Revista Laboratório do Curso de Jornalismo Ano 9 | Número 14 - Junho de 2018
Os desafios e conquistas da Reforma Psiquiátrica
Desigualdade de gênero na produção literária
Ensaio funde moradores as suas casas nas ruas
Negros continuam vítimas do preconceito e da violência no Brasil Pág. 11
Torcedoras se organizam para ocupar espaços em estádios de futebol Pág 49
Mães se unem para acolher e aconselhar famílias com flhos LGBT Pág. 09
PONTO E VÍRGULA
Expediente FUMEC
Mulheres na Literatura
Pág. 05
Assédio
Pág. 14
Umbanda
Pág. 19
A luta pela delicadeza
Pág. 22
A poesia e a graça de ser mulher
Pág. 41
Redoma invisível do preconceito
Pág. 53
Um final quase bom
Pág. 58
Fundação Mineira de Educação e Cultura
Presidente do Conselho Executivo Prof. Air Rabelo Presidente do Cons. de Curadores: Prof. Antonio Carlos D. Murta
Reitoria da Universidade Fumec
Reitor: Prof. Fernando de Melo Nogueira Vice-reitor: Prof. Guilherme Guazzi Rodrigues
Faculdade de Ciências Humanas
Diretor-Geral: Prof. Antônio Marcos Nohmi Diretor de Ensino: Prof. João Batista de M. Filho Coordenador do Jornalismo: Prof. Ismar Madeira
Ponto e Vírgula
Editor: Prof. Aurelio José Silva Coordenação Proj. Gráfico: Prof. Aurelio José Silva Técnico e finalização gráfica: Luis Filipe P. B. Andrade Técnico e tratamento gráfico: Daniel Washington S. Martins Revisão de texto: Prof. Dr. Luiz Henrique Barbosa Logotipo: Rômulo Alisson dos Santos Monitoras: Catherina Dias Pollyana Gradisse Tiragem: 1.000
Conselho Editorial
Prof. Aurelio José Silva Profª. Dúnya Azevedo Profª. Vanessa Carvalho Prof. Dr. Luiz Henrique Barbosa Profª. Raquel Utsch
Ilustração da capa Inês Barracha
Foto: Maria Clara Castro
ENSAIO FOTOGRÁFICO Moradores de rua são retratados pelas lentes da fotógrafa Maria Clara Gonçalves, que funde um olhar sobre os indivíduos e suas habitações peculiares em Belo Horizonte Pág. 44
Editorial
DESIGUALDADES, GÊNEROS E COMUNICAÇÃO Por que precisamos falar disso? Por Aurelio Silva Os meios de comunicação deveriam ser atores-chave no processo de elaboração e sustentabilidade de novos pactos sociais para solucionar as inúmeras desigualdades sociais e de gênero que caracterizam nossa sociedade. Em vez disso, o que se percebe? Uma ausência gritante de enfoques transversais que abordem esses assuntos nas pautas centrais da cobertura noticiosa feita pela mídia. Uma clássica espiral do silêncio. Junta-se a isso o fato de vivermos num mundo do faz de conta, em que mentiras repetidas milhares de vezes ganham força, credibilidade e status de verdade. Ouve-se, quase como um mantra, que no Brasil não existe sexismo! Não existe racismo! Não existe desigualdade social! Que todos são iguais perante a lei! O processo é tão hipnótico que muitos acreditam ser essa a realidade. Só que não! Referenciando George Orwell, “todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Para romper com esse silêncio, o maior evento de comunicação do país – Intercom – elegeu justamente essa temática para seus encontros
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regionais e nacional deste ano. Um momento para a reflexão de educadores, profissionais e estudantes que pesquisam, pensam, trabalham, ensinam e vivem a comunicação no país. A hora e o lugar certos para um diálogo qualificado de uma temática relevante para a compreensão do nosso quadro social e para o equacionamento dos problemas que enfrentamos na contemporaneidade. Essa edição da Ponto e Vírgula faz eco à temática trazida pelo Intercom Sudeste que, este ano, aportou no mar de montanhas de Belo Horizonte e foi acolhido pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (Fumec), berço desta publicação. Sendo assim, não poderíamos desperdiçar essa oportunidade para reafirmarmos nossa linha editorial que prioriza justamente as pautas de gênero e desigualdade que, na maioria das vezes, são negligenciadas pela cobertura da mídia tradicional. Nesse número, a reportagem de capa aborda o assédio às jornalistas no seu ambiente de trabalho. Pesquisa da Abraji, “Mulheres na Mídia”, que mapeou a diversidade de gênero e condições de trabalho das mulheres nas redações brasileiras, expõe as
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frequentes ocorrências de abordagens inconvenientes e discriminação de gênero às profissionais mulheres por seus chefes, fontes de informação e colegas de redação. Outro destaque é a reportagem feita por Camilla Coelho Quirino sobre a luta antimanicomial. Sua imersão nesse universo trouxe à tona a luta, as conquistas e os desafios da Reforma Psiquiátrica. A narrativa integra o Trabalho de Conclusão de Curso defendido pela jornalista no último semestre de 2017. Você vai se surpreender também com o registro fotográfico feito por Maria Clara Castro. Usando a fusão e sobreposição de imagens, a fotógrafa reconstrói as identidades de moradores de rua em Belo Horizonte. Nas imagens, em preto e branco, fundem-se morador e moradia. O trabalho completo, também desenvolvido para o Curso Superior de Tecnologia em Fotografia da Universidade Fumec, ganhará uma exposição no hall de entrada da Biblioteca no prédio da FCH. Outros temas e debates também te aguardam nas próximas páginas. Desejamos a todos uma ótima leitura!
mulheres na literatura
- Reportagem
Foto: Catherina Dias
Clube de leitura, em Belo Horizonte, dá visibilidade a obras escritas por mulheres Por Bruna Lima Não é novidade que há desigualdade de gênero na sociedade e, que, nos últimos anos, devido a movimentos sociais, essa situação tem gerado reflexões sobre a discriminação feminina e ações para mudar esse contexto. Um exemplo que contribui para evitar as diferenças é o projeto Leia Mulheres.
Diagramador(a): Polyana Gradisse
Com o objetivo de aumentar a visibilidade e o reconhecimento da mulher na literatura, as brasileiras Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques criaram, em São Paulo, o Leia Mulheres em 2015, após a iniciativa da escritora britânica Joanna Walsh, que criou, no ano anterior, a hashtag #readwo-
men2014. Assim, surgiu o Leia Mulheres, clube literário que acontece em várias cidades do Brasil, onde leitores se encontram para discutir sobre algum livro escrito por uma mulher. Esse movimento se torna necessário quando percebemos que poucas mulheres tem participação no
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Reportagem - mulheres na literatura cenário literário como na Academia Brasileira de Letras que, somente depois de 80 anos de existência, em 1977, aceitou uma mulher como integrante, Raquel de Queiroz. Já a escritora J.K. Rowling, por exemplo, autora da saga famosa Harry Potter, precisou abreviar o próprio nome para que não soubessem que uma história de fantasia havia sido escrito por uma mulher e que, por isso, não teria lucros. Isso acontece devido ao preconceito da sociedade, que pressupõe que mulher só escreve livros do gênero Chick-Lit, romance que aborda questões femininas, conhecido popularmente como “literatura de mulherzinha”. “A literatura é um reflexo da sociedade machista. Mulheres são cobradas em diferentes níveis, mulheres têm menos tempo para escrever e são desencorajadas a publicarem seus trabalhos, ainda mais quando escrevem em nichos dominados por homens, como a ficção científica e o terror. Mas estamos contentes de ver essa situação mudando um pouco, com mais eventos que incluem mulheres em sua programação”, disse Michelle Henriques, organizadora dos eventos em São Paulo sobre a falta de visibilidade das mulheres na literatura. Porém, é ignorado o fato de que há obras de gêneros como policiais, reportagens, crônicas, entre outros que são escritos por mulheres. A saga Harry Potter é somente um de vários exemplos de que as mulheres podem escrever outros estilos, fazer sucesso e se tornar a série literária mais vendida da história. Em Belo Horizonte, Olivia Gutierrez, 31, e Mariana Queiroz Castro, 32, coordenam desde setembro de 2015 o Leia Mulheres na capital mineira. Durante o ano de 2015, Mariana leu somente livros escritos por mulheres, e depois dessa atitude, metade dos seus livros lidos ao longo do ano é de autoria feminina. “Eu já tinha me atinado para esta
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Fotos: André Campos
Encontro do Clube Literário Leia Mulheres, em Belo Horizonte
necessidade, de ampliar o número de livros escritos por mulheres, mas o projeto expandiu imensamente meus horizontes. Comecei a buscar
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e me informar muito mais sobre as publicações em geral, comecei, a saber um pouco mais sobre editoras e escritoras que publicam in-
Diagramador(a): Polyana Gradisse
mulheres na literatura dependentemente e percebi que o número de mulheres que publicam livros sobre os mais diversos assuntos é impressionantemente grande. Acho que ainda precisamos valorizar muito mais o trabalho feito por mulheres de uma forma geral, então sigo-me informando e aprendendo”, afirmou.
“A literatura é um reflexo da sociedade machista. Mulheres são cobradas em diferentes níveis, mulheres têm menos tempo para escrever e são desencorajadas a publicarem seus trabalhos...’’ Michelle Henriques De acordo com Olívia, a escolha do livro que será discutido no clube é feita sempre com dois meses de antecedência, para dar tempo de todo mundo encontrar e comprar ou pegar emprestado em bibliotecas ou amigos. “Achamos melhor ir aos encontros com o livro já lido, para poder participar mais”, conta. Olivia explica também que para decidir qual livro será debatido, ela e Mariana leem as autoras homenageadas ou convidadas em eventos importantes como a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) ou escolhem um tema e listam alguns livros que se encaixem na proposta, para que seja realizada uma votação. “Outras vezes, por motivos os mais
Diagramador(a): Polyana Gradisse
diversos, nós mesmas, mediadoras, escolhemos uma obra para ser lida”, completa. Apesar de os encontros não restringirem ninguém em poder participar dos debates, a maioria dos participantes são as mulheres. Geralmente os eventos contam com a presença de 25 ou até 50 leitores, dependendo do livro ou autora, porém poucos são homens. “[...] Acho que em um encontro nunca tivemos mais de cinco homens e mesmo assim isso é considerado um dia atípico [...] Gostaríamos que fossem mais pessoas trans e homens no clube. Achamos que discutir gênero passa por discutir também os lugares específicos da pessoa trans e defendemos também que é preciso pensar sobre a ideia de masculinidade. [...] O pré-requisito é estar disposto ao diálogo, o que significa um equilíbrio entre o ouvir e o falar”, disse Olívia. Luciana Cristina Campos, 35, Milca Alves da Silva, 26 e Jacqueline Maia dos Santos, 32, comparecem aos eventos do clube literário desde 2017. As três, antes de participarem dos encontros, liam poucas escritoras. “[...] As minhas listas agora têm pouquíssimos homens. Por pesquisar história da África e ser feminista, já tinha um projeto particular de ler escritoras negras. O Leia Mulheres veio agregar no sentido de eu ler autoras brancas que também são interessantes”, conta Jacqueline sobre como o clube literário trouxe mudanças para a vida. Milca Alves já participa também de outros clubes literários, mas nenhum tem o foco em discutir livros escritos por mulheres. “Isso é um diferencial do Leia Mulheres, pois além de lermos mais mulheres, também temos a oportunidade de estar em um ambiente com a maioria mulher conversando e discutindo histórias através de um ponto de vista feminino. Aquele é o nosso espaço de conversa, onde nos identificamos
- Reportagem
com as personagens e também umas com as outras através das experiências que compartilhamos. Já aprendi muito com as discussões geradas nos encontros e tenho certeza que a minha experiência de leitura não seria a mesma se não tivesse outras mulheres lendo junto comigo [...] No Leia Mulheres, nós somos protagonistas, e isso é importantíssimo para nos sentirmos mais fortes, aprendermos e nos divertirmos juntas”, conta a design de moda. Luciana Cristina ressalta a im-
“No Leia Mulheres, nós somos protagonistas, e isso é importantíssimo para nos sentirmos mais fortes, aprendermos e nos divertirmos juntas” Milca Alves portância de acontecer esse evento fora do meio acadêmico. “[...] A possibilidade de se discutir literatura, conversar sobre um livro em um ambiente fora do acadêmico, sem a pressão de ser ou se tornar um especialista, simplesmente apresentando sua visão é um exercício muito enriquecedor. Segundo porque a possibilidade de entrar em contato com obras que não conhecia, com estilos muito diferentes é muito boa, amplia a nossa visão de mundo, quebra estereótipos, redefine alguns conceitos e visões. E por último, repensa nossa formação literária clássica ao colocar uma questão ainda problemática: por que ainda lemos tão poucas obras feitas por mulheres?”, explica.
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Foto: Arquivo pessoal Maria Gabriella Silva
Reportagem - mulheres na literatura
Diferença entre livros escritos por homens e livros escritos por mulheres
“E por último, repensa nossa formação literária clássica ao colocar uma questão ainda problemática: por que ainda lemos tão poucas obras feitas por mulheres?” Luciana Cristina Já Maria Gabriella Silva, 20, ainda não teve a oportunidade de participar dos eventos do projeto Leia Mulheres, mas já estabeleceu uma meta para conseguir lê-las mais. “Eu sempre tento ler dez livros por ano. E neste ano, sete deles vou dedicar a leituras de obras escritas por mulheres.” A estudante de vestibular para Medicina percebeu que a maioria dos livros que lia era escri-
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tos por homens enquanto escrevia uma redação que tinha como tema “Literatura LGBT”. Maria Gabriella encontrou uma matéria que apresentava uma pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), que teve como objetivo descobrir o perfil dos escritores e dos personagens da literatura brasileira contemporânea. Os estudos concluíram que mais de 70% dos livros publicados pelas grandes editoras brasileiras entre 1965 a 2014 foram escrito por homens e que 93,9% são brancos. Depois de escrever a redação, Maria arrumou a sua estante para poder ver a diferença nitidamente e concluiu que possui mais livros de autores homens. “Eu percebi que os livros de mulheres que eu tenho são livros de séries. Então são continuações de uma história escrita por uma autora só, não é uma variedade de autoras. Isso me fez refletir bastante. Quando eu fiz a foto, eu quis me chocar e pensar
para quantas mulheres eu já dei espaço. E eu sendo mulher, eu faço parte desse grupo, estou inserida nesse meio e por que não dou tanta importância? Ler só livros escritos por homens faz com que eu fique em um universo só. Isso não quer dizer que eles têm livros ruins, pelo contrário, tem livros de ótima qualidade. Mas acho importante sair do mesmo ambiente, o mundo é muito vasto, diverso”, questiona a estudante. Os encontros do Leia Mulheres são gratuitos e em Belo Horizonte acontecem uma vez por mês, nas quartas-feiras às 19h30min, no Sesc Palladium. Para participar é divulgada na página do Facebook do projeto uma lista de inscrição para a organização, mas se você estiver passando pelo local e quiser entrar, também é possível. São com atitudes como essas que, aos poucos, a conscientização sobre as questões de gênero são compartilhadas para a sociedade
DICA DE LIVRO: A guerra não tem rosto de mulher A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista masculino: soldados e generais, algozes e libertadores. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma injustiça. Se em muitos conflitos as mulheres ficaram na retaguarda, em outros estiveram na linha de frente. É esse capítulo de bravura feminina que Svetlana Aleksiévitch reconstrói neste livro absolutamente apaixonante e forte. Quase um milhão de mulheres lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas a sua história nunca foi contada. Svetlana Alexiévitch deixa que as vozes dessas mulheres ressoem de forma angustiante e arrebatadora, em memórias que evocam frio, fome, violência sexual e a sombra onipresente da morte.
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Descrição pela editora Companhia de Letras
Diagramador(a): Polyana Gradisse
mães pela diversidade
- reportagem
Foto: Juliana Corrêa
Grupo apoia e troca experiências entre famílias que possuem filhos LGBTs Por Juliana Corrêa Idealizado recentemente por Maju Giorgi, em São Paulo, o grupo “Mães pela Diversidade” é um movimento que tem como principal objetivo acolher e aconselhar famílias que possuem filhos LGBT no intuito de colaborar para a aceitação desses filhos dentro de suas famílias e na sociedade, no combate ao preconceito e à intolerância. A sigla LGBT refere-se ao movimento que representa lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Tornou-se popular nos anos 90 e tem o propósito de promo-
Diagramação: Pietra Pessoa
ver a diversidade das culturas que envolvem identidade sexual e de gênero e também de combater a homofobia. Apesar da luta por direitos civis e de muitas conquistas já adquiridas pela comunidade, infelizmente, ainda há muito preconceito. O Brasil, no ano de 2017, registrou recordes de agressões contra pessoas LGBT, mostrando-se um país conservador. Boa parte deste preconceito parte da própria família. Por isso, muitos grupos de apoio surgiram para ajudar mães e filhos a ultrapassarem esta barreira.
