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Ataduras e Comentários – Vítor Westhelle
from Liturgia, Arte e Urbanidade. Memórias de um seminário
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
ATADURAS E COMENTÁRIOS
Vítor Westhelle
1. Começando
Começo sem dissimular. Primeiro, parafraseando o profeta Amós, eu não sou liturgo, nem filho de liturgo. Sou pastor e coletor de palavras; o que coloca algumas limitações sobre a perspectiva que trago, embora também ofereça um olhar diferente. Profissionalmente, sou um teólogo sistemático e, às vezes, péssimo no que faz, porque desconfio da “sistemática.” Acho que a “sistemática” pode ser perigosa. Levo a sério a injunção de Paulo em Romanos 12, que diz na tradução de Almeida: “Não vos conformeis com este século.” O verbo em grego para “conformar” é sysxematizo o que poderia ser traduzido literalmente: “não vos deixeis sistematizar/esquematizar.” Vejo, portanto, com suspeita a tarefa que me foi dada de fazer esta amarração ou sistematização final. Assim fico com ataduras. Há que se ter cuidado com clausuras.
Segundo, vivo fora do Brasil, o que me desqualifica como um comentarista inculturado. No entanto, a real(c)idade brasileira não me é totalmente estranha. Como disse Ferreira Gullar: “o homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade.” E cada vez que volto ao Brasil tenho sensações bastante fortes de quem andou por algum tempo fora desta realidade, mas em quem esta realidade já lhe é parasita. São sensações misturadas com emoções, trazidas também de uma cidade — a Chicago em que agora vivo — que tem lá seus problemas e bastante significativos, mas são outros. E quando eu olho para a realidade brasileira, para a cidade brasileira que também está em mim, quando observo suas ruas, suas casas, suas praças, seus cemitérios de gente viva e de gente morta, fico um tanto emocionado e me vêm à mente palavras do poeta espanhol Felipe de León. Exilado e imigrado ao México, ele escreve um longo poema pela ocasião de seu septuagésimo aniversário em que diz em uma parte: “Toda la luz de la Tierra/ la verá un día el hombre/ por la ventana de una lágrima” Então, eu ainda espero essa visão. As lágrimas não faltam.
Essas são as minhas localizações que gostaria de deixar às claras. Certamente há muitas outras, algumas não revelo nem mesmo a mim. Mas as que aqui deixo explícitas são para que agucem as suas suspeitas e estejam conscientes das lentes que trago. É bom não esquecer as palavras do poeta Vinícius de Moraes: “Ninguém
é universal fora do seu quintal.” Passo aqui a tecer algumas considerações e levantar algumas questões teológicas que me pareceram ausentes dentro das discussões deste seminário. Um levantamento dos temas tratados, da estrutura e metodologia, seus avanços e promessas, já foi feito em nossa apresentação inicial (veja “Lendo o Texto do Seminário”). Então, o que me resta tratar aqui é precisamente o que não foi contemplado e por que não o foi. E quanto a essas lacunas ou interstícios, a minha pergunta é: por que não se fizeram presentes, quando me parece que seriam lógicas?
2. Uma Pedra no caminho
O que me veio foi uma imagem que empresto da menção que fiz a Vinícius e me auxilia a emoldurar a experiência do seminário: o quintal. Neste quintal que observo há lixo, há flores e há caminhos. Essas são as metáforas que utilizo para descrever aquilo que foi designado como as características mais marcantes dos três eixos deste evento: a cidade, a arte e a liturgia. A condição urbana foi freqüentemente associada à fragmentação, ao hediondo, à experiência efêmera da urbanidade. Daí o lixo. Por outro lado, tivemos a sublimidade da arte, o elogio à sua atemporalidade, sua transcendência e assim por diante. Por isso as flores. E, finalmente, há também o caminho que a liturgia representa: a maneira como esta permite caminhar por meio do jardim, contemplar as flores e ver talvez, no lixo, a promessa de um fertilizante.
