Historias Vividas na Ilha Grande - Pelos Antigos da Ilha

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COLEÇÃO VOZ NATIVA #3

HISTÓRIAS

VIVIDAS

NA ILHA GRANDE PELOS ANTIGOS DA ILHA



COLEÇÃO VOZ NATIVA #3

HISTÓRIAS

VIVIDAS

NA ILHA GRANDE PELOS ANTIGOS DA ILHA



PROJETO JUVENTUDE PROTAGONISTA ILHA GRANDE / RJ VOZ NATIVA MARCIO RANAURO Coordenador Geral MARINA ROTENBERG Coordenadora de Comunicação ARNALDO OLIVEIRA Coordenador Administrativo IVAN BURSZTYN Coordenador Pedagógico ANDRÉ PAZ Coordenador Multimídia ANA LAÍSE BEATRIZ LUZ IVANA RIBEIRO Assistentes de Coordenação LUISA SOBRAL Assistente de Campo GUARACI LAGE Designer e Diagramador Realização:

www.alternativaterrazul.org.br

Patrocínio:

Apoio: Projeto Juventude Protagonista Ilha Grande



2016_ALTERNATIVA TERRAZUL Tiragem: 1000 exemplares Distribuição Gratuita Impresso no Brasil A reprodução de todo ou parte deste documento é permitida somente para fins não lucrativos e com a autorização prévia e formal da Associação Civil Alternativa Terrazul ou do Projeto Juventude Protagonista Ilha Grande/RJ - Voz Nativa, desde que citada a fonte. EQUIPE RESPONSÁVEL PELA PUBLICAÇÃO ORGANIZAÇÃO Ivana Ribeiro, Luísa Sobral, Marcio Ranauro e Marina Rotenberg PESQUISA E ENTREVISTAS Ivana Ribeiro, Luísa Sobral e Marina Rotenberg TEXTOS Ivana Ribeiro, Luísa Sobral e Marina Rotenberg FOTOGRAFIAS Guaraci Lage, Luísa Sobral, Marina Rotenberg e Stela Castro de Sousa PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Guaraci Lage 1ª Edição Ilha Grande - RJ_2016

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ÍNDICE Ficha técnica_3           Histórias contadas, histórias vividas_8 O olhar, a fala, a escrita_10 Onde vivem as histórias_12 Dormandina | Provetá_14 João de Oliveira | Parnaioca_18 Dalva | Enseada das Estrelas_22 Aristídes | Matariz_26 Regina | Palmas_30 Silvio | Parnaioca_34 Fumiko | Bananal_37 Benedito | Aventureiro_41 Maria | Matariz_45 Renato | Abraão_49 Teresa | Dois Rios_53 Benedito | Araçatiba_57 José | Bananal_61 Marta | Abraão_65 Julio | Dois Rios_69 Osório | Longa_73 Zenaide | Araçatiba_76 João Firmino | Vermelha_80 Lucinéia | Aventureiro_84 Dário | Palmas_88 Neuseli | Abraão_92 João Bulé | Parnaioca_96


HISTÓRIAS CONTADAS, HISTÓRIAS VIVIDAS   Desde 2014 o Projeto Voz Nativa vem trabalhando em toda a Ilha Grande com a vontade de colaborar com o desenvolvimento das comunidades locais, sobretudo apoiando a formação de um turismo de base comunitária. Nossos esforços têm sido de realizar junto, de apoiar ideias locais, de poder investir na valorização das culturas tradicionais da Ilha, sejam elas caiçaras, japonesas ou daqueles que vieram aqui construir sua história de amor e cuidado com a Ilha Grande.   Uma ilha de tantas histórias contadas, que em muito acompanha a história do país, abriga muitas histórias vividas. E, apesar do tempo continuar mudando a Ilha Grande, são as histórias vividas aqui que constroem essa ilha nova, turística, ecológica, paradisíaca e ainda pesqueira, religiosa e tradicional.   O Voz Nativa, como o nome já diz, é um projeto que pretende valorizar a voz, a cultura, os desejos e os projetos daqueles que vivem e constroem a Ilha Grande: os antigos, os jovens nascidos, os que veem a ilha como um lar e não apenas como um negócio turístico. Entendemos que colaborar com um turismo de base comunitária, valorizando as comunidades que aqui vivem e que podem preservar as belezas naturais e culturais da Ilha Grande, é uma forma de apoiar um modelo de turismo mais inclusivo, mais justo e mais ecológico.    O livro que agora se apresenta foi desenvolvido a partir de conversas com antigos moradores de todas as praias da Ilha Grande. Nasceu de um desejo de registrar a memória daqueles que viveram a transição de um século que 8


transformou uma ilha pesqueira e que abrigou um presídio numa ilha que se transformou em atrativo turístico. Este livro foi construído a partir das entrevistas gravadas com estes moradores, tão emblemáticos da história da Ilha Grande. Os textos procuraram preservar frases, jeitos de dizer, mitos e fatos daqueles que viveram as histórias. Não se tem uma intenção acadêmica, mas literal, de registrar as belezas das histórias vividas e das pessoas. Com isso, os textos são como feitos por eles, resguardando as suas falas, a poesia das suas memórias e o valor de cada pequena grande história. Muitas paixões e amores são relatadas aqui, e não apenas pela Ilha Grande.   Marcio Ranauro    Coordenador Geral Voz Nativa 9


O OLHAR, A FALA, A ESCRITA    Ouvir as histórias da Ilha Grande. Não ler, não pesquisar, não averiguar. Ver e ouvir as histórias vividas era o que queríamos por aqui. Durante dois anos de projeto Voz Nativa pudemos perceber, através do contato com as pessoas, a riqueza e as diferenças das experiências vividas nesse lugar, famoso pelas belezas naturais, pela importância política e por célebres personagens que foram envolvidos por seus encantos, mistérios e isolamento.   A cada lugar que aportávamos, percebíamos um trato diferente, uma nova forma de se relacionar com a Ilha. Foi a partir dessa percepção que alçamos o desafio de conhecer o passado da Ilha pela voz das pessoas que viveram e ainda vivem aqui.    E foi o que fizemos. Chegando a cada vila eram os próprios moradores que nos indicavam “Antigos” que poderiam nos falar sobre uma Ilha de um tempo remoto. A partir da experiência de quem o viveu éramos surpreendidos por uma riqueza de detalhes, lembranças e emoções que nos levavam para outro lugar.    As histórias aqui descritas foram desenvolvidas a partir de entrevistas realizadas entre julho de 2015 e fevereiro de 2016. Todas elas, assim como as fotografias, tiveram a divulgação autorizada pelos entrevistados. Muitas histórias, no entanto, não couberam nessa edição, todas igualmente importantes como as que verá aqui.   Não temos o intuito de contar uma única versão da história da Ilha Grande, muito pelo contrário. Os dados aqui apresentados mostram percepções pessoais e às vezes se repetem, às vezes se contradizem, uma vez que são parte da emoção e da memória de cada um. 10


Percorrer a Ilha Grande em busca de histórias pessoais é uma experiência que pode mudar concepções sobre idosos, comunidades tradicionais, turismo, meio ambiente e, finalmente, a Ilha Grande.    Por isso procuramos construir um mosaico que refletisse essas possibilidades. Alguns dos “Antigos” têm ancestralidade que remonta há séculos, outros vivem aqui há menos tempo, mas todos têm uma estreita relação com essa Ilha, que pode ser muitas ao mesmo tempo.    Da casa de farinha ao liquidificador, da canoa à lancha, da roça à pousada, do presídio ao turismo, “Histórias Vividas na Ilha Grande – Pelos Antigos da Ilha” apresenta o passar do tempo por aqui. É a História escrita a partir da fala e do olhar de cada ser humano, cada ser humano que constrói a Ilha Grande.    Ivana Ribeiro, Luísa Sobral, Marina Rotenberg

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ONDE VIVEM AS HISTÓRIAS Matariz

Aristídes

Maria

Bananal

Fumiko José

Longa Osório

Araçatiba Benedito Zenaide

Vermelha

João Firmino

Provetá

Dormandina

Aventureiro Benedito Lucinéia

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Enseada das estrelas

Dalva

Abraão

Renato

Marta Neuseli

Palmas Regina Dário

Dois Rios

Teresa Julio

Parnaioca Silvio João de Oliveira

João Bulé

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Uma mulher de muitas vidas Dormandina da Conceição - Provetá