Em Belo Horizonte, o grupo começou a se reunir em 2017 e os encontros acontecem no Centro de Referência da Juventude (CRJ), toda segunda, das 18 horas às 19:30. A equipe de reportagem foi até o local para acompanhar uma reunião e conversar com as famílias presentes. A coordenadora Myriam Salum (61) afirma que à medida que as mães vão sendo acolhidas, elas vão “saindo do armário”. “Para a família, a questão da transição é a ‘morte’ de uma pessoa e o ‘nascimento’ de uma nova, pois algumas memórias são
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reportagem - mães pela diversidade
Foto: Juliana Corrêa Myriam Salum, coordenadora do grupo em Belo Horizonte
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Depoimentos: Mãe de dois filhos homossexuais, Vera Maria Leroy (56) conta que entrou no grupo a convite de Myriam, pois seus filhos são amigos. Ela afirma que o ponto principal é que eles tenham apoio na família, pois é para quem eles sempre vão buscar ajuda, mesmo que seja de uma única pessoa. “Eu vi que podia contribuir de alguma forma. É o que eu falo: mexeu com uma mãe, mexeu com todas. Quando você tem um filho de uma mãe agredido, você sofre como se o filho fosse seu, você sente, fica de luto. A questão é que nós mães estamos sofrendo. Cada vez mais há intolerância, um ódio coletivo. Mas, cada dia que temos uma notícia, nós ficamos mais solidárias”, declara. Além de Vera Leroy e Myriam Salum, o grupo possui mães em outras situações, como a de Nadir Peixoto (60), que tem um filho transexual. “Minha filha estudava em uma escola de freiras e todas comentavam que ela tinha modos masculinos. Um dia ela chegou e deu seu ‘grito’. Disse que não era menina. Isso me chocou muito, pois nunca tinha visto algo parecido”, relembra. Depois de muitos acontecimentos dentro de casa, Nadir Peixoto procurou ajuda, e foi através de seu próprio filho que conheceu o “Mães pela diversidade”. Ela também levou seu marido, Carlos da Costa (63), que expõe seu olhar sobre esta situação: “Eu achei que deveria participar, acho que o homem também tem uma contribuição muito grande nesse processo. Eu vejo com naturalidade essas cidações porque o mundo está passando, pois é um desafio para nós humanos. Eu sempre gostei de desafios. Precisamos enfrentá-los, pois isso renova a nossa vida, nosso corpo e nosso espírito. Não podemos fugir da luta que vem para nós. O que eu puder contribuir como pessoa e como cidadão estarei pron-
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Foto: Juliana Corrêa
perdidas. É um parto que você tem que fazer, só que diferente. É um parto de alma, não é físico. É espiritual, emocional”, conta. Através das redes sociais, as mães integrantes de todo o país discutem o assunto, promovem ações (manifestações, reuniões, etc), divulgam a ideia e lutam pelo respeito para com seus filhos na sociedade. Além disso, o grupo conta também com uma rede de psicólogos que são indicados quando necessário. Segundo a coordenadora, o Brasil é o país com o maior número de mortes de pessoas LGBT no mundo, e Minas Gerais é o terceiro Estado com mais casos. Felizmente, o movimento tem crescido e mais famílias aderiram à causa e formaram fortes grupos também no interior, como em Muriaé e Juiz de Fora. “Temos que entender que eles são um recorte da humanidade. Assim como o negro, assim como o indiano. São recortes. Eu acredito que as minorias vêm para ensinar. Eles têm que ter um lugar de respeito no mundo”, afirma Myriam Salum.
Vera Maria Leroy, mãe de um menino LGBT
to para isso”, afirma o pai integrante do grupo. Mesmo com diferentes histórias, todas as famílias presentes têm medos em comum: a reação da própria sociedade, não saber o que pode acontecer, possíveis violências, entre outros. Elas contam que a preocupação é muito maior e que mantêm mais contato com os filhos para saber se está tudo bem e se serão felizes dessa forma. Apesar de todas as dificuldades e receios, a assistente social Patrícia Coacci (60) afirma: “Amo meu filho e quero lutar pelos direitos dele, porque além de mãe eu sou cidadã. Minha luta é uma luta de cidadania”
“Tire seu preconceito do caminho que nós estamos passando com o nosso amor” Lema do “Mães pela Diverdade
- reportagem Foto: Camila Biondi
a cor do preconceito
A estudante de psicologia Joice Natali foi adotada por uma família branca e disse que sofre preconceito velado
A COR DO PRECONCEITO Muitos negam, mas o preconceito existe e prejudica muito a vida dos negros no Brasil Por Catherina Dias Diagramação: Laura França Nogueira
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O país tropical mantém-se preso ao pensamento quase surrealista de que está livre das amarras do preconceito. Uma pesquisa realizada no primeiro semestre de 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Atlas da Violência 2017, demonstra que o índice de chance de negros brasileiros serem assassinados em relação a outras raças é 23,5%. No segundo semestre de 2016, o senador Lindbergh Farias apresentou à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado um relatório investigativo sobre Assassinatos de Jovens no Brasil. Os dados presentes neste relatório são alarmantes e apresentam padrões particulares: 53% das vítimas são jovens, 77% são negros e 93% são do sexo masculino – sendo o homicídio doloso (quando há intenção de matar) a principal causa de morte entre os jovens. “Sou negro e sempre tive que me esforçar mais que os outros para alcançar meus objetivos. Hoje, trabalho como frentista durante o dia para poder cursar administração à noite, e sei que as oportunidades que surgem para os brancos dificilmente surgem para mim. São dois universos diferentes”, afirma o estudante de Administração Jonatha Sena, de 27 anos. Para o jovem, quando se trata de um branco e um negro disputando uma vaga de emprego, o empregador terá preferência pelo branco. Segundo ele, é difícil de entender o racismo em um país como o Brasil, que é repleto de diversidade. Sena afirma que o racismo é escancarado quando se trata de uma abordagem por policiais. “Na rua, à noite, entre um preto e um branco, quem “toma geral” é um negro, porque, de alguma forma, a sociedade permite isso”, alega. A estudante de psicologia Joice Natali, de 21 anos, foi adotada por
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Foto: Jeeh Delfino
reportagem - a cor do preconceito
Jonatha Sena diz ter que se esforçar mais para alcançar o que deseja
uma família branca, de classe média e descendente de italianos. Ela diz ter sofrido principalmente o racismo velado. “Um dia, uma colega de sala me disse que aquele não era meu lugar. Eu estudava em uma escola particular e ela disse que “pessoas como eu” não poderiam frequentar locais como aquele”, conta. Natali ainda relata que, hoje, tem um olhar mais atento aos ambientes já que há uma segregação camuflada. “Se nós não damos oportunidades para que “pes-
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soas como eu” ocupem espaços como a Universidade Fumec, por exemplo, estamos segregando. Não venham me falar que somos todos iguais. Para quem tem que correr atrás de quase 400 anos de prejuízo, o papo de igualdade é falácia”, afirma a estudante. Quando questionada sobre os índices de violência, Natali se diz indignada, com dor e aflição. “Como na música “Tática inimiga, bota a bala pra comer e menos um nigga”, não importa se é inocente, estamos
a cor do preconceito vivendo em um corpo social em que o suspeito vem com uma tabela de cores”, completa. O Brasil enfrenta o seu maior problema social: o racismo. Esta é uma sequela do regime escravista que perdurou por três séculos e resultou em uma sociedade preconceituosa e em um processo de desigualdade racial que edifica e filtra as oportunidades de modo a favorecer apenas determinado grupo racial. O negro encontra dificuldades para trabalhar, para se desenvolver socialmente e economicamente por não conseguir espaço e por não ter voz dentro da sociedade. Ainda que velado e pouco debatido, o preconceito é perceptível ao analisar o campo profissional. A grande ausência de indivíduos negros em cargos hierarquicamente superiores é notável. Em geral, o racismo atua nas relações sociais, segmentando pessoas entre raças. Para Wegton Vidal, de 28 anos, historiador, sociólogo e pós graduado em Cultura Afro, o preconceito está enraizado profundamente
"Todo Camburão tem um pouco de navio negreiro. Todo quartinho de empregada tem um pouco de senzala" O Rappa na sociedade. “O genocídio negro que está acontecendo no Brasil e no mundo é um reflexo das políticas públicas inexistentes ou ineficazes. Um povo formado sistematicamente por negros coloca os mesmos à margem de uma sociedade negra e indígena. Se estudarmos a antropologia, percebemos que a nossa linhagem é única, não existe ‘uma raça pura’”, diz. Segundo ele, nem os franceses, americanos, europeus tem uma linhagem ‘pura’. “Isso é um preconceito que coloca um indivíduo de cor mais clara como superior a um
- reportagem
de cor mais escura. Libertaram os negros, mas os mesmos ainda vivem à margem. A maior parte vivem nas periferias, muitos trabalham no subemprego ou no setor informal. A estes indivíduos são vedadas inúmeras oportunidades de mobilidade social”, completa. Vidal explica que o preconceito, a intolerância e o genocídio diário fazem parte da não aceitação das diferenças e a falta de respeito ao próximo, valores que, segundo, ele não compactuam com a sociedade atual. O acúmulo de problemas educacionais, de saúde, e segurança pública geram dados alarmantes. Vivemos em uma sociedade desigual e racista, na qual a população que vive marginalizada não tem oportunidades de ascensão. A probabilidade do jovem ser levado à criminalidade, por sua vez, se torna cada vez maior. A violência aumenta e quem paga o preço são os negros. Em pleno século XXI, é necessário discutir e questionar a herança de uma sociedade racista que deixa vestígios e flagelos em todos os âmbitos até os dias de hoje
“Acho que não gostaria de ser tratada como um cidadão negro é tratado. Em relação ao preconceito no país, sim, eu acho que melhorou muito. Eu não tenho preconceito” Vanessa Nunes, 19
“Ah, eu acho que não iria gostar de ser tratado como como o negro é tratado. Sim, o nosso país é preconceituoso. Não é preconceito, eu tenho uma visão diferente formada na minha cabeça a respeito de algumas coisas... não sei se é bem preconceito” Pedro Almeida, 21
“Não gostaria e acho que o nosso país é preconceituoso. Eu não tenho preconceito, aliás a gente não tem preconceito até estar de frente com algo que seja diferente” Andreia Rodrigues, 25
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reportagem - assédio às jornalistas Ilustração: Inês Barracha
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Diagramador(a): Catherina Dias e Pollyana Gradisse
assédio às jornalistas
- reportagem
Comparações, insinuações e discriminações estão em pauta nas redações e nas rotinas de trabalho das jornalistas Por Catherina Dias e Pollyana Gradisse Aprende-se, entre os princípios da profissão, que jornalistas não podem ser a notícia e, sim, o porta-voz dela. Esse princípio do jornalismo tem como objetivo conter os egos dos comunicadores e lembrá-los de que não são mais importantes que a própria notícia que publicam. Mas, em determinadas situações, essa regra perde o sentido. Principalmente quando jornalistas deixam de ser mensageiros da informação para se tornarem vítimas de violências, como as que podem atingir todas as mulheres em quaisquer profissões: o assédio e a discriminação. Isso é o que revela a pesquisa inédita feita
pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e do grupo Gênero e Número, com o apoio do Google News Lab. As mulheres jornalistas, ainda em minoria nas redações do Brasil, são constantemente assediadas, sofrem pressões e opressões em um ambiente profissional com maioria machista e, muitas vezes, racista. Realizado no segundo semestre de 2017, o estudo obteve um total de 531 respostas de mulheres jornalistas, sendo válidas 477, tendo como base 271 diversificados veículos midiáticos. Entre os casos denunciados, a maioria das jorna-
Diagramador(a): Catherina Dias e Pollyana Gradisse
listas afirmou ter escutado piadas machistas ou de natureza sexual, discriminação de gênero, e muitas apontaram negligência das empresas jornalísticas em relação a canais de denúncia. Mas o problema do assédio não fica restrito a empregado e empregador. Ele se estende a situações cotidianas na busca por informações e abordagens diretas do entrevistado e outras fontes de notícia. Mais da metade (59%) das jornalistas que participaram da pesquisa afirmam ter presenciado ou tomado conhecimento sobre colega assediada por uma fonte ou entrevistado.
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reportagem - assédio às jornalistas
mulheres que atuam em 271 mídias diferentes
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*Dados retirados da pesquisa Mulheres no Jornalismo Brasileiro
Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Brasília participaram da fase qualitativa, em grupos focais e estratégicos, envolvendo 42 jornalistas, com cinco eixos temáticos: satisfação pessoal no trabalho; percepção de atitudes sexistas e formas de assédio no trabalho; chances e oportunidades ofertadas às jornalistas; percepção do impacto de gênero no desempenho profissional; e cobertura midiática sobre o tema. Os resultados sobre o estudo foram surpreendentes, 67% das jornalistas afirmaram que já tiveram sua competência ou das colegas de trabalho questionada ou colocada em foco
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por outros companheiros de profissão ou superiores apenas por serem mulheres; 83,6% contaram já ter sofrido algum tipo de constrangimento psicológico nas redações; 73% disseram já ter escutado comentários maliciosos ou chacotas sobre mulheres no ambiente profissional; e 92,3% afirmaram ter ouvido indiretas machistas no local de trabalho. A jornalista e presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, Alessandra Cézar Mello, repórter há 20 anos, afirma que, ao longo da sua carreira, já foi muito assediada. Na época, não tinha consciência do que era assédio, achava que fazia
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parte da rotina, e que ela precisava ter “jogo de cintura” para saber lidar com a situação. “O assédio por colegas e superiores é uma realidade dentro das próprias redações. A gente vem avançando no sentido de combater esse tipo de violência, mas ainda temos um caminho muito longo pela frente”, afirma Alessandra. Joana Suarez, jornalista e feminista, pontua que a desigualdade, no geral, deve-se ao machismo e à cultura de uma sociedade patriarcal. Ela afirma que, no jornalismo em Belo Horizonte, não há tanta desigualdade, pelo menos em jornais impressos em que atuou, em relação a
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assédio às jornalistas cargos e salários. “Tem mulheres em cargos de chefia. Quando trabalhei no jornal O Tempo, a secretária de redação, a chefe de reportagem e a diretora de redação eram mulheres e, na maioria dos cadernos, as editoras eram mulheres. Mas ainda existe um machismo óbvio nas relações. Não necessariamente de trabalho, mas enquanto homens e mulheres. É visível e é bem claro.” Entre situações vexatórias, o assédio parte também das fontes que insistem em fazer propostas indecentes e constrangedoras às jornalistas, ultrapassando a linha do profissional para o íntimo. Alessandra Mello relembra um desses momentos em que ficou numa situação desconfortável. “Uma vez, teve um político que virou para mim e falou assim: ‘Alessandra, você está sumida’. Então, virei e falei com ele assim: ‘Eu tô só na cozinha’. Ele falou: ‘Uai, achei que o lugar
da mulher era na cama’. Uma coisa constrangedora, horrorosa, desnecessária. Mas já ganhei presente de político, já ganhei convite pra sair, já recebi telefonemas, já fui muito assediada!” Joana Suarez diz que não há necessidade de ter intimidade com a fonte além do profissional e conta sobre situações que precisou enfrentar. “Houve fontes que eram de confiança, que me passavam várias informações – homens, promotores, chefe – e que nunca me assediaram. Ao mesmo tempo, se houvesse alguma investida, cortava, preferia ficar sem a fonte. Cortava o que vinha com muita conversa de “Ah, a gente precisa marcar uma cerveja”. Não… eu não quero ser sua amiga!” O medo das mulheres de rebater os comentários machistas é concreto devido à proximidade e convívio com os assediadores. Mesmo dentro
- reportagem
das redações, os colegas de trabalho do sexo masculino se acham no direito de se referir às mulheres com piadinhas sexistas, cantadas e supostos elogios. “São extremamente machistas e chegam a ser nojentos”, afirma Joana, que diz ter presenciado várias situações constrangedoras. Para ela, entre as chefes, muitas vezes, há também esse machismo. “Eu sentia isso nas próprias mulheres em cargos de chefia, de não se unirem e lutarem pelos seus direitos. Muitas vezes, isso era só no discurso, mas não na prática.” As jornalistas entrevistadas concordam que as mulheres, em geral, não têm conhecimento sobre o que, na verdade, é o assédio. Só agora, elas estão se descobrindo como feministas – e tal consciência faz com que as mulheres passem a barrar este tipo de abordagem e não confundi-la mais com “gentileza”.