Só que tem algo no meio deste passeio. Isto me surpreendeu como nos surpreende a redundante insistência de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.” E, mais ainda do que isso, eu acho que esta pedra de que falo tem o tamanho da Pedra da Gávea, que vemos pela janela. É enorme. Se não me equivoco, a liturgia num contexto urbano pretende-se como (ou cumpre o papel de ser) uma mediatriz na relação entre a realidade fragmentária e fragmentante das cidades e a sublimidade da arte. Recorrendo às minhas metáforas, a liturgia é pensada como o passeio entre o lixo e as flores, entre o belo e o hediondo, entre a salvação e a perdição. E, de fato, a liturgia tem sempre sido definida como uma reatualização ou uma re-encenação ritual e sacramental da economia do Deus Trino, da dispensação de sua providência. Em outras palavras, a liturgia é vista como esta re-encenação de como Deus reconcilia consigo o mundo, aquilo que na teologia clássica é chamado de taxys (que é uma palavra grega de onde vem táxi também e significa ligeireza, rapidez, expediência). Taxys designa o processo de dispensação da salvação ou a seqüencialização da ação salvífica. Existe uma seqüencialização salvífica que vai do alfa ao omega, do começo ao fim, da criação à consumação. Isto é o que a liturgia alveja sacramentalmente re-encenar em seus ritos.
Ora, esta taxys ou o processo que tem o início, o fim e o meio e cuja duração é a duração do próprio cosmos — do alfa ao omega — é na liturgia ritualizado de uma forma sacramental que se estende (e a extensão é importante) por um dado tempo, o tempo da celebração, que simboliza o tempo cósmico. Não existe culto
imediato e instantâneo; há que se estender pela duração do tempo litúrgico dentro da celebração, com seu início, meio e fim. Falando teologicamente, a liturgia pressupõe que entre a criação e queda, de um lado, e a consumação (o eschatos), de outro, existe uma espécie de hiato que deve ser preenchido pelos apropriados meios, os meios de salvação, que na liturgia são os mistérios, ou, em linguagem latina ou ocidental, o sacramental. Se este hiato está aí, a liturgia, então, é natural. Ela é convidada a ocupá-lo, a preenchê-lo com o rito, com a encenação do sagrado. E tem mesmo é que ocupar este espaço. Este é o pressuposto de toda liturgia. Apenas, então, se discute como se ocupa este espaço; e as discussões litúrgicas vão se dar em torno deste “como-se-ocupa-este-espaço,” que já é um dado, que já é algo que está aí. Em outras palavras, a liturgia re-encena o drama da redenção dentro de um movimento que enseja mediações.
Este espaço, este hiato era algo dado para Simei Monteiro, para Per Harling, para Pablo Sosa, para Terry MacArthur, para Lusmarina Campos Garcia, ou para Holney Mendes, como se pode ver em suas contribuições. E eles magistralmente o preencheram. No entanto, houve aqui, no desenrolar do seminário, esta pedra no meio do caminho. O que se elaborou em torno da cidade e da arte, na polarização que esses eixos representaram, não parecia requerer qualquer mediação. Não houve por parte dos artistas ou nas análises da urbanidade o clamor por mediações, o anelo pela liturgia, embora se tenha ouvido denúncia de sua falta. O que caracterizou a descrição dos temas que abriram as janelas para a cidade e para a arte foi exatamente a ausência deste hiato, foi exatamente a ausência da mediação. Houve foi a impossibilidade de um hiato dentro do qual se poderia administrar esta mediação.
3. Análise
O que a mim chamou atenção e realmente me surpreendeu é a maneira como fomos inundados por imagens que descreviam tanto o cotidiano citadino quanto a arte contemporânea com expressões que denotavam imediação. Entre arte e cidade havia a colisão, o choque, o embate entre os extremos, de forma que as duas se encontram numa relação imediata, colididas; não há espaços entre elas, não há mediação. Há uma imediati/cidade. Não existe mais o hiato que permite que se faça a transição de um momento para o outro. Por exemplo, considerem os seguintes termos e coplas que foram utilizadas; contrastes semânticos usados em profusão durante o evento do seminário. Eis um breve inventário que pude colher das apresentações e discussões: “imediaticidade entre o localizável e o não-lugar”, “cidade e grota”, “a santa e o lobisomem” “o anjo e o demônio”, “desinteresse e paixão”, “coletividade e isolamento”, “fragmentação e globalização”, “a indiferença e as diferenças”, “silêncio e ruído”, “sagrado e profano”, “vida e morte”, “místico e vulgar”, “presença e ausência,” “o sublime e o hediondo.” Tais binômios, como sabemos, fazem parte do infame binarismo do pensamento ocidental. Mas, ao contrário de postular os extremos como moldura para as mediações que entre eles ocorrem (isto sói ser a função dos binarismos), o que me chamou a atenção é que a moldura era em si só todo o quadro.
