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Quanto Mais Aprendemos Menos Entendemos Reflexões Sobre Arte e Pós- Modernidade Jaci Maraschin

QUANTO MAIS APRENDEMOS MENOS ENTENDEMOS –REFLEXÕES SOBRE ARTE E PÓS-MODERNIDADE

Jaci Maraschin

1. Nesta época de globalização, a cultura se massifica e os gostos parecem se nivelar pelas forças do poder. Certamente, o poder se atrela a interesses e os interesses dependem do lucro que nossos empreendimentos podem alcançar. É por isso que na base da escala de valores situam-se as forças do mercado e no cume da pirâmide seus resultados contábeis. Nesta sociedade globalizada a ficção da individualidade tenta ocultar a sua morte. A metodologia da aprendizagem, por exemplo, imita a mesma metodologia da vida cotidiana onde tudo desemboca no self-service. Navego, por exemplo, na internet para aprender o que me parece interessar. Tudo indica que nela se realiza de maneira veloz a antiga enciclopédia. Recolho dados que transcendem a minha capacidade de entendimento, que se superam a cada dia. O mundo se torna virtual.

Estamos vivendo, ainda, na época da racionalidade grega. As coisas têm começo, meio e fim. Elas se desenrolam a partir de origens e causas e produzem efeitos. Nossa vontade se dirige para resultados. Somos, pois, utilitários. A antiga pergunta da filosofia, “que é?”, gera sem nenhum escrúpulo esta outra: “para que serve?” Essas duas perguntas formam o pedestal do que chamamos globalização. Esse termo resulta do desenvolvimento do que se pode chamar de modernidade. Acaba transformando-se em seu sinônimo.

Se no mundo filosófico (com seus desdobramentos sociológicos, políticos e econômicos), a modernidade nasce com o cartesianismo, o mesmo não se dá com a arte. A arte, no período da modernidade (desde o século XVI), passou por diferentes manifestações, periodizadas pelos críticos, segundo estilos, formas e escolas. Pode-se, pois, falar da arte na modernidade entendendo-se aí os desdobramentos dos estilos e

do gosto junto ao desenvolvimento das sociedades. Subordinada aos parâmetros da racionalidade acostumamo-nos a perguntar pelo ser da arte (que é?) e pela sua função (para que serve?), tornando-a objeto de aprendizado. Esse período começa com o Renascimento e vem até nossos dias. Os artistas clássicos subordinaram-se a regras de composição e a modelos de criação que se tornaram canônicos e dogmáticos. Por causa disso era fácil tentar entender a obra de arte, bastando apenas comparar o produto com o modelo. Havia, assim, duas coisas: o produto e o modelo. Essa binaridade, se assim pudermos dizer, relaciona-se com a polaridade existente na filosofia grega entre essência e existência ou entre substância e acidentes, coisas inventadas por Platão e Aristóteles. Segundo esse ponto de vista, as coisas que aparecem não são o que parecem ser. Há sempre por detrás delas uma outra realidade considerada profunda e verdadeira. A pergunta pelo ser da obra (que é?) espera como resposta o que está oculto e que, portanto, não é. Produzidas na época da racionalidade, essas obras eram concebidas de maneira referencial, respondendo a perguntas de ordem utilitária (para que servem?). Desde o Renascimento até tempos mais recentes, as obras de arte ti nham propósitos alheios a si mesmas, naturalmente com exceções. Basta lembrar as definições de música, na época romântica, em que se esperava que baladas, noturnos e prelúdios expressassem sentimentos. Poderíamos mencionar o que se chamava também de música des critiva, como o poema sinfônico O Moldava, de Smetana, e a sinfonia Pastoral de Beethoven. 2.Quando se fala em modernidade queremos nos referir quase sempre ao período mencionado acima, equivalente aos desdobramentos do pensamento de Descartes, na filosofia, gerador que foi do progresso da ciência e da tecnologia que conhecemos hoje. Trata-se pois de clara tendência cultural que prioriza a razão prática e fomenta o capitalismo globalizante. É nessa era que estamos vivendo e é bom que nos demos conta disso para não sofrer de ingenuidade ou de desinformação. Nesse caso, pós-modernidade seria o nome da tendência de pensadores de nosso século empenhada em levantar críticas ao período em que vivemos. Essa crítica emana de raízes filosóficas, embora queira ser pós-filosófica, e de raízes culturais em geral. Seus principais mentores são Derrida, Lyotard e Deleuze. Dependem em grande parte do pensamento do último Heidegger que anuncia sem rodeios o fim da filosofia. No campo religioso origina-se basicamente no pensamento de Kierkegaard e Nietzsche, com desdobramentos no pensamento de Bonhoeffer, Altizer, Cuppit e principalmente, hoje em dia, do norte-americano Mark C. Taylor.

