisar e preservar o imaginário rural do País por meio de projetos que privilegiam as artes visuais Por André Sollitto
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Nova sede do instituto em Queluz, na Serra da Mantiqueira: espaço para preservar o universo caipira PLANT PROJECT Nº24
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A
brir a página do Instituto Arado no Instagram é fazer uma viagem pela cultura caipira. São rótulos de produtos, capas de discos, antigos panfletos, desenhos botânicos, reproduções de quadros e muitos outros materiais que imediatamente trazem lembranças à tona. Pode ser uma garrafa de pinga, a embalagem de um queijo tradicional da Serra da Mantiqueira ou mesmo a capa de um livro. É um sentimento que mostra que não só aqueles que trabalham no setor agrícola que mantêm vivos os hábitos, as memórias e o imaginário do interior do Brasil. Os dados mais recentes do IBGE podem até indicar que o Brasil é um país majoritariamente urbano – afinal, apenas 15% dos brasileiros moram em áreas rurais –, mas o êxodo para as grandes cidades é tão recente que essa cultura está bastante viva. Hoje, o Arado é um instituto de pesquisa do imaginário rural brasileiro, com sede no município de Queluz, em São Paulo. Mas surgiu inicialmente como um estúdio de criação cuja trajetória está diretamente ligada à de seu fundador, Bruno Brito. Natural de Jacareí, no Vale do Paraíba, mudou para São Paulo para estudar artes visuais, mas sempre manteve uma conexão forte com as tradições rurais da região em que cresceu. Mesmo na maior metrópole da América Latina, seu olhar se voltava para o interior. Fez um mestrado em artes e estudou a obra de Almeida Júnior (1850-1899), precursor do estilo que viria a ser conhecido como regionalista. “Meu trabalho tenta mostrar o que ainda encontramos, hoje, da paisagem que ele pintou no século passado”, conta Bruno. Quando concluiu o mestrado, em 2018, 96
Cultura
Detalhes do trabalho e dos objetos expostos no Arado
começou a desenvolver projetos gráficos que traduzissem o universo rural. Logo, viu a lista de demandas crescer. Fez trabalhos para restaurantes, marcas de queijo e de café, produziu pôsteres e camisetas. Para o Sesc São José dos Campos, por exemplo, criou um mapa com antigas rotas de viagem da região do Vale do Paraíba que remontam aos tempos da colônia. O instituto também foi responsável pelas ilustrações da partitura de Legado, canção composta por Renato Teixeira para a minissérie de mesmo nome produzida pela Basf. O foco da pesquisa de Bruno está na região Centro-Sul. Mas seu plano é abrir o leque e incluir outras regiões. “Acho maravilhoso o Arado poder
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abarcar o Brasil como um todo. Precisamos olhar mais para o universo sertanejo do Nordeste, para o Cerrado, para o Norte”, afirma o fundador. Para fazer isso, ele vai lançar um programa de correspondentes, que ficarão responsáveis pela pesquisa em cada região. É uma abordagem que pretende também abarcar outras narrativas que incluam os negros e os indígenas na cultura caipira. “O Sudeste sempre foi o mainstream. Temos que ampliar o debate e fazer jus à nossa missão de pesquisar o imaginário brasileiro. E assim encontramos as divergências, mas também muitas similaridades”, diz Bruno. Enquanto o projeto dos correspondentes não tem início, o Arado está montando uma biblioteca colaborativa que se PLANT PROJECT Nº24
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Bruno Brito, o criador, a paisagem da Mantiqueira e obras do Arado, como a partitura ilustrada da canção Legado
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propõe a oferecer um panorama da história, dos saberes e da cultura do campo. No site do instituto é possível pesquisar títulos bastante variados, que incluem Formação da Culinária Brasileira, de Carlos Alberto Dória, sobre a gastronomia nacional; As Festas no Brasil Colonial, de José Ramos Tinhorão; ou o volume em que José Hamilton Ribeiro compila as 270 maiores modas de viola. "A biblioteca mapeia o que está além do meu raio de visão", conta Bruno. A biblioteca também abarca clássicos da literatura que retratam a vida no campo. É o caso de Sagarana, de João Guimarães Rosa (1908-1967); Urupês, de Monteiro Lobato (1882-1948); e São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953). Há ainda espaço para títulos recentes, como o fenômeno Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, contado a partir do ponto de vista das filhas de trabalhadores de uma fazenda no Sertão da Bahia, descendentes de escravizados que continuam oprimidos mesmo após a abolição. “É uma