Ao discutir a cidade, por exemplo, houve entre os apresentadores quem visse esta colisão entre os extremos dessas coplas como algo negativo, como algo traumático na experiência urbana. Regina Novaes e Joel Birman, tinham esse tom mais pessimista nas suas apresentações, denunciando a falta de mediações. Na cidade está o problema que eles identificavam como parte da crise que estamos enfrentando. Por outro lado, havia também certo otimismo na mesma avaliação, na mesma maneira de ver os sintomas, como, por exemplo, nas apresentações de John Dawsey, de Pedro Novaes e também na de Laan Mendes, em diferentes graus. Mas não há dúvidas de que todos concordavam (embora uns avaliassem positivamente, outros negativamente) com o sintoma: os extremos colidiram, não existe mais espaço entre um e outro.
Já na discussão sobre arte, a questão não foi tanto a tentativa de caracterizar a colisão entre os extremos, entre os dois pólos desses binômios que eu mencionei, mas o isolamento em um dos pólos, resultando na igual negação da mediação. Talvez a única exceção dentro deste quadro que eu estou esboçando foi exatamente tanto a fala quanto a apresentação artística dirigida por Rita Serpa com o grupo Luar1. Mas, todos os outros que apresentaram suas contribuições sobre a arte, isolaram o momento do sublime, do atemporal, do sagrado, do místico, do mistério e assim por diante, sem nenhuma mediação orgânica com a experiência do cotidiano, da contextualidade, do efêmero, do hediondo e do sinistro. Tanto em Cláudio Pastro quanto em Flávio Ferreira, a ênfase residiu no atemporal, no místico, no sublime, rejeitando o compromisso com o efêmero, com o transitório, com o vulgar, com o cotidiano. O sublime não tem data, o belo não transita, não tem taxys, não tem processo.
Já na apresentação de Jaci Maraschin, foi exatamente a mesma coisa, só que numa imagem espelhada, reversa; o contrário do que tivemos com os outros. Restou apenas o lixo, o transitório, o efêmero, o descartável, mas igualmente sem nenhuma possibilidade de negociação, de mediação: o mundo como o conhecemos já acabou! “E agora, José?/ Sozinho no escuro/ qual bicho-do-mato,/ sem teogonia,/ sem parede nua .../ sem cavalo preto/ que fuja a galope,/ você marcha, José!/ José, para onde?” José e Jaci estão bem mais próximos que a diferença que separa o soletrar de seus nomes. Jaci representou para mim, naquela noite, exatamente o poema José de Carlos Drummond de Andrade, nosso modernista que se aventura aos limiares do apocalipse. O mundo acabou, não há mais teogonia, não tem mais nada por que valha esperar. Não existe mais o espaço da mediação; tudo e nada se anulam. Este é o “evangelho.”
Se este é o caso e se esta leitura é correta, corremos o risco de estar oferecendo respostas litúrgicas a perguntas que não estão sendo feitas, remédios para enfermidades que não têm sintomas. E, é claro, temos que perguntar se isto é uma avaliação correta. Mas, o que me surpreende é que não me pareceu conectado o que aconteceu nas reflexões sobre a liturgia e o que havia sido elaborado tanto nas análises da urbanidade como nas apresentações sobre a arte. A liturgia esteve
presente neste seminário quase como uma porção de óleo flutuando em meio d’água. Exerceu a mediação, mas num espaço próprio, não o recebeu das análises que a antecederam. De quem teria sido a culpa dessa falta de conexão? Não creio que se trate de culpa, nem mesmo de um equívoco. Trata-se antes de um sintoma dos tempos e lugares em que vivemos. Nestes tempos e lugares, a liturgia é em si mesma um movimento de resistência em meio a uma situação em que espaços mediadores nos são negados.
