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A Fonte: Uma Estória Mítica Per Harling

A FONTE: UMA ESTÓRIA MÍTICA

Per Harling*

A estória da fonte havia sido contada de geração em geração, sendo, assim, uma estória bem conhecida da maioria de nós. A fonte, que tinha sua origem lá em cima na montanha mítica, onde a cerração eterna da manhã a cercava com seu cuidado e frescor, essa fonte, diziam-nos, era nossa origem, nosso útero. Nossos ancestrais haviam vivido junto àquela fonte, onde obtiveram seu alimento, sua linguagem, suas canções, seus sonhos, suas vidas.

Na fonte cantante havia de tudo, e durante muito tempo nossa gente vivera lá sem desejar nada mais. Mas então algo aconteceu. Na verdade, ninguém sabe por quê. Mas um dia aquela gente da fonte começou a descer os morros, afastando-se da montanha, distanciando-se da fonte, porém seguindo seus córregos. Provavelmente essas pessoas tinham sede de conhecimento e vontade de encontrar terra nova.

E um dia nossa gente chegou até o mar e suas praias macias, esse mar que reunia em si todos os rios, córregos e correntes das montanhas. E aí se reuniram pessoas vindas de todos os cantos do mundo, pessoas com caminhadas diferentes, com experiências diferentes, com tradições diferentes. Parados junto à água, olhando por sobre o mar, carregando nossas memórias e nossa saudade da fonte, pensávamos repetidamente que ouvíamos as canções da fonte erguendo-se das profundezas do mar.

Junto à água fora construída uma cidade, que crescera tanto que atualmente já chegava até as encostas da montanha. E lá – já faz muito tempo – fica nossa casa, e nós nos reunimos tão freqüentemente quanto possível no prédio que construímos em memória da presença da fonte. Lá nos aferramos a nossas antigas tradições. Lá nos sentimos em casa em meio a essa cidade que, no mais, é inóspita, indiferente e perdida.

Um número cada vez maior de pessoas foi nos deixando. E quanto menor ficava nosso grupo, tanto mais importante tornou-se o apego a essa linguagem segura e arraigada da fonte. E todos nós ansiamos pelas verdadeiras correntes da fonte. Um dia elas vão atravessar nossa cidade e todo o mundo será despertado pelo poder da fonte e satisfará sua sede em sua água doadora de vida. O que agora é oculto será revelado então. Com tais palavras sobre o fluxo vindouro da fonte nós nos

encorajamos mutuamente quando ficamos desiludidos. Nossa comunidade até tem um nome. Nós nos chamamos de Guardiões da Fonte. Alguns e algumas de nós se chamam de fontólogos. Essas pessoas são especialistas, altamente respeitadas, sobre a fonte e suas origens. Elas dedicam sua vida à pesquisa da fonte e escrevem suas teses sobre a estória da fonte e sua importância. Não há muitos de nós que efetivamente lêem o que elas escrevem, mas suas teses são essenciais para nossa interpretação de nossa tradição.

Há algum tempo aconteceu algo muito estranho. Certa manhã, quando as pessoas da cidade acordaram, descobriram uma ilha nova, bruxuleante e bela lá no mar. Ninguém sabia de onde ela viera. Algumas pessoas disseram que ela sempre estivera lá, mas que a neblina do mar a ocultara de nós. Seja como for, certa manhã ela estava lá, aquela ilha atraente e bela. Bem no meio da ilha havia uma montanha, e sobre a montanha, uma neblina matinal bruxuleante. As pessoas que se aproximaram da ilha disseram que haviam ouvido o som quase inaudível de água murmurante vindo do interior da montanha, como o cantar de uma fonte murmurante.

Oh, que alegria isso causou em nós, Guardiões da Fonte! A fonte, nossa origem, nosso útero e alvo de nossa vida havia, finalmente, se revelado a nós de novo. Isso nos encheu de muita confiança e animação. Muitos dos fontólogos não ficaram tão contentes quanto nós, e eles foram consultar suas fontes de pesquisa e disseram que essa ilha e sua nascente jorrante não tinham nada a ver com a fonte original. Essa triste mensagem fez com que mais alguns e algumas de nós deixassem a comunidade dos Guardiões da Fonte. E em breve a ilha tornou-se uma parte tão natural de nosso ambiente que sua atração mítica ficou menos importante. Aferramo-nos à fonte original. Uma fonte nova não faria parte de nossa vida.