Heidegger observa que a disciplina chamada filosofia não existiu sempre nem haveria de existir para sempre. Esse tipo de pensamento teria começado na Grécia antiga (diríamos, com Tales de Mileto), chegando ao seu apogeu com Sócrates, Platão e Aristóteles, espalhando-se principalmente pela Europa e pela América. Essa disciplina representou o tipo predominante de pensamento do mundo ocidental e terminou com Hegel, no século XIX. Daí até nossos dias, nada de novo teria realmente acontecido a não ser certas retomadas do que já fora feito em forma de comentário. Tudo mais ou menos como um velório. É provável que o principal mestre de cerimônias desse funeral tenha sido Nietzsche, no final do século XIX.

É por isso que os pós-modernos referem-se a ele como se fosse um sacerdote.

Mas ninguém deve se assustar com o fim da filosofia, porque o próprio Heidegger anuncia o que deve sobrar. Morre a filosofia, mas não morre o pensamento. Aliás, nos incontáveis séculos de vida humana antes de Tales de Mileto, as pessoas pensavam, e continuam a pensar nos dias de hoje, mesmo quando nem todos saibam muito bem o que significa pensar. O que sobra então é a nova forma de pensar consubstanciada na arte e no misticismo. Não é sem razão que Heidegger dedica boa parte de sua obra a considerar os versos de poetas como Hoelderlin e de Rilke, entre outros. O fim da filosofia representa também o fim do império da racionalidade e suas conseqüências. Desacreditam-se as ortodoxias e os dogmatismos. Cai por terra o antigo princípio de que a verdade era equivalente à sua expressão, digamos, gramatical. Desabam juntamente as certezas que fazem com que os sistemas permaneçam de pé e nos oprimam. De certa maneira, o fim da modernidade representa a esperança, enfim, da chegada da liberdade.

3. Quando entramos nos domínios da arte o termo adequado a ser empregado é “pós-modernismo” oriundo, naturalmente, da experiência não simplesmente da modernidade mas do modernismo enquanto movimento artístico e estético. Hal Foster, crítico contemporâneo de arte, afirma que “o termo pós-modernismo é usado promiscuamente na crítica da arte”1. Quer dizer com isso que o termo é bem mais negativo do que parece. O “pós” estaria muito mais para “não” do que para “depois”. Talvez, no contexto da pós-modernidade, poderia significar esfacelamento ou fragmentação, coisa que também se relaciona com pluralismo. O período reconhecido como “moderno” em arte vai aproximadamente de 1860 a 1930. Alguns autores estendem-no até um pouco depois da Segunda Guerra. Como podemos entender esse período? Essas datas referem-se principalmente ao domínio das artes plásticas, muito embora música e dança pudessem com certo malabarismo entrar no esquema. As diferentes escolas de pintura e escultura rompem com os cânones tradicionais da academia (academicismo) na segunda metade do século XIX. Parece que o rompimento verificado na música é um pouco posterior, embora não muito. Se considerarmos, por exemplo, a música de Wagner como o último bastião do romantismo, seremos obrigados também a considerá-lo o último revolucionário porque rompe, de certa forma, com a tonalidade, abrindo possibilidades para a modernidade. Mas serão os músicos do início do século XX os responsáveis por novas concepções harmônicas e por ousadas inovações rítmicas e de timbre. Considero o Pierrot Lunaire, de Schoenberg, importante sinal da transição da música que morria com Mahler para as novas experiências dodecafônicas (ou seriais), para a atonalidade e para as músicas eletrônicas e eletroacústicas, além das composições aleatórias.