obra importante em vários aspectos. Faz uma inversão da literatura pautada na figura masculina, fala de opressão e não tem aquela visão romântica do universo rural pacífico”, diz. O reconhecimento do valor da cultura caipira e a busca por trazer à tona seus elementos é um movimento que vem crescendo há algum tempo. Bruno vê essa volta às origens como uma importante busca contemporânea. "Passamos por crises hídricas e sanitárias e por problemas de urbanização. Já havia um movimento de sair dos centros urbanos em direção ao interior", diz. Ele cita como os chefs passaram a levantar a bandeira da comida do campo na gastronomia. "Virou quase uma obrigação.” A tendência ganha ainda mais força com a pandemia. "Muitas pessoas saíram dos centros urbanos e descobriram que a vida no campo não apenas é possível, mas interessante", diz Bruno. Nesse sentido, há uma preocupação em tornar o Arado um centro de referência como forma de validar narrativas verdadeiras, baseadas em
pesquisa. "As pessoas vêm para o campo, muitas com capital. Surgem novas empresas e marcas e começam a usar a narrativa do rural, do caipira, para vender. O papel aceita tudo, até mentira", afirma Bruno. Segundo ele, o design vive um momento de usar esse storytelling para dar uma cara de "marca tradicional" a produtos que acabaram de surgir. "Muitas crises éticas também são estéticas. Quando não tem uma referência do que era, ou do que é, está a esmo", afirma ele. Sobre o trabalho que faz, Bruno evita termos como "resgate". Ele prefere dizer que traz à tona elementos dessa cultura. "Não temos a pretensão de não deixar aquilo morrer. Reconhecemos que a cultura passa por transformações, mas tentamos registrar algumas coisas para a posteridade." Além do projeto de correspondentes das outras regiões do Brasil, o Arado tem outros planos para 2021. Atualmente, o time do instituto está ilustrando e diagramando um livro sobre o hub Preta Terra, que oferece consultoria, planejamento e formação sobre agrofloresta, agricultura regenerativa e sistemas de produção integrados. Além disso, vai colocar dentro do site uma loja virtual com elementos da pesquisa materializados na forma de cartazes e pôsteres, por exemplo. PLANT PROJECT Nº24
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Quriosity, o supercomputador da Basf: Maior complexidade das soluções e aumento do volume de dados a processar exigem máquinas mais poderosas para o agro
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As inovações para o futuro da produção
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As inovações para o futuro da produção
Ao experimentar os marketplaces do agro, até produtores reticentes viram as vantagens do formato 102
É POSSÍVEL SER VELOZ COM SEGURANÇA Supercomputadores são capazes de processar em horas o que equipamentos convencionais fariam em anos. Isso pode significar algumas safras de vantagem nas tomadas de decisão do agronegócio brasileiro Por Romualdo Venâncio
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o dia 8 de fevereiro, a MercedesAMG Petronas anunciou nas redes sociais a continuidade de uma das parcerias mais vitoriosas da Fórmula 1 para a temporada 2021. O piloto heptacampeão Lewis Hamilton renovou contrato com a equipe, que também é sete vezes campeã pelo mundial de construtores. Sabe o que isso tem a ver com o agro? A ciência que aumenta a probabilidade de novas conquistas. Além de um piloto talentoso e comprometido e de um carro de ponta bem regulado, a equipe é amparada pela supercomputação para processar, com agilidade e precisão, uma enormidade de dados e fazer as projeções necessárias para se construir a melhor estratégia em cada corrida. Se essa tecnologia é tão decisiva para uma equipe da F1, que define o resultado de uma prova em milésimos de segundo, mais ainda para a produção agrícola, que por mais precoce que esteja se tornando precisa respeitar o tempo da natureza. Os supercomputadores processam em horas o que equipamentos convencionais levariam até anos para realizar. Essas máquinas podem analisar décadas de informações climáticas e projetar possíveis cenários para que o produtor decida, por exemplo, o melhor local para plantar uma