substantivo masculino 1. doutrina que preconiza o aprimoramento e a ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade. 2. p.met. movimento que milita neste sentido. 3. p.ext. teoria que sustenta a igualdade política, social e econômica de ambos os sexos. 4. p.met. atividade organizada em favor dos direitos e interesses das mulheres. 5. interesse do homem pela mulher; atração. 6. med p.us. presença de caracteres femininos no homem. Origem ETIM fr. féminisme ‘doutrina que visa à extensão dos papéis femininos’
Diagramador(a): Catherina Dias e Pollyana Gradisse
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Ilustração: Inês Barracha
reportagem - assédio às jornalistas
“Não…eu não quero ser sua amiga!” Joana Suarez
Campanha No início de 2018, jornalistas da mídia esportiva lançam a campanha #DeixaElaTrabalhar, uma nova abordagem das mulheres contra o machismo enraizado na profissão. A campanha surgiu após a jornalista Bruna Dealtry, do canal Esporte Interativo, ser beijada à força durante uma transmissão ao vivo de uma partida de futebol no Rio de Janeiro. Constrangida, a repórter comentou que a atitude “não foi legal” e seguiu com a transmissão. Outro caso de assédio ocorreu em Porto Alegre. Um torcedor do Internacional insultou e agrediu fisicamente a repórter Renata Medeiros, da Rádio Gaúcha, que fazia a cobertura
da partida. “Sai daqui, sua puta”, disse o torcedor à jornalista. Um grupo de cerca de 50 jornalistas mulheres de todo o país lançou um vídeo com alguns dos relatos sobre os abusos sofridos. Comentários violentos e ameaças de estupro de torcedores nos estádios e redes sociais estão entre as agressões. Os resultados obtidos pela pesquisa da Abraji revelam que há muito o que se pensar e repensar em relação às mulheres e seu espaço, um longo caminho a se percorrer para uma mudança significativa. Para que a igualdade de gênero se consolide no jornalismo, alguns pontos são relevantes para acelerar esse processo
de transição para uma nova etapa, que resulte em justiça e respeito às repórteres, editoras, chefes de redação e todas as mulheres da imprensa brasileira. A consulta às profissionais traz também algumas recomendações simples que podem acelerar a transição para um estado de justiça para todas as trabalhadoras da imprensa no Brasil: que as redações encarem como pautas relevantes todas as investidas inapropriadas de fontes sobre as jornalistas mulheres, que estampem o assédio às trabalhadoras e que dediquem espaço para reportagens sobre diversidade de gênero
Alessandra Cézar Mello
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Revista Ponto & Vírgula — Junho de 2018
Ilustração: Inês Barracha
“‘Uai, achei que o lugar da mulher era na cama’, disse a fonte”
Diagramador(a): Catherina Dias e Pollyana Gradisse
Umbanda
- Religião
O altar ou congá, como é conhecido na religião, carrega imagens de santos católicos e simbolizam o sincretismo religioso
Macumba, feitiçaria, magia negra. Seja qual for a interpretação ou reação, o preconceito pelo desconhecido é o que causa desrespeito religioso Por Marcela Duarte Revista Ponto & Vírgula — Junho de 2018
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Religião - Umbanda Intolerância religiosa é a palavra que descreve a falta de vontade de alguém em reconhecer e respeitar diferenças ou crenças religiosas de terceiros. Que o assunto é polêmico, todo mundo sabe. O que a maioria não sabe é como respeitar o espaço do outro independentemente de sua própria crença. Ao pré-julgar alguma delas, você sabe realmente como ela funciona ou no que ela acredita? A Umbanda, por exemplo, é pouco conhecida verdadeiramente pelos brasileiros. Dados da última pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o assunto mostram que menos de 1% da população é adepta à religião. A religião é afro-brasileira e ficou popularmente conhecida no ano de 1908, no sudeste do Brasil. Em 2012, foi sancionada a Lei 12.644 que decreta o Dia Nacional da Umbanda, a ser comemorado anualmente em 15 de novembro. Alguns dos principais conceitos da religião são a mediunidade, a reencarnação, a manifestação de espíritos, dentre outros. Por isso, é comumente associada à macumba (magia negra) ou coisa ruim. Maria Nilce Lopes Cardoso, de 64 anos, é mãe de santo e regente de um terreiro de Umbanda no bairro Pirajá, na região Nordeste de Belo Horizonte. Ela conta que frequentemente lida com o preconceito, mas que ainda tem esperança que um dia isso vai acabar. “Pode acabar sim, mostrando ao mundo que a umbanda é de paz, amor, carinho e bons conselhos para a vida. O povo tem que nos respeitar como eles respeitam as igrejas, por que Deus é um só e cada um tem a sua fé”, desabafa. E ainda há esperança, toda regra tem a sua exceção. Daniela de Souza, estudante de 22 anos, é evangélica e conta que não frequenta e não sente vontade de conhecer, mas nem por isso critica a religião. “Creio eu
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que meu espaço começa quando o do outro termina; por isso, o que deve haver sempre é o respeito. Independentemente de crença, religião ou o que for, ninguém deve julgar ou ser preconceituoso com a opção do outro. Já tive convívio com pessoas que são espíritas, mas nem por isso as descriminei. O importante é acreditarmos que existe sim uma força maior capaz de unir todos através do amor”, relata. A mãe de santo Maria Nilce, explica como, há 40 anos, descobriu que espalhar o amor e a caridade através da Umbanda era a sua missão. “Comecei com uma dor de cabeça noite e dia sem parar, aí fui em uma benzedeira e ela falou que eu era médium. Depois de um certo tempo frequentando a casa dela, ela falou que eu estava pronta para abrir o meu terreiro”, conta. Como ainda não tinha condições, Nilce, como prefere ser chamada, começou a atender em sua própria casa. “Atendi por 20 anos em casa e de graça, sem cobrar nada”, explica. Em janeiro de 2008, a espera chegou ao fim e Mãe Nilce conseguiu ir até a Federação Espírita Umbandista do Estado de Minas Gerais e re-
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gistrar a sua própria casa espírita, o Templo Umbandista Pai Joaquim de Aruanda. Nela, são realizadas duas reuniões por semana, sendo uma na quinta-feira e uma no sábado. A sessão começa com a reza do Pai Nosso, tradicionalmente conhecida no catolicismo e, em seguida, se dá o início dos cantos para as entidades do dia. Para quem não sabe, entidade espiritual é um espírito evoluído que tem permissão para se comunicar com os seres humanos através do corpo do médium, aconselhando, curando ou benzendo quem procura ajuda. Nilce explica que, em geral, as pessoas vão em busca de amparo nos mais variados temas: estresse, desemprego, doença, cargas negativas e benção. Quando perguntada sobre o que mais gosta de ver em sua casa, ela afirma: “Gosto de cantar músicas novas para as entidades, de cuidar e doutrinar os meus filhos do terreiro”, declara. E assim é a Umbanda: amor, caridade e a humildade. É a prática do bem, sem olhar a quem. As entidades oram e vigiam por seus filhos e esses sabem que nunca estarão sozinhos
Umbanda
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Foto: Marcela Duarte
A mãe de santo Maria Nilce em uma de suas sessões no seu terreiro de Umbanda, Templo Pai Joaquim de Aruanda
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AS CONQUISTAS E OS DESAFIOS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Por Camilla Quirino
Foto: Maria Clara Castro
Saúde Mental
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As mortes eram causadas por, entre outras razões, ausência de tratamento médico ou formas de tratamento indevidas e, muitas vezes, desumanas, como o eletrochoque. Alguns pacientes morriam por doenças decorrentes do frio intenso característico da cidade, ou então sufocados uns pelos outros quando, na tentativa de se aquecerem, ficavam aglomerados e muitos morriam sem ar. Quando não eram despejados em um lugar qualquer, os corpos eram vendidos para as faculdades de medicina. No Museu da Loucura, é possível conhecer um pouco mais sobre o que ocorreu na cidade, a maneira como as pessoas eram tratadas e tudo era jogado para debaixo dos panos, para que a sociedade não tomasse conhecimento das atrocidades que ocorriam ali, como a venda ilegal de cadáveres. Durante a visita ao museu, em Barbacena, em diversos momentos, eu senti agonia, medo. As coisas expostas causaram em mim enorme desconforto. E tudo aquilo fazia parte da história de milhares de brasileiros. O museu de dois andares é um ambiente escuro e um pouco perturbador. Objetos e fotos da época ilustram a história contada pelas placas explicativas. Ao subir as escadas, se olharmos para cima, veremos uma grade com uma pessoa visivelmente transtornada, como se estivesse presa, representando perfeitamente como os indivíduos eram tratados naquele hospital que mais parecia um depósito de pessoas que, por alguma razão, não agradavam os olhares da sociedade. Uma porta preta guarda o local mais perturbador do museu. Ao entrar na pequena sala dei de cara com a radiografia de um crânio. Naquele momento tudo ficou claro, ali se explicava como era realizada a lobotomia, processo em que há o corte das ligações dos lobos frontais com
o resto do cérebro, com o objetivo de estabilizar emoções. Enquanto lia os quadros informativos, o barulho de um coração batendo, um dos efeitos especiais da sala, ecoava em minha cabeça. Em alguns momentos era baixo, em outros, alto e acelerado. Meu coração entrou no mesmo ritmo e saí da sala, cansada, com o coração acelerado e completamente atordoada. Tudo me fazia pensar que aquela história não poderia ser real. Como alguém seria capaz de torturar um ser humano? É uma pergunta ainda sem resposta, pois nada justifica o que foi feito naquele passado sombrio. A sociedade está em dívida com aquelas pessoas, em especial, com os portadores de sofrimento mental. E, há algum tempo, por meio da Reforma Psiquiátrica, essa dívida, que é eterna, começou a ser paga. A Reforma Psiquiátrica iniciou-se no Brasil entre os anos 1978 e 1980 e nasceu dentro do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). A proposta veio carregada de ideais que defendiam melhorias nas condições de trabalho dos profissionais da área, Foto: Camilla Quirino
ecordo-me de que, no começo do ano de 2017, fui presenteada pelo meu pai com dois livros que contavam uma história que até então desconhecia. Fui tomada por uma onda de curiosidade que me fez terminar a leitura em apenas alguns dias. O Holocausto Brasileiro, da jornalista e escritora Daniela Arbex, de 2013, e Nos Porões da Loucura, do também jornalista Hiram Firmino, de 1982, narram a história que marcou para sempre Barbacena como a cidade dos loucos. Quando alguém fala alguma coisa que parece insanidade, ou algo que não tenha sentido, temos o costume de perguntar: “Você está louco?”. Na cidade do interior de onde eu vim, Mariana, além dessa típica frase, nós também falávamos: “Vou te mandar para Barbacena!”, em tom de brincadeira. Eu nunca entendi o motivo daquilo, mas reproduzia a fala como se soubesse a explicação. E foi por meio da leitura dos dois livros que, finalmente, compreendi o que as pessoas estavam querendo dizer com aquela frase. Barbacena possuía o maior manicômio do Brasil, o Hospital Colônia de Barbacena, que funcionou de 1950 até a década de 1980, e foi o cenário de 60 mil mortes. A partir da leitura de documentos sobre a época de funcionamento do hospital, inclusive do livro Holocausto Brasileiro, fica claro que muitas pessoas internadas no Colônia não apresentavam nenhum quadro de loucura. O hospital destinado à reabilitação psiquiátrica tornou-se um grande depósito de indivíduos que estavam à margem do contexto social da época, como, por exemplo, prostitutas, mães solteiras, negros, homossexuais, mulheres que traíam seus maridos, algumas vezes, maridos que queriam se ver livres de suas esposas, e pacientes com deficiências físicas ou mentais.
- Reportagem
Museu da Loucura: raio-x da Lobotmia
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Reportagem - Saúde Mental Foto: Camilla Quirino Intrumentos utilizados no procedimento cirúrgico que corta as ligações dos lobos frontais com o resto do cérebro
com a regularização da situação trabalhista, aumento de salário e diminuição do número excessivo de consultas realizadas por turno de trabalho. Além disso, os profissionais criticavam as condições de assistência à população, como o uso dos eletrochoques, e prezavam pela humanização do serviço. O MTSM tem um ponto curioso que deve ser destacado: a resistência à institucionalização. Essa decisão foi tomada de forma proposital, para evitar que a medida trouxesse a perda de autonomia do movimento dos trabalhadores. Na segunda metade dos anos 1980, a escolha fez todo sentido, com a “desinstitucionalização” tornando-se conceito-chave no processo de transformação da psiquiatria, e a adoção do lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Outra novidade foi a criação das associações de usuários e familiares que lutaram pela melhoria das práticas e cuidados com os portadores de sofrimento mental, além da transformação do modelo asilar vigente à época.
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Toda essa luta teve como inspiração o modelo italiano defendido pelo médico Franco Baságlia. Em 1979, Baságlia participou do III Congresso Mineiro de Psiquiatria e realizou uma série de seminários em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro que trouxeram à tona discussões sobre a desinstitucionalização do portador de sofrimento mental. Defensor do convívio social como forma de tratamento, o médico divulgou a desmontagem do aparato hospitalar público na Itália, medida que visava o resgate da cidadania do portador de sofrimento mental, ao extinguir a internação compulsória e os manicômios. O fim dos manicômios simboliza a eliminação de todas as práticas de discriminação e segregação, como também a humanização do tratamento dos indivíduos que possuem transtorno mental. Em 1989, a Reforma Psiquiátrica conquistou a implantação de um sistema substitutivo do modelo manicomial. Foram criados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPs), cooperativas, associações,
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instituições residenciais e Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) que já existiam desde 1987, em São Paulo. Além disso, em 1989, foi apresentado o projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado, que regulamentou os direitos das pessoas em sofrimento mental em relação ao tratamento, defendendo a extinção progressiva dos manicômios públicos e privados e a implementação de novos métodos de tratamento. Um dos maiores desafios desse processo é saber trabalhar com o fato de que a elaboração de planos de inclusão não é suficiente para que o portador de sofrimento mental se sinta reinserido na sociedade, mas é necessário oferecer a essas pessoas condições mínimas de sobrevivência. Um trabalho realizado em 2003 pelas pesquisadoras Maria Inês Moreira Badaró (Univale) e Ângela Nobre de Andrade (UFES) contou com a participação de seis pacientes do Centro de Referência em Saúde Mental (Casam), localizado na cidade de Coronel Fabriciano (MG), e ilustra um pouco dos desafios da reforma.
Saúde Mental Em um dos casos apresentados, o próprio paciente pede a sua internação por dificuldades em reestabelecer a vida após o período que ficou afastado das atividades sociais. Isso acontece porque, após a internação, muitos pacientes são demitidos, o que os torna dependentes do ponto de vista financeiro. Alguns que tentaram engrenar no mercado de trabalho novamente só encontravam oportunidades de emprego inferiores às condições deixadas anteriormente. Essa situação contribuiu para que os próprios pacientes não quisessem deixar o ambiente em que foram internados, já que não conseguiam estabelecer uma vida digna fora dele. O grande desafio da Reforma Psiquiátrica não é só recuperar o paciente de volta para o convívio social, é pensar em alternativas de serviços substitutivos que possibilitem que eles possam viver em sociedade como um cidadão, garantindo seus direitos. Como a loucura não é debatida no convívio social, as pessoas não estão prontas para lidar com o "louco"e suas diferenças. O despreparo atinge a família, o que torna a tarefa da reinserção cada vez mais difícil. Em busca de superar tais desafios, seguindo a linha da reinserção social, surgiram os Centros de Convivência (CC) que iniciaram suas atividades em Belo Horizonte em 1993. Os CC auxiliaram na transformação da cultura da exclusão do portador de sofrimento mental, ao reforçar a ideia de que a loucura não é assunto exclusivo da área da saúde ou medicina, mas está relacionada aos modos de vida na cidade. O Ministério da Saúde define, no relatório "Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil", que os Centros de Convivência são “dispositivos públicos que compõem a rede de atenção substitutiva em saúde mental e que oferecem
às pessoas com transtornos mentais espaços de sociabilidade, produção cultural e intervenção na cidade. Estes centros, através da construção de espaços de convívio e sustentação das diferenças na comunidade, facilitam a construção de laços sociais e a inclusão dos portadores de sofrimento mental”.
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O grande desafio da Reforma Psiquiátrica não é só recuperar o paciente de volta para o convívio social, é pensar em alternativas de serviços substitutivos que possibilitem que eles possam viver em sociedade como um cidadão, garantindo seus direitos" Segundo a terapeuta ocupacional, Adriane Rodrigues, os CC são dispositivos que atendem prioritariamente pessoas com sintomas psicóticos graves e persistentes, no entanto, os diagnósticos dos frequentadores não é o foco. “A prioridade dos CC está em oportunizar aos seus frequentadores um espaço de convivência, experimentações e trocas por meio da oferta de oficinas de artes e artesanato, como também produzir no espaço das cidades, construindo outro lugar social para a loucura”. Mesmo fazendo parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que financia todos os serviços de atendimento e atenção à saúde mental substitutivos aos manicômios, os Centros de Convivência não são financiados pelo Ministério da Saúde, mas iniciativas das prefeituras. Os CCs não utilizam a verba do SUS e possuem incentivo apenas do município. “Para garantir o funcionamento dos centros de convivência de forma mais efetiva e também a ampliação desse serviço para todos os municípios, seria importante um financiamento
- Reportagem
via SUS”, sugere a gerente do Centro de Convivência César Campos (CCCC), Isabel Silviano Brandão. “Apesar de estar previsto na política de saúde mental e já ter sido normatizado por portaria ministerial, posteriormente revogada, os CC ainda não foram contemplados por nenhum tipo de financiamento federal, o que dificulta sua implantação e disseminação pelo país.”, explicou-me Adriane Rodrigues. Por isso, os Centros são muito vulneráveis aos interesses políticos do município que decide apoiar ou não um tratamento alternativo para a saúde mental. Izabel afirma que o projeto não é barato, devido aos gastos com a contratação de pessoas, equipamentos e materiais, como papel e tinta. “O grande furo é não termos o financiamento da verba federal do Ministério da Saúde. Falta o fortalecimento nacional dessa política. Inclusive agora nós estamos correndo risco. O novo coordenador nacional da saúde mental está querendo voltar com a compra de leitos em hospitais psiquiátricos particulares pelo SUS. E a verba para isso vai sair dos serviços substitutivos, uma vez que a verba para saúde e educação está congelada devido à PEC 241. Esse é o grande risco que o projeto está correndo com uma leitura completamente equivocada da saúde mental”. A gerente do CCCC faz referência à recente declaração do Coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, Quirino Cordeiro, divulgada no portal Esquerda Diário. O coordenador se mostrou favorável ao retorno do modelo psiquiátrico manicomial e o SUS voltará a discutir a expansão de leitos em hospitais psiquiátricos no Brasil em busca de substituir a política de tratamento em vigor. Essa declaração foi recebida pelos trabalhadores da saúde mental como um perigoso recuo no proces-
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Reportagem - Saúde Mental so da Reforma Psiquiátrica. “Recebemos com muita preocupação mais uma ameaça de retrocesso. O modelo psiquiátrico manicomial só favorece ao dono da instituição, muitos enriqueceram à custa do sofrimento das pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos. Foi assim no passado e será assim novamente se este modelo voltar a vigorar”, declarou Adriane. A terapeuta ocupacional me disse que, por esta razão, os militantes estão se reunindo para pensar estratégias de resistência e combate ao retorno do modelo manicomial. Nos dias 8 e 9 de dezembro, profissionais, usuários e familiares na cidade estarão em Bauru para comemorar os 30 anos de luta por uma sociedade sem manicômios O encontro lembra a inauguração do Movimento da Luta Antimanicomial, durante o II Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores, realizado na cidade, no ano de 1987. Também foi o momento em que se construiu o “Manifesto de Bauru” que destaca a afirmação do laço social entre os profissionais e a sociedade no enfrentamento das questões e a fusão com o Movimento da Luta Antimanicomial em defesa de uma reforma psiquiátrica democrática e popular. A gerente do Centro de Convivência Carlos Prates (CCCP), Maria Eliza Vasconcelos, também alerta para a vulnerabilidade do projeto, mas acredita que em Belo Horizonte (BH) a política dos Centros de Convivência tenha mais força do que nas outras cidades brasileiras. “Aqui em BH essa política se sustenta porque é reconhecida pelos usuários, familiares, por associação dos usuários da saúde mental que participam da Comissão de Reforma Psiquiátrica no Conselho Municipal de Saúde. Eles têm uma representação política que dá sustentação ao projeto. A capital mineira é vista como referência nesse projeto”, avalia a gerente do CCCP.