Era 1942 quando Dormandina da Conceição conheceu o Provetá em uma viagem sem volta que mudou sua vida. O motivo foi o casamento com José Olegário Pimenta, ela tinha quatorze anos, oito a menos que o rapaz, quando o conheceu em uma paquera não muito convencional.    José e Dormandina estavam no mesmo baile em Paraty e trocaram olhares pela primeira vez. Do olhar, uma dança, da dança, um namoro. O problema? José foi ao baile acompanhado de sua namorada, a qual foi trocada de uma vez por todas e não gostou nada da ideia. A moça se zangou com os dois, nunca se casou e morreu ainda amargurada. 14


Coisas duras da vida.    Dormandina não sabia do tal relacionamento e não teve muito o que fazer, já tinha se apaixonado e além de tudo teve que fugir para a casa do tio do noivo, no Provetá, pois seu pais também não apoiavam o casamento de sua filha tão jovem. Talvez eles tivessem razão, pois até o juiz, para permitir a união, teve que acrescentar dois anos à sua idade na certidão de casamento.   As histórias de baile e de dança permearam o relacionamento por muitos anos. Aquele homem, que não queria largá-la no primeiro encontro, mudou ao longo da relação: bebia muito, ia aos bailes sozinho e não queria levála. Ele ia e ela ficava em casa. Quando chegava, bêbado, queria arrumar confusão. Foram tantos episódios que certa vez Dormandina não aguentou. Colocou o homem para dormir no sofá, esperou ele se recuperar e deu o ultimato: “A cachaça ou eu”.    José chorou, pediu perdão e nunca mais bebeu daquela maneira. A chantagem deu certo e a vida ficou mais leve, até a morte dele, já idoso. Quando jovem, o casal era trabalhadeiro, oferecia refeições para os turistas que acampavam na praia. José também era mestre de barco e Dormandina trabalhava na roça, além de pegar roupas dos vizinhos para lavar. Pra comer, tinham feijão, peixe com banana, lula, peixe frito, sopa de tartaruga, sopa de arraia. Tudo que pescavam e plantavam. Não havia luxo, mas também nada faltava.    A vida mudou mesmo onze anos depois que Dormandina chegou ao Provetá. Um talento a transformou em Vovó Dina, a grande parteira da comunidade. Sua mãe também era parteira e mesmo só tendo convivido com ela até os

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quatorze anos, parece que o dom veio pelo sangue.    Tinha vinte e cinco anos quando fez o primeiro parto de outra mulher. Seus filhos – todos os quatorze - nasceram sem ajuda de ninguém, só ela e Deus. Apenas um teve que ser em Angra dos Reis, em função de uma hemorragia, mas este ainda recém-nascido não resistiu e faleceu.    Sem estudo formal, Dormandina fez cerca de 68 partos, alguns deles em barcos indo para o continente em busca de um médico, outros no cais já em Angra, antes de chegar ao hospital. Para ter a permissão de realizar partos, Vovó Dina teve que passar por um processo que a reconheceu como parteira e lhe garantiu a aposentadoria quando mais velha. Passou um mês no hospital, fazendo seis partos por noite para o médico dar a carta de parteira. Nesse período aprendeu também a fazer curativos e medicar.    Crente desde que a Igreja Evangélica chegou ao Provetá, Dina sabe da importância da carta de reconhecimento do médico, mas a conquista de cada parto atribui a Deus. Para ela, não há uma mulher que não possa fazer um parto se tiver acompanhada por Ele. E também não existe um parto que ela faça sem Deus: sempre coloca as mãos na grávida e faz uma oração, goste ela ou não. E não é só como parteira que ela é referência no Provetá, quando alguém precisa, logo encomenda a oração para Vovó Dina, que nunca falhou.    Para os partos, poucos segredos. Luvas, pacote de fraldas, massagem, tesoura e água quente para limpar. A criança tem que descer, mas se a mãe gritar, a criança sobe, então pra isso é preciso colocar uma fralda na boca da grávida. Se depois de muitas horas a criança não vier, coloca a luva e vira a criança lá dentro. Se tiver difícil demais, faz o chá. Mas o que

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tem nesse chá? Ah! Isso ela não diz não.    Para a mulher que usa as mãos para gerar a vida, fazer um parto não é grande mistério, diz ela que é trabalho como qualquer um. Falar sobre os partos é como falar sobre a roça ou a Ilha Grande de antigamente. Nenhum alarde. Foi o que Deus concedeu para ela fazer na Terra.   De sangue, são trinta e oito netos, dez bisnetos e seis tataranetos, de consideração Dina já perdeu a conta. Ela, que agora não realiza mais partos por conta da idade, toma seu banho e fica na frente de casa. A cada minuto um abraço, um beijo, uma benção. Sente-se querida e é isso que a alegra na vida.    Mas, para ela, viver agora já não é tão importante, sente que já fez tudo o que queria por aqui. Hoje ora para que Deus a leve. A vida vivida já foi boa demais.

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Tempo em suspenso João de Oliveira - Parnaioca

A praia da Parnaioca hoje tem quatro casas, mas nem sempre foi assim. Em 1935, quando João de Oliveira nasceu, a praia tinha cerca de 50 casas e a vida era bem diferente por aqui. Tinha escola, festa, as missas na igreja eram regulares, a pesca era uma importante atividade.   As festividades religiosas eram tradição da praia e era durante o mês de junho que as festas aconteciam por aqui. Galinha, pato, peru, porco, tudo para comer. A música era o calango e sanfoneiros de fora vinham pra cá fazer a festa. Padres e missionários também, era o mês inteirinho dedicado a isso, uma festa linda para quem era religioso, como era o 18


caso de João e sua família.    Seu avô era católico fervoroso e não passava um fim de semana sem reunir toda a família em torno da fé. Devoto de Santa Rosa de Lima, foi referência na Parnaioca, tanto de cura quanto de sabedoria. Pela lua, pela corrente do vento, pela areia da praia sabia direitinho como ia ficar o tempo. O canto dos pássaros ou o grito do bugio eram o suficiente para saber quando a chuva ia aparecer.    João sempre foi um menino tímido, mas muito observador. Quando tinha dez anos e estava na escolinha, o professor não tinha mais nada para ensinar e o colocou para ensinar às outras crianças que estavam começando.    Foi com dez anos também que conheceu Zaira, menina da mesma idade que morava na Praia da Longa. Ali João já cismou que casaria com a moça, mas apenas oito anos depois que virou namoro de verdade. João ingressou como policial na Colônia Agrícola de Dois Rios, na mesma época em que o namoro entre ele e Zaira emplacou, com dezoito anos. Ela foi namoradeira e brinca dizendo nem saber quantos “Joãos” namorou, já para João, Zaira foi a primeira namorada.    Quando pegou a diligência, na qual trabalhava 24 horas e folgava 48, é que o namoro pôde se efetivar com encontro e tudo, porque antes era só por carta. João fazia um esforço que provava todo o seu amor: ia andando para Dois Rios para trabalhar e depois de Dois Rios para Longa para namorar, e voltava para Dois Rios para trabalhar e isso se repetia por todas as semanas. Com vinte e dois anos eles ficaram noivos e com vinte e quatro se casaram.    Durante seu trabalho no presídio, João foi muito focado. Discreto e justo, ele nunca gostou de violência e, além de

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tratar os presos muito bem, desaprovava a atitude de alguns companheiros. Tal cuidado o rendeu a tranquilidade de sua vida. Muitos policiais tinham medo de andar pelas praias e especialmente pelas ruas do Rio de Janeiro, pois os presos fugidos se lembravam da cara dos sujeitos que davam os castigos no presídio e iam acertar as contas do lado de fora.    As histórias de presos que ele encontrava na Parnaioca quando já não era mais policial não são poucas, e sua prática era sempre a mesma: já sabia quem tinha cara de preso, não dava pra confundir com turista ou pescador. Conversava, perguntava se era fugitivo e, em caso positivo, o colocava no caminho de volta para que ele chegasse antes do confere. Nessa época na trilha era tudo desmatado por conta das plantações, então era só observar se o preso continuava no caminho certo.    As antigas plantações também fizeram parte da história de João. Seus bisavós, avós e pais viveram e morreram na Parnaioca. Seu bisavô trabalhava com fazendas de plantação de café, chegando a ter até 16 escravos, segundo informações que a família foi encontrar depois em documentos no cartório.    Já seu avós e seus pais trabalharam com lavoura e com a pesca. Chamavam a Parnaioca de mina de peixe, de tanto que existia peixe por aqui. Seu pai quando solteiro saia de canoas trocando mantimentos como farinha, feijão, arroz, vinho e café pelos peixes que pescavam.    E foi logo a praia com tanta fartura que perdeu quase toda sua população por causa do fracasso da pesca. Depois que apareceram os maquinários e tecnologias, a pesca artesanal quase acabou na Parnaioca. Os idosos foram morrendo e os