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determinada variedade de café. Ou apresentar previsões meteorológicas, para um horizonte de dois a dez dias, que auxiliem na programação da aplicação de fungicidas, evitando-se assim dias com excesso de vento e chuva. “O produtor pode escolher uma janela temporal em que as condições sejam adequadas, ou até identificar que não há condições meteorológicas favoráveis à formação da doença e deixar de aplicar o agrotóxico”, comentam os pesquisadores do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Chou Sin Chan e Ivan Márcio Barbosa, respectivamente, chefe da Divisão de Modelagem Numérica do Sistema Terrestre e coordenador de Infraestrutura de Dados e Supercomputação. Segundo eles, essa precisão contribui até para reduzir o impacto dos defensivos no custo de produção da safra e o risco de contaminação do solo, o que ainda agrega valor às lavouras. O Inpe é uma unidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e desempenha papel fundamental para o País, com atuação em diversas áreas, como ciências espaciais e atmosféricas, previsão de tempo e estudos climáticos, engenharia e tecnologia espacial, rastreio e controle de
Tecnologia
satélites, entre outras. Foi o instituto, por exemplo, que desenvolveu, em parceria com a Agência Espacial Brasileira (AEB), também órgão do MCIT, o Amazonia 1, primeiro satélite de observação da Terra totalmente projetado, integrado, testado e operado pelo Brasil. Seu lançamento aconteceu agora em fevereiro, no dia 28, no Centro Espacial Satish Dhawan, na cidade de Sriharikota, província de Andhra Pradesh, na Índia. De acordo com o Inpe, o Amazonia 1 faz parte de um projeto maior, a Missão Amazonia, que prevê mais dois satélites de sensoriamento remoto – Amazonia-1B e Amazonia-2. O objetivo do instituto é observar e monitorar espacialmente o desmatamento na região amazônica e a diversificada agricultura em todo o território nacional, atuando em sinergia com os programas ambientais existentes. Os dados gerados a partir desses equipamentos servirão também para outras opções de monitoramento: região costeira, reservatórios de água, florestas naturais e cultivadas e desastres ambientais. O aproveitamento do potencial de toda essa inovação tecnológica passa pela supercomputação. VISÃO DE LONGO ALCANCE O avanço das inovações tecnológicas é um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento agrícola no Brasil e para a expansão, em teoria
e prática, do conceito de Agricultura 4.0. A supercomputação tem papel fundamental nessa trajetória, tanto pela velocidade quanto pela amplitude no processamento de dados. “Ela é condição necessária para a geração de cenários de mudanças climáticas. Essas simulações numéricas podem ter início no período pré-industrial e ultrapassar o ano de 2100, cobrindo vários cenários de níveis de concentração dos gases de efeito estufa”, afirmam os pesquisadores do Inpe. De acordo com Chan e Barbosa, os prérequisitos dos supercomputadores passam também pela capacidade de armazenamento de todo esse conjunto de dados e pela agilidade para acessá-los. E a infraestrutura dedicada ao equipamento deve ter desempenho compatível, ou pode se tornar um gargalo, como no caso da capacidade de transmissão de dados em rede. O serviço prestado pelo Inpe em relação a previsões meteorológicas e cenários climáticos envolve um modelo global atmosférico que resolve equações para cerca de 100 milhões de pontos a cada dezena de segundos. “Para calcular até dez dias em menos de duas horas, é necessário uma máquina veloz. Em um equipamento com poucos processadores e baixa performance, essa resolução levaria dias, não gerando precisão útil para tomadas de ação ou planejamento”, afirmam. A estrutura do instituto nessa área é
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composta pelo sistema de supercomputação Cray XC50, desenvolvido pela Cray Inc., que em 2020 foi adquirida pela Hewlett Packard Enterprise (HPE). Trata-se da mesma fonte onde a Mercedes-AMG Petronas foi buscar essa tecnologia. A HPE é também fornecedora do sistema de supercomputação da Embrapa Informática Agropecuária, localizada em Campinas (SP). “Há um monitoramento permanente de mudanças climáticas, por exemplo. Fazemos simulações gigantescas com dados de várias fontes, que são processados com a computação de alto desempenho”, diz Silvia Massruhá, chefe-geral da unidade. Ela faz questão, inclusive, de explicar essa terminologia. Segundo a pesquisadora, os supercomputadores são ferramentas utilizadas na computação de alto desempenho, ou high performance computing (HPC). Entre as muitas atividades desenvolvidas pela Embrapa com o suporte dessa tecnologia está o Zoneamento Agrícola de Risco Climático, um serviço prestado para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). É uma demanda anual que envolve 54 culturas e abrange 5 mil municípios, com dados de janelas de plantio e matriz de risco. A partir dos resultados dessa análise, o Mapa gera portarias de melhor época para plantar. “A tecnologia ajuda o Mapa, que influencia PLANT PROJECT Nº24
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Carro da equipe Mercedes: monitoramento de bólidos da F1 equivale ao de operações do agronegócio