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O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada"
Manifesto de Bauru, 1987
Luta atual A Luta Antimanicomial está sempre se renovando em torno das causas atuais. Segundo o psicólogo e professor da Universidade Fumec, Jacques Akerman, um importante campo da luta hoje está relacionado às toxicomanias que consistem no consumo compulsivo de substâncias ativas sobre o psiquismo, como o álcool e as drogas. “As comunidades terapêuticas evangélicas, supostamente voluntárias, são hoje espaços manicomiais, de exclusão e de adequação. Existem umas 2 mil comunidades terapêuticas no país e muitas delas são violadoras de direitos humanos básicos, como o direito de telefonar, de ir e vir. Existem ainda instituições manicomiais no Brasil no campo da saúde mental mas, mais do que na psiquiatria, no campo das toxicomanias”, afirma, destacando ainda que o Movimento levanta hoje as bandeiras contrárias ao racismo, machismo e violência. “E principalmente, contra o manicômio que existe dentro da cabeça de cada um de nós, a nossa necessidade de eliminar a diferença do outro. Essa é uma luta que não vai acabar nunca, as bandeiras sempre se renovam”.
A rede em BH Implantada em 1993, a Política de Saúde Mental da Prefeitura de
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Belo Horizonte é marcada por inovações no campo da Reforma Psiquiátrica. Pioneiro entre as grandes metrópoles brasileiras, o trabalho segue a lógica antimanicomial que valoriza o cuidado em liberdade, buscando a conquista da cidadania e a reinserção social dos portadores de sofrimento mental. Ao longo dos anos, foram desativados 1,8 mil leitos psiquiátricos, com o objetivo de acabar com hospitais que apresentam marcas de abandono, violência, isolamento e segregação. Os recursos financeiros, até então destinados a essas instituições, estão sendo investidos na implantação de uma rede substitutiva de atenção e cuidados aos portadores de sofrimento mental em Belo Horizonte. A cidade é vista hoje como referência quando se trata da oferta de dispositivos substitutivos de tratamento. A capital de Minas Gerais possui um sistema completo que atende o usuário desde os momentos de crise mais grave, no Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam), até quando o paciente, por indicação do Cersam, passará então a frequentar os Centros de Convivência e as cooperativas de trabalho. Se voltar a ter uma crise, será reencaminhado ao Cersam pelos profissionais dos centros de convivência e cooperativas. Além disso, a rede conta com equipamentos para atendimento às pessoas que não estão em crises tão graves nas Unidades Básicas de Saúde. “Quando nos referimos a uma crise, significa que percebemos alterações no modo de ser daquele indivíduo que passa a apresentar mudanças no pensamento, no comportamento, no humor. Os sintomas são diversos e variam de pessoa para pessoa, podemos citar alguns como as alterações de comportamento, quando o sujeito pode apresentar momentos de intensa atividade ou, ao contrário, uma
Saúde Mental forte tendência ao isolamento; ou a presença de frases desconexas, interrompidas antes da conclusão do pensamento ou sem sentido com a realidade e até mesmo quando a pessoa ouve vozes ou tem sensações táteis no corpo. A família que convive com a pessoa percebe que há algo de estranho ou diferente do habitual”, explica a terapeuta ocupacional, Adriane Rodrigues. Um ponto importante da rede de tratamento substitutivo é a valorização do pertencimento ao território, com o acesso aos equipamentos necessários para o tratamento no bairro ou região onde se vive. “Existe em BH um centro de convivência em cada regional. Para nós, essa questão é muito importante, pois tratar o usuário perto de sua casa auxilia na criação de laços com o território”, esclarece a gerente do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, Karen Zchée. “Às vezes conseguimos mudar até a forma com que o usuário é visto dentro da comunidade, alguns são vistos como os doidos do bairro, outros ficam muito isolados. Dessa forma, investimos na criação de laços, vínculos e no sentimento de pertença ao território”. Todas as atividades desenvolvidas pelos Centros de Convivência auxiliam no processo da inclusão que começa internamente nas oficinas, juntamente com o oficineiro e colegas, expandindo-se para a cidade por meio de passeios, atividades externas, mostras de arte, viagens e eventos culturais. São elaborados eventos de grande porte, como o desfile realizado em 18 de maio, o Dia da Luta Antimanicomial. O desfile sai pela cidade para mostrar a política inclusiva adotada em Belo Horizonte. Os Centros também organizam eventos menores, como a Semana dos Jogos de Primavera, que envolve todos os serviços das redes substitutivas.
A arte como intervenção O objetivo do centro de convivência é trabalhar a inclusão social dessas pessoas que ficaram afastadas da sociedade por muito tempo, disse-me Maria Eliza enquanto conversávamos no CCCP, onde observei as atividades desenvolvidas para resgatar a vontade de viver em sociedade. Ela esclarece que “a própria doença quebra os laços, as pessoas perdem os laços afetivos às vezes com a fa-
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A linguagem artística provoca o olhar, o sujeito, a sociedade e, por isso, combina tanto com a loucura, que também ocupa esse lugar de transgressão, inquietação, traz o estranhamento, é assim que arte e loucura andam paralelas”
Isabel Silviano Brandão
mília, com a sociedade, com grupos sociais e, então, o objetivo do Centro é readaptá-los, é reconstruir histórias para a inclusão na cidade”. A participação em atividades culturais, como mostras de arte, teatro, cinema, parques e praças, pode efetivamente transformar os olhares de preconceito e medo em admiração e empatia. O encontro nas ruas gera a troca de experiências e a descoberta de que devemos não só aceitar, mas também conviver e aprender com o diferente, o que contribui para combater o preconceito e auxilia na construção de um espaço público de cidadania, longe da condição de exclusão e abandono social. Durante a visita ao CCCP, estava extremamente insegura em relação a minha experiência naquele lugar e como seria recebida pelos frequentadores. Fui surpreendida quando um dos usuários me levou para conhecer o espaço. A natureza torna o
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ambiente aconchegante, as pessoas repousam à sombra das árvores, o que me tranquilizou em meio à euforia que sentia quando estava a caminho. Conversei com a gerente que me acompanhou ao encontro das pessoas. O cheirinho de café tomava conta do ambiente onde chamam atenção os desenhos, pinturas e artesanatos produzidos pelos integrantes do grupo. Fui apresentada a eles enquanto trocavam um dedo de prosa e compartilhavam o lanche da tarde. Os Centros de Convivência buscam ampliar os laços sociais, com a inserção no mercado de trabalho, a construção de relações com a cidade e formas potentes de comunicação, como, por exemplo, a arte. “O objetivo é fazer com que o sujeito possa se expressar numa outra forma de linguagem. Aqui trabalhamos com uma arte criativa, não existe condução por parte do monitor. Existe o desejo que se expressa e cada usuário produz o que tem vontade”, diz Maria Eliza. A arte é um veículo para trazer à tona a criatividade, entendendo que as formas de expressão superam a linguagem oral ou escrita. A gerente do Centro de Convivência César Campos, Isabel Silviano Brandão, vê a arte como transgressão: arte é o inusitado, o novo, e, por isso, anda lado a lado com a loucura. “A linguagem artística provoca o olhar, o sujeito, a sociedade e, por isso, combina tanto com a loucura, que também ocupa esse lugar de transgressão, inquietação, traz o estranhamento, é assim que arte e loucura andam paralelas”. Isabel, assim como Maria Eliza, destaca que o Centro de Convivência é um local para aguçar a criatividade do usuário, os monitores ensinam o básico nas oficinas e a partir disso cada um cria a sua obra. “Aqui eles são livres para serem criativos, estimulamos o projeto autoral”. Clarice Steinmuller coordena as
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Reportagem - Saúde Mental oficinas de mosaico que acontecem no Centro de Convivência São Paulo. Para ela, a arte, inserida em um contexto social mais amplo, é um processo muito importante na recuperação de pessoas com sofrimento mental. O centro de convivência é um equipamento dentro da uma rede de serviço substitutivo que trabalha a arte e a cultura para promover a expressão pessoal e a inclusão social, onde são proporcionadas oficinas de arte e a circulação pela cidade é incentivada. “Eu acredito que, muito mais que a arte, o ponto mais relevante é proporcionar a convivência entre os usuários do serviço, a circulação pela cidade, ter espaço para ir ao cinema, para fazer uma exposi-
ção. Acredito que a arte e a cultura estejam inseridas nesse lugar de proporcionar a troca, a conversa e a possibilidade de viver novas experiências que podem ser estéticas, mas que podem ser de outras ordens também”, contou-me Clarice. Durante a nossa conversa, não pude deixar de prestar atenção em dois homens que faziam mosaicos. Diógenes era muito discreto, por isso, tive uma agradável surpresa quando começou a conversar conosco, pois não esperava que interagisse enquanto eu estivesse ali. Apesar das poucas palavras, Diógenes impactou-me quando falou sobre sua experiência no centro de convivência. Depois de quatro anos sem sair de casa e passar por um perío-
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Foto: images.google.com
Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba (Sergipe). Não se sabe ao certo a data de seu nascimento, se dia 14 de maio de 1909 ou dia 16 de março de 1911. Filho de Adriano Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus, Arthur Bispo do Rosário é descendente de escravos africanos. Seu primeiro surto aconteceu em 1938. Foi dado como louco e encaminhado ao Hospital Nacional dos Alienados na Praia Vermelha. No mesmo ano foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide e em 1944 foi transferido para o Colônia Juliano Moreira e, no dia seguinte, retornou ao Centro Psiquiátrico Nacional. Utilizava o próprio uniforme do hospital para confeccionar suas obras. Foi nesta época que produziu o Manto da Apresentação, uma de suas obras mais conhecidas. Neste Manto, Bispo do Rosário colocou todos os nomes de pessoas que ele considerava merecedoras de irem para o céu. Faleceu em 5 de julho de 1989, no Rio de Janeiro, vítima de um infarto. Após sua morte foi inaugurada a mostra individual “Registros de minha passagem pela Terra”. Saiba mais: http://antigo.acordacultura. org.br/herois/heroi/bisporosario
do de muito sofrimento e depressão, ele começou a frequentar o centro todas as terças-feiras, quando sua vida mudou. “Isso aqui é uma terapia! Aqui eu deixo de perder o meu chão, às vezes a medicação nos deixa no ar e aqui eu me encontro com a realidade. A arte me ajuda a voltar para a minha realidade. O centro de convivência nos oferece uma oportunidade de procurarmos um rumo, procurar novos caminhos”. Os Centros de Convivência têm uma importante característica em comum: as portas estão sempre abertas para que os usuários e visitantes circulem livremente, seguindo à risca o principal ideal defendido pela rede substitutiva de tratamento, a liberdade.
Saúde Mental O César Campos O Centro de Conviência César Campos (CCCC) é uma casa pequena, alegre e colorida, a natureza ali é marcante, trazendo frescor ao ambiente composto por peças feitas pelos usuários. Ao chegar fui apresentada pela gerente aos frequentadores, era hora do lanche comunitário. Eu pude participar do encontro, quando todos quiseram dividir um pouco do que haviam levado. Maria da Glória trazia uma pequena vasilha com pedaços de pera e maçã e fez questão que eu comesse pelo menos um pedaço de cada fruta. Maria é uma jovem senhora, como ela mesma se intitula, muito alegre e vaidosa. No dia em que a conheci, vestia roupas coloridas e usava muitos acessórios, como pulseiras, colares. Na tiara que trazia presa aos cabelos, uma borboleta parecia expressar, talvez não intencionalmente, uma mente livre para voar, para criar. “Aqui é um lugar para conviver, todos são muito bacanas e os professores são muito alegres. Todos os alunos são uma gracinha! Eu amo esse lugar, aqui todo mundo se respeita, esse convívio faz muito bem para nós, ajuda a pensarmos coisas boas. A felicidade dos meus colegas é a minha também.” Fomos para uma sala onde acontece a oficina de desenho e pintura. Lá estavam empilhadas em armários e em cima das mesas inúmeras obras feitas por eles. Maria e Carlos, que também participam das atividades, começaram a me presentear com seus desenhos, extremamente significativos, porque, como Carlos me explicou, muito mais do que desenhos, aquela imagens representavam o que estava no interior de cada um. “Quando desenhamos, desenhamos o que está dentro nós. O desenho é o retrato do que passamos por dentro. Eu coloco a minha alma”. Enquanto isso, Maria da Glória tentava me explicar o significado das cores escolhi-
das. “Utilizei o verde aqui, porque para mim representa esperança de um mundo melhor, de pessoas melhores”. Essa experiência me fez refletir sobre a importância da arte na recuperação das pessoas com sofrimento mental. Eles não estavam apenas pintando ou desenhando imagens sem sentido. Tudo aquilo possuía um significado que podia ser explicado detalhadamente pelo autor da obra. Apesar de não ser a intenção das oficinas fazer uma reflexão sobre as obras, a arte vai muito além da distração, é uma forma potente de expressar sentimentos.
Suricato
A inclusão acontece por meio de atividades artísticas, mas também do trabalho. Os centros possuem projetos que visam inserir o usuário no mercado formal e informal de trabalho, como na Incubadora de Empreendimentos Econômicos e Solidários da Saúde Mental Suricato, criada em 2004. Quem participa da associação localizada no bairro Floresta, vende os produtos que o grupo desenvolve nos núcleos de produção: culinária, marcenaria, costura e mosaico, além do trabalho no quintal cultural, onde os integrantes recebem e apresentam atividades culturais. No bar, eles trabalham em todas as funções, como garçons, cozinheiros e caixas. A coordenadora da cooperativa Suricato e terapeuta ocupacional, Marta Soares, contou-me que a associação foi pensada, desejada e gerida por pessoas que fazem tratamento na rede pública de saúde mental de Belo Horizonte. Segundo ela, essas pessoas iniciaram um movimento em direção ao trabalho que transparecia a vontade de reconhecer suas possibilidades e potências. “As pessoas desejam o trabalho: eu posso trabalhar, eu quero trabalhar e acho que consigo. Surge o desejo de se sentir capaz”, sintetizou. A partir da vontade dos usuários
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da saúde mental, o Movimento da Luta Antimanicomial e o Fórum Mineiro de Saúde Mental começaram a debater possíveis respostas para a demanda coletiva. O Fórum buscou a qualificação profissional dos portadores de sofrimento mental nas áreas eleitas a partir de um questionário. Com os resultados e recursos captados junto ao Fundo de Amparo ao Trabalhados do Ministério do Trabalho e Emprego, foi possível organizar cursos e grupos e ainda que os portadores de sofrimento mental fossem encaminhados aos locais de formação nas áreas que haviam escolhido, como Marta me disse. “Essa foi a primeira experiência de qualificação profissional de pessoas historicamente aleijadas do mundo do trabalho, acabando com o estigma de que o louco não trabalha, que era tido como verdade”. O espaço localizado na Rua Souza Bastos, na região leste da capital, é uma organização não governamental de direito privado que tem como primeiro princípio o trabalho como um valor que produz o que dá prazer. “Temos outros princípios, mas esse é muito importante pelo lugar que ele ocupa. Ele propõe o resgate do sentido do trabalho para o ser humano, aqui eles trabalham por prazer, trabalham no que gostam e isso faz toda a diferença”, destacou a terapeuta ocupacional. Jefferson, um dos sócios da cooperativa, também é MC, e como “mestre de cerimônia” interage com o público nos eventos dos quais participa. Enquanto cantava um de seus raps para mim, ele intercalava a música com demonstrações de carinho pelo trabalho na associação. “Nós gostamos muito do que fazemos aqui. Nossa regra é trabalhar com aquilo que temos amor em fazer, e não aquilo que temos obrigação de fazer. A Suricato é um lugar de geração de renda, não de serviço, somos uma cooperativa.
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Reportagem - Saúde Mental De repente é isso aí que é a Suricato, né? Te expliquei direitinho?” A casa, que está completando três anos de funcionamento, foi aberta em comemoração aos dez anos da Suricato. Jeffinho, como gosta de ser chamado, guiou-me gentilmente durante o passeio pelos cômodos que expõem objetos desenvolvidos nos núcleos produtivos de mosaico, costura, marcenaria, além da culinária que invade o espaço com o aroma da comida preparada com muito afeto, no “quintal cultural”. Por diversas vezes, Marta e eu tivemos que parar a conversa, pois fomos tomadas pelo cheiro vindo da cozinha do bar. Ela me falou sobre a importância do valor da liberdade no dia a dia do Suricato. “Temos como princípio o tratamento em liberdade, o resgate dos direitos e da cidadania, da vontade de produzir vida. Defendemos os ideais da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. O projeto foi
pensado como casa mesmo, começamos com uma intervenção artística e lotou. Nós não tínhamos noção de como seria, é um salto no escuro, é realmente um ato de loucura e agora nós estamos aprendendo muito a cada dia a lidar com o trabalho, com as dificuldades, com o público, com o negócio, com as diferenças”. A influência do trabalho desenvolvido pela cooperativa na vida de seus sócios, principalmente daqueles que sofrem com transtornos mentais, é a conquista de um espaço no mundo, o resgate do amor próprio e de um sentido para vida, como revela Marta: “Desenvolvemos o pertencer, o ser reconhecido, a autoestima, poder contribuir com o orçamento familiar, a autonomia, a circulação pela cidade. É um processo que não para por aqui”. Valter, um dos sócios da casa, contou-me que, por vezes, questiona-se quanto à influência da Suricato na
sua vida. Mas a resposta, que pode não ser simples para ele, aparece no olhar de satisfação quando fala sobre o sonho que se tornou realidade. “As pessoas aqui têm sonhos e a abertura desse local é nosso sonho coletivo. Aqui nós mostramos nosso amor ao trabalho. Do ponto de vista da inclusão, acho que esse lugar está cumprindo o objetivo dele, abrimos essa vitrine para a cidade e eu sempre brinco no início das apresentações que aqui é o encontro da cidade com a loucura. Aqui é um lugar muito valioso, muito rico, sabemos que estamos todos no mesmo barco.” “Mas todo mundo é louco aqui?”. Segundo Valter, essa pergunta é muito frequente e motivo de risada entre todos os sócios. Sorrimos um para o outro, pois eu sabia que este havia sido o meu primeiro pensamento ao entrar na casa. Ele acredita que a preciosidade do projeto está exatamente neste encontro Foto: Maria Clara Castro
Valter (penúltimo, na foto) e sócios: "As pessoas aqui têm sonhos e a abertura desse local é nosso sonho coletivo"
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Saúde Mental entre os diferentes e na possibilidade da desmistificação da loucura. “A riqueza do projeto está em ser reconhecido, de podermos mostrar a cara. A troca entre os artistas, o público e os trabalhadores é muito interessante. Essa mistura toda é o lugar dos laços, aqui fortalecemos nossos vínculos por ser um ponto de encontro, as pessoas vêm para conversar, para curtir a arte”. O espaço é o resultado da relação entre arte e política. “É um ato político estar aqui dentro. As pessoas escolhem vir para a Suricato sabendo que não estão indo a um bar qualquer, a maioria já sabe da iniciativa e vem exatamente por ser um projeto de inclusão, querem ajudar, contribuir, isso que dá sentido ao trabalho. A gente é capaz, né? Esse lugar nos ajuda a caminhar com liberdade pela cidade, a construir novos caminhos, fazer novas escolhas e viver!” Clarismundo, apelidado carinhosamente pelos colegas de Clarê, auxilia na coordenação da Suricato. Sua trajetória até aqui foi marcada pela depressão e internações do Cersam Leste, até uma psicóloga sugerir que ele começasse a frequentar um centro de convivência. Durante três anos, participou de oficinas de letras até surgir uma oportunidade de trabalho. Como sócio fundador da cooperativa, acompanhou o projeto desde os primeiros passos. “Agora somos reconhecidos na sociedade como capazes, capazes de trabalhar, e isso nos traz uma sensação de liberdade muito grande. É muito bom poder circular pela cidade e interagir com as pessoas naturalmente”, contou-me com muita alegria porque, apesar de todas as dificuldades, finalmente conseguiram conquistar um espaço. O projeto, pioneiro no Brasil na implementação de uma entidade gerida, em sua maioria, por pessoas portadoras de sofrimento mental, recebeu a sugestão de vários nomes,
mas todos traziam o termo “saúde mental”. Surgiu então o questionamento: Mas temos que sair com isso carimbado na testa?. Com várias ideias e nenhuma conclusão, o nome foi deixado de lado, até que João Camilo, um dos frequentadores do Centro de Convivência Pampulha, deu a ideia de “Suricato”. “Os suricatos são bichinhos que
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Esse lugar nos ajuda a caminhar com liberdade pela cidade, a construir novos caminhos, fazer novas escolhas e viver!”
