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Um coral em um hospital?
Quando o Coral Pequeno Príncipe começou suas atividades, o Hospital Pequeno Príncipe tinha pouco mais de 90 anos de existência. Nesse quase centenário, já dava o que falar como uma instituição dedicada a quebrar paradigmas em todas as áreas, inclusive no que se refere à humanização no espaço hospitalar e ao entendimento de educação, arte e cultura como direitos. Devido a essa trajetória, não havia lugar melhor para abrigar o canto de voluntários e colaboradores que tinham como desejo romper o silêncio dos corredores com a emoção na forma de música.
Para entender o percurso que fez do Pequeno
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Príncipe um lugar propício para o encontro das vozes do coral, é preciso voltar um pouco no tempo, mais precisamente para o fim da segunda década do século XX.
Em 1917, a Cruz Vermelha do Paraná foi fundada por senhoras da elite citadina de Curitiba, organizadas no Grêmio das Violetas que, por sua vez, era ligado ao Clube Curitibano. De um lado, estava o desejo dessas damas, atentas às transformações sociais e dispostas a lutar por protagonismo nas poucas áreas de atuação permitidas às mulheres da época: as causas sociais e as entidades de organização civil. De outro, a necessidade de atenção ao campo da saúde dos mais pobres. Essa união faria da Cruz Vermelha, no Paraná e em âmbito mundial, entidade de referência durante a Primeira Guerra Mundial e no combate às pandemias de febre tifoide (1917) e de gripe espanhola (1918).
Em sentido horário, placa produzida pelo Clube Curitibano em 1944, em homenagem aos cinquenta anos do Grêmio das Violetas. Acervo Casa da Memória / Diretoria do Patrimônio / Fundação Cultual de Curitiba. Coleção Fundo Casa da Memória; Hospital de Crianças, futuro Hospital Pequeno Príncipe, na década de 1930. Acervo Casa da Memória / Diretoria do Patrimônio / Fundação Cultural de Curitiba. Coleção Arthur Wischral. Fotógrafo: Arthur Wischral;
Damas reunidas em baile de carnaval, realizado no ano de 1923 no Clube Curitibano. Acervo Casa da Memória / Diretoria do Patrimônio / Fundação Cultual de Curitiba. Coleção Fundo Casa da Memória.
As pandemias ensinaram — e nos ensinam até hoje — que higienização e vacinas são as melhores armas para a prevenção de boa parte das doenças. Então, médicos e damas de caridade se uniram e colocaram em prática esse aprendizado em benefício da saúde das crianças de Curitiba. Em 1919, a Cruz Vermelha e a recém-criada Universidade do Paraná fundaram o Instituto de Higiene Infantil e Escola de Puericultura. Essa foi a semente do que passou a ser conhecido, a partir de 1990, como Hospital Pequeno Príncipe.
O instituto voltava-se ao atendimento gratuito a crianças de famílias pobres; funcionava como dispensário (o mesmo que consultório), como centro de vacinação e como centro de educação para as mães, seguindo o modelo francês de puericultura.
Na época, as condições de higiene eram precárias. Além disso, as mães operárias trabalhavam por até 12 horas nas fábricas, sendo que creches e licença-maternidade eram direitos muito distantes no horizonte. Em uma cidade onde poucas residências tinham água encanada e saneamento, orientar as mães sobre os cuidados com a saúde das crianças era um paliativo para os problemas estruturais que deveriam ser resolvidos pelo poder público.
A criação do Instituto de Higiene Infantil contribuíra para melhorar o acesso de filhos de famílias pobres a procedimentos básicos de saúde (as famílias ricas eram tratadas em casa, por médicos particulares). O atendimento como dispensário, porém, não bastava. No decorrer dos anos 1920, sentia-se a necessidade de um estabelecimento onde as crianças pudessem ser internadas e passar por procedimentos cirúrgicos. As damas de caridade então se mobilizaram novamente, agora para uma empreitada ainda maior: viabilizar a construção de um hospital de crianças.
É a partir desse momento que música e voluntariado passam a fazer parte da história do Hospital Pequeno Príncipe: quando as senhoras renovam as estratégias de arrecadação de fundos para o árduo processo de sensibilização da sociedade e do poder público.
Festivas e melodiosas “que só”, as damas dos grêmios Violeta, Bouquet, Magnólias e
Camélias organizaram festas, saraus e chás para angariar o dinheiro; promoveram eventos culturais e musicais com os quais contribuíam graciosamente, sem cobrar cachê, os artistas que agitavam a Curitiba daqueles anos. Em 1926, por exemplo, o então chamado Theatro Guayra apresentou a ópera La Fornaria, e também um espetáculo idealizado pela maestra Felice Clory e suas alunas, com coro, poesia e dança rítmica. Ambos foram realizados em benefício do hospital infantil que se pretendia construir.
Os esforços voluntários das damas e dos artistas deram resultado. Em 1930, inaugurouse o Hospital de Crianças, ampliando o escopo e a capacidade de atendimento do Instituto de Higiene Infantil e Escola de Puericultura, fundado 11 anos antes.
E, se um hospital de caridade precisa de recursos para ser construído, recursos também são necessários para mantê-lo em funcionamento. Diante disso, eventos artísticos de arrecadação de fundos continuaram a ser realizados.
A música nutriu o hospital nas décadas seguintes com iniciativas como as “festas da seringa” e a peça musical Amores de estudante, realizadas pelos alunos de medicina da Universidade do Paraná no início dos anos 1930. Outra importante contribuição veio dos jantares dançantes oferecidos entre 1932 e 1945 por Zelinda
Fonseca, esposa do interventor Manoel Ribas. 34 Vozes do bem-querer
Em sentido horário, apresentação do Coral Pequeno Príncipe na Escola Menino Jesus, em Curitiba, 2018; matéria de março de 1924, publicada no jornal O Dia, noticia os avanços na construção do prédio do Hospital de Crianças, com imagem da fachada prevista; antiga sala de cirurgia do Hospital Pequeno Príncipe, então chamado Hospital de Crianças; apresentação natalina do Coral nos corredores do Pequeno Príncipe, 2018.
Durante as décadas de 1920 e 1930, era comum que os jornais noticiassem as ações em prol do Hospital de Crianças.
Vê-se que a forte vocação do Pequeno Príncipe como espaço de transformação pela música — e por meio de todas as artes! — não é de hoje. Vem de outrora, dos tempos em que o hospital ainda era um sonho a ser construído e desenvolvido. Desde então, a música transforma as pessoas que passam pelo hospital. Elas, por sua vez, por meio da música, ajudam a promover a metamorfose do lugar. É na continuidade dessa história e nos jardins dessa “casa” que o Coral Pequeno Príncipe fez morada.
Notícias de ações em prol do Hospital de Crianças no jornal O Dia e coralistas em frente ao prédio histórico da instituição. Em sentido horário: nota sobre o início da construção do hospital em julho de 1923; em outubro do mesmo ano, divulgação do Dia da Caridade; matéria exaltando as ações do Dia da Caridade, também de outubro; Coral Pequeno Príncipe na fachada do antigo Hospital de Crianças, hoje Hospital Pequeno Príncipe, em 2019; em março de 1926 divulgação de matinê em prol do Hospital de Crianças.