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mais novos, por falta de trabalho, foram saindo, encontrando meios melhores de vida. Quem ficou hoje trabalha com o turismo, como é o caso da Janete, filha de João e Zaira, que assumiu o camping dos pais, para eles descansarem.    Hoje eles vivem tranquilos, recepcionando, apenas pelo prazer, quem chega ao paraíso. Impossível não sair da Parnaioca inspirado pelo casal, o carinho é tão visível que parece até namoro recente. E talvez possa ser porque para João a Parnaioca tem outro tempo, um tempo em suspenso, “um tempo que prolonga a vida da gente”.

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Caminhos de Dalva

Dalva Brito - Enseada das Estrelas

Foi aos seis anos que Dalva viu o mar pela primeira vez. Vinha de Minas Gerais com os pais e os outros cinco irmãos. Ficou deslumbrada e provou para ver se a água era salgada mesmo. Não sabia o que era barco, nunca tinha visto um. Ficou tão surpresa que nem se lembra de mais nada do dia. Só do mar e do barco.    O pai dela tinha sido convidado pelo Seu Camargo para vir para a Ilha trabalhar como carvoeiro. Foram morar na Enseada das Estrelas, mas bem longe da praia, lá em cima do morro, perto da cachoeira da Maromba. Ele construiu uma casinha de estuque para a família, com camas de tronco, 22


onde eles esticavam as esteiras, depois construiu o forno de carvão que ainda existe lá. Também conseguiu umas mulas para carregar o carvão que fazia, algumas vezes essas mulas carregavam Dalva e os irmãos até a praia de manhã para eles brincarem, enquanto o pai trabalhava. À tarde, todo mundo voltava. Horas de subida até a casa. Nem sempre eles desciam para brincar na praia, brincavam na cachoeira que era pertinho. Dalva e as irmãs também gostavam muito de brincar com as bonequinhas de pau que faziam e as bonecas de pano feitas pela mãe. As comidinhas das bonecas eram folhas, que não faltavam no meio da mata. Eram doze irmãos. Sorte serem tantos, porque a mãe de Dalva não deixava eles brincarem com outras crianças. Ela não queria que pegassem o mau costume de desobedecer.    Depois de algum tempo, a família se mudou para a parte baixa perto da praia. Ali o pai criava bois, cavalos, galinhas, marrecos, cabritos e porcos. Também plantavam legumes e verduras. Produziam tudo o que precisavam, só compravam sal. Naquele tempo, a Enseada das Estrelas tinha poucas casas e o pai de Dalva deixou a produção de carvão e começou a fabricar tijolos, depois ainda passou a vender bananas. Mas ele nunca deixou de ser de Minas Gerais, do mar não se aproximou. Foi carvoeiro, oleiro, agricultor e criador de tantos bichos... nunca foi pescador. Mas não tinha problema, quando queria, trocava algum de seus produtos por peixes.    Ela foi vivendo assim, brincando com os irmãos e fugindo dos fantasmas e do saci. Conta que todas as vezes que ela e os irmãos viram assombração é porque estavam fazendo alguma coisa errada. O saci, por exemplo, apareceu para a irmã quando ela tentou fugir de casa. Com medo do saci

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ela voltou correndo. Os fantasmas também nunca apareciam à toa. Se fosse olhar direito, ia ver que alguma coisa tinha aprontado. Depois de brincar muito, chegou a hora de ir para a escola. Ela foi morar em Angra na casa da madrinha para estudar. Nas férias voltava para a Ilha. Quando estava em Angra sentia falta da liberdade que tinha aqui. Mas o tempo foi passando e ela foi crescendo e aí a Enseada das Estrelas já não chamava mais tanta atenção. Ela já era mocinha e queria movimento, queria festa. Angra tinha mais, mas em Angra ela não podia ficar tão livre quanto ficava aqui... Aí ela vinha.   Depois que terminou os estudos, voltou a morar na Enseada das Estrelas para trabalhar na casa do pastor. Dalva gostava de morar na Ilha, mas o amor dela era pela vida, onde quer que ela estivesse. Depois de um tempo, voltou para Minas. Ficou um período lá. Quando desistiu de casar com o noivo ciumento, cismou de morar no Rio. E pra lá foi. Dalva era uma mulher muito decidida. Depois de terminar o namoro de nove meses, ela decidiu que não ia casar com ninguém. E ela queria ser mãe. Foi trabalhar para uma família alemã e depois uma família dinamarquesa. Quase foi morar na Dinamarca com a família, mas ela gostava era do Rio. Aproveitou bastante, mas também trabalhou e economizou para ter um filho sozinha. A vida deve ter pensado: “vou premiar a coragem dessa mulher em dobro”. E Dalva teve gêmeos.   Nas férias ela levava as crianças para a Ilha, mas não queria morar aqui. Dalva tinha medo porque quando ainda morava na Ilha sua casa foi invadida por presos que tinham fugido, parece que era o grupo do “Peruano”, do Comando Vermelho. Dalva ficou com muito medo e resolveu que não ia

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mais morar na Ilha. Foi para o Rio, mas acabou retornando. Cozinheira de mão cheia, foi convidada para trabalhar para Castor de Andrade, que tinha uma casa enorme na Enseada. Todo mundo queria ter ela trabalhando em casa. Na Enseada ou na Dinamarca. Mas enfim, Dalva foi ficando por aqui. E assim foi indo e é até hoje. Ela é cheia de decisão, tem coragem de escolher a vida que quer pra ser feliz. E a vida, por sua vez, reconhece a coragem dela e realiza seus sonhos, mas nem todos. Deixou ela dar uns passeios pelo mundo, mas escolheu que é aqui o lugar que Dalva deve ficar. Mas afinal, quem vai se opor? A vida também tem seus caprichos.

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Ofício de viver

Aristídes Inocêncio da Silva - Matariz

Aristídes Inocêncio da Silva não é filho da Ilha Grande. Quer dizer, não é filho legítimo, mas sim adotivo. Em seu caso o processo foi contrário: a Ilha não o escolheu, foi ele quem escolheu a Ilha. Talvez tenha sido um pouco dos dois.    Nasceu em Angra dos Reis e durante a infância ele e seus cinco irmãos acordavam às quatro da manhã para moer cana e fazer o café da manhã reforçado, com batata, aipim e carne seca. Iam para a roça com seus pais e trabalhavam desde as seis horas da manhã. Quando a tarde chegava, mesmo famintos, eles eram proibidos de dizer que estavam com fome, precisavam se manter calados para não apanharem de 26


seu pai de cabo de enxada, como de costume.   Foi com treze anos que Aristídes não aguentou mais a bravura do pai e fugiu pela primeira vez. Trabalhou no colégio naval como babá e depois como jardineiro, em Mangaratiba. Mais tarde Aristídes até tentou voltar para ajudar o pai, mas o homem permanecia da mesma maneira e ele foi embora mais uma vez. Precisava mesmo achar um lugar para chamar de lar e foi aí que encontrou a Ilha Grande.    Quando tinha dezesseis anos, em 1954, Aristídes chegou na Ilha pela primeira vez. Por intermédio de amigos veio trabalhar na lavoura no Matariz, com plantação de banana, milho, mandioca e tudo mais que pudesse dar pé. Com dezoito anos teve que sair da Ilha para se alistar no exército, conhecia uma pessoa que indicou que ele não servisse, mas não conseguiu a dispensa. Ficou alguns anos fugido do exército, até que mais tarde conseguiu emitir seus documentos e ficar livre de vez.    Logo depois voltou para o Matariz, onde continuou na lavoura por mais dez anos. Na época, Aristídes trabalhava com tropa de burros carregando bananas do alto do morro até os barcos na beira da praia. De lá, os barcos levavam a fruta para Itacuruçá que seguia para venda no Rio de Janeiro. Era assim que ganhava dinheiro.   Trabalho para Aristídes nunca foi problema, pelo contrário para ele é a forma de se sustentar e é isso que o faz vivo. Quem o ensinou a trabalhar foi seu pai, mas ele entende também os limites do trabalho e por isso desde criança tinha o sonho de fugir de casa e ter um bom emprego para viver sua própria vida.   Foi isso que sempre o motivou e o sonho foi virando