Valter vivem nas savanas e para sobreviverem devem estar sempre atentos. Eles se organizam e se solidarizam uns com os outros para se protegerem. Caso contrário, são presas fáceis.”. Pronto! É exatamente essa a essência da casa! A sugestão não poderia ser mais acertada. “Esse nome nos representa. Sozinhos não conseguiríamos. Precisamos uns dos outros. Somos como esses bichinhos que para sobreviverem às intemperes das savanas se juntam e trabalham em equipe sempre cuidando um do outro. Da mesma forma que fazemos aqui”, define Marta. Enquanto ainda nos deliciávamos com o cheiro que vinha subindo da cozinha, o estabelecimento começou a encher até que um convidado muito especial chegou. Chico é apenas uma criança, com toda a sua inocência ainda não é capaz de entender a importância daquele lugar. Ele correu para o sofá da sala onde eu e Marta conversávamos, como se realmente estivesse em sua própria casa. Os pais de Chico haviam se casado na casa que é palco para chás de bebê, aniversários, lançamentos de livros e eventos
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inusitados, conforme os diferentes gostos e estilos dos frequentadores. “As pessoas chegam e vão ficando. Estabelecem relações muito afetuosas, vão ficando cada vez mais próximas, criando amizades. Dão ao lugar a cara de casa, que é o que ele realmente é”. Neste momento, mais do que em qualquer outro, fui invadida pelo espírito do projeto. Muito mais que um estabelecimento comercial, a Suricato é um lar.
São Doidão Em Belo Horizonte existem outros projetos que, assim como a Suricato e os Centros de Convivência, visam à recuperação e inserção social dos indivíduos portadores de sofrimento mental. O grupo musical “São Doidão”, formado por oito integrantes, é fruto das oficinas de música ministradas por Helvécio Viana nos Centros de Convivência Pampulha e São Paulo. No livro “Inclusão Social: construindo saídas”, Helvécio conta sobre sua trajetória desde 2006, como oficineiro, até o momento em que o grupo foi criado. Ele afirma que, além de instrumentos, também ofereceu oficinas de canto coral nos Centros, o que possibilitou a formação de dois grupos vocais. O grupo surgiu em 2007. Os ensaios eram ministrados nos centros de convivência Pampulha e São Paulo. Helvécio constata que a experiência do deslocamento na cidade contribuiu para renovar o convívio social, possibilitando que os integrantes se sentissem mais inseridos na sociedade, fazendo parte da cidade. No mesmo ano, eles se apresentaram em espaços ligados à rede pública de saúde mental e ocuparam outros espaços culturais para além dessa rede, como a apresentação realizada durante a Quinta Edição do Encontro Internacional de Corais, em Belo Horizonte. O reconhecimento trouxe o entusiasmo ao gru-
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Reportagem - Saúde Mental po que foi estimulado a reinvestir cada vez mais na atividade musical. Nos anos de 2008, 2010 e 2012, o São Doidão participou das edições do projeto Mostra de Arte Insensata que tem como objetivo divulgar a produção artística dos usuários da rede pública de saúde mental em Belo Horizonte. Em 2009, recebeu o prêmio Loucos pela Diversidade Edição Austregésilo que trouxe a possibilidade de investimento, em busca da qualificação artística de seus integrantes. Em 2013, lançaram seu primeiro álbum de musical oficial. O lançamento ocorreu em novembro do mesmo ano e reinaugurou o Teatro de Câmara do Cine Teatro Brasil Vallourec. No livro produzido pelo Centro de Convivência Pampulha, Helvécio revela que todas as ações artísticas desenvolvidas pelo grupo trazem a seus integrantes o reconhecimento e a valorização social, além de contribuir para a desconstrução do preconceito em relação à loucura. O professor de música conta que os integrantes do grupo passaram a se sentir mais responsáveis pela sua própria saúde, cuidadosos em relação às consultas psicológicas e vaidosos com a aparência, uma vez que o palco possibilita a visibilidade, na relação com a plateia. A terapeuta ocupacional Adriane Rodrigues acredita que esse tipo de intervenção artística permite que o portador de sofrimento mental dialogue de igual para igual com a sociedade, vencendo os preconceitos, desmistificando e fazendo circular a loucura pela cidade. Nas suas palavras, “o que se vê são artistas e não mais pessoas com sofrimento mental. Quando estão em cena, não há rótulos, todos se misturam e ninguém sabe na verdade quem é ou não usuário da saúde mental”.
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Luiz Otávio da Silva, mais conhecida como Luiz Estrela, vivia na rua e era amiga de muitos, principalmente dos artistas e dos habitantes do centro da cidade de Belo Horizonte. Poeta, escrevia seus pensamentos em folhas soltas, numa espécie de diário desencadernado. Participava das mobilizações artísticas e culturais da cidade, como carnaval de rua, Praia da Estação, Festival de
Espaço Comum Luiz Estrela A intervenção social por meio da arte e cultura é também a marca do Espaço Comum Luiz Estrela. Em 26 de outubro de 2013, um grupo de artistas e ativistas de Belo Horizonte ocupou um casarão histórico tombado pelo Patrimônio Público abandonado havia 19 anos. Construído em 1914, as paredes do local abrigam parte da história da loucura e do combate aos manicômios em Minas Gerais. O objetivo da ocupação não era apenas salvar o imóvel da deterioração, mas também de transformá-lo em um espaço de formação artística, aberto e autogestionado. O casarão sediou o Hospital Militar no período de 1914 a 1947, o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, de 1947 a 1980 e o Centro Psicopedagógico, nas décadas de 1980 e 1990. Em 2014 foi criado o Núcleo de Teatro do Espaço Comum Luiz Estrela e, neste mesmo ano, foi desenvolvido o espetáculo Escombros da Babilônia: teatro documentário-manifestação para dias de chuva, que contava sobre a história do morador de rua e artista performer Luiz Otávio da Silva, ovv Estrela. A iniciativa chamou a atenção do psicólogo Jacques Akerman.
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Performance, atrações no Teatro Espanca!, no Nelson Bordello, entre outras. Era uma militante da diversidade. Homossexual, Luiz Estrela era muitas, de muitas histórias, de muitas pessoas. Foi morta no centro de BH na noite de quarta-feira, 26 de junho de 2013. Sua morte não foi investigada. Para conhecer e ajudar o projeto acesse: https://www.evoecultural.com/luizestrela/
“Fiquei muito interessado no Luiz Estrela depois que assisti à peça de teatro “Os escombros da Babilônia”. Nesta peça são escancaradas muitas questões que são tabus, como a questão do machismo, violência, racismo e a exclusão da loucura”. O Espaço é vizinho do Centro Psíquico da Adolescência e Infância (Cepai) e a proximidade abriu as portas para uma parceria com a ajuda dos alunos da psicologia da Universidade Fumec e outras pessoas que possam auxiliar a levar adiante a proposta. O projeto “Criar, Cura?” pretende resgatar o lugar da loucura na sociedade a partir da convivência comunitária e do fortalecimento dos laços interpessoais. A ação se divide em dois momentos: intervenções via oficinas de arte e cultura com os adolescentes internados no Cepai ministradas dentro do próprio hospital, e um grupo de conversação com as mães dos adolescentes na Cozinha Comum, no Espaço Comum Luiz Estrela. Já as oficinas de customização de uniformes no Cepai unem a arte ao fazer antimanicomial, para a redescoberta da identidade de cada participante, prejudicada pelo processo de institucionalização.
Saúde Mental Assim, o ato de entrar no Cepai é um convite para mais uma etapa da reforma psiquiátrica, a abertura das portas do casarão e do hospital que hoje tem uma direção voltada para novos horizontes da ação coletiva. O “Criar, cura?” reúne-se desde o dia 17 de julho de 2017. Atualmente, é composto por estudantes e profissionais das áreas da psicologia, arquitetura, teatro e culinária e mantém-se aberto para entrada de novos membros. As oficinas no Cepai e o encontro do grupo de mães na Cozinha Comum acontecem uma vez por semana, às sextas-feiras, das 14h às 17h. O atendimento fora do hospital é um momento de respiro em meio à situação desgastante. Na cozinha, as mães podem conversar e ao mesmo tempo produzir o alimento enquanto se distraem. “São pessoas de todo o estado, e muitas vezes ficam esperando o dia inteiro para um consulta. A ideia é montar um local de acolhimento para essas mães no Luiz Estrela que fica ao lado do Cepai”, conta Jacques. Fui recepcionada pelos alunos do curso de psicologia da Universidade Fumec que trabalham em projetos dentro da casa e oficinas ofertadas às crianças e adolescentes internados no Cepai. Enquanto conversava com a psicóloga Roberta von Randow, uma das responsáveis pelo projeto, fomos até o Cepai em busca de mães que quisessem fazer parte daquele momento, mas apenas dois familiares compareceram. Uma das explicações para esta resistência dos familiares é a dificuldade em deixar seus filhos, netos ou sobrinhos sozinhos. Roberta seguiu, com entusiasmo, de volta ao Espaço Comum Luiz Estrela, junto aos dois novos visitantes. Sentamos à mesa para conversarmos sobre coisas da
vida. Familiares disseram que, naquele momento podiam desabafar e levantaram o problema da falta de atividade para os pais, uma alternativa para que o tempo passe mais rápido enquanto esperam seus filhos. Vicentina é avó de Alexandre, adolescente que está internado no Cepai. Ela estava triste por ter que ir embora para a sua cidade e deixar o neto sob os cuidados de familiares. Era necessário, depois de muito tempo sem ir ao salão, fazer as unhas e cuidar dos cabelos. Em Belo Horizonte, os preços desses serviços estavam muito elevados e por isso precisou voltar para sua cidade, mas me assegurou que logo retornaria para ficar com o neto. Roberta sugeriu que o Espaço tivesse um salão de beleza para as mulheres, que se dedicam 24 horas por dia aos filhos e acabam ficando em segundo plano. Como o cuidado com elas é a razão de ser do “Criar, cura?”, a sugestão da psicóloga dialoga com o projeto, na medida em que traria leveza, acolhimento e afeto às mulheres que passam longos e exaustivos períodos de tratamento no Cepai onde, muitas vezes, ficam internadas acompanhando os filhos. O Espaço Luiz Estrela desenvolve outras ações voltadas à Luta Antimanicomial. Nos primeiros dias de ocupação foi realizada a intervenção “Em Cada Esquina Tem”, ação proposta pelo Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário. A intervenção buscou unir usuários deste serviço e artistas convidados para ocupar, simultaneamente, esquinas de pontos específicos em Belo Horizonte. O objetivo era propor, de forma simples e poética, possíveis diálogos e pensamentos em torno de questões como a inserção da loucura e da arte como meio de interação na cidade.
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No início da década de 1980, um grupo de 23 crianças foi encaminhado do Hospital Psiquiátrico de Barbacena para o então Centro Psicopedagógico (CPP), hoje Centro Psíquico da Adolescência e Infância (Cepai). Sem a possibilidade de viver com suas famílias, sete daquelas crianças permaneceram no CPP. Em 1998, criou-se o Lar Abrigado para acompanhar e cuidar desses pacientes. Os “meninos de Barbacena” são hoje cidadãos com carteira de identidade, CPF, direito à liberdade e dignidade. “Quando fui fazer os documentos foi muito complicado para correr atrás dos registros. A Vanda era a única que não tinha, foi a única que eu tive que inventar uma idade, os outros nós fomos encontrando a documentação”, conta Irmã Mercês, que está ao lado dos meninos desde então. O Lar Abrigado ou Casa Amarela foi inaugurado no dia 21 de outubro de 1998 para abrigar “os meninos de Barbacena”, cujos vínculos familiares foram perdidos devido ao longo período de internação. O local é um espaço de convívio que segue as regras da desistitucionalização e promove a ressocialização por meio do cotidiano. Antônio (Tonho), Edgar (Didi), Edsonina (Nina), Lucinéia (Lu), Sílvio (Silvinho), Vanda e Wellington Albino moram no Lar. Cada um deles possui uma rotina de atividades de acordo com suas limitações. Nas atividades gerais estão incluídos o passeio na Estação da Vida ou na pracinha e a pintura. No plantão noturno acontecem atividades lúdicas no pátio externo do Cepai, ou no espaço interno em noites muito frias ou chuvosas. Tonho é o mais independente entre eles e possui atividades diferenciadas
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Ao passar pelo corredor não pude deixar de notar os retratos. As fotos haviam sido tiradas assim que os moradores chegaram ali, cada integrante da família estava representado nas paredes da casa. Tonho, com o objetivo de me ajudar a identificar quem era quem, apontava o dedo para a foto e na direção da pessoa retratada. É incrível perceber como eles mudaram. Aquelas fotos não os representavam mais. As feições tristes e olhares vazios não estampavam
mais os seus rostos. Agora eles eram o retrato potente do efeito do amor, carinho e cuidado. Em seu quarto, Tonho me contava, mesmo sem emitir palavras, histórias de felicidade. Mostrava-me com alegria nos olhos todos os objetos de decoração que ele mesmo havia escolhido a dedo para compor o seu cantinho da casa. Ao pegar o álbum de fotografias com fotos de sua festa de aniversário, Tonho passava as páginas com empolgação enquanto eu Foto: Maria Clara Castro
como frequentar o Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário e o teatro Sesiminas que fica próximo ao local. Ele também participa de atividades sociais e ecumênicas da Paróquia Santa Efigênia, além de frequentar, nos finais de semana, o bar da Dona Nita. Diferentemente dos outros que possuem apenas um acompanhamento fisioterápico, Tonho também tem uma fonoaudióloga. “O Tonho frequenta o Centro de Convivência, só não vai na quinta-feira. Ele pinta e faz muitas coisas bonitas. Os outros pintam aqui na casa mesmo, não são tão independentes”, diz Irmã Mercês. Irmã Mercês sempre acreditou que eles aprenderiam a usar o vaso sanitário e realmente conseguiram, motivo de grande alegria para toda a equipe que considerou a vitória como um pequeno passo rumo à independência. Mas Mercês afirma que não há rigidez quanto ao uso das fraldas, apenas as evita para que os moradores não regridam e percam essa importante conquista. Quando entrei no Lar, Sueli, ajudante da Irmã Mercês, disse-me que ela não estava em casa no momento, mas que já estava voltando. Enquanto isso, Tonho se encarregou de me deixar à vontade no local. Fui convidada por ele a conhecer a casa. Na entrada há um mensageiro dos ventos pendurado ao teto. O sino, segundo Mercês, trará bons ventos e também soprará para a cidade os ventos bons vindos da casa, o vento da psiquiatria democrática. Enquanto os outros estavam sentados na sala ou em seus quartos, Tonho me mostrava todos os cômodos e apresentava os moradores. A casa é um ambiente aconchegante, com fotos deles em momentos especiais e pinturas em suas paredes, tudo no intuito de fazer com que aquele local seja realmente um lar para quem um dia isso foi negado.