SUPERCOMPUTADORES QUE LIDERAM O RANKING TOP500 Computador Fabricante País Desempenho (petaflops) Fugaku Fujitsu Japão 442,0 Summit IBM EUA 148,6 Sierra IBM / Nvidia Mellanox EUA 94,6 Sunway TaihuLight NRCPC China 93,0 Selene Nvidia EUA 63,4 Tianhe-2A NUDT China 61,4 Juwels Booster Module Atos Alemanha 44,1 HPC5 Dell EMC Itália 35,4 Frontera Dell EMC EUA 23,5 Dammam-7 HPE Arábia Saudita 22,4 Fonte: Top500
políticas públicas e o crédito rural, que beneficiam o produtor”, cita Silvia, destacando a reação de vantagens em cadeia. “Esse zoneamento foi lançado há 20 anos. Antes era demorado, mas hoje fazemos em horas o que levava dias.” A chefe-geral da Embrapa Informática Agropecuária comenta que o avanço da computação é uma plataforma essencial para a expansão de outras tecnologias, como IoT, a internet das coisas, que conecta máquinas a pessoas e a outras 106
máquinas, e blockchain. “Se eu faço uma irrigação inteligente, economizo água, mas para isso preciso de muitos sensores, estações pluviométricas, dados de satélite e de drones, e só consigo processar tudo via computação de alto desempenho”, explica Silvia. “O produtor é muito mais tecnológico do que ele mesmo imagina.” Outra área de grande atuação da Embrapa com a supercomputação é a bioinformática, inclusive com diversos projetos nas áreas de biotecnologia. É o caso dos estudos de genoma, melhoramento genético, bioquímica molecular, bactérias e doenças. “Temos um laboratório multiusuário de bioinformática que funciona como facility de armazenamento e processamento, e atende as 43 unidades de pesquisa da empresa”, diz Silvia. TECNOLOGIA SOB ENCOMENDA Quando se fala em supercomputação, é natural que se pense em grandes aplicações, em áreas científicas altamente sofisticadas, como a Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. No entanto, essa é exatamente a imagem que a HPE vem tentando desmistificar. “Há soluções menores, a qualidade e o resultado são os mesmos, muda apenas a proporção”, diz Fábio Alves, especialista em Computação de Alto Desempenho e Inteligência
Tecnologia
Artificial para América Latina da HPE. “Depende muito do problema do cliente, pois pode ser solucionado com um servidor de US$ 10 mil até um supercomputador de US$ 10 milhões.” O mais importante, segundo ele, é entender exatamente qual é a demanda, até porque a solução pode ser desenvolvida em conjunto. Foi o que aconteceu na parceria entre a HPE e a Basf Global. Em 2017, entrou em funcionamento o Quriosity, o supercomputador que a Basf tem instalado em Ludwigshafen, na Alemanha, país sede da companhia. O equipamento tem capacidade de processamento de 1,75 petaflops (cada petaflop equivale a um quatrilhão de cálculos por segundo). A tecnologia atende a todas as divisões da empresa, globalmente, tanto que tem sido disponibilizada até para pesquisas na busca de novos tratamentos para a Covid-19. Falando especificamente da agricultura, o Quriosity pode auxiliar a Basf Global a otimizar a combinação de moléculas para o desenvolvimento de novas soluções em proteção de culturas, processo que geralmente leva dez anos, do início das pesquisas até seu lançamento. “Antes de um novo princípio ativo chegar ao mercado, são realizados até 300 estudos para testar sua segurança e eficácia. Já numa fase inicial do desenvolvimento desses ingredientes, utilizamos modelos informáticos para prever
especificamente seu comportamento, sob uma vasta gama de condições ambientais, e para identificar potenciais riscos”, informa a empresa. “Com o Quriosity, essas complexas simulações ambientais podem ser calculadas para mais de 400 mil cenários em apenas algumas horas, o que levaria anos em computadores convencionais.” Futuramente, o Quriosity poderá até ajudar os produtores com dados que podem ser incorporados ao xarvio FIELD MANAGER, plataforma de agricultura digital da Basf. Um dos objetivos da HPE, segundo Fábio Alves, é democratizar o uso da computação de alto desempenho, oferecendo o máximo de soluções que os clientes necessitam. Até mesmo para utilização de dados em nuvem, a exemplo do Green Lake, área que entrega a computação como serviço. “É a nuvem dentro do ambiente do cliente, da empresa. E sempre de acordo com a necessidade do cliente. Às vezes precisa de mais memória, como é o caso da área de genoma do arroz, que é mais complexo do que o humano”, diz o especialista. A atuação da HPE vem crescendo muito no segmento de supercomputação, mais ainda após a aquisição da Cray Inc. Para se ter ideia, a empresa tem 43 supercomputadores na 56ª edição no ranking Top500, publicado em novembro do ano passado – 36 estão entre os 100 primeiros.