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realidade a cada passo que dava. Trabalho e vida eram inseparáveis e por esse motivo ele já fez de tudo: foi diarista no mato cortando lenha, foi açougueiro, trabalhou no matadouro, em empresa de luz, foi pedreiro, motorista de barco...    Com vinte e um anos se casou com Robertina Nunes Cristiane na Igreja de Angra dos Reis e no cartório na Praia Grande de Araçatiba. Com ela teve doze filhos e viveu junto cerca de trinta e quatro anos, até ela falecer. Assim que casou saiu da lavoura “eu queria arrumar um emprego direito, para poder construir minha família”. Trabalho era mesmo coisa séria.    Foi aí que recebeu o convite de encarregado da fábrica de sardinha do Matariz, emprego que ficou por vinte e nove anos e lhe permitiu criar os filhos. Com cerca de 120 funcionários, Aristídes coordenava o trabalho da fábrica, dividindo os empregados por função. Depois disso teve outros empregos, em empresas pela região. Já rodou muito por aí, mas as outras praias da Ilha conhece apenas por passagens de barco.   Mesmo na época do presídio, o Matariz era um lugar tranquilo. Os presos quando fugiam nunca perturbaram o povo de cá, muito pelo contrário. Os moradores ofereciam comida, café e tudo que os presos pediam. Os guardas não gostavam do bom tratamento que os moradores davam a eles, mas para a comunidade do Matariz, preso era ser humano e merecia ser tratado como tal. Se pudessem dar alguma comida davam, se pudessem proteger das surras dos guardas também.    E foi por esse clima que Matariz se tornou a melhor casa para Aristídes e o lugar que escolheu viver até o fim da

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vida. Teve um período em que esteve no Rio para os filhos estudarem, mas não deu conta da cidade grande e voltou em menos de dois anos.   Hoje ele vive sossegado, cuidando de um bar porque parado não consegue ficar. Anda da praia para casa, de casa para o bar e assim vai vivendo sua vida. Tem estado também procurando uma nova companheira, porque a vida já é boa, mas pode ser melhor se for compartilhada.

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A matriarca

Regina Célia Rocha - Palmas

As primeiras memórias de Regina são bem distantes de Palmas. Ela cresceu na Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), sendo cuidada pelas tias, que eram as funcionárias de lá. Queria aprender tudo o que podia e era ótima aluna, por isso era protegida pela equipe. Mas ficava mal vista pelos colegas encrenqueiros, que queriam que ela cometesse erros, não iam deixar ela ser tão perfeitinha assim. Mas eles não conseguiram muito, só que ela fumasse.    A menina vivia bem, mas queria ter as coisas que via na televisão. Sapato, sutiã, pasta de dente com sabor, sabonete que aveludava a pele. Queria ter o que todo mundo tinha, 30


então depois da escola ia vender bala no trem. Conseguia comprar o que queria e parte do dinheiro entregava para uma das tias guardar. Além de trabalhar, estudou muito.    Todos os cursos que ofereceram ela fez e hoje faz de tudo um pouco: costura, estética, modelista, marcenaria... Regina não deixava passar nada. Teve também médico, dentista e aprendeu a ter qualidade de vida. Num lugar que muita gente acha que não tem nada, ela encontrou muita oportunidade. Mas não era à toa, ela sempre teve estrela e ambição de ter coisas boas ao mesmo tempo em que valorizava o que tinha. Não se achava melhor que ninguém, mas tinha sonhos. Querida pelas tias, ela foi protegida das coisas ruins que existiam nas instituições e pôde usufruir do que havia de melhor.    Até que um dia, a idade limite para sair do abrigo chegou. Que tempo difícil! Ela se viu sem raízes. A tia entregou todo dinheiro que tinha guardado da venda de balas. Era um valor muito alto, deu pra comprar uma moto e uma casa. Mesmo que tenha vendido muita bala, e ela vendeu, dá para desconfiar que todos que a amavam colocaram um pouquinho a mais... Mas mesmo com esse carinho e com a porta aberta para visitar o abrigo quando quisesse, ela se sentiu sem chão.   A menina que já gostava de trabalhar virou camelô em Madureira. Qualquer promoção que via era uma possibilidade de lucrar. Comprava o que estivesse com bom preço para vender nas suas bancas. Ia pra tudo quanto é canto para trazer mercadorias. Minas Gerais, São Paulo, Chile, Paraguai... Trabalhar virou um vício, porque a sensação de abandono que ela sentiu quando saiu do abrigo ainda estava

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doendo. E por causa desse vazio ela ficou muito tempo num relacionamento em que não era feliz. Mas como sempre recupera o melhor de tudo, essa história que foi tão difícil deu pra ela Palmas. Foi com esse parceiro que ela chegou aqui pela primeira vez.   Quando chegou ainda tinha muita gente que morava longe da praia, mais para cima dos morros. E ainda existiam as roças. Eles já estavam descendo o morro porque achavam perigoso viver isolados na parte de cima, por causa dos presos que fugiam. Os guardas sempre vinham, mas mesmo assim era melhor não ficarem muito distantes. Então ela já construiu a casa na beira da praia. Era muito difícil levar material para Palmas nessa época, mas Regina como sempre dava seu jeito. Conseguiu que o barco Loretti transportasse o material de construção e assim foi fazendo sua casa. Ela já tinha casa e ganhou um grande presente: teve o Flávio, seu primeiro filho. Mas ainda não era sua hora de ficar por aqui.   O vazio que sentia ainda não tinha sido resolvido. Faltava descobrir o que todo mundo já sabia: que ela era extraordinária. E foi aí que entrou o mesmo médico que tinha cuidado dela no abrigo. O Dr. Helion Povoa a conhecia desde menina e ficou muito triste de ver que ela não estava bem. Ele conseguia vê-la melhor que ela mesma, e a mostrou que ela podia e merecia ser feliz. Ela se convenceu e foi atrás de sua felicidade. Rompeu a relação que não estava boa e voltou para o Rio. Não era uma decisão fácil. Continuou trabalhando, mas agora não mais para cobrir seu vazio. Regina estava enfrentando seus problemas de frente. Além de trabalhar como camelô, ela ajudava os orfanatos que podia. Foi desse jeito que conheceu sua segunda filha, Ana Cristina.

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No começo ela só apadrinhou a menina, mas quando viu que ela passaria pelas mesmas dificuldades que já tinha passado, acabou adotando. E era só o começo. Depois dela, veio o Marcelo, a Renata, o Alexandre, a Angélica, o Cleiton...   Após correr mundo ela voltou para Palmas, trazendo seus muitos filhos. Encontrou a praia cheia de turistas. Não perdeu tempo, construiu o restaurante onde boa parte da família trabalha hoje, o Morango das Palmas, e o decorou com incontáveis morangos. Continua trabalhando, mas hoje é porque gosta e precisa pra manter essa família grande, que trabalha junto.    Palmas mostrou que ela não precisa de muito para viver. A solidariedade que ela vê aqui não encontrou em outro lugar. E em Palmas ela é importante. E daí começaram a vir os netos. A menina que um dia se viu sozinha no mundo, hoje é a matriarca de uma grande família. Uma mãezona dos filhos e dos netos. E pelo jeito que é a vida, deve ter mais gente chegando aí.