Nas artes plásticas, de Cèzane a Paul Klee, de Matisse a Picasso, de Monet a Pollock, todos buscam, de certa forma, a pureza. Querem fazer obra de arte e não

apenas propaganda. Embora se possa detectar em boa parte dessa produção evidentes mensagens referenciais, o que preocupa os artistas é o que chamaremos de mensagem estética. Essa busca de pureza que aspira encontrar o quadro vazio como o símbolo da arte, representaria talvez não apenas a morte da arte, mas igualmente a morte do artista. Eu me lembro de ter ido a uma exposição que comemorava 60 anos de vida de um pintor americano cujo nome não guardei, no Museu de Arte Moderna de Nova York, numa sala com cerca de 40 quadros. Todos eram iguais. Todos eram brancos onde se podiam perceber traços de pinceladas. Demorei-me em sua contemplação. Perguntava-me entre perplexo e curioso: será que é dessa maneira que se pode chegar à pureza da pintura!? Eu estava sozinho na sala. De repente entrou uma senhora americana, naturalmente. Também intrigada, como que procurando ter certeza do que via, me perguntou: “Quando o artista virá para terminar sua obra?” Teria a pintura explorado todas as possibilidades até a exaustão? Isto é, a pintura teria se acabado? Não haveria nada mais para se pintar? Ou, em outras palavras, prescindiríamos, agora, da pintura? Podemos entrar pelos difíceis caminhos da poesia e do romance para observar até onde a literatura avança sem se perder enquanto arte? O que dizer do Teatro do Absurdo de Samuel Beckett ou do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud?

Além disso, o modernismo se mostrou historicista. O artista toma conhecimento do que se passou antes dele para romper com o passado. O sujeito dessa história é, naturalmente, o artista. Ele vive nas galerias de arte e nos museus. Torna-se servo dos marchands e transforma sua obra de arte em mercadoria, chegando a alcançar preços inimagináveis ao apreciador comum.O artista é tragado por esse vórtice e passa a competir com seus colegas. As aparentes rupturas das obras modernas com o passado não conseguem desvincular o artista de certo fluxo de desenvolvimento natural. Em resumo, diríamos que ele navega na tradição da história da arte. Esse movimento foi marcado por grande diversidade de estilos, técnicas e estéticas. Suscitou manifestos e controvérsias.

4.A pós-modernidade tem todas as credenciais para receber em seu meio o pós-modernismo. Este representa certa ruptura radical com o passado, possivelmente com intensidade semelhante ao rompimento da pós-modernidade com a modernidade. Embora a pós-modernidade não possa ser concebida como sinal e marca do mundo contemporâneo, ela se apresenta com instrumental crítico suficientemente forte para pôr em xeque algumas das premissas da racionalidade prática ou técnica enquanto orientação dogmática para a vida das pessoas. Abre novas possibilidades de expressão da vida e privilegia as artes.

Não se espera que a arte pós-modernista possa ser traduzida. Está, por assim dizer, fora dos grilhões da crítica. Diz Derrida: “Assim que se procure deste jeito demonstrar que não há significado transcendental ou privilegiado, ou que o domínio ou jogo da significação daqui para a frente não tem limite, deve-se rejeitar até mesmo o conceito de ‘sinal’ – coisa que de fato não se pode fazer”2. A arte pós-modernista tem sido considerada “desconstrutiva”. Em outras palavras, o artista

busca se desvencilhar de todas as tradições para criar com liberdade. Mas, como trabalha com elementos da cultura (cores, sons, formas etc.), acaba utilizando os mesmos conceitos que questiona. O processo de desconstrução precisa, necessariamente, partir de dentro da construção. Como não existe o lado de fora nem o lado de dentro, mas a coisa em seu aparecimento (que pode ser som, palavra escrita, gesto ou corpo), não há alternativa como escape da cultura.