Mas na cidade havia outras pessoas que ficaram fascinadas com a ilha. E elas até nos acusaram de não corresponder à nossa tarefa, de que não teríamos linguagem ou conhecimento suficiente para entender a revelação da fonte. Mas a maioria das pessoas não se importavam conosco. Deixaram-nos sozinhos com nossas velhas liturgias, hinos e orações.

Mas um número cada vez maior de pessoas começou a falar sobre a ilha e sua nascente jorrante. Tentaram, com diferentes expressões, descrever seu anseio pelos mistérios da ilha. E essas expressões penetraram nos diferentes estratos culturais de nossa sociedade.

A música de rock, forte e barulhenta, que atraía nossos filhos e netos, havia se tornado uma expressão muito importante para mais e mais pessoas. Em nossa comunidade, ela era vista como um monstro cultural, insensível em suas expressões, comercial e perigoso em sua presença sedutora e barulhenta. Ela criara uma cultura que, dizíamos nós, glorificava estilos de vida pervertidos.

Esses dias, entretanto, algo muito estranho aconteceu. Houve um concerto de rock no morro fora da cidade. Lá reuniram-se jovens com suas roupas esfarrapadas, suas guitarras berrantes e seus alto-falantes estrondosos. A montanha da cidade era o lugar certo para olhar a ilha do alto, disseram eles, e esta era a razão pela qual haviam organizado esse concerto de rock lá. A música penetrou na cidade. Não podíamos nos proteger contra esse som alto e penetrante. Nossas orações de intercessão por nossos filhos se afogaram nesse barulho horrível, e lá em cima

na montanha podíamos ver os corpos brilhantes dançando ao ritmo incitante da música. Então alguns de nossos jovens teólogos decidiram ir até lá para ver o que se podia fazer. Nunca voltaram.

Depois, ouvimos depoimentos sobre o que havia acontecido. Os jovens fontólogos ficaram fascinados com a magnífica vista sobre o mar e a ilha, e a música os ajudara a vê-la mais clara ainda, disseram eles. Eles participaram da festa de rock, falaram com os músicos, participaram da dança, ouviram a música e as letras, compartilharam a alegria e fascinação desse tipo de comunidade. E de repente algo muito estranho aconteceu. Uma cantora pop cantou uma balada comovente, “Quando você crê”, e subitamente foi como se a cantora e esses jovens fontólogos tivessem asas, e do topo da montanha eles voaram sobre a cidade em direção à ilha, onde aterrissaram no topo da montanha e desapareceram atrás de seu cume. A música parou, todo o mundo fixou o olhar nesse estranho drama e parecia que, em meio ao silêncio, eles ouviam baixinho a canção murmurante de uma fonte. Nossos fontólogos mais velhos dizem que coisas assim não podem acontecer. Os depoimentos não são confiáveis. Provavelmente as pessoas haviam tomado drogas, dizem eles. Talvez eles tenham razão. Mas algumas pessoas valorizavam o que haviam visto e o ponderavam em seu coração.

Algumas mulheres entre nós começaram a questionar a linguagem tradicional de nossas liturgias e orações. Elas defendem a importância de não atribuir um gênero à fonte. Que besteira! A fonte sempre foi um ser masculino para nós. Fonte nosso Pai é a expressão mais comum. Mas uma fonte não pode ter gênero, dizem nossas mulheres. E é claro que nós sabemos disso, mas nossa fonte sempre foi um ser masculino. Mas essas mulheres são de opinião que essa linguagem pode tornar-se um obstáculo para muitas pessoas em sua busca da fé, especialmente nesta cidade, onde a maioria dos pais estão ausentes de suas famílias.