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Refúgio do mar

Silvio Correa - Parnaioca

Das mãos de Maria Bucho - a parteira - ele nasceu na Parnaioca já com crédito. Silvio teve cinco dias de bonificação na certidão de nascimento, retirada no antigo cartório de Araçatiba. Com a chuva forte que deu naquele dia, a cachoeira da Parnaioca ficou muito cheia e seu pai não conseguiu pegar a trilha e registrá-lo a tempo.    À época, era casa e roça que davam vida àquela praia, e ele lembra de cada detalhe. Moravam à margem da cachoeira e ninguém sabia nada do que era esse tal de meio ambiente. Eles costumavam entrar pra escola com sete anos de idade, e sim, ali havia uma escola. Depois da aula, Silvio e seus 34


colegas iam ao galinheiro, pegavam um ou dois ovos pra comer com farinha e sal e partiam à caça. Com a ajuda dos cachorros, caçavam de tudo, principalmente passarinho. Era o que havia de carne por ali além do peixe, do porco e da galinha. Boi ou vaca só tinha no presídio, que não deixou de fazer parte de sua vida.   Na Parnaioca, o sustento vinha da roça e da pesca, colhiam e vendiam em Dois Rios para o presídio. Depois que o pai faleceu, em 1953, ele passou a sustentar a mãe e a irmã dando continuidade à venda de frutas. Faziam melado, puxa-puxa, farinha, ovos e usavam o dinheiro pra comprar roupas e tamancos. A comida tradicional era o peixe com banana, feita em casa, não precisavam comprar. No entanto, as relações com o presídio não paravam aí. Houve um ano em que o professor da escola adoeceu e faleceu. Pra não ficar sem aula, ele e mais alguns rapazes que moravam no Mar Virado – sertão perto da Parnaioca onde moravam cerca de dez famílias – foram estudar com presos políticos, como Demósthenes Gonzales, por cerca de oito meses.   Quem chega na Parnaioca hoje não encontra as mais de cinquenta famílias que ali moravam e podem apenas imaginar o movimento que eram as crianças brincando, as festas que aconteciam com frequência, as ladainhas na igreja. A violência das fugas de prisioneiros e a decadência do peixe são alguns elementos que impulsionaram a evasão. Com a mudança de capital do país, o presídio passou a ser do estado da Guanabara e o que antes era Colônia Agrícola do Distrito Federal passou a ser Colônia Penal Cândido Mendes, tornando a moradia ali cada vez mais insegura. Os moradores foram saindo e em 1965 não tinha mais quase

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ninguém. Muitos migraram para Areia Branca, em Santa Cruz no Rio de Janeiro. Silvio também seguiu esse caminho para servir o exército em 1961 e quando deu baixa levou com ele a mãe e a irmã.    Na cidade grande casou, fez família, tem dois filhos e três netos. Trabalhou com comércio, o que o impedia de visitar seu lar, que sempre foi Parnaioca. Mudou de trabalho e aí usava as férias e qualquer brecha que tinha para vir pra cá. Ainda era perigoso por causa dos presos, mas sempre vinha em grupos grandes, que por vezes incluíam até policiais. Passou a viver cada vez mais na Parnaioca quando se aposentou e, principalmente, depois que sua esposa faleceu. Tinham quarenta e três anos de casados. Quando o presídio foi demolido e o perigo acabou, ele voltou definitivamente junto a mais duas famílias de antigos moradores.    O turismo foi bom pra ele em parte, pois tem um camping que o ajuda, mas foi montado principalmente a fim de tirar as pessoas que acampavam na praia e deixavam muita sujeira pra trás. Ele não vê o turista com maus olhos, mas não gosta que passem de lancha e deixem lixo para os moradores manejarem, pois aqui não há coletores.    Ele é católico desde criança, quando havia respeito, tomava benção dos pais e avós e até hoje vai todo dia de manhã à igrejinha antiga, construída por escravos, para agradecer. Silvio elege três coisas muito importantes na vida, além da família: Parnaioca, Vasco da Gama e Nelson Gonçalves. O amor que sente em seu coração transborda e é visível, palpável. Ele tem apenas um pedido: que seja sepultado ali, ao lado dos antepassados, em sua Parnaioca.

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Oriente na Ilha Fumiko Hadama - Bananal

Quando em Angra dos Reis, virados pra Baía da Ilha Grande, mal podemos imaginar que ali na frente, localizada ao centro da Ilha, existe uma colônia japonesa. Fumiko Higa é uma das descendentes de japoneses que vieram para o Brasil no começo do século XX. Com noventa e um anos, ela mora no Bananal, onde chegou com onze anos de idade e hoje vive cercada de filhos e netos. Seus pais deixaram três filhos no Japão e vieram para o Brasil com a esperança de conseguir dinheiro para voltar e dar uma vida melhor pra eles. Infelizmente isso nunca aconteceu. Eles foram para São Paulo e começaram a trabalhar numa fazenda de café, depois

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passaram a trabalhar numa chácara em Santos, vendendo de casa em casa o que plantavam. Foi lá que Fumiko nasceu. Além dela, tiveram mais quatro filhos no Brasil.    Vir para Ilha Grande não foi à toa. Já havia uma família japonesa, Nakamashi, aqui instalada que era conhecida de seus pais. Eles proviam de uma ilha a duas horas de Tóquio, Tsuken Jima, muito parecida com a Ilha Grande e de onde já se conheciam. Os primeiros a chegar viram na Ilha uma oportunidade de construir um empreendimento: as fábricas de sardinha. Depois disso, outras famílias vieram para trabalhar (Hadama, Uhehara, Satiko, Tonaki) e viver aqui, todas já se conheciam do lugar de origem, algo que ajuda a explicar a harmonia e a união que se presencia nas Enseadas do Bananal e do Sítio Forte, principais áreas ocupadas pelos imigrantes. Foi o início do ciclo da sardinha.    Ainda criança, Fumiko não ajudava muito em casa, era tempo de brincar de boneca. Depois de crescida, por volta dos quinze anos, passou a ajudar na fábrica de sardinha e lá trabalhou bastante. Aos dezenove casou com Gitsugue Hadama. Ela o conheceu numa das vezes que ele veio de São Paulo visitar parentes que moravam na Ilha. Eles então foram morar em Paraguaçu, SP, começar a vida de casados trabalhando numa lavoura de algodão. Quatro anos e dois filhos depois, decidiram voltar para Angra, acharam que aqui era melhor de trabalhar. No início moraram três anos na Japuíba plantando numa chácara e vendendo em Angra, pra onde iam a pé. Acharam melhor entrar pro ramo da sardinha na Ilha Grande.    Trabalhando na salga, fazendo o dashicô, tempero feito com sardinha defumada, Fumiko elegeu ali o melhor lugar

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para viver e foi muito feliz no Bananal. Em São Paulo ficava em casa como prisioneira, tinha que trancar a casa toda, não gostava daquilo. Mesmo com a frequente fuga de presos do presídio ela não sentia medo assim. Eles costumavam vir pra roubar canoas, pois precisavam fugir, mas não faziam nada a ninguém. Os moradores davam até comida a eles só não os deixavam entrar em casa.    Teve dez filhos – sete homens e três mulheres, dos quais oito nasceram na Ilha. Um dos homens já morreu. Ela criou todos eles, o que ficou mais difícil depois que seu marido faleceu, há mais de cinquenta anos, quando teve um ataque fulminante nas vésperas do natal. Seu caçula tinha apenas treze anos e somente três de seus filhos eram casados. Ela tinha cinquenta e dois anos, mas nunca mais namorou ninguém e detestava quem fizesse gracinha pra ela. Fumiko teve que lidar com outras perdas, como a do neto, filho de seu mais velho Yoshitoko, que morreu na tragédia do Bananal, um deslizamento na noite de ano novo de 2010, em que morreram moradores e turistas. Foi um abalo muito grande na comunidade, que aos poucos se reergueu de volta à sua normalidade.    Em breve esperam poder voltar a fazer o grande Festival de Cultura Japonesa da Ilha Grande, festa imponente que atraía muitos descendentes de japoneses e curiosos e fazia do Bananal o centro da Costa Verde por um período do ano. Com as últimas crises, ficou muito difícil arrecadar incentivos para sua realização.    A família é muito importante. Pra felicidade dela, seus irmãos que ficaram no Japão já a visitaram na Ilha Grande e ela também foi conhecer o lugar de onde os pais vieram. O

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Japão é um lugar ótimo... pra passear e visitar as tias. Morar não quer. Quando perguntada sobre netos, ela já perdeu as contas. Alguns ela divide a ancestralidade com outras avós dali mesmo do Bananal. Os descendentes de japoneses costumam casar entre si. Isso vem da busca da preservação de costumes e tradições, como o oratório que toda família conserva para rezar pelos ancestrais.    Hoje Fumiko dá muito valor à eletricidade que chegou há pouco tempo no Bananal. Ela adora ver novelas, é um momento sagrado do seu dia, além de jogar conversa fora com parentes e amigos. Ela é forte, mas fala que a velhice chega e às vezes acorda pensando sem saber direito que dia é. Que bom que ela pode sempre olhar de sua varanda para as montanhas do Bananal e para o mar que invade a enseada e reconhecer ali como o lugar onde deveria estar.