A arte pós-modernista rebela-se contra a idéia de pureza, tão evidente na arte modernista. Não está preocupada com os referenciais que tantas vezes servem para ocultar mensagens estéticas puras. As mensagens tendem a emergir de dentro da impureza das referências. Na verdade, essa arte, mesmo sem intenção explícita, acaba problematizando as referências. Este conceito vem do impulso desconstrutivista que deve ser diferenciado do impulso da autocrítica. O modernismo procurou, por meio da autocrítica, chegar ao essencial ou “puro”. A desconstrução, ao contrário, revela a “impureza” do significado. Em outras palavras, não há significado em si, como não há pensamento em si, em estado bruto. Roland Barthes afirma que “o texto não é uma linha de palavras que liberam o único significado ‘teológico’ (isto é, a mensagem do autor-Deus), mas o espaço multidimensional no qual os vários escritos, nenhum deles original, misturam-se e colidem entre si”3. Barthes segue a tendência do pensamento pós-estruturalista quando afirma que o sinal não é estável. A incapacidade humana de ler os textos como se fossem definitivos abala não apenas as afirmações dogmáticas como também qualquer possibilidade de se chegar à mente do autor original, seja ele artista ou filósofo. Isso afeta, sem dúvida, a maneira como se pode fruir a obra de arte.

5. Bernard Rolland, crítico do The New York Times, comenta dois casos de música na pós-modernidade, ambos pós-modernistas: John Cage e Philip Glass. Diz ele que os dois compositores “esposam a monotonia em formas diferentes”. Ouve a música de Cage como simples rejeição do que chama “ego composicional”, capaz de abrir janelas tanto para o trivial quanto para experiências do cotidiano. Rolland entende que Cage “utiliza a ordem e os limites para dirigir nossa atenção à desordem e ao ilimitado... na verdade, ele joga fora todas as idéias acumuladas de beleza e de feiúra”. Por outro lado, diz ele, a música de Glass é uma espécie de “ordem espremida até as raias de enorme simplificação”. Parece refletir “um mundo frio”. O crítico, naturalmente, não se furta ao referencial. É por isso que é crítico. O que escreveria se apenas repetisse a música? Mas entende muito bem que as repetições rítmicas e o movimento metronômico “procedem por meio de leves alterações do que nos parece ser sempre a mesma coisa”. O autor entende que a música desses dois compositores representa versões diferentes de duas presenças básicas em nossas vidas: “a máquina e o mundo da física”. Na verdade, “a música

2 Structure, Sign and Play, em Writing and Difference, tradução para o inglês de Alan Bass, Chicago, The University of Chicago Press, 1978, p. 281. 3 The death of the Author, em Image-Music-Text, traduzido para o inglês por Stephen Heath, New York, Hill and Wang, p 146.

de Cage responde à nossa estupefação e deslumbramento diante do universo que se torna incompreensível à medida que mais aprendemos a seu respeito”. Não estaria Cage nos indicando, musicalmente, as incongruências das certezas do século XIX?4

Então essas certezas que gostávamos de ter finalmente desabam. As Igrejas sofrem muito dessa vontade de certeza. Acreditam que a história da igreja seja verdadeira, recheada de dogmas igualmente verdadeiros como tão bem se pode constatar nas declarações solenes dos grandes concílios ecumênicos de Nicéia, Constantinopla e Calcedônia. Esse emaranhado de doutrinas acabou atrapalhando a possibilidade de contemplarmos a figura de Jesus, mesmo se por meio de brumas e véus. Deixando para trás o Jesus da história, a religião recoloca-no na tradição dos indicadores do sagrado como se ele fosse (o que realmente é) uma obra de arte. O dogma quer ver o mistério com clareza e certeza. O crítico que estou citando acredita que a música de Cage nos confronta com as incongruências de qualquer certeza.