Na verdade, são principalmente as mulheres entre nós que mostraram interesse pela ilha mística. Elas deram início a um projeto especial de mulheres em que estão tecendo uma enorme rede de todas as palavras, que elas ajudam umas às outras a encontrar, que descrevam sua fé e seu anseio pelas canções da fonte. Dizem que vão tecer um pano que chegue até a ilha. E fato é que a rede já está bastante longa. Trata-se de uma tarefa impossível e sem sentido, dizem os fontólogos mais velhos. Eu não sei. As mulheres são notáveis. Quando elas se juntam, qualquer coisa pode acontecer.

À beira-mar muitas vezes se podem ver pessoas que, em isolamento, se voltam para a ilha numa atitude de silêncio e quietude. Elas dizem que estão meditando. As palavras não são importantes, e sim a quietude. Elas precisam desses momentos para conseguir sobreviver na vida agitada da cidade. Dizem que cada pessoa carrega dentro de si uma nascente jorrante que provém da fonte original. Na quietude, no silêncio e na meditação elas conseguem chegar até as águas calmas da fonte, e lá, na calma da profundeza, obtêm o poder essencial de que precisam para a vida ativa que vivem na superfície. Nós simplesmente achamos que elas têm um jeito bem aguado de falar sobre suas experiências. O que elas dizem tem odor de incenso oriental em demasia. Mantra é a palavra-chave, dizem. Nós nunca precisamos de mantra. A fonte basta para nós. Mas elas não nos dão mais ouvidos, e o número dessas pessoas está

aumentando. Pelo menos elas nos ensinaram a dar valor ao silêncio. Nós precisamos disso em nossa cidade barulhenta, que nunca chega a ficar quieta.

Algumas das pessoas que nos deixaram tornaram-se artistas, poetas e autoras. Dizem que nos deixaram porque não havia lugar para elas em nossa comunidade. Geralmente elas têm um estilo de vida muito simples, ficam criando sua arte, bem longe da vida de classe média que muitos e muitas de nós têm. Certa vez perguntei a uma delas por que vivem desse jeito. “Acaso as flores sabem por que vicejam?” foi a estranha resposta que recebi. Muitos desses artistas dedicaram boa parte de seu tempo a descrever a ilha e seu conteúdo. Fazem isso de seu próprio jeito artístico. Muitos de nós não entendem nada das obras deles. É claro que elas nunca se ajustariam ao prédio que construímos em memória da presença da fonte. Alguns de nossos fontólogos até os acusaram de ter criado descrições distorcidas da fonte, que não podiam ser aceitas, mas esses artistas balançaram a cabeça e disseram que o tempo dos fontólogos já era. Amigos da fonte não existem apenas entre os Guardiões da Fonte, disseram eles. A fonte pertence a todo o mundo. E com sua arte eles irão, um dia, construir uma ponte até a ilha e até a fonte da montanha. E nesses dias vimos algo bastante notável. Na península da terra dos artistas se podia ver um monumento estranho. Com uma leve transparência, uma ponte enorme erguia-se da terra deles em direção à montanha da ilha, onde descia atrás do cume. A ponte estava cheia de estórias e cores, retratos e poemas. E sobre a ponte os artistas caminhavam, e dançavam, e brincavam em toda parte. Era uma vista bastante notável. Na verdade, parecia um arco-íris...

A essa altura, muitos tipos diferentes de pessoas se reuniram. Muitas delas trouxeram suas próprias tradições a respeito da fonte e suas próprias comunidades, semelhantes aos Guardiões da Fonte. Muitas de suas tradições eram tão diferentes, que tivemos dificuldades para entender que efetivamente pertencemos à mesma origem, e quanto mais aumentou o número delas, mais nós fomos obrigados a nos abrir e a travar diálogos fontológicos com elas. Freqüentemente, esses diálogos foram bastante dolorosos e, às vezes, até desanimadores. Mas quanto mais chegamos a nos conhecer mutuamente, mais temos tido condições de compartilhar as canções, orações e símbolos uns dos outros, e, na verdade, essa tem sido uma experiência muito impactante e enriquecedora. Muitos de nós se cansaram de palavras. E, juntamente com nosso cansaço em relação às palavras, os símbolos e as ações simbólicas tornaram-se elementos mais importantes ainda em nossa interpretação da fonte. Com o uso de elementos como velas, água, terra, frutas, flores, fumaça, sementes, pedras, cores e muitos outros elementos semelhantes, nós ampliamos nossa perspectiva de nossa fé como nunca acontecera antes.