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Resistência caiçara

Benedito Catarino - Aventureiro

Como todo mundo no Aventureiro, Benedito tem um apelido: Purungo. Esse apelido nasceu de uma história da sua infância, quando ele quebrou um bambu do cercado de tainhas que seu avô tinha na lagoa da Praia do Sul. Purungo é o nome do miolo do bambu. O avô descobriu que foi ele quem quebrou, mas não conseguiu pegar o menino. Ele fez o que sempre fazia quando era ameaçado, fugiu para o mato.   O lugar em que Benedito nasceu hoje é totalmente ocupado pela mata. Era o sertão, no alto do morro que fica na direção da Praia do Demo e se estendia na direção da Praia do Aventureiro. Na direção da Praia do Demo morava

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a sua família, os Catarino. E eles estavam lá há tanto tempo que Benedito nem sabe de onde vieram. Todos trabalhavam na roça, plantando mandioca, arroz e feijão. Desde cedo, ele ajudou a família na plantação. Também sabia fazer todos os serviços de casa. Quando a mãe chegava da lavoura, já tinha tudo limpo, fogão de lenha aceso com a comida e o café no fogo.   Na direção da Praia do Aventureiro moravam outras famílias que também viviam das roças. Um dia, um homem apareceu dizendo que a área onde viviam os Catarino era dele. Foi com um pouco de tristeza que eles cederam e se mudaram. A família foi toda morar no Aventureiro, bem perto. Dali não sairiam mais. Não importa o que precisassem enfrentar...    O Aventureiro de sua infância não tinha ponte nem cais. Só umas casinhas de palha e a imagem da Santa Cruz. Como não tinha escola, ele nunca estudou. Mas tinha a Igreja da Santa Cruz, então ele aprendeu a ser católico. Foi batizado, fez primeira comunhão, aprendeu a ter fé. E continua até hoje fazendo a ladainha. A igreja tinha festas e ele sempre ia. Benedito também gostava muito de brincar com os colegas do Aventureiro. Uma das melhores brincadeiras era a de preso fugido. Umas crianças eram os guardas, outras eram os presos. Corriam todos pro meio do mato. Eram descobertos pelos guardas e fugiam de novo, quando conseguiam. Era igualzinho aos presos de verdade, a única diferença é que não batiam, nem os guardas nos presos, nem os presos nos guardas. Era só correria mesmo. E essa habilidade ele usava também pra fugir das coças prometidas pelos pais. Fugia pro mato, ficava umas horas, às vezes um dia todo, e depois

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voltava pra casa quando os pais já tinham desistido.    Conforme foi crescendo, começou a entender que alguns presos que eles copiavam nas brincadeiras não eram tão inofensivos assim. As fugas eram cada vez mais frequentes e assustavam muitos moradores da Ilha Grande. Mas não os do Aventureiro. Quando um grupo grande de presos fugia, a diligência o procurava. Mas quando eram poucos, ficava a cargo dos moradores “resolver o problema”. E, assim como quando brincavam juntos ainda crianças, eles se protegiam juntos agora. Quando sabiam de alguma fuga, reuniam todas as mulheres da comunidade em uma casa só, bem escondida no meio do mato. E os homens saiam armados com o que tivessem para pegar os fugitivos. Foram muitos os confrontos com os presos que queriam os barcos para fugir. Mas na maior parte das vezes, eles estavam só fugindo mesmo e não faziam nada com os moradores. Eles nem viam os presos que estavam escondidos no mato. Mas os presos viam eles. Um preso que foi capturado pela polícia contou que tinha visto uma mulher com um menino na trilha para a Longa. Era Benedito e sua mãe. O preso não fez nada com eles, aliás eles nem o viram, só souberam depois pelos policiais. Era um dos presos bons, como diz. Sorte deles, porque também tinham os ruins, pra quem eles nem podiam olhar. De qualquer jeito, a comunidade do Aventureiro estava sempre pronta pra resistir e reagir. Eram vinte, trinta homens que se juntavam preparados para defender suas casas, suas famílias e sua comunidade. Não era só Benedito que não sairia dali...    E eles ficaram. Um grupo valente de homens e mulheres que acreditavam que, apesar do perigo, o Aventureiro era o seu lugar. Ficaram juntos, lutaram juntos e resistiram juntos.

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Entre eles estavam Benedito e sua família. E eles não iriam embora por nada.   Durante esse tempo, Benedito se revezava entre morar no Aventureiro e ficar longos dias no mar trabalhando com a pesca. Até que um dia ele achou que precisava voltar a trabalhar na lavoura para ajudar os pais. Depois de um tempo, seu pai, Chico, morreu e ele ficou com a mãe e a irmã. Trabalhava com elas na lavoura, como já tinha feito quando criança. Ele gostava muito de viver só com a família. Até namorou uma vez, mas não gostou e por isso nunca casou. Continuou cuidando da mãe e da irmã, trabalhando na lavoura e indo pra luta quando era preciso.    O tempo passou, a mãe faleceu e ele se viu sozinho. Nesse tempo, o Aventureiro já tinha mudado muito. Ao contrário da maioria dos lugares, ficou mais seguro que no passado. Além disso, chegaram muito mais coisas. Com luz, dá pra beber a cerveja gelada, que Benedito diz fazer bem pro coração. O presídio fechou e os turistas começaram a chegar. Como sempre, Benedito não remou contra a maré. Se os turistas chegaram, ele começou a trabalhar com o turismo. E continua trabalhando até hoje. Embora esteja cansado e reconheça que o trabalho é pesado para a idade, ele não consegue ficar parado. Foi uma vida toda de trabalho, de muita luta e agora ele quer aproveitar esse novo tempo, em que o Aventureiro está ainda melhor que antes. E alguém tem coragem de dizer que ele não tem todo o direito?

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O Sal, o mar e a terra

Maria Francisca Alves – Matariz

Maria Francisca Alves, sessenta e um anos, descobriu a Ilha Grande, mais especificamente a Praia de Matariz, há trinta e três. O motivo? O ciclo da sardinha.   Mal podia imaginar que seguiria um rastro de sal do Nordeste ao Rio de Janeiro pra nunca mais voltar. Ela veio de Natal, Rio Grande do Norte, onde havia as salinas e por onde caminhoneiros passavam sem parar em busca de sal. Um dia foi um rapaz que trabalhava na salga de sardinha na Costa Verde e fez amizade com seu marido. Não demorou muito, o chamou pra trabalhar junto no sudeste. Ele aceitou e se tacou sozinho pro Rio de Janeiro.