Lar Abrigado: Irmã Mercês, em frente ao painel criado por Tonho
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Saúde Mental observava atentamente sua feição naquelas imagens, era a alegria que tornava viva cada uma daquelas páginas. Enquanto isso, Albino nos observava deitado em sua cama. Irmã Mercês chegou à porta do quarto e nos pegou em um momento de descontração. Eu e Tonho estávamos tirando uma foto juntos para que eu pudesse me lembrar daquele rosto para sempre, como se fosse possível esquecê-lo... Com isso, ela pede a Tonho que me mostre suas pinturas e, com a mesma empolgação, ele espalha suas obras pela cama coberta por uma colcha de seu time favorito. “Como eles não falam, a arte representa uma forma muito relevante de se expressar. Apenas o Tonho pinta sozinho, às vezes o Edgar, os outros precisam de um pouco mais de ajuda. Nós estimu-
lamos muito a arte aqui, estamos sempre elogiando o que cada um faz em busca de um reconhecimento. Quando assisti ao filme da Nise da Silveira eu fiquei encantada com o trabalho dela. Eu e o Tonho vimos juntos, mas vou propor para que todos assistam.” Para conversarmos, eu e Irmã Mercês fomos para uma sala. Nesse trajeto ela foi me mostrando todos os objetos de decoração da casa, escolhidos com muito bom gosto por Tonho. Minha conversa com a Irmã foi regada com alegria e mimos, como a peteca de plumas rosa que ganhei. Eu via em seus olhos a felicidade que sentia em poder falar sobre os seus meninos. “As nossas conquistas aqui são no dia a dia, como, por exemplo, quando compramos alguma roupa nova. O Edgar ia ao armário e ti-
Nise da Silveira (1905-1999) foi uma psiquiatra alagoana pioneira na terapia ocupacional, ao introduzir o método no Centro Psiquiátrico Pedro II do Rio de Janeiro. Estudou medicina na Faculdade de Medicina da Bahia, onde foi a única mulher em uma turma de 157 alunos. No Rio, engajou-se nos meios artístico e literário e escrevia sobre medicina para o jornal A Manhã. Em 1944 foi reintegrada ao serviço público, quando foi direcionada ao Hospital Pedro II, localizado no subúrbio do Rio de Janeiro. A psiquiatra se via incapaz de exercer o seu trabalho, uma vez que se mostrava contra as práticas de tortura como os choques elétricos, camisas de força e isolamento dos pacientes. Nise defendia uma postura humanista de tratamento dos portadores de sofrimento mental. Ela era contra aos manicômios e ao cárcere dos pacientes tratados como presidiários. Em 1946,
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rava todas as roupas do lugar. Eu deixava, pois assim ele escolhia a roupa que quisesse vestir. Depois, aos poucos, fomos ensinando a ele a não espalhar. Eu notei na Lu um aspecto muito interessante, ao vestir vestidos que fossem mais decotados, ela ficava mais feliz. Temos que respeitar as vontades e as particularidades de cada um”. Mercês conta com muito carinho experiências da vida de cada um deles e como foram se tornando seres humanos melhores só por receberem carinho e atenção. Naquele lar, a simplicidade e a delicadeza são as bases do cotidiano. Quando estava guardando minhas coisas para ir embora, Irmã Mercês me deu várias barrinhas de cereal para que eu pudesse comer caso sentisse fome no caminho de volta para a casa
estimulada por Paulo Elejalle, diretor do Hospital Pedro II, Nise criou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) que dirigiu até o ano de 1974 quando se aposentou. Em 1956, fundou a Casa das Palmeiras, primeira instituição a defender a desinstitucionalilação dos manicômios no Brasil. A trajetória de Nise da Silveira rendeu o filme “Nise – O coração da Loucura”, dirigido por Roberto Berliner, estrelado por Glória Pires e baseado no livro “Nise – Arqueóloga dos Mares”, do jornalista Bernardo Horta. Como o filme mostra, a psiquiatra percebeu que os portadores de sofrimento mental expressavam seus sentimentos por meio das pinturas. A partir daí arte e vida seriam inseparáveis do tratamento, especialmente na reconstrução de laços perdidos com o tempo. Na busca por afetividade no espaço de convivência, Nise também trouxe à rotina dos pacientes o convívio com animais de estimação.
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Tomรกs Foto: Maria Clara Castro
Wagner Foto: Maria Clara Castro
SĂlvia Foto: Maria Clara Castro
Clarismundo
Foto: Maria Clara Castro
Irmã Mercês e Edgar Foto: Maria Clara Castro
poesia, feminismo e arte
- entrevista
Foto: Guilherme Aroeira
A artista mineira, conta um pouco sobre sua história, feminismo e arte Por Ana Carolina Rodrigues e Guilherme Aroeira Considerada um dos nomes mais promissores da nova geração artística de Minas Gerais, Luísa Bahia é formada pela Fundação Clóvis Salgado, dramaturga, diretora, poeta, compositora e cantora. Mineira de Congonhas, desde cedo conviveu com a arte. Luísa escreve, atua e dirige a peça Risco, que conta a história de Dora, uma mulher errante que sai em uma jornada de descobrimento de si mesma.
Diagramador(a): Catherina Dias
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entrevista - poesia, feminismo e arte Primeiros anos e descobrimento Comecei na dança, aos quatro anos, balé clássico, um pouco de jazz, e outros ritmos. Além disso, minha mãe também é atriz, e eu sempre a acompanhava nos movimentos, nos festivais. Sou de Congonhas, e a cidade sempre teve festivais culturais, festivais de inverno, como diversas cidades do interior mineiro, e eu tudo quanto é oficina eu fazia. Em 2004, eu participei da minha primeira peça em Congonhas ainda. Me mudei para Belo Horizonte, comecei a fazer teatro no colégio, num grupo que chamava Gambiarra, no Santo Antônio. Sempre gostei das artes, um pouco por incentivo da minha mãe. No ensino médio eu vi na arte um caminho profissional. Então, eu decidi fazer o teste pro CEFART (Centro de Formação Artística e Tecnológica, da Fundação Clóvis Salgado). E lá, pude estudar dança, dança contemporânea, aulas de teatro, e comecei a enveredar na música. Fiz parte de um grupo de mobilização social de teatro, que fazia apresentações, cortejos, e comecei a despertar pra esse lado
Foto: Guilherme Aroeira
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da música, do canto. Cheguei a fazer canto lírico, coral. E o CEFART foi definitivo pra entender a arte como profissão. Fiz parte de companhias de teatro, participei de espetáculos, trabalhando ambém com produção, preparação, tanto vocal quanto corporal. Entendendo mais da arte como profissão, eu decidi fazer uma graduação em teatro, na UFMG, primeiro pra obter a licenciatura, porque eu tinha o interesse de lecionar teatro, e depois fiz o bacharelado. Tive um estofo mais teórico, mais embasamento, sempre trabalhando paralelamente, com produção, preparação, até começar a escrever e fazer dramaturgia.
O espetáculo Risco Nesse período de bacharelado, surgiu o Risco. Antes dele, eu trabalhava com outros grupos, escrevia em processo de colaboração, com outros diretores, adaptação de textos literários. Foi então que eu decidi fazer esse trabalho solo, e juntar meus desejos artísticos, pensar uma estrutura que tivesse a ver com minha vivência. Então, o Risco é isso: é uma viagem vivida por uma mulher. Esse foi o principal chamariz pra escrever esse texto. E eu fui pesquisar nas referências artísticas, na literatura, cinema, histórias de mulheres que viajassem, porque o lugar da mulher sempre foi o da espera, como Penélope, que espera Ulisses voltar da guerra. E, como artista, eu queria entender essa mulher que quer ir, quer viajar, não quer se sentir limitada a um lugar pré-determinado por um homem. E nisso, pesquisei um pouco sobre o mito de Psique, na jornada em que ela se transforma de menina em mulher, jornada do herói. No final das contas, o Risco tem lampejos muito poéticos, as músicas vão costurando com a dramaturgia. Apresentei o texto no Janela de Dramaturgia, que é um festival de
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Foto: Guilherme Aroeira
dramaturgia inédita contemporânea, um espaço incrível de discussão, temas, formas. Fiz um intercâmbio na Itália, fazendo a leitura dramática do texto do Risco. Fiz essa leitura em cidades do Brasil também, ainda com o papel na mão. Em 2016, me juntei ao Ricardo Alves Jr., que é um cara do cinema, que já me acompanhava há um tempo, junto de alguns amigos artistas, pra pensar a construção de uma peça. E, falando como mulher, como feminista, esse texto hoje tem um lugar diferente, uma forma de lidar com ele diferente. A roupa que eu uso, a forma de abordar certos trechos, a forma de se colocar, inspirei-me no movimento punk. A direção de arte tem uma pegada mais agressiva.
Artista e política O artista é um ser livre. Nós não podemos obrigar o artista a se posicionar dessa ou daquela maneira , porque se fizermos isso, ele não vai ser genuíno, não vai ser autêntico. Dá pra falar de guerra falando de flor, ou de uma maneira muito realista, absurda. Dá pra abordar de diversas maneiras. O artista atravessa o tempo, e o tempo atravessa o artista. E
Diagramador(a): Catherina Dias
poesia, feminismo e arte cada um aborda da maneira que considerar melhor. Tenho amigas feministas que abordam temas relacionados de uma maneira direta, pesada, e outras que tratam os mesmos temas de uma maneira mais branda, abstrata, sutil.
Mulheres e lugar de fala Falando sobre a mulher, nem toda mulher que vai estar em cena hoje vai falar sobre a mulher, seja no teatro, na música. A mulher quer estar em cena. Controlar o discurso é uma forma de censura. Não é dizer “temos que falar da mulher”. É a mulher quem está falando, e ela fala do que ela quiser! Se ela quiser falar sobre abuso, ela tem todo direito. Se ela quiser falar sobre a Primavera, ela tem todo o direito também! O grande lance é que nós, mulheres, nunca pudemos falar. Temos uma parte pequena nas bibliotecas, no protagonismo, direção e roteiro de filmes, bandas. O movimento mais interessante que eu percebo é de mulheres fazendo festivais, mulheres protagonizando mostras de cinema, de teatro, tanto como artistas quanto curadoras, pensadoras em geral.
Feminismo, luta e arte O feminismo e o movimento das mulheres, como outros movimentos sociais, se unem por ideais comuns. Não quer dizer que elas sejam iguais. Não acho que as mulheres estão eliminando as diferenças entre si, mas pelo contrário. Existe o feminismo negro, que é diferente do feminismo branco, e isso não impede que as mulheres se unam pra discutir, pra lutar, protestar, criar obras artísticas, ou representar no Congresso. É uma atenção à realidade da outra mulher. Diante de todos os movimentos sociais, movimentos de minorias, existe uma tentativa de massificação e homogeneização. Os movimentos de mulheres, os feminismos, são vários.
Diagramador(a): Catherina Dias
Cada lugar no mundo, cada movimento, tem uma pauta, uma forma de luta. E isso é incrível. Como mulher, e artista, eu sou muito atravessada pelos depoimentos de outras mulheres, por estudos, assim como simples narrativas de experiências, tanto de transformação, de empoderamento, seja de uma mulher negra que chega à universidade, até o relato de uma menina de 13 anos. Além disso, ministro um workshop que se chama Doras, que é um encontro para mulheres artistas. E a ideia é exatamente a gente se encontrar pra perceber as diferenças, e se potencializar diante da outra, e com a outra. E eu percebo que o chamariz da oficina é que cada uma fale sobre seu discurso urgente, e são muito distintos. A oficina é pra justamente como colocar esse discurso em cena, como transformar ele em arte. O feminismo é variado, cheio de subjetividades. Estamos nos unindo, mas respeitando as individualidades de cada uma.
“A arte é uma ilha flutuante, que tem que ter liberdade” Luísa Bahia Conservadorismo e Censura Nos vários momentos da história, a arte respondeu de uma maneira interessante. Por exemplo, na Ditadura Militar do Brasil, surgiram várias coisas incríveis como Grupo Opinião, Tropicália, Chico Buarque. Mas a gente sempre espera que a sociedade evolua. Poder falar sobre alguns temas, como nudez, sexualidade. É um movimento não só de censura na arte, mas de uma censura na vida. Não poder discutir gênero na escola, escola sem
- entrevista
partido. Existe uma censura real. A arte dialoga com a política, a sociologia, filosofia. Seria redutor dizer que, como artista, estou sendo censurada, porque nós como sociedade estamos limitando nosso pensamento. A arte tá aí pra poder pensar a realidade de outro jeito, explodir fronteiras, quebrar barreiras, e claro, existe arte de todos os tipos. Nem toda arte é de esquerda. Hitler, por exemplo, era apreciador de arte. Existiam pessoas que faziam obras artísticas voltadas pra ele. Pirandello, que era um grande dramaturgo italiano, era fascista. Existe uma censura da esquerda, existe uma censura da direita. Aliás, direita e esquerda são fronteiras que precisam ser rompidas. Existe uma gama muito maior de pensamentos políticos. A arte é uma ilha flutuante, que tem que ter liberdade. Tem artistas mais militantes, mais ativistase, e outros menos. E, cada um vai escolher sua forma de pensar e de agir.
Futuro Uma das coisas que constitui minha personalidade como artista é ser multifacetada. Durante algum tempo eu sofri com isso, mas hoje lido numa boa. Faço apresentações poéticas, oficinas de teatro, pretendo em breve apresentar meu trabalho musical autoral. Além do teatro, da poesia e da música, que já estão na minha vida, eu penso em cinema. Trabalhei na pesquisa de elenco do filme A cidade onde envelheço, da Marilia Rocha, mas tenho desejo de trabalhar como atriz. Séries, minisséries, tenho o desejo de trabalhar ainda. A TV eu tenho algumas questões. Novela eu não tenho muito desejo. Mas os outros me instigam mais, tem roteiros mais interessantes, personagens mais cativantes. E sempre ser uma autora do que eu faço. Atriz, poeta, dramaturga, diretora, compositora, cantora!
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As fotos de Maria Clara Castro que compõem este ensaio são parte do projeto “Habito”, desenvolvido como Trabalho de Conclusão do Curso Superior de Tecnologia em Fotografia da Universidade Fumec, realizado sob orientação da professora Dunya Azevedo. Esse trabalho mostra a relação que os moradores de rua têm com suas moradias. “O objetivo principal é dar identidade a essas pessoas e mostrar como como suas ‘moradias’ fazem parte do mundo subjetivo de cada uma”, afirma Maria Clara. O uso da sobreposição de imagens contribuiu para a construção do conceito de fusão entre morador/moradia e a casa como lugar de subjetividades. As imagens sofreram uma manipulação digital para retratar melhor esses dois enfoques que, na verdade, são um só: rostos e moradias, peles que habitam. “Procurei, por várias regiões da cidade, moradores que tinham suas moradias adaptadas de forma mais próxima de uma casa convencional. A abordagem com essas pessoas se deu de forma bem natural e, antes de tudo, eu me apresentava e conhecia um pouco mais sobre elas”, conta a fotógrafa. Segundo pesquisas do censo feito pela Prefeitura de Belo Horizonte no ano passado, o número de morado-
Por Maria Clara Castro res de rua cresceu consideravelmente, saltando de 1.827, em 2014, para 4.553, em 2017. Para confrontar essa dura realidade, Maria Clara buscou despertar a curiosidade por meio do olhar para esses moradores “invisíveis” que habitam a cidade. “Para isso, foi preciso olhar para o outro e se pôr em seu lugar”, afirma. Para realizar esse trabalho, a fotografa praticou a escuta. “Ao longo das conversas – que eram muito prazerosas – eu propunha a intervenção fotográfica e, em alguns casos, a de vídeo. A maioria foi bastante receptiva. Houve uma troca maravilhosa e única com cada um. Apesar de serem estigmatizados, cada um com seu jeito particular de ser, demonstraram-me o contrário e me engrandeceram como profissional e como pessoa. Sem dúvidas, foi uma experiência incrível e um projeto que pretendo continuar”, completa. O projeto “Habito” revela, segundo Maria Clara, a sua descoberta da área documental e autoral na fotografia. Além das imagens que compõem esse ensaio, o projeto completo é composto por 12 imagens. No período de 4 de junho a 9 de julho, o trabalho da fotógrafa ocupará a galeria principal da Biblioteca da Fumec, em exposição como artista convidada
HABITO
Mรกrio Lucio Chagas
Eliane Almeida
ValĂŠria Pereira
Ronaldo Santos
mulheres no estádio
- RepoRtagem
torCer, lutAr e
Por Cristiano Bueno
Grupos de torcedoras se unem para lutar por mais mulheres nas arquibancadas Diagramador(a): Catherina Dias
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Reportagem - mulheres no estádio
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Foto: Grupa
Entrar em um ambiente no qual todos se divertem, demonstram seus sentimentos, nos traz sempre uma emoção diferenciada. Mas quando você passa a ser vigiada, menosprezada e atacada por quem se considera superior, essa emoção se torna uma experiência frustrante. Para as mulheres que acompanham de perto seus times nos estádios de futebol, se divertir se torna um sentimento condicionado ao machismo imposto nos gramados. Em um ambiente de “regras próprias”, as arquibancadas ainda assustam inúmeras mulheres, devido a discriminação, assédio e a falta de espaço no esporte mais popular do mundo. No entanto, os últimos anos foram marcados pela união de mulheres em prol da representatividade feminina nos estádios. Além de irem juntas aos jogos, elas se reúnem para discutir mudanças nas estruturas das torcidas e na organização dos eventos esportivos. Elas estão começando a chamar atenção dos torcedores, da mídia e dos clubes, enfrentando o tabus ainda latentes em nossa sociedade. As dificuldades encontradas por Ana Clara Bicalho, 23 anos, começaram ainda em casa. “Quando tinha 16 pra 17 anos, comecei a frequentar um bar para assistir aos jogos do Atlético. Nesse momento, meu pai fez questão de pagar o melhor pacote de TV por assinatura para que eu não precisasse comparecer a esses locais”. Para ela, foi um grande exemplo machista, e ainda completa, “pois é equivocado pensar que a privação da liberdade fará mais efeito que a tentativa de inclusão”. Uma das criadoras do Coletivo Feministas do Galo, grupo de torcedoras atleticanas, ela acredita que suas atitudes devem ser um elo entre as mulheres e o meio esportivo, buscando cada vez mais a inclusão. “Vejo a criação do Coletivo como uma forma de representação da
Participantes do Grupa durante o jogo do Clube Atlético Mineiro
mulher nesse meio, criação de uma identidade a nossa existência. Isso serve como espelho para muitas mu-
“Já vi cara puxando menina pelo braço porque estava saindo sozinha do estádio, menina que apanhou na arquibancada, e não foram uma nem duas” N.S lheres que tem essa ideia também”. Em 2016, o clube Atlético Mineiro promoveu um desfile de seu novo uniforme com modelos femininas usando apenas uma parte do traje (camisa ou calça), adotando um tom sexista para a ocasião. Isso gerou a revolta de muitas torcedoras, que se uniram para protestar nas redes so-
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ciais. Assim surgia o Grupa, coletivo de torcedoras que hoje conta com mais de 40 integrantes. Dentre as ações das torcedoras, destacam-se as campanhas de conscientização e a abertura ao diálogo. “Sempre nos posicionamos publicamente e cobramos do clube que também se posicione e evite comportamentos machistas”. Já a relação com os demais torcedores atleticanos é de amor e ódio. “Em alguns momentos fomos criticadas publicamente por influenciadores e também recebemos muitas mensagens de ódio nas redes sociais. Contudo, o simples fato de pessoas que não concordam com o feminismo ou politização do futebol reconhecerem a nossa existência ou se posicionarem tão fortemente já reforça nossa necessidade de existência”. E apesar de todos os acontecimentos negativos já ocorridos pelo clube e a elas, o Grupa acredita que houve uma evolução. “Esse ano, o Atlético tem feito campanhas contra racismo e violência contra as mulheres (inclusive com a participação de Maria da Penha na entrada em campo), além de ter feito um desfile e coleção mais inclusivos ano pas-
Diagramador(a): Catherina Dias
mulheres no estádio sado. Mas ainda existe um longo caminho. As ações de valorização da mulher, seja contra violência doméstica, assédio ou incentivo ao maior engajamento das torcedoras, valorizando-as como tal, devem acontecer o ano inteiro e não apenas campanhas pontuais. O clube precisa também de mais mulheres na diretoria!”. Para finalizar, elas são bem claras. Quando questionadas sobre o que falta para as mulheres ganharem de vez os estádios, a resposta é simples e direta: “Falta respeito”.