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BRASIL ENTRE OS TOP500 Dois supercomputadores instalados no Brasil aparecem no ranking Top500. Um deles é o Santos Dumont, que está na posição 273. Fabricado pela francesa Atos/Bull, está instalado no Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis (RJ). Com capacidade de 5,1 petaflops, o equipamento atua como nó central do Sistema Nacional de Processamento de Alto Desempenho (Sinapad), rede de centros de computação de alto desempenho instituída pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). O segundo é o Ogbon, que aparece na posição 431 do ranking e está instalado no Centro de Supercomputação do Senai Cimatec, em Salvador (BA). O equipamento, que tem capacidade de processamento de 1,6 petaflop, resulta de uma parceria entre o Cimatec e a Petrobras e tem aplicação direcionada para pesquisas em geofísica, geologia, engenharia de reservatórios e outros setores estratégicos de óleo e gás.
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COOPERAÇÃO EM NOME DA INOVAÇÃO Em um cenário de grandes transformações, as cooperativas agrícolas lançam iniciativas feitas sob medida para fomentar a digitalização dos associados e atender às necessidades de produtores que, muitas vezes, ficam à margem das mudanças tecnológicas Por André Sollitto
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Agro Digital
O
ano de 2020 mostrou a importância da inovação e da digitalização em todos os setores da economia, inclusive no agro. As tradicionais feiras migraram para as plataformas virtuais, os produtores passaram a recorrer mais aos marketplaces na internet para comprar insumos e startups viram a procura por suas soluções de gestão disparar. Todos estes temas estiveram presentes nas reportagens da PLANT. As cooperativas agrícolas também fizeram parte desse cenário de disrupção – termo que vem sendo bastante utilizado para se referir às transformações que acontecem diariamente. A inovação entrou no foco de suas ações, com a busca, na tecnologia, de novas soluções feitas sob medida para seus associados. Cooperar, assim, ganhou sua versão digital. Em fevereiro, Frísia, Castrolanda e Capal – três das mais importantes cooperativas agroindustriais do País – lançaram uma grande iniciativa de cooperação, a CoopMode, com o objetivo de fomentar a inovação. A estratégia foi construída a partir de três linhas de ação. A primeira será a cultura da inovação, com cursos de capacitação, palestras e outros conteúdos, que vai engajar lideranças e cooperados na necessidade da transformação digital. A segunda é o desenvolvimento de projetos conjuntos de inovação para resolver dores dos cooperados, como a falta de acesso à internet em algumas regiões. E a terceira será a conexão com ecossistemas de inovação. Isso será feito por meio de desafios de inovação aberta, editais e encontros. O objetivo é justamente fazer a ponte entre os produtores e cooperados e os hubs de inovação do agro, que vêm
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ganhando força nos últimos anos. Em Minas Gerais, a abordagem da Minasul, cooperativa de Varginha, foi diferente. Ela criou uma moeda virtual para seus cooperados. A Coffee Coin, que conta com o Dynamics, plataforma de gestão da Microsoft, permite que os produtores troquem parte de sua produção por produtos da loja da Minasul. Cada Coffee Coin equivale a um quilo de café verde no padrão comoditizado. Com isso, o valor está sempre atualizado. Por enquanto, a tecnologia está sendo aplicada em fase de testes e a quantidade de negociações feitas ainda é pequena. Mas o objetivo é popularizar a moeda digital e, no futuro, transformá-la em um criptoativo com lastro no próprio café produzido pelos cooperados. Com isso, abrem-se possibilidades de usar os recursos para vendas futuras ou transações com investidores. A Cooperativa Agro Industrial Holambra, do interior do estado de São Paulo, vai aproveitar o bom desempenho em 2020 para acelerar o planejamento estratégico com foco em inovação. No ano passado, a cooperativa bateu a marca de R$ 1 bilhão em vendas líquidas. Com 150 cooperados e 62 mil hectares de área explorada, a Holambra quer se tornar um player de destaque na produção de grãos. E essa consolidação acontecerá por meio da digitalização. "Queremos desenvolver novas capacidades que tragam benefícios aos nossos cooperados, aumentando a produtividade, em um sentido amplo, não apenas no campo, vantagem competitiva e gestão mais profissionalizada", afirma Allan de Aveiro dos Santos, superintendente de TI da cooperativa. Um PLANT PROJECT Nº24