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Maria, que não é boba, se agoniou, cismou. Em agosto de 1982 pegou um ônibus com quatro dos dez filhos que teve e cruzou o país a fim de reencontrar o marido e viver com ele de novo. Foram três dias de viagem até o Rio. Quando chegou, mandou um telegrama, “não tinha essas coisas que tem hoje, sabe?”. Mas a correspondência só chegou depois dela. Quando em Angra, procurou um barco para ir ao destino. Mesmo assustada pelo vento sudoeste que tinha passado dias antes, ela não se deteve: “EU VOU!”.    Falou com o rapaz: “Quero que você arranje uma pessoa que me leve lá, uma pessoa que entenda do mar, que não beba”. Ela não queria arriscar botar os filhos num barco com alguém negligente e lembra até hoje o nome do indicado: Seu João. Ele era crente, confiável. O que ela não sabia é que seu marido estava naquele mesmo cais, trabalhando na fábrica de gelo. Passou por ele e foi direto pra Matariz numa viagem tranquila. “Ninguém vomitou, ninguém passou mal, uma bênção”.    Ao aportar na praia, a notícia chegou ao dono da fábrica. Ele e a mulher foram recebê-los, o que fizeram muito bem. Arrumaram um quarto pra ela dormir com as crianças, levaram jantar e mais algumas coisas, não faltou nada. Seu marido Antonio chegou no outro dia e malucou quando viu Maria e as crianças. Ele já tinha até notificado o chefe de que iria embora, que não aguentava a saudade. “Ih Antonio, ih Antonio, mulher chegou né? Agora não precisa mais ir embora né? Agora tá bom”. Maria logo começou a trabalhar na fábrica onde tirava cabeça de sardinha.    Depois de algum tempo, um dos três filhos que tinham ficado em Natal veio se encontrar com a mãe. Hoje eles estão

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todos espalhados por aí. Alguns moram perto, outros no Rio, em Natal, em São Paulo, no Acre... em todo canto. Dos netos já perdeu a conta, mais de vinte! E essa conta só aumenta com os bisnetos.    Maria trabalhou por cinco anos na fábrica. Parou devido a um problema no ossinho da mão. Seu marido continuou. Trabalhou onze anos até a fábrica fechar, em 1990. Matariz mudou muito. Ali era um lugar onde se fazia adubo de peixe. Traziam peixes que sobravam no Rio, peixe podre. Quando eram moídos pra fazer farinha, ficava cheio de bicho, “Era uma catinga que não tinha cristão que aguentasse”. Havia noites em que Maria acordava, ficava olhando por baixo da cama pra ver se tinha algum rato morto, do cheiro que pairava ao redor. Tudo isso feito ali na fábrica, onde chegavam e de onde saíam barcos o dia todo, movimentando muito o local e dando o sustento pra muitos moradores.    Depois que a fábrica fechou, muita gente foi embora. Seu marido foi trabalhar com a mulher do antigo chefe em sua pousada. Lá passou mais onze anos até adoecer e falecer, o que dói muito ainda em Maria, afinal foram muitos anos juntos, quarenta e sete ao todo. E quando se separa dói, dói muito. Faz tempo, mas ela não se esquece dele nunca.    Pra ela, Matariz é um lugar maravilhoso de morar, a maior dificuldade é a saúde. Maria é diabética, hipertensa, uma mulher já de idade. Médico está um caos, horrível “A médica passa um mês, um mês e pouco sem vir e quando vem é só pra assinar receita”. Ela tem que ir até Angra dos Reis em busca de remédios. Tantos anos morando em Matariz, se ela pudesse fazer algo pelo local seria melhorar a assistência médica, que antes quando a pessoa adoecia a defesa civil ia

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sem demora. Agora parece que escolhe, mas ela já se salvou duas ou três vezes ao enfartar.    No entanto, trinta e três anos não são trinta e três dias e a paz que lá encontra, sempre encontrou, mesmo na época do presídio, é inestimável. Já deu até comida a presos, mandou sua filha levar. A maior tristeza que tem é de quando sua filha mais nova se agarrou a ela a noite toda. Ficou assustada depois de ver alguns homens batendo em fugitivos na frente de todo mundo. Às vezes faziam isso com os presos que chegavam do barco Loretti. Levavam pra ponte e batiam muito. Aconteceu de eles revidarem. Mataram Ferrugem, de outra praia, que quando via os presos vagando ia avisar no presídio em troca de recompensas. Sua família escapou porque correu muito. Mas em Matariz isso nunca aconteceu.    Hoje Maria fica dali de sua casa, perto da ponte, vendo todo o movimento da praia, fala com quem passar por ela. Adora receber pessoas e até abriga turistas num quartinho em sua casa. De sua varanda, ela te chama pra um café e uma conversa cheia de cheiros, sabores e cores.

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Cercado de ilha

Renato Buys – Abraão

A história de Renato começou muito antes do seu nascimento, afinal para que sua mãe e seu pai se conhecessem era preciso uma mão forte do destino. Frederico Buys, seu pai, era Tenente do Exército na Vila Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Em 1922, comandou o levante na Vila e acabou preso no Forte da Laje, na Baía de Guanabara. Ele era um “avermelhado”, como se dizia, um comunista. Depois de algum tempo preso no Forte, foi transferido para o presídio da Praia Preta. Quando chegou pôde entender porque muitos presos chamavam a Ilha de ménage, que quer dizer lar, pois em relação ao que viveu no Forte da Laje, a

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Ilha Grande era um paraíso. Ele podia andar livremente e até poderia ter fugido, pois nadava muito bem. Mas não fugiu e acabou conhecendo seu amor, que era filha do Seu Nicolau, guarda de presídio e delegado do Abraão.    E foi assim que os pais de Renato se conheceram. Antes dele, tiveram quatro filhos. A família ficou morando no Rio, mas sempre vinha para a Ilha. De todos os irmãos, ele era o que mais gostava daqui. Como os avós moravam no Abraão, vinha do Rio às vezes sozinho, matando aula no Colégio Militar. Quando voltava pro Rio, apanhava e ainda tinha que estudar muito para recuperar as aulas perdidas. Mas valia a pena, na Ilha o menino aprendeu muita coisa, inclusive a nadar e a pescar. Às vezes, vinha de carona no Loretti, embarcação comandada pelo tio que fazia o transporte dos presos entre o Rio e a Ilha Grande. Geralmente eram oito horas de viagem, isso quando estava tudo bem, porque uma vez, imagine, a “carona” durou dezessete horas. Ele não tinha medo dos presos, já do barco... Mesmo com esse susto, ele continuou voltando.    Todo o esforço era recompensado, o Abraão desse tempo era o paraíso. Quase não tinha iluminação, só uma luz ou outra. Mesmo assim, eles sabiam pelo jeito de andar quem vinha ao longe. Todo mundo se conhecia em detalhes e tinha uma confiança ilimitada na comunidade. Podia deixar o que quisesse na rua e ninguém mexia.    Renato cresceu e trabalhou em muitos lugares. Um dos primeiros trabalhos foi escrever para o jornal de Carlos Lacerda,. Trabalhou na Rede Ferroviária e em Furnas também. Viajou muito, mas nunca deixou de amar e vir para a Ilha. Adivinha onde foi a Lua de Mel? E não era só

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no Abraão que ele ficava. A família da mãe de Renato era da Longa, então ele ia pra lá e pra todo lugar. Conheceu uma Lopes Mendes movimentada com duzentas casas, bloco de Carnaval e desfile de 7 de setembro.    Fora da Ilha sua vida também era intensa. A década de 60 foi movimentada política e socialmente em grande parte do Brasil e Renato, “avermelhado”, estava no centro desse burburinho. Nesse período, a Ilha virou fuga para ele, não importava o quanto a Ilha era policiada, primeiro porque se aparecessem pessoas diferentes, ele seria avisado, mas principalmente porque aqui, nessas matas, não havia quem conseguisse o pegar. E como sempre ele tinha um motivo para vir. Como se precisasse.    E assim a vida foi passando entre idas e vindas da Ilha Grande. Para visitar os parentes, para passear, para matar aula, para fugir da ditadura, para namorar em Lua de Mel, para encontrar a paz. Até que chegou o dia em que veio para ficar. Apesar de ter feito uma vida no Rio: trabalho, família, amigos, teve um momento em que a Ilha não queria mais que ele fosse e voltasse. E ele sentia que o Rio não era mais o seu lugar. Ele precisava viver completo. E é aqui, onde ele conhece quase todo mundo desde criança, que se sente completamente seguro. A Ilha Grande dá a ele “permissão para viver a vida que gosta”.   Renato é um apaixonado pela Ilha e pelo Abraão, de ontem e de hoje. Escreve contos, e tem a Ilha como uma das maiores inspirações. Também é um contador de suas histórias. É bem fácil vê-lo sentado no mesmo lugar batendo papo com moradores e turistas sobre sua paixão. Assim como outros moradores antigos, de vez em quando ele até

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fala dos problemas, diz que o Abraão não é mais o mesmo. O Abraão mudou, mas só nos detalhes, a essência continua a mesma da sua infância. O olhar de Renato pela Ilha é só de amor. E ele reconheceu esse amor no olhar dos presos que choravam de saudade porque seriam transferidos quando o presídio foi fechado. A mesma saudade que ele sentia desde menino quando tinha que voltar para o Rio. A Ilha foi o ménage do seu pai, e segue sendo o seu.    Como qualquer amor, o Abraão desafia suas certezas. Ele continua se considerando um materialista, mas sem tanta convicção. Uma vez viu um homem parado lendo uma placa que tinha em frente ao campo de futebol. Essa placa foi feita em homenagem a um policial que foi morto por um tiro acidental no Abraão. Ele cumprimentou o homem que não respondeu. Na mesma hora, olhou pra trás e não tinha ninguém, procurou muito e não achou. Histórias como essa, de pessoas que desaparecem sob a vista, ele sempre ouviu muito. Mas dessa vez ele viu! Por isso, não tem certeza nem que sim, nem que não. Só tem certeza de que essa Ilha tem um troço diferente.