4. Apocalíptica
A esta situação de falta de mediação na percepção da realidade, da cultura e da religião, dá-se tecnicamente o nome de apocalipsismo. A apocalíptica tem uma longa história na tradição judaico-cristã. A maneira como aqui utilizo o termo vem dessa tradição e não deve ser confundida, como freqüentemente é feito, com o milenarismo, ou a crença de que uma catástrofe esteja agendada para um futuro próximo. A apocalíptica não é isto, ainda que às vezes também possa ser. Tampouco utilizo o termo para denotar um gênero literário. Uso-o para assinalar uma certa atitude para com a realidade que é basicamente caracterizada pela falta ou ausência de instâncias mediadoras. A apocalíptica na tradição judaico-cristã, particularmente no período inter-testamentário e durante o primeiro e segundo séculos da nossa era, é a convicção de que vivemos na iminência ou no ponto mesmo em que este mundo termina e um novo ou outro mundo começa. Aquele ponto que não tem mediação, aquele ponto que não tem espaço de transição nem de negociação. É o momento decisivo, o ponto crítico em que não há negociação, não há economia, é tudo e nada ao mesmo tempo.
Nas apresentações que se fizeram sobre a urbanidade e sobre a arte, certamente essa era a mensagem que deu o tom, ainda que a linguagem não tenha vindo em gênero literário normalmente associado à apocalíptica. Mas veio em jargão antropológico, sociológico, filosófico, estético, etc. E se houve o domínio deste gesto apocalíptico nas análises, houve certamente o reconhecimento de que a cidade destes tempos e lugares é vista ou como um espaço em que a liturgia é supérflua ou a cidade dela sofre carência. A apocalíptica não tem liturgia; não existe liturgia porque não se sabe nem mesmo se existe qualquer trânsito entre a perdição e a redenção, ou entre a salvação e a condenação.
O que significa para a liturgia que a cidade seja vista neste tom apocalíptico em que as mediações já quase não existem? Seria isso o exílio da liturgia para espaços alternativos que negam a cidade, como costuma acontecer com a renovada veneração por um esteticismo que se crê atemporal (quando somente o é medieval)? Ou a aculturação à apocalíptica urbana (em que a um cinema e um templo são de fato intercambiáveis, em que o sagrado e o profano, o templo e a rua são uma e a mesma coisa)? Não é necessária muita imaginação para perceber o quanto essas opções são hoje populares: o esteticismo de altas liturgias que nada dizem ao contexto e o extremo da aculturação à apocalíptica urbana do frenesi religioso. Em ambos extremos desaparece a mediação.
Vislumbro, então, três possibilidades de como essas questões podem ser e têm
sido respondidas na busca por uma relevância litúrgica. A primeira seria a resignação, entregar os pontos e entrar num projeto mercantilista com um cálculo de custos e benefícios imediatos: uma cura por um tanto, uma absolvição por uma indulgência, ou a salvação por um espetáculo. Isto seria, e de fato já é, em muitos contextos conhecidos, o aviltamento da liturgia como tal, uma farsa bem posicionada no mercado; o que chamei de aculturação à condição apocalíptica.
A apocalíptica tem sido dentro da tradição cristã sempre uma espécie de anomalia que tem sobrevivido por períodos relativamente curtos e em momentos transitórios, ainda que fundamentais. Tendo isso em conta, a segunda possibilidade seria a de continuar a fazer aquilo que sempre se fez, esperando e estando preparados para pegar os restolhos, os estilhaços que sobraram depois que a apocalíptica saiu do cenário. No entanto, se concordássemos com a análise da situação, da conjuntura, de que ela é fundamentalmente apocalíptica, isto seria aquilo que nós deveríamos estar discutindo ao invés de evadindo. Esta é a tentação do que chamei de esteticismo.
A terceira possibilidade diante deste quadro seria resistir com um programa minimalista para a teologia e também para a liturgia. Essa possibilidade gostaria de explorar. Tal programa creio que existiu e está vinculado precisamente à apocalíptica descrita acima. A apocalíptica foi muito importante na formação da teologia cristã, quiçá um dos dados contextuais mais importantes. O teólogo Ernst Käsemann, descreve a apocalíptica como sendo a mãe da teologia cristã. Ela teve um papel muito importante na gestação da teologia cristã; decisiva no início e ocasional no desenvolvimento da teologia. Foram, em verdade, poucos os momentos em que a apocalíptica teve uma contribuição marcante para a teologia, mas estes foram decisivos, começando pela própria teologia do Novo Testamento, que nasceu neste contexto apocalíptico.