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Agro Digital Cooperados da Coomafitt e o serviços de drones da Coopercitrus: democratização da tecnologia no campo
dos pilares que serão trabalhados é o acesso à informação. Para 2021, a cooperativa também quer definir um modelo para os serviços que serão prestados em agricultura digital. Associações de menor porte também têm adotado tecnologias capazes de facilitar a produção e acelerar a digitalização dos cooperados, reduzindo a distância deles em relação a produtores de maior porte. É o caso da Cooperativa Mista de Agricultores Familiares de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas (Coomafitt), no litoral norte do Rio Grande do Sul. Com apenas 273 associados, a entidade abastece escolas públicas, dentro do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). As chamadas públicas, no entanto, exigem a rastreabilidade das frutas. A Coomafitt adotou, então, uma plataforma digital de gestão desenvolvida pela startup Elysios. "Conseguimos reverter o que era uma exigência, uma lei a cumprir, em algo que agregou valor ao trabalho dos produtores", afirma Bruno Engel Justin, presidente da cooperativa. Por meio da gestão da propriedade, do controle de insumos, da colheita, do manejo e da adubação, os cooperados estão criando um histórico de cada produção. "Essas informações sobre a capacidade produtiva de cada associado facilitam também na comercialização", diz Bruno. Hoje, quase 100% dos associados da Coomafitt têm suas produções mapeadas. O desafio, agora, é 110
incentivar o uso da ferramenta de forma permanente. Nesse contexto, fica claro o papel que as cooperativas exercem em levar a tecnologia para produtores que, muitas vezes, ficam à margem das inovações, seja por falta de recursos para se atualizarem, seja por outras barreiras, como o
já velho problema da falta de conectividade. “Queremos cada vez mais criar essa cultura. Queremos que esse processo de inclusão tecnológica seja sempre inclusivo. É preciso cada vez mais criar essa cultura, entendendo as necessidades, a perspectiva de cada agricultor, e adaptando esse processo da maneira que for
possível", afirma Bruno. Engana-se, no entanto, quem acha que apenas os pequenos produtores recorrem às cooperativas nessa busca por digitalização. Em entrevista publicada na edição número 21 da PLANT, Fernando Degobbi, diretor-presidente da Coopercitrus, afirmou que mesmo grandes produtores estão vendo as vantagens de contar com as cooperativas. "Temos grandes cooperados que têm abandonado projetos próprios, que exigiam muito tempo e recursos próprios, para usar serviços de tecnologia agrícola da cooperativa", disse Degobbi. Uma das maiores cooperativas do País, com 38 mil cooperados, a Coopercitrus foi pioneira na criação de um departamento de tecnologia agrícola e no uso de drones para pulverização. No ano passado, em meio à pandemia, também levou sua tradicional feira para o ambiente digital, batendo recordes de audiência. CAMINHO LONGO Os investimentos em inovação, no entanto, ainda não são suficientes. Uma pesquisa feita pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e divulgada no final de fevereiro indica que 84% das 474 cooperativas entrevistadas veem a área de inovação como muito importante, mas 71% delas não têm um plano definido. Esses dados incluem 4% que definitivamente não vão investir
em inovação, 25% que não têm um planejamento específico e outros 42% que dependem da disponibilidade de recursos. A OCB tem 1.223 cooperativas e 992,1 mil cooperados, e o agronegócio é representado por 22% desse total. Os desafios apontados são a falta de dinheiro ou financiamento (40%), falta de organização, ideias e projetos (42%) e falta de capacitação da equipe (29%). Para tentar mudar esse cenário, a OCB lançou uma plataforma, Inova Coop, que compartilha cases de inovação no cooperativismo que deram resultados positivos e oferece cursos específicos sobre o tema. Já são cinco cursos disponíveis, e outros nove devem ser lançados ao longo de 2021. De todos os gargalos, um dos mais difíceis de resolver é justamente a falta de mão de obra especializada. Faltam profissionais capacitados para trabalhar com tecnologia em todos os setores. Faltam cursos de formação e capacitação com foco no uso de ferramentas modernas. E, à medida que a adoção de inteligência artificial (IA), machine learning e outras tecnologias de análise de dados avança, a competição acontece