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Nome e sobrenome

Teresa Pimenta Da Silva – Dois Rios

Era dia 03 de dezembro de 1954 quando Teresa Pimenta Da Silva nasceu no sertão do Iguaçu, alto do morro na Enseada das Estrelas. Seus pais e seus avós também nasceram na Ilha Grande e a família se perpetua por aqui, ela mesma teve treze filhos e, até agora, doze netos.    No sertão viveu pouco tempo, com poucas recordações de lá ela lembra apenas que seu pai contava que era carvoeiro. Ainda nova foi para o Abraão, depois Rio de Janeiro, São Paulo e Dois Rios, onde viveu a maior parte do tempo e vive até hoje. Se a vida é boa em Dois Rios? Até que é. Se já foi melhor? Na época do presídio era muito melhor.

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Quando pequena em Dois Rios o pai vivia da roça, plantava banana, mandioca, fazia farinha e arrancava sapê, vendia tudo, dentro e fora da Ilha. Dos sete irmãos só ficaram vivos três, que viveram juntos na infância, mas depois foram para São Paulo estudar. Só ela, a caçula, ficou no Abraão com o pai e a mãe. A vida a três infelizmente durou só até seus dezesseis anos, quando por causa de uma vacina dada errada seu pai faleceu.    Aos 12 anos Teresa teve que começar a trabalhar em casa de família para ajudar os pais, na mesma época que começou com as primeiras paqueras, escondida da mãe Benedita, que era mulher difícil, de pulso firme.    Esses primeiros namoros eram coisa boba. De verdade mesmo, com beijo e tudo, foi bem mais tarde e com um único homem, seu Getúlio Cantuária, policial do presídio de Dois Rios que virou seu marido.   A história de amor não foi nada fácil, Getúlio tinha outra família - uma mulher e mais três filhos - quando o romance começou. Benedita não apoiou o namoro, era feroz e agarrava o pescoço de Getúlio, com tição de fogo na mão e tudo, proibindo ele de casar com sua filha.    A proibição, no entanto, não durou muito tempo, pois uma notícia importante chegou para definir o destino: Teresa estava grávida e o casamento sairia por bem ou por mal. A novidade não desagradou somente Benedita. A antiga mulher de Getúlio também não deixou barato e prometeu para Benedita: “Sua filha vai me pagar”.    Dito e feito. No início da gravidez, Teresa teve uma doença na perna que nenhum médico descobriu o que era. Durante três meses sem conseguir andar, gritava de dor dia e noite.

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Um caroço entre a virilha e o joelho ia crescendo e Teresa teve que receber a visita de uma missionaria da Bahia para solucionar seu problema: era feitiço de verdade.    Foi só depois dessa visita que as coisas melhoraram. Após a cura, nunca mais frequentou nenhuma igreja que não fosse a Assembleia de Deus. Para Teresa, foi através da doença que encontrou Jesus.    A primeira vez que Teresa foi morar com o marido em Dois Rios foi muito sofrida, não se adaptou e tiveram que voltar para o Abraão. Foi na segunda vez que Teresa aprendeu a viver na vila.    A vida era tranquila, moravam presos, policiais, guardas e suas famílias, todos juntos. Cada família em sua casa mantinha uma relação distante e harmoniosa por ali. Tinha transporte regular, assistência médica, área de lazer, carroça para lixo. O mato era capinado e não se via bagunça pelas ruas. Cada grupo de presos era responsável por uma função, mantendo tudo em sua devida ordem.    Não havia problema nem quando preso fugia. Os policiais avisavam com um tiroteio e ao invés de se esconder dentro de casa, todo mundo ia para a varanda espiar. Nos dias normais todos dormiam com janelas e portas abertas. Violência não era uma questão na Vila Dois Rios.    Depois que o presídio foi desativado alguns problemas vieram, a vila ficou com dificuldade de transporte e sem responsáveis pela manutenção. Com a entrada da UERJ as coisas mudaram novamente, deu-se novo ar à comunidade e novas oportunidades de emprego.    Uma das pessoas beneficiadas foi Teresa, que desde que casou havia parado de trabalhar. Para ela, Deus escreve

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tudo como deve ser e bem na época que seus filhos já estavam crescidos surgiu a oportunidade de trabalhar no CEADS - Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentável - da UERJ.    Com esse trabalho se sente útil, completa, com nome e sobrenome. Ela é a cozinheira querida por todos. Como já cozinha no trabalho, em casa é Getúlio quem põe a mão na massa. Ama Dois Rios, mas o espaço reservado em seu coração é da Vila do Abraão, onde ainda pretende morar. Por enquanto, voltar é uma vontade só sua. Ela aguarda o dia que será também a vontade de Deus.

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Travessuras de família

Benedito da Costa – Araçatiba

As lembranças da infância de Bené nos levam a uma Araçatiba de lavoura e casas de farinha. As brincadeiras aconteciam entre plantações de mandioca, cana, café e frutas. Como muitos outros moradores, eles plantavam cana e produziam o mascavo que a mãe usava para fazer os doces no grande tacho de cobre. O café também era torrado em casa e tudo era cozido no fogão a lenha. Nessa época o mar era mais generoso que hoje, em poucas horas uma linha na praia era suficiente para garantir os cinco peixes necessários para uma refeição da família. E o menino Bené era bom de linha! Volta e meia era ele, pequeno, que ia buscar o almoço.

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Mas as roças, pomares, fogão a lenha, o mar... Nada era somente isso, tudo guardava um encantamento. As roças, além de garantir a subsistência da população, eram o espaço das brincadeiras e das travessuras. Os pomares idem. Os pequenos não queriam esperar e as frutas acabavam colhidas ou tiradas acidentalmente das árvores ainda verdes. E eram desperdiçadas, para a ira do avô de Bené. Nessas horas, os mesmos galhos em que eles se penduravam para brincar viravam o instrumento de punição nas mãos dos adultos. Galhos de amora, goiaba e romã eram os mais usados pela mãe de Bené para castigar os filhos.   Além das varadas de galhos de árvore, sua mãe usava a “régua” de torra do café também. A palmatória era usada pelo avô para castigar as crianças. Mas quem disse que adiantava... Como Bené fala, criança se acostuma e fica sem vergonha “parece que tem prazer em brincar e apanhar porque depois que apanhava, chorava, tomava um banho e no dia seguinte fazia de novo”.    Além do pomar, o mar também era território proibido para as crianças. Os pais não deixavam que eles fossem, pois não sabiam nadar. Por isso, eles iam para um canto escondido da praia, tiravam e enterravam as roupas na areia e nadavam pelados. A artimanha durou até o dia em que um tio dos meninos os viu e contou para a mãe de Bené. Mas nessa altura, ele e os primos já tinham aprendido a nadar. Valeu a pena.    Esse tempo tão feliz não durou muito...    Com oito anos ele foi embora da Ilha para estudar no Rio. Contrariado, foi ficar na casa de parentes e só pensava em voltar. Dessa infância de perigos, castigos e grandes

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aventuras vêm a paixão de Seu Bené pela Ilha. Ele recebia muito carinho dos pais e tinha tanta liberdade na Ilha que foi muito ruim quando tudo mudou. Uma liberdade assim diferente, onde tudo virava castigo. Mas mesmo assim ele fazia o que queria, não importava que castigo viesse depois. E assim ele aprendeu a nadar pelado no canto da praia, comeu todas as jabuticabas que quis, pescou os girinos que pôde e escapou de todas as assombrações. Essa liberdade do mar, que ele tanto sentia falta, era que explicava seu desejo de voltar para a Ilha.    Mas ele queria