Há um documento que se reporta a este período chamado O Testamento de João (certamente apócrifo enquanto presume ser do apóstolo) que foi recoletado por São Jerônimo. Ele o re-escreve a partir da tradição que assevera ter recebido. O contexto é o da comunidade de Jerusalém, que era uma comunidade formada no meio apocalíptico do primeiro século. João era o liturgo da comunidade, ou assim a tradição o mantinha. E, como rememora essa tradição, João viveu até uma idade muito avançada. Diz este documento que à medida que João ficava velho, mais fraco e mais enfermo ficava. Os cultos diminuíam de tamanho e as suas homilias se reduziam a quase nada. Cada vez mais fraco, João dizia e fazia as orações sempre menores e as homilias cada vez mais concisas. Até que chegou o ponto em que ele, visivelmente abatido e enfraquecido, simplesmente dizia: “Filhinhos, amai-vos uns aos outros.” Isto era tudo. Sucede que o envelhecido João volta, apesar da idade, novamente a gozar de saúde. Encontra-se revigorado. No entanto, a única coisa que ele tem a dizer à comunidade inteira reunida é exatamente isto: “Filhinhos, amai-vos uns aos outros”. E os outros discípulos, intrigados com os sumariantes cultos joaninos, perguntam ao apóstolo: “Pensávamos que nada mais dizias por teu estado de fraqueza. Mas agora que estás revigorado por que nada mais do que isto dizes?” E ele respondeu: “Esta é a única coisa que realmente importa.”
Acho essa história muito bela pelo que representa. Ela espelha uma maneira de
lidar com uma situação de extrema carência e risco, como era a situação em que a comunidade de Jerusalém vivia no primeiro século. O projeto minimalista, dado o contexto apocalíptico do qual ele surge, tenta abrir uma pequena brecha na colisão entre os extremos e criar um espaço mínimo de mediação, onde praticamente não existe nenhuma possibilidade. “Filhinhos, amai-vos uns aos outros!” A isto se resumiu a possibilidade litúrgica, a possibilidade da mediação, naquelas circunstâncias. Mas talvez seja tudo que é requerido, tudo o que basta em um contexto, como fomos lembrados no bloco de análises, que tem um perfil apocalíptico.
O que me chamou a atenção no desenrolar do seminário é que, apesar das muitas coisas que experimentamos, dos contextos de onde viemos, nada nos impediu que celebrássemos, fizéssemos liturgia, arte, textos, poesia, música, dança. E este foi o caso porque o pressuposto de nosso trabalho e engajamento comunitário trouxeram consigo dimensões que de fato representaram e representam possibilidades mediadoras. Os liturgos e as liturgas do encontro (e nisto devo incluir todos participantes enquanto contribuíram para o sucesso do evento) fomos muito menos apocalípticos que os analistas. E mesmo por isso tivemos tanto a aprender. Mas o que a liturgia trouxe sem anunciar foi uma bagagem de experiências mediadoras que, imagino, alimentaram e animaram as perspectivas de uma comunidade. Não foi na análise da realidade, mas a prática de espaços mediadores que os participantes consigo trouxeram, que possibilitaram a liturgia. Nisto estão incluídas as organizações comunitárias, os movimentos populares, as instituições educacionais, as organizações do Terceiro Setor, organizações não-governamentais (ONGs) e uma série de outras instâncias, incluindo as igrejas tradicionais, históricas, com seu trabalho, fundamentalmente arraigadas dentro desta sociedade e cidade. Foram essas práticas mediadoras que possibilitaram o exercício litúrgico. Foi exatamente isto — as instâncias mediadoras que de fato existem — que esteve ausente nas análises.
O que fizemos neste seminário em termos de liturgia, tanto nas apresentações quanto na prática litúrgica em que nos engajamos, fizemos não por causa, mas apesar da perspectiva apocalíptica que nos foi apresentada. Se esta tivesse sido dominante, fundamentalmente nos seria negada a possibilidade da liturgia. Isto me parece ser uma nota de grande otimismo: fomos capazes de resgatar a possibilidade litúrgica a partir da própria experiência de engajamento com as mediações na sociedade, na cultura, na religião com as quais de fato já trabalhamos. No entanto, a importância da apocalíptica permanece como um dado importante e decisivo na análise de nossa urbanidade. O que aqui se mostrou é que o escapismo estético ou a resignação aculturadora não são as únicas opções.