com todos os outros setores, dos bancos e fintechs aos aplicativos de comida. Uma pesquisa sobre o setor de IA no Brasil feita pela consultoria Everis, em parceria com a Endeavor, mostra que a falta de talentos em áreas como ciência de dados e estatística é um problema grave – e sem solução fácil. Allan de Aveiro dos Santos, da Holambra, identifica ainda a necessidade de engajamento da liderança nessa busca por inovação, e a mudança de cultura da própria cooperativa. "Essa parece ser uma 'desculpa da moda' e todo mundo acaba colocando a culpa na cultura, o que não é certo. Mas a cultura é realmente um habilitador importantíssimo para a transformação digital", afirma Allan. E o papel da liderança é determinante em incentivar a própria cooperativa e seus cooperados da importância da inovação. De acordo com a pesquisa da OCB, 77% dos entrevistados responderam que a diretoria ou a presidência são os responsáveis pelas decisões em relação às estratégias inovadoras. Ou seja, se os líderes não apostarem na inovação, todos ficam para trás. PLANT PROJECT Nº24
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A GRANDE TENDÊNCIA É A EFICIÊNCIA ENERGÉTICA E AMBIENTAL P o r P l i ni o Na s ta ri O setor sucroenergético brasileiro se consolida como o mais dinâmico, sustentável e competitivo do mundo. Dinâmico pela flexibilidade industrial adquirida com a diversificação profunda entre o açúcar e o etanol, que permite que se adapte às contingências do mercado. Demonstração desse dinamismo foi a redução da produção de açúcar nas safras 2018/19 e 2019/20, e na direção oposta na safra 2020/21, em resposta à redução do consumo de combustível relacionada à pandemia do Covid e ao aumento da demanda por exportações de açúcar, em apenas um ano uma nova alteração no mix de produção de 11,7% na direção do açúcar na região Centro-Sul, e de 3,3% na região Norte-Nordeste. A sustentabilidade se dá na produção, na competitividade econômica e no uso principalmente dos seus produtos energéticos com elevado impacto positivo no meio ambiente e na saúde. A sustentabilidade na produção foi conquistada com a mecanização da colheita, um desafio superado a duras penas, com a requalificação da mão-de-obra, com os esforços para recuperar a expandir matas ciliares, com a redução do uso de água na
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transformação industrial, com a maior eficiência no uso de insumos, incluindo combustíveis, fertilizantes e produtos de proteção ao cultivo, e com o desenvolvimento de técnicas mais eficientes e modernas de multiplicação, com as mudas pré-brotadas e a Meiosi (método interrotacional ocorrendo simultaneamente) e o uso de drones para controle e recuperação de falhas de brotação. A competitividade foi atingida por décadas de esforços no desenvolvimento de variedades de cana mais produtivas, à conquista de áreas novas de produção superando o desafio de solos menos férteis, ao domínio da fermentação e dos controles automatizados na área industrial e também pela nova realidade de uma taxa de câmbio entre o Real e o dólar que reflete uma taxa de juros muito mais baixa, mais voltada ao estimulo a investimento, e que trouxe a valorização de vários produtos de exportação, incluindo o agronegócio como um todo, a extração mineral e a indústria. De agora em diante, a grande tendência do setor é determinada pelo RenovaBio, a nova regulamentação que trouxe ao setor a meritocracia e o reconhecimento aos esforços de aumento de
eficiência nas áreas energética e ambiental. O RenovaBio é um plano moderno e inteligente que coloca inovação e eficiência no setor de biocombustíveis no centro da estratégia brasileira de mitigação da emissão de gases do efeito estufa gerados pelo setor de energia para transporte, permitindo o atingimento de metas ambiciosas, como a substituição de 630 milhões de toneladas de CO2e em dez anos. Um plano construído com o apoio e acompanhamento da sociedade civil, através de inúmeras consultas públicas, e que foi aprovado democraticamente no Congresso Nacional por esmagadora maioria parlamentar. Num ambiente presidido pela competição saudável trazida pelo RenovaBio, as principais tendencias do setor estarão relacionadas à busca de maior eficiência energética e ambiental, com esforços voltados a novas e inovadoras rotas de diversificação, ao contínuo aprimoramento no uso de insumos, e aumento de produtividade agrícola e industrial. É nesta direção que devem crescer em importância a biodigestão de resíduos como a vinhaça, a torta e, potencialmente, o bagaço e a
Plinio Nastari é presidente da DATAGRO e do IBIO – Instituto Brasileiro de Bioenergia e Bioeconomia. Foi Representante da Sociedade Civil no CNPE, Conselho Nacional de Política Energética, no período de novembro de 2016 a agosto de 2020.