Do outro lado da Lagoa...
que o trabalho tem um viés educativo e preventivo. “Reforçamos o diálogo com as torcidas organizadas para evitar certas atitudes, como músicas preconceituosas nos estádios. Procuramos evitar cantos machistas, mas é difícil, pois são 50 mil cantando. É um trabalho de “formiguinha”, mas que na RAP funciona de forma mais efetiva”. O que em muitas torcidas é proibido, na RAP é permitido. O espaço das mulheres é garantido, tocando instrumentos e portando bandeiras nos jogos do clube. A partir dessas ações, Ana Clara acredita que há sim uma evolução no papel das mulheres nos estádios. “Na minha percepção, a situação de respeito nos estádios está até melhor que fora deles. O assunto tem sido mais discutido e valorizado”.
Foto: Monique Torquetti
No lado azul de BH, o sentimento não é diferente. É o que conta N.S., 24, sobre seu sentimento ao frequentar os estádios. “Não me sinto confortável. Apesar de campanhas de conscientização, ainda
não é o ideal, pois tratam o futebol como um mundo à parte. Não te enxergam como torcedora e fazem todo tipo de julgamento: ou você é Maria chuteira, ou só está acompanhando algum homem, ou é enfeite”. Ela, que já foi membro de uma torcida organizada cruzeirense, conta que já presenciou diversos casos de violência dentro e fora da arquibancada. “Já vi cara puxando menina pelo braço porque estava saindo sozinha do estádio, menina que apanhou na arquibancada, e não foram uma nem duas”, conta. Apesar de não possuir uma torcida exclusivamente feminina, o Cruzeiro conta com o apoio de grupos como a Resistência Azul Popular (RAP), que luta por questões sociais relacionadas ao futebol. Ana Clara Costa, 26 anos, é membro ativo da torcida, comenta
- Reportagem
Diagramador(a): Catherina Dias
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Reportagem - mulheres no estádio Foto: Monique Torquetti
Cruzeirense discursa durante o encontro nacional
Organizadas a nível nacional Criado em 2016, o Movimento Mulheres de Arquibancada reúne mais de 250 mulheres na organização nacional. Com o objetivo de tornar a arquibancada mais igualitárias, o movimento não pretende mudar por conta própria a situação nos estádios, mas sim conscientizar as mulheres, para que elas possam fazer isso. “A mudança não vai acontecer enquanto as mulheres não tiverem consciência que têm capacidade para isso e do quão isso é importante. Temos o direito de torcer e nos sentirmos seguras por isso”, afirma Natália Andrade, 24 anos, representante do grupo em Minas. Uma das fundadoras, Kiti Abreu, 30 anos, conta como foi o surpreendente início. “A Penélope (corintiana da Fiel RJ) propôs de nos encontrarmos em um bar da Lapa, no Rio, para um bate-papo informal sobre vários assuntos. Porém, as meninas dos outros estados também estavam
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interessadas. Quando vimos, éramos 70 mulheres no grupo. Foi então que o Museu do Futebol, no Pacaembu, disponibilizou o auditório. Assim, o que era um encontro informal em um Bar da Lapa tornou-se o I Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada, com mais de 350 mulheres dos 4 cantos do Brasil”. Segundo Kiti, já existem resultados visíveis, enquanto outros pedidos ainda dependem de forças maiores. “Alguns grupos femininos foram
“Evitar certas atitudes, como músicas preconceituosas nos estádios” Ana Clara Costa
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reativados após o encontro, outros criados. Já o policiamento treinado para a revista das mulheres e os banheiros femininos ainda é problema. No próprio Mineirão, tive que usar o banheiro masculino, pois não separaram sanitários femininos para a torcida visitante”. A carioca ainda ressalta que as torcedoras mineiras abraçaram a causa, deixando a rivalidade de lado. “É uma dificuldade que tivemos em muitos estados. Conseguimos também representantes das duas maiores torcidas do estado e já realizamos um encontro estadual. O movimento vem crescendo muito”. Por fim, o grupo entende que falta reconstruir os conceitos. Tanto homens, quanto mulheres, entenderem que o estádio é um lugar para todos, e que, através da consciência, união e respeito, é possível transformar as arquibancadas em um ambiente mais igualitário
Diagramador(a): Catherina Dias
redoma invisível
- reportagem
Moradores do Morro do Papagaio contam suas histórias e desabafam a respeito do preconceito que separa completamente a comunidade do resto da cidade Por: Ana Júlia Ramos Sábado, 23 de Setembro de 2017, 11 horas da manhã. O sol forte iluminava a região da barragem Santa Lúcia, que no momento da reportagem se encontrava repleta de pessoas. A maioria, moradores dos bairros mais próximos como Santo Antônio e São Bento. Era possível ver de longe famílias fazendo caminhada com seus cachorros, casais tomando água de coco e, em meio ao lazer do final de semana, a escola de samba da região ensaiava na área central da praça que marca uma integração entre duas realidades muito diferentes. No meio de aproximadamente oito bairros que possuem os maiores índices de desenvolvimento humano da capital, a vista emblemática do Morro do Papagaio simboliza uma característica presente em todo o país: a desigualdade social. O principal resultado dessa desi-
Diagrmação: Ana Júlia Ramos
gualdade é uma série de preconceitos e estigmas criados em cima do aglomerado que habita 16.914 pessoas, de acordo com o último censo realizado pela Prefeitura de Belo Horizonte, e não é preciso ir muito longe para começar a perceber a forma pela qual as pessoas acabaram criando uma espécie de padrão ideológico e um consenso sobre a favela e, consequentemente, seus habitantes. Em um rápido passeio pela barragem Santa Lúcia, espaço usado tanto por pessoas de classe altíssima, quanto pelos moradores da comunidade, já é possível afirmar a ideia. “A favela é extremamente perigosa. Tenho muito medo quando chega seis horas da tarde e um pessoal mais novo começa a descer o morro”, afirma Cláudia Macedo, de 34 anos. “parece que vão sair pegando
todo mundo”. A moradora do bairro São Bento continua: “o batalhão de polícia aqui do lado me dá uma sensação maior de segurança, mas ainda não é muito”. Ela se refere ao Vigésimo Segundo Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais, localizado na barragem, em uma das várias entradas para o morro.
A realidade ofuscada pelo medo O encontro que seria realizado ali mesmo, na barragem, foi transferido para a casa de um dos moradores do morro. “Subir a favela” é algo que amedronta muita gente, porém mais uma vez é repleto de estigmas e conceitos formados sem muito fundamento, a não ser por notícias que saem na grande mídia e muitas vezes silenciam a realidade de um povo trabalhador e humilde.
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reportagem - redoma invisível
Fotos: Ana Júlia Ramos
Jovens da região sofrem com muito preconceito vindo de moradores de fora
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redoma invisível Logo no início da subida foi possível conhecer uma microempresária. Jumara Elias é cabeleireira e recentemente reformou seu salão e estúdio de noivas. “Olha como ficou bonita a sala da noiva, gente! Ainda faltam alguns retoques, mas rapidinho fica pronto e eu já estou recebendo clientes aqui”. Jumara levantou parede, criou um segundo andar para o salão e continua levando a obra a diante. O sorriso não saiu do rosto da mulher em momento algum, assim como as clientes que conversavam e riam em meio a um ambiente descontraído e familiar. Inclusive, é o filho que a ajuda a tocar o negócio. Os becos, na prática, não são nada intimidantes como é dito que parecem. Era possível ver crianças brincando, cachorros dormindo e moradores na porta de suas casas jogando conversa fora. De acordo com eles, inclusive, é assim que funciona sempre: as portas não precisam ficar trancadas. A criminalidade no morro não é alta da forma como é retratada pela mídia
e cinema, a comunidade não é “terra sem lei” e muito menos espaço para guerras desenfreadas entre traficantes.
O dia a dia através dos olhos da juventude João Vitor Gonçalves, de 22 anos, começou a entrevista disposto a tirar o máximo de dúvidas possíveis a respeito da sua comunidade. Ele inicia contando sobre serviços básicos como o de lixeiro e da prefeitura: “O lixeiro passa de segunda a sábado, duas vezes no dia. Primeiro às 9 da manhã e depois às 2 da tarde, e atua em todo o morro. Existe a coleta seletiva e profissionais que passam varrendo as ruas e becos.” Ao ser perguntado sobre a atuação da prefeitura com iniciativas para melhorar a vida da comunidade em geral, no entanto, ele enfatiza: “A prefeitura está cada vez mais realizando ações para melhorar a vida no morro, mas isso só acontece porque existem pessoas daqui da comunidade que se esforçam para levar os nossos problemas para
Luiz Eduardo pede por mais tolerância e respeito
- reportagem
os responsáveis. Se não fosse isso, seríamos ignorados”. De acordo com João, a prefeitura vem trabalhando no alargamento de algumas das ruas principais do morro, que recebem um grande fluxo de carro e pessoas diariamente. Quem precisar entregar as suas casas tem duas opções: receber uma indenização ou se mudar para as casinhas do projeto Minha Casa, Minha Vida na Vila São Bento, localizada ao lado do morro. Para o jovem, essa é uma boa opção para famílias e pessoas que não se importam de morar em apartamentos menores. Muitos moradores, inclusive, se animam com a ideia pelo fato de ganharem o nome “São Bento” em seus endereços, o que reduz o preconceito e os maus olhos de quem descobre que são moradores da comunidade. A realidade na favela vem mudando muito com o passar dos anos. Serviços de internet e televisão a cabo, por exemplo, não chegavam até as casas:
Fotos: Ana Júlia Ramos
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reportagem - redoma invisível “Antigamente você ligava para a GVT ou a NET, por exemplo, querendo contratar um serviço, mas eles alegavam que não subiam na favela. Era justamente isso que levava todo mundo a ter gato”, conta João ao ser questionado sobre a fama de que moradores da favela, em sua maioria, usam fontes ilegais para usufruir dos serviços. Atualmente isso não existe mais: é possível avistar antenas da NET e da Sky de longe. Além disso, o Morro do Papagaio conta com um serviço próprio de internet para atender aos moradores. O transporte público é um só: a linha 101, que atende o Aglomerado Santa Lúcia (nome “oficial” do morro). Os moradores afirmam que, apesar de ajudar, não é suficiente. Eles alegam que a distância percorrida é pequena e não abrange todas as áreas do morro, fazendo com que o principal meio de transporte seja a caminhada. A passagem é de 90 centavos e muitos cobradores não ligam de não cobrar passagem de quem precisa. Vários deles são moradores da comunidade e entendem a necessidade que seus conterrâneos vivem.
Policiamento, preconceito e o Estado Outros jovens que deram seus depoimentos foram Luiz Eduardo, de 23 anos, e “Muleke Doido”, de 19 anos, que pediu para ser tratado pelo apelido. “As pessoas já olham pra nós com preconceito, achando que nós vamos roubar alguma coisa”, afirma o mais novo. “Se estamos na Savassi ou no São Bento, todo mundo discrimina”, dizem todos à medida que a conversa ia avançando e se tornando mais empolgada. “Eles não sabem que nós temos humildade e somos pessoas normais”. Luiz dá a sua opinião sobre o preconceito: “Ao não sentirem vontade de nos conhecer, de entender a nossa realidade, criam um muro entre
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nós. Aquela pessoa, ao te ver, você está andando na mesma calçada que ela, e ela atravessa, isso é um muro invisível, um constrangimento. Isso revolta. Por que esse medo de mim? Eu não sou um bicho, eu não sou um animal, eu não vou te fazer mal.” Ao serem perguntados sobre a polícia, todos os jovens da roda fizeram a mesma expressão facial e o sorriso presente em toda a reportagem se transformou em um semblante sério. “A polícia só sobe no morro para esculachar”, inicia Luiz Eduardo. João diz que a polícia passa mas faz vista grossa para várias coisas. “A proteção do cidadão não é prioridade deles”, completa Luiz. Um dos amigos dos meninos diz que “quando a ROTAM chega no morro, aborda o primeiro que aparecer”. Para liberar os jovens, geralmente, existem duas saídas “é peça ou 2000”, diz Muleke, se referindo à arma de fogo ou dinheiro. De acordo com eles, policiais da Polícia Militar são mais tranquilos em suas abordagens, ao contrário
“Por que esse medo de mim? Eu não sou um bicho, eu não sou um animal, eu não vou te fazer mal” do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas, a ROTAM. A realidade dos jovens também é de muita violência. “Antes de liberar, sempre existe porrada, se não forem com a sua cara tem até choque na cara”. Outro amigo entra na conversa e relata sua experiência: “antes de ontem mesmo, aqui na frente da minha casa, a polícia chegou. Logo entrei para dentro, mas ainda tinham dois meninos na rua, porém me seguiram perguntando se eu tinha guardado
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alguma bola”, gíria usada para se referir a drogas. Ele continua: “eu falei que não guardei, e ele logo disse que se caso achasse alguma coisa na minha casa, poderia me dar uma surra na cara”. “Muleke Pequeno” também decide contar a história vivida por ele e um amigo em um dia qualquer: “levaram nós dois ali para perto do campinho, perto dos predinhos do Bairro São Bento e escamaram eu e meu amigo”. Após a agressão, os policiais ordenaram que os dois corressem o máximo que podiam, com a justificativa de que matariam os dois ali mesmo. Antes de correr, o jovem levou um soco no rosto e caiu no chão. “Isso causa uma grande revolta para nós”. Os dados não mentem: estamos vivendo em meio a uma crise social. No ano de 2017, o Brasil caiu 19 posições no ranking de desigualdade social da ONU, o que fez com que o país entrasse no ranking dos 10 países mais desiguais do mundo. Estudo da Oxfam (uma confederação internacional que atua em mais de 100 países em busca de soluções para os problemas da pobreza e injustiça), divulgado em 2017, confirma que os 5% mais ricos do país detêm fortuna equivalente ao resto do Brasil, ou seja, os 95% restantes da população. Ainda no levantamento, foi possível afirmar que seis brasileiros mais ricos acumulam a mesma quantidade de dinheiro que metade da população mais pobre do país, composta por 100 milhões de pessoas. O número equivale também à metade de todos os habitantes do Brasil, que ultrapassa os 207 milhões de pessoas de acordo com estudos do IBGE. Policiais foram procurados para darem seu parecer a respeito dos relatos feitos pelos jovens, porém, ao ficarem sabendo do tema da reportagem, voltaram em direção ao 22º batalhão.
redoma invisível Os olhos de quem vê de fora O fato de a comunidade estar literalmente cercada por bairros de classe alta faz com que moradores criem opiniões próprias a respeito do assunto, a partir de suas vivências pessoais. Maria*, pequena empresária de 46 anos, preferiu não se identificar com o nome real. O motivo, em suas palavras, “é porque muita gente vai se incomodar com o que eu quero dizer”. Ela continua: “mas, se eu não falar, quem é que vai? Tenho certeza que muita gente pensa igual eu”. Maria é residente da Rua Deputado Álvaro Sales, no bairro Santo Antônio. A distância do seu apartamento de três quartos e área privativa do morro não chega a 700 metros, fato que incomoda a moradora. “O meu apartamento é desvalorizado pois o fundo dele dá de frente para aquela cena de violência é como se eu tivesse que conviver com aquilo diariamente.” Ao ser perguntada sobre o que ela acha a respeito do Morro do Papagaio, Maria é enfática: “O primeiro pensamento que vem em minha cabeça é que as pessoas saem daquele morro para tirar o nosso sossego, eu não posso pagar pela falta de estrutura e condição social e financeira de quem mora lá”. De acordo com a moradora, “noites de funk intermináveis” acontecem todo final de semana. “Uma coisa que há 5 anos não me deixa dormir é o maldito funk que acontece a noite toda, começa por volta de meia noite e vai até as 5 da manhã. O barulho que vem desse aglomerado é tão estarrecedor porque assim que termina o funk os galos começam a cantar e cachorro começa a latir. Você passa a noite em claro, só com tarja preta para conseguir dormir. Sinto que acabo vivendo no mundo deles sem nenhuma vontade.” Durante a conversa, a mulher diz
que vários de seus vizinhos se sentem assim também, mas não falam muito por medo de estarem sendo “preconceituosos” ou padronizando o grupo de forma errada, mas afirma que “na realidade eles são desse jeito mesmo”. “Eu já fui assaltada várias vezes no meu bairro. Tenho certeza que quem me assaltou foi um morador de lá. Eu não sei se eles usam um uniforme, porque pra mim todos se vestem igual. É correntinha no pescoço, é boné de marca que eu acho que nem é marca mesmo.” Ao finalizar a sua fala, Maria confessa: “às vezes eu queria que o morro não existisse, pelo menos não aqui, não perto de um bairro tão familiar.” Felizmente, não é todo mundo que pensa dessa forma. A jovem de 20 anos Thabata Dias conta que antigamente pensava de forma equivo-
- reportagem
muito pertos um do outro, um lado acaba não tendo a compreensão do que acontece no outro, algo que gera diversas consequências futuramente.” De acordo com ela, deveria existir uma maior aceitação e interesse em conhecer o diferente: “acho que é necessário haver uma reeducação para conseguir diminuir esses pensamentos negativos já impostos há bastante tempo dentro da sociedade.”