6.E agora uma pergunta desconfortante: de que maneira a arte pós-modernista poderia ser acolhida em nossas liturgias? Eu fico me perguntando: por que será que eu, a Simei, o Flávio Irala, o Pablo Sosa e mais alguns compomos música tonal? Será possível cantar música atonal? Eu fiz a experiência de compor uma missa minimalista. Percebi que esse tipo de música ainda pode ser cantado numa congregação normal. Continua a pergunta: de que maneira a arte pós-modernista poderia ser acolhida em nossas liturgias? O culto cristão é filho do casamento entre palavra e ação. Mas, ao que parece, muito mais da palavra do que da ação. A música da igreja começou subordinada à palavra, como se pode observar no canto dos salmos no cantochão inicial, transformado mais tarde em canto gregoriano e em canto anglicano. Mesmo quando os movimentos reformados procuraram novos estilos de música, ela teve que ser tão métrica, tão silábica, como as letras das poesias, para continuar na tradição logocêntrica da Igreja. Quero dizer que a Igreja, desde a idade média até nossos dias, desejou ser moderna. Subjugou a arte à propaganda doutrinária e estabeleceu cânones onde aprisionou a imaginação, a inspiração e a criatividade dos artistas. Tentou criar o que muitos ainda chamam de “arte sacra”, como se isso fosse possível. A fé espontânea e singela dos primeiros cristãos caiu na armadilha da filosofia grega e não demorou muito a se espremer dentro dos limites da razão criadora de dogmas, credos e cânones. Para essa Igreja logocêntrica e, portanto, racionalista, nada melhor do que experiências artísticas igualmente lógicas e compreensivas.

São inúmeros, hoje em dia, os pensadores cristãos empenhados em romper com a rigidez dos nossos livros de reza e dos nossos hinários tradicionais. Entretanto, nem sempre temos sabido o que oferecer em seu lugar. Faz pouco participei de uma conferência da Califórnia, precisamente em janeiro, realizada pela Igreja Anglicana com o sugestivo tema: “Além do Livro de Oração Comum”. Esperávamos que durante o encontro os participantes pudessem fazer a experiência do rompimento com nossa

vetusta tradição litúrgica. Mas nada aconteceu. Os cultos continuaram os mesmos de sempre e os hinos eram os do hinário oficial. A Igreja tem muita dificuldade para sair da modernidade na direção da pós-modernidade porque está estruturada nas bases do racionalismo e do moralismo. Acredito que a arte pós-modernista poderia ser o melhor caminho para derrubar a velha estrutura dogmática com suas experiências de fragmentação e de liberdade. Vou terminar esta conferência oferecendo algumas sugestões que os ouvintes poderão tentar desenvolver em suas comunidades como incentivo à renovação da vida litúrgica em nosso tempo. A seqüência das sugestões não significa qualquer hierarquia de importância ou prioridade. Proponho que comecemos com qualquer uma delas, sem constrangimento:

1ª) Abandonemos por algum tempo (a ser determinado pelo grupo) os nossos livros de oração e manuais de culto. Talvez nos seja difícil usufruir da liberdade que essa experiência pode nos trazer. Mas acredito que valerá a pena. Notemos reverentemente que os primeiros cristãos não tinham livros de reza nem hinários. Tinham naturalmente o Antigo Testamento, de onde sobressaiam os Salmos. Por que não começarmos por eles? Não contei quantos versos eles têm, mas são muitos e variados. Ninguém poderá se queixar de falta de base. Os Salmos podem ser essa base.

2ª) Abandonemos os nossos hinários tradicionais também por algum tempo. Exorcizemos nossas comunidades da praga dos corinhos. Não estou querendo comparar os hinos que temos cantado com essas quadrinhas insossas e sem valor.

Nossos hinários contêm jóias musicais e poéticas. Mas precisamos de descanso. Só assim começaremos a inventar e criar músicas do nosso tempo, do nosso lugar e do nosso povo. A arte pós-modernista depende fundamentalmente da nossa capacidade de invenção. Mas de certa invenção capaz de conter em si elementos de ruptura com a historicidade da modernidade.

3ª) Criemos novos espaços de reunião. Estamos demasiadamente presos às nossas arquiteturas do passado. São simétricas, proporcionais, imponentes, quase sempre ricas, mas nem sempre acolhedoras. Esses espaços litúrgicos sofrem também da opressão da racionalidade. Lembremo-nos de que os primeiros cristãos fortaleceram seus laços de amor e amizade nos corredores escuros das catacumbas. Hoje temos nossas casas e apartamentos, nossos clubes, bares e sítios, nossas praças e ruas, que bem poderiam ser santificadas pelo sopro do Espírito quando aí nos animássemos a celebrar os louvores de Deus.