5. Rasuras
Como observação final simplesmente pontuo algumas rasuras ou ausências que eu encontrei no texto deste seminário. Limito-me a duas, mas cuja importância dificilmente pode ser exagerada. Daí a surpresa de suas ausências.
A primeira foi o silêncio sobre o tema da cruz e também da ressurreição, ou da relação dialética entre ambas. Talvez isso tenha sido também uma das conseqüências da visão apocalíptica que nos foi dada. Em virtude dessa visão nos faltou
um inventário semântico que possibilitasse falar deste momento de transição, de mediação entre a realidade da fragmentação, da morte, do corpo quebrantado e a possibilidade da afirmação de um momento novo, de ressurreição. Isso me parece um tema importante, pois a relação entre cruz e ressurreição não é uma relação imediata. Há entre a sexta-feira santa e o domingo de Páscoa o desenrolar de um drama. E, por que não, de uma liturgia.
Em termos um pouco provocativos, sugiro que a primeira liturgia explicitamente cristã que foi feita precede à existência mesma da Igreja como instituição. Precede até mesmo à experiência do Cristo ressurreto. Refiro-me à narrativa de Lucas 25, onde, após a morte, Jesus é colocado no túmulo e as mulheres que estão ao pé da cruz vão até lá, diz o texto, para ver onde é que foi colocado aquele corpo do amigo amado. E a história continua dizendo que depois foram para casa. E o que elas fizeram? Foram preparar óleos e perfumes para, passado o sábado, trazer ao túmulo para ungir o corpo. Ungir um corpo que então já estaria em pleno processo de putrescência. Eis um gesto de amor e não só de amor, mas de luto também; um labor de amor e de luto! Este é um trabalho que não tem um fim que possa ser calculado, que possa ser cobrado; trata-se de um gesto de dádiva total dentro de um lapso de tempo que conduz as mulheres do lugar da morte ao sábado de luto e adoração e de volta ao túmulo para serem as primeiras testemunhas da ressurreição.
Por que chamo isso de uma liturgia? Porque como toda liturgia esse ritual das mulheres, ainda que sem a intenção de sê-lo, foi a re-encenação de um ato maior, um ato de Deus mesmo se entregar a si próprio ou a si própria para a realidade deste mundo, sem mágica, sem barganha. Assim também foi o ato de ungir um corpo, simplesmente por amor, por dádiva, sabendo que o máximo que ganhariam de volta seria o odor da putrefação da carne. Daí a surpresa: a ressurreição da carne, a insurreição do corpo! E mais, este ato de re-encenação não é derivativo. É o ato mesmo que segue a taxys original. Se não fossem essas mulheres, o cristianismo não seria uma religião que se embasa na afirmação radical da ressurreição da carne, do corpo, da physis, da natureza que se restaura; o cristianismo seria uma religião embasada na noção de aparição, não da ressurreição. É o testemunho da ausência (apousia), da tumba vazia, que possibilitou a experiência da re/presença (parousia), avalizando assim este tipo de afirmação radical (a ressurreição do corpo) que está no cerne do próprio cristianismo. Esse drama, essa liturgia que acontece entre a morte e a ressurreição, esse labor de amor e luto, é realmente o que oferece fundamentos àquilo que é re-encenação ritual e litúrgica, dentro da qual nós, sempre de novo em nossas celebrações, tentamos re-encenar o que Deus faz ao e no mundo, tornando-se um ser humano que é torturado e executado, mas cujo corpo triunfa ainda e porque traga consigo as chagas da morte.