“às vezes eu queria que o morro não existisse” cada sobre a comunidade, pelo fato de inclusive já ter sido assaltada nos arredores uma vez. Sua casa se localiza na divisa da comunidade com o bairro São Pedro, a 1 quarteirão de distância. O pensamento, de acordo com ela, é difundido por moradores do bairro. Sua família, amigos e conhecidos já falaram inúmeras vezes para que ela tomasse cuidado com os perigos da região. A estudante acredita que isso acontece pela falta de informação da parte dos moradores: “pessoas aqui do bairro sabem que existe a comunidade, mas não tem um conhecimento do que acontece lá dentro, da necessidade e dificuldade que passam.” Ela continua: “são duas realidades muito diferentes, então mesmo que sejam dois lugares
Fonte: prefeitura de BH
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Foto: Silvânia Capanema
Reportagem - um final quase bom
Quintal do Centro Social Lar Frei Leopoldo, fundado em 1981, que acolhe meninas desligadas do convívio familiar
Crianças e adolescentes, em situação de extrema vulnerabilidade social, são acolhidos em lares institucionais e ali permanecem até atingir a maioridade Por Silvânia Capanema A partir dos dez anos de idade, a possibilidade de serem adotados se torna mínima, caindo sobre dedicadas equipes de assistentes sociais e psicólogos a missão de prepará-los para cuidarem de si mesmos, ao alcançarem a maioridade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece a garantia de proteção integral e indica as medidas sociais, protetivas e socioeducativas que devem ser aplicadas para assegurar o bem-estar de crianças e adolescentes. No artigo 19, garante o direito de serem criados e educados no seio de suas famílias e, excep-
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cionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. A lei determina que, se o menor estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional, terá a situação reavaliada, com base em relatórios, a cada seis meses, no máximo, visando a reintegração familiar ou colocação em família substituta, sendo que a primeira opção tem total preferência sobre qualquer outra providência. O acolhimento não deve se prolongar por mais de dois anos, salvo comprovada necessidade.
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O Serviço de Atendimento Institucional atende crianças e adolescentes em situação de violação de direitos, garantindo a proteção integral. Compete aos Conselhos Tutelares e à Vara da Infância e Juventude determinar os casos em que precisam ser afastados do convívio familiar. O acolhimento acontece em casas com capacidade para, no máximo, 15 crianças, onde recebem alimentação, vestuário, cuidados de higiene, tendo direito assegurado por lei à saúde, educação, transporte, esporte, lazer, dentre outros.
Diagramação: Lizandra Andrade e Catherina Dias
um final quase bom
- Reportagem
Segundo Aparecida Gomes de Souza, psicóloga, pedagoga e coordenadora há onze anos do Lar Frei Leopoldo, no Bairro Parque São José, que acolhe meninas entre sete anos e onze anos e onze meses, “ a missão da Casa de acolhida é a de receber a criança que teve seus direitos violados, que está em situação de vulnerabilidade social. Além de ter garantidos todos os seus direitos sociais, deve estar informada sobre a sua realidade, no entendimento possível à sua faixa etária”. O empenho é para que voltem, o mais rápido possível, às suas famílias. Para Cida, como é carinhosamente chamada pelas treze meninas do Lar, “por mais que se tente fazer da Casa de acolhimento um lar com a cara de uma casa, onde cada criança tem sua cama, seus armários, seus pertences, ou seja, um lugar onde tenha a sua individualidade, independência e autonomia, não é o lugar ideal para ficarem pois perdem a figura, a imagem do que é uma verdadeira família. A Casa é um ganho, porque saíram de um ambiente de violência, mas, depois de um certo tempo, querem voltar para sua própria casa, porque, na grande parte das vezes, existe um vínculo de amor. Quando a família realmente quer faz o trabalho de recuperação e resgata a criança. É a melhor solução, pois, por pior que seja a situação, a criança ama a família e sente muita falta da mãe. Não mentimos para a criança sobre a situação, mas tratamos todos os problemas como um adoecimento. As crianças entendem que estão na Casa porque tem uma lei que as protege e que cuida do bem-estar delas”. O trabalho da assistência social é de reinserção da criança na família original (pais), mas quando a família está “adoecida” (usam o termo para se referir às famílias que têm problemas sérios com violência, uso
Foto: Silvânia Capanema
Um possível retorno ao lar
Irmã Nieza, á esquerda, e Margarida de Lourdes, á direita
sistemático de álcool ou substâncias ilícitas, ou estão em situação de rua), explica Aparecida, não se pode devolver a criança a uma situação de vulnerabilidade. Tenta-se, então, a guarda ou tutela da criança por algum membro da família extensa (parentes). O poder judiciário exige constantes relatórios do acompanhamento das crianças, caso a caso, e pressiona para que a situação seja resolvida em até dois anos, quando deve-se apresentar um parecer conclusivo. Não havendo nenhuma possibilidade da criança retornar à própria família, feitas todas as tentativas possíveis, é feito um relató-
“A missão da Casa é a de receber crianças que tiveram seus direitos violados e que estão em situações de vulnerabilidade social” Aparecida Gomes de Souza
rio e aberto o processo de destituição familiar. Uma vez que a família perde o poder sobre a criança ou adolescente, seu nome e seus dados vão para uma lista, quando se torna disponível para adoção. Como o processo de destituição familiar é irreversível, o processo se estende sempre por longos anos. A família conta com defensoria pública ou contrata advogado e o caso vai para a segunda instância. Enquanto isto, vai se prorrogando indefinidamente a estadia da criança ou do adolescente na Casa de acolhimento. A morosidade do processo faz com que a criança ou o adolescente, cuja volta para a família é perceptivelmente muito difícil, seja disponibilizado para ser adotado por uma família substituta tardiamente, geralmente depois de doze anos de idade. A esta altura, a adoção é muito difícil, pois os pretendentes querem sempre crianças de até seis anos.
A vida nas casas de acolhimento Frederico Suppa Costa é psicólogo e trabalha há dezesseis anos na área de atendimento social. Desde 2009, é coordenador da casa Tremedal, no Carlos Prates, que acolhe meninos a partir dos doze anos e faz
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Reportagem - um final quase bom de inglês e atividades lúdicas, como futebol. Devido à situação de negligência a que estiveram expostos por suas famílias originais, os garotos chegam com sérias dificuldades de aprendizagem, como déficit de atenção e até dificuldades cognitivas difíceis de serem superadas. Também não estão acostumados à disciplina e foram criados sem limites, o que, na maior parte das vezes, torna difícil sua adaptação ao regime das casas de acolhida. A pior das situações são os que chegam já com dezessete anos completos, pois mal se consegue providenciar a documentação antes de chegarem à maioridade e serem, automaticamente, excluídos da proteção assegurada pelo ECA. Há evasão porque alguns não conseguem mais viver em um ambiente onde há regras, habituados que estão à livre marginalidade, na maior parte das vezes, com envolvimento com drogas. Para Aparecida, do Lar Frei Leopoldo, o primeiro mês após a chegada é sempre um desafio enorme. As novatas, após a decisão judicial de que precisam ser afastadas de suas famílias, são recebidas com festa pe-
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parte do grupo Associação Irmão Sol. Ele acredita que os jovens podem e devem ser bem preparados para o futuro através da formação, sempre acompanhados por educadores e psicólogos, tendo como pilares a educação e a profissionalização, para que conquistem sua autonomia. Na sua opinião, “por mais que se trabalhe, em primeiro lugar, a questão do retorno à família de origem, trabalha-se, em paralelo, com a autonomia. Depois dos sete anos de idade, fica difícil a adoção por família substituta, portanto não se cria uma expectativa de adoção, pois não há como garantir nada”. Quando um adolescente é acolhido, explica Frederico, a primeira providência é regularizar seus documentos para, em seguida, regularizar sua situação escolar. Todas as crianças e adolescentes incluídos no serviço de atendimento institucional estudam em escolas públicas ou particulares com bolsa de estudos, além de se procurar, na medida do possível e dentro do interesse dos jovens, inseri-los na convivência social normal para sua idade, através de atividades culturais, como aulas
Painel das rotinas e tarefas de cada menina
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“Cada criança novata precisa, o quanto antes, superar o enorme sentimento de culpa que sente em relação à sua família, pois pensa que está ali por castigo” Margarida de Lourdes las colegas. Apesar de encontrarem um ambiente acolhedor, uma casa bem cuidada, onde têm todo o conforto, sua cama, seu armário, seus pertences individualizados, muito espaço e novas amiguinhas para brincar – como na grande parte das casas de acolhida – as crianças mostram muita revolta e apresentam um déficit cognitivo acentuado. Chegam muito sofridas, violentas, revoltadas. Normalmente são necessários três meses, com muita paciência e dedicação, para apaziguá-las, para aceitarem ir à escola e participarem da divisão de tarefas rotineiras da casa, que fazem parte da educação para a autonomia. A partir daí, percebendo o esforço do serviço social para devolvê-las a uma família que tenha condição de criá-las sem violação de seus direitos, passam a aconselhar as mães, incentivando-as a deixar as drogas, a conseguir um trabalho para terem um lar, porque querem voltar a viver com elas. Margarida de Lourdes Monteiro Arcanjo, assistente social desde 1990, trabalha com acolhimento institucional há sete anos e está há quase dois anos no Lar Irmã Veneranda, no Bairro Santa Efigênia. A Casa acolhe meninas desde os sete
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Foto: Silvânia Capanema
anos de idade e algumas permanecem até dezoito anos. Após completarem doze anos, algumas pedem para serem transferidas para lares de adolescentes. Há uma certa flexibilidade quanto à idade, inclusive para permanência de irmãs ou mesmo irmãos menores de sete anos, para não separar grupo fraterno. O lar é uma casa bonita, agradável, colorida, alegre e muito limpa, com uma cama e um armário cheio de roupas, sapatos e acessórios para cada menina ou adolescente, muitos brinquedos, livros e TV (tudo vem de doações) e ainda uma espaçosa área coberta para brincar. No transcorrer da conversa, Margarida mostra-se bastante segura quanto aos fundamentos do trabalho que desenvolve com as crianças: sentimento de pertencimento, autoestima, autonomia, responsabilidade e confiança mútua. Conta que desde o primeiro dia em que chega na casa, a menina aprende a cuidar-se, pois, no seu entender, autoestima e autonomia andam de mãos dadas. Cada criança novata precisa, o quanto antes, superar o enorme sentimento de culpa que sente em relação à sua família, pois pensa que está ali por castigo, porque fez algo muito errado e por ter sido má filha. Margarida costuma dizer às meninas que a situação de sua família de origem é, naquele momento, imprópria para uma criança. Segundo ela, uma criança de sete anos vinda de uma família violenta só conhece esse contexto. “ Tento mostrar para elas, sem perder a realidade, o outro lado da moeda: sem vitimizar, sem ter dó, digo que são seres em desenvolvimento e que tem seus direitos assegurados pela lei”. Com carinho e muita dedicação, em uma relação de confiança e afeto mútuos, a assistente social vai, dia a dia, demonstrando às meninas que o acolhimento institucional é para protegê-las, para cuidar delas, proporcionar-lhes educação e pre-
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Kenya Carvalho, assistente social, é voluntária há cinco anos no GAABH
paro para a vida. Ciente da mínima possibilidade das adolescentes, tardiamente disponibilizadas para adoção, de conseguirem uma família substituta, cita pouco a palavra “adoção”, para não iludi-las. Tenta passar para elas um sentimento de pertencimento ao lar que habitam, e de que ali são únicas e respeitadas. Um grande problema é que, fora do ambiente da Casa, sofrem muito preconceito. Mesmo assim, há casos de evasão, mas as adolescentes acabam voltando por conta própria, pois sentem que na casa há pessoas que se preocupam com elas. Voltando ao ponto de vista de Aparecida Souza, do Lar Frei Leopoldo, todo o esforço deve mesmo ser feito para reencaminhar a criança ou adolescente ao lar de origem o mais cedo possível. Para ela, as meninas que ficam muitos anos no acolhimento, já na adolescência, têm uma postura de empoderamento da casa. Como recebem todo o conforto, presentes, festas, passeios, ida a restaurantes, viagens e opções de
entretenimento, tais com uma viagem à praia, por exemplo, elas não conseguem se ver fora da casa. “Esse é o maior problema, pois passam a não querer mais aceitar a família original. Daí torna-se necessário trabalhar um possível retorno em outros moldes: elas precisam sentir que estão fortalecidas, de que não sofrerão mais abusos por estarem crescidas e cientes de seus direitos, de que se a família errou, foi por falta de informação, de oportunidade de educação e não por falta de amor. Não podem negar as origens, precisam sentir que, voltando, vão fazer a diferença na família, que os papéis se inverteram e que agora poderão cuidar dela.
Uma possível adoção Os brasileiros pretendentes à adoção querem, na maior parte dos casos, crianças sadias, brancas, com até três anos de idade. Diante da dificuldade de encontrá-las devido à lentidão dos processos judiciários para destituir o poder familiar,
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Reportagem - um final quase bom condição imprescindível à adoção, admitem receber crianças de até sete anos, no máximo. Casais homoafetivos e casais estrangeiros, na maior parte da Itália, Espanha e França, mostram-se mais abertos a adotar crianças negras de até, no máximo, doze anos. Os possíveis adotantes têm à sua disposição uma listagem das crianças já disponíveis e, encontrando alguma dentro do perfil desejado, entram no processo de adoção.
“Por mais que se trabalhe, em primeiro lugar, a questão do retorno à família de origem, trabalha-se, em paralelo, com a autonomia. Depois dos sete anos de idade, fica difícil a adoção por família substituta” Frederico Suppa A criança escolhida é consultada sobre o seu desejo ou não de ser adotada. Em caso positivo, a equipe técnica da casa de acolhida prepara a criança para a adoção, enquanto os possíveis pais também recebem orientação. De ambas as partes são disponibilizadas todas as informações, inclusive álbuns de foto para um primeiro contato. Havendo um entendimento, a criança fica sob a guarda da futura família por seis meses, para adaptação. Após este período, desde que seja da vontade das duas partes, a adoção é concedida em definitivo.
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Outro caminho é o apadrinhamento, que pode ser feito por qualquer pessoa maior de idade. O padrinho ou madrinha pode ou não contribuir com apoio financeiro, podendo dar uma grande contribuição ao trabalho de inclusão social da criança ou adolescente, pois é permitido levar o afilhado para casa nos fins de semana e nos períodos de férias. Normalmente, cria-se um forte vínculo afetivo que vem a se tornar uma efetiva adoção. Há muitos casos em que a família original, ou seja, mãe ou pai, não tem condições físicas ou financeiras para cuidar do próprio filho e consegue que um parente ou alguma pessoa com quem tem vínculo afetivo obtenha a guarda provisória ou mesmo definitiva da criança ou adolescente, configurando um tipo de adoção informal. Diante da crescente discrepância entre o número de possíveis adotantes e adotados, a sociedade tem se mobilizado. Desde junho de 2017, o GAABH, junto com o Juizado da Infância e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com a parceria do Cruzeiro Esporte Clube, estão engajados na Campanha “Adote um campeão”. Kenya Carvalho, assistente social , voluntária há cinco anos no GAABH, que conheceu através de estágio na Vara Cível conta que o programa nasceu para fazer um trabalho de colocação de crianças com mais de sete anos e adolescentes, que ficam “invisíveis” para a sociedade, pois muita gente nem sabe que adolescentes podem ser adotados. Foi inspirado no Projeto “Adote um pequeno torcedor “, do Recife. Dentro do programa, que teve a adesão de jovens que hoje estão nas casas de acolhimento, como as já citadas, têm mais visibilidade, o que proporciona a eles maior participação na vida social, com oportunidade de participarem de atividades esportivas e irem ao campo de futebol.
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O programa é divulgado nas mídias e redes sociais e um vídeo é mostrado no estádio antes dos jogos. A campanha vem surtindo efeitos muito positivos e já há vários adotantes inseridos em novos processos de adoção.
Autonomia Ao chegarem à adolescência, as crianças que foram acolhidas na infância já se encontram bem inseridas na comunidade, uma vez que apenas moram nas casas de acolhimento, saindo para irem à escola fundamental, para receber cuidados de saúde, para exercerem atividades culturais, esportivas e de entretenimento. Essas crianças já estão habituadas a uma rotina saudável, com horários e responsabilidades. Com a autoestima e autonomia fortalecidas e, na medida do possível, já com boas noções de inglês e informática, por exemplo, ou tendo feito outros cursos profissionalizantes, a partir de quinze anos e oito meses estão aptas a ingressar no mercado de trabalho. Há diversas instituições que cuidam da capacitação de menores aprendizes, como Prefeitura de Belo Horizonte, Seduc, Rede Cidadã, Asprom e Cruz Vermelha. Por lei, contam com trabalho protegido e carteira assinada e tem até conta na Caixa Econômica Federal. Nessa etapa, aprendem a administrar seu próprio dinheiro, sendo incentivadas a fazer uma poupança que possa garantir os primeiros meses após serem desligados do sistema de atendimento institucional que ocorre, automaticamente, quando completam dezoito anos. Muitos voltam para as famílias de origem nesta etapa da vida, pois agora são respeitados e contribuem para o sustento familiar e, na maior parte dos casos, sobretudo quando a casa acolhedora teve tempo suficiente para prepará-los, os adolescentes conseguem se sair bem
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