4ª) Organizemos oficinas de trabalho litúrgico para descobrir de que maneira cor, forma, tecidos, terra, fogo, ar, água, vento, objetos ao nosso redor, plantas, estrelas, lua, sol, planetas, chuva, enfim, o mundo criado e o mundo da cultura podem se juntar na festa da adoração e no exercício da contemplação.

5ª) Procuremos descobrir na literatura pós-moderna elementos de poesia e drama capazes de utilização nas assembléias do povo cristão. Mas não deixemos de lado essas formas milenares que têm sido transmitidas até nós, como os kyries, os sanctus, os agnus dei, os glórias e tantas outras. Elas podem adquirir valores novos por meio de ateriais até então ignorados por nós em nossas tradições de culto.

6ª) Esqueçamos por algum tempo o nosso velho harmônio, o venerável órgão de tubos, e os famigerados teclados eletrônicos. Optemos por instrumentos de sopro, de cordas (não é o berimbau um dos mais belos dentre eles?), tambores e pandeiros, tamborins e cuícas, gaitas e acordeões. A lista é muito grande. Encontraremos na Bíblia, se quisermos, dezenas de exemplos que, mutatis mutandis, poderão nos inspirar. Não nos esqueçamos do conselho do salmista de que “tudo o que tem fôlego deve louvar ao Senhor”.

7ª) É no corpo que somos espírito. Quando falamos em corpo temos que lembrar que não só o homem tem corpo, mas também a mulher, e que seu corpo é bem mais bonito que o do homem. E mais ainda, não nos esqueçamos das crianças, que são absolutamente maravilhosas. Quando eu digo que é no corpo que somos espírito estou pensando no corpo da comunidade toda. São corpos de homens, de mulheres e de crianças numa efusão de alegria. É no corpo que nosso espírito se torna criativo e recria a vida. Façamos, pois, do corpo o nosso principal instrumento de adoração. Abandonemos a rigidez das posturas herdadas de outros povos. Sejamos como nós somos. Gostamos de caminhar: façamos caminhadas processionais. Gostamos de dançar: inventemos nossas danças litúrgicas baseadas no drama das Escrituras. Gostamos de gestos: curvemo-nos, pulemos, sentemos, ajoelhemo-nos, batamos palmas, enfim, sejamos expressivos.

8ª) Nossa época caracteriza-se pela predominância da imagem.

Não nos esqueçamos da importância dos vídeos e do cinema nem do bom uso da televisão. De que maneira o computador e, conseqüentemente, a internet podem nos ajudar nessa enorme tarefa da recriação litúrgica? Não sei se aqui há um grupo de escultores, mas eu acho que a escultura tem de ser recuperada na Igreja. Lembro-me do impacto tremendo que senti na Catedral Anglicana de Nova York durante a semana santa. Penduraram a enorme imagem de uma mulher crucificada para simbolizar a morte de Cristo. Chamaram-na de

“The Christa”, em inglês, “A Crista”. É claro que a ousadia gerou muita controvérsia. Mas, se vamos usar imagens, elas deverão ser fortes. Não servem para a liturgia imagens débeis, românticas e sentimentalistas.

9ª) Finalmente, depois de todas essas experiências, se alguém sobrar na igreja, o grupo encarregado de tudo isso deverá fazer séria avaliação do que alcançou nesse tempo. O processo de avaliação já será ele mesmo novo momento de adoração.

Espero que tenhamos percebido que tudo isso faz parte da fragmentação de todas essas coisas sólidas e compactas que temos carregado ao longo do tempo e das quais estamos cansados. Quebrá-las e até mesmo pulverizá-las pode ser o melhor antídoto ao veneno da globalização.

PER HARLING

é pastor da Igreja Luterana Sueca. É autor de várias obras na área de liturgia e compositor de textos e canções. Trabalha no projeto Desenvolvimento dos Cultos, do Departamento de Desenvolvimento da Vida Eclesial no Escritório Central da Igreja Luterana Sueca, em Uppsala, Suécia.

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