Minha segunda observação, que também surpreendeu pela sua ausência, tem a ver com a pergunta: de que Deus estamos falando? Implicitamente, a questão está dada na própria liturgia, como a re-encenação, a reatualização daquilo que é a reconciliação de Deus com o mundo; o processo da seqüencialização da relação de Deus com o mundo, daquilo que se chama taxys como já vimos. Mas isto não foi explicitamente colocado ou abordado nas apresentações, embora na prática
litúrgica, como na Missa Urbana, este seja um dos motivos mais importantes. O questionamento de que Deus é este, para a realidade urbana, também está explicitamente colocado na bela música que se cantou algumas vezes e que foi composta aqui e que pergunta: “Senhor, onde está nesta cidade?” E pergunta se este Deus está embaixo da ponte, no menino que vira ladrão e na mulher que faz aquilo que não quer por um pedaço de pão. Na música a pergunta tem um caráter retórico. Ali está Deus. Então ali apareceu a questão, o questionamento da identidade, de quem é o Divino de que falamos. Mas, isto não foi discutido nas apresentações e outras discussões. Quer dizer, na teoria faltou a teologia que apareceu na prática.
E aí eu me permito fazer algumas especulações do porquê desta ausência. Se a liturgia é esta re-encenação ou reatualização da relação entre Deus e o mundo, a não-emergência da questão de Deus no sentido explícito seria porque esta pergunta já está explicitamente respondida pela “ordem litúrgica”? Quer dizer, se existe uma ordem litúrgica (ordo), então a maneira como ela se desdobra pressupõe que a re-encenação decorra de uma dada maneira como concebemos Deus e sua relação com o mundo. A insistência na ordo de que existe um núcleo imutável na liturgia pressupõe que a definição de Deus, e de sua relação com o mundo, já nem precisem ser mais questionadas ou re-elaboradas. Pressupõe que a teologia já esteja pronta, cabendo aos liturgos mantê-la em uma prática imutável. Este é o risco da liturgia, o de ocultar a questão de Deus, ao invés de suscitá-la.
Gostaria de ilustrar isso com algumas observações de Monica Furlong. Ela é uma escritora britânica, biógrafa do monge trapista Thomas Merton. Comentando sobre a Igreja, ela disse algo que pode ser exatamente dito sobre a liturgia.
“Tem sido costume achar que o propósito da Igreja é de colocar as pessoas em contato com Deus e mantê-las em contato com Deus. Mas, embora pareça que a Igreja exista para ajudar seus adeptos a ter uma relação com Deus, ela também tem — e talvez essencialmente — o papel exatamente oposto, de tentar filtrar a experiência da transcendência, que pode ser por demais surpreendente e arrebatadora.”
Pensava sobre isto e em conexão com esta surpresa que eu tive de não ver a questão de Deus, de que Deus estamos falando, sendo tematizada. Não seria o outro lado da liturgia exatamente este, de ocultar a revelação, de domesticar o apocalipse? Não seria ela uma tentativa de abafar a surpreendente manifestação do Espírito, a possibilidade do irrompimento do sagrado, que a gente não pode controlar. Eu acho que isto aponta para a necessidade de a gente reabrir a questão
que pergunta “que Deus, que Deus é este?” E se esta revelação encontra-se ainda aberta, ainda possibilitando novas experiências uma vez que Deus continua agindo, então a ordo tampouco pode estar fechada. Esta exigência de manter a questão de Deus aberta e com ela também a ordem litúrgica não é só uma exigência da experiência, mas acima de tudo do testemunho bíblico onde encontramos uma multiplicidade de ordens. Me impacienta e também me enfada a noção de que haja apenas uma ordem de salvação, apenas uma forma de mediação, apenas um manual de libertação.
É importante lembrar que a harmonização dessas ordens de salvação em uma ordo litúrgica desenvolveu-se a partir do segundo século de nossa era e engessou-se durante a Idade Média. Mas há que se lembrar que isto foi uma produção humana. Brilhante, inspirada até, como possa ter sido. Mas continua sendo uma produção humana. Esta não suprime, não elimina a pluralidade de expressões, de ordens de salvação, de processos pelos quais Deus dispensa a reconciliação com o mundo. E surpresas há de se esperar. Isto é o que também encontramos nos testemunhos bíblicos. A liturgia precisa ser refeita, reconceitualizada com cada nova experiência de libertação ou com cada revelação de novas promessas e possibilidades. Há que se voltar à pluralidade dos testemunhos bíblicos, e quem sabe, como sugere a teologia feminista, também além dos limites do cânone.
Sem dissimular, disse no início. Não estou certo que o tenha conseguido. Afinal — fechando como abri, com Gullar — esta é uma leitura feita para quem “a cidade [brasileira] está no homem/ quase como a árvore voa/ no pássaro que a deixa”.