Alguns e algumas de nós têm se engajado em diferentes atividades sociais. Uma de nós tem até trabalhado a noite num bairro de nossa cidade aonde normalmente não vamos. Na verdade, ninguém sabia o que ela vinha fazendo e com que tipo de pessoas estava em contato. Assim, ficamos todos bastante espantados, e até perplexos, quando, uma noite, ela veio para um de nossos encontros acompanhada de centenas de pessoas esfarrapadas e de comportamento muito esquisito. Elas cambaleavam, riam e berravam suas canções. Gritavam, inclinavam-se umas em direção às outras e tinham um cheiro velho de suor, álcool e urina. Foi uma experiência extremamente

chocante. Muitos de nós não conseguiram agüentar e foram embora.

“Viemos para beber as águas vivas da fonte”, disse uma das pessoas que mais cambaleava. “Ela nos prometeu que íamos fazer isso”, disse ele apontando para nossa amiga diaconal.

“Não, viemos para cantar com a fonte”, berrou outro.

“Não, para nos banhar nela”, gritou um terceiro.

“Isto aqui é um local de oração, não um bar onde qualquer coisa pode acontecer”, disseram alguns de nós enquanto tentávamos nos livrar daquele bando fedorento.

“Sigam-me”, disse nossa amiga diaconal, “eu conheço o lugar onde podemos celebrar nosso culto.”

E tão subitamente quanto haviam aparecido, elas desapareceram, deixando no ar um odor de gentalha. Mantendo certa distância, alguns de nós seguiram aquele notável grupo de pessoas para ver aonde iam. Elas se reuniram na praia, gritando e rindo. Paradas na praia, de repente tiraram a roupa, jogaram-se nas ondas, entraram no mar e desapareceram diante de nossos olhos.

“Para a fonte cantante!”, gritaram elas antes de a água as engolir. Isso não era outra coisa do que um suicídio coletivo! O que as fez agir assim? Como é que justamente essas pessoas ansiavam tanto pelas águas da fonte? Nunca obtivemos respostas para nossas perguntas. Mas naquela noite vimos uma luz estranha surgindo do interior da montanha da ilha. E ouvimos um canto, um canto novo e bastante notável. E vimos pessoas altas, vestidas de branco dançando no cume da montanha ao som de uma canção tranqüilizadora e murmurante, que abafava o ruído do mar poderoso, e achamos que conseguíamos ouvir as palavras que chegavam até nós por sobre a água. “Santo, santo, santo”, cantavam elas.

Resumo:

1.

O culto cristão carrega uma estória. A repetição dessa estória constitui uma parte essencial da identidade do culto cristão. Ao mesmo tempo, existe o risco de se ficar cego para a revelação de Deus no tempo presente.

2. A importância da música como meio de interpretar a vida e a fé. Para muitas pessoas, o ritmo da música rock/pop pode interpretar o ritmo da cidade, bem como o ritmo da vida/fé, mais do que outros tipos de música sacra mais tradicionais.

3. Em meio à multidão da cidade, nós precisamos de uma “multilinguagem”, que seja inclusiva e convidativa, e não excludente e proclamadora.

4. O quanto podemos, sem perder nossa identidade, abrir-nos para experiências espirituais diferentes/novas?

5. A importância da quietude/do silêncio em meio ao ritmo da cidade. 6. A importância de fazer uso dos artistas e poetas da cidade em nossas liturgias.

7. O futuro da liturgia urbana e sua relação com o ecumenismo. 8. A importância do uso de símbolos e ações simbólicas. 9. A importância da “liturgia após a liturgia”, que é o termo com o qual os cristãos ortodoxos designam a tarefa social da igreja. O trabalho diaconal faz parte da liturgia urbana.

SIMEI MONTEIRO

é compositora de música sacra brasileira. Publicou diversos livros de liturgia e música sacra e atualmente trabalha como consultora para assuntos de culto e liturgia no Conselho Mundial de Igrejas, Genebra, Suiça.

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