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palha para produção de biogás para geração elétrica e biometano para substituição do diesel no cultivo, irrigação, colheita e transporte da cana; o aproveitamento do bagaço e da palha para cogeração cada vez mais eficiente, e sua conversão em etanol celulósico; a pelletização de bagaço para viabilizar o seu transporte a longas distancias, incluindo a exportação; a produção de leveduras customizadas, para uso animal e humano; a simbiose crescente entre a cana e o milho, para a produção de etanol e coprodutos de alto valor proteico, como o DDGS (distillers dried grain and solubles); com o desenvolvimento da biodigestão, a possibilidade de aproveitamento de outros resíduos orgânicos, e a conversão de resíduos de outras industrias em energia, com a mitigação de custos e eventuais danos ambientais gerados pela sua disposição indiscriminada; e, o aproveitamento da enorme capacidade de geração controlada de dióxido de carbono nas dornas de fermentação, que poderá no futuro servir de insumo para uma verdadeira revolução verde na química fina. Esta macrotendência na direção de maior eficiência energético-ambiental vai reforçar as características de sustentabilidade, de dinamismo e de competitividade do setor sucroenergético brasileiro. Vai aumentar o seu já elevado impacto positivo
no meio ambiente e na saúde. O etanol que já é reconhecido por substituir 89% a 91% dos gases de efeito estufa emitidos pela gasolina, caminha na direção de substituir 100%, ou mais, das emissões geradas com a combustão da gasolina. Com o reconhecimento do carbono incorporado pela atividade microbiológica que se alimenta dos resíduos devolvidos ao solo, o etanol poderá ser considerado um genuíno sumidouro de carbono e desta forma, no conceito berço-ao-túmulo, compensar as emissões geradas com a produção de sistemas de geração e descarte de equipamentos relacionados à mobilidade, como os veículos e os sistemas de distribuição. Compreendido como produto de origem natural, o etanol poderá ser reconhecido como energia solar capturada, armazenada e distribuída de forma econômica, eficiente e segura, e que permite o uso da infraestrutura atual para distribuição de energia para transporte. Energia que gera emprego e fixa o homem no campo, e que capitaliza a agricultura para a produção de alimentos. Os exemplos de que isso ocorre são cada vez mais evidentes, na geração de renda relacionados à produção e transformação da cana e do milho transformados em etanol, e em breve de muitos outros produtos e excedentes de origem vegetal e resíduos orgânicos. Desta forma é que a eficiência
energética-ambiental vai dar sustentação à possibilidade de o etanol ser compreendido como energia solar de alta densidade energética envelopada na forma de um combustível líquido limpo e sustentável, que vai dar sustentabilidade e longevidade ao uso de combustíveis tradicionais como a gasolina e o gás natural fóssil. É a partir dessa grande tendencia de maior eficiência, que o etanol e outros biocombustíveis serão crescentemente competitivos e terão custos e, portanto, preços menores para os consumidores. Que será cada vez mais viabilizada a introdução de motorizações mais eficientes, com motores com maior taxa de compressão, equipados com turbo, e a crescente eletrificação com biocombustíveis, através de veículos híbridos e os equipados com células a combustível. É por essa macrotendência de eficiência crescente e reconhecimento da capacidade de descarbonizar, que o etanol poderá ser transformado em combustível de aviação para permitir a neutralização das emissões de gases de efeito estufa do setor de transporte aéreo. Portanto, muitos vetores de desenvolvimento ainda deverão trazer inovações e melhorias, mas todos eles presididos pela busca de eficiência energética-ambiental, definidos como elementos indissociáveis do setor de bioenergia e biocombustíveis em particular, a partir do marco do RenovaBio.
PLANT PROJECT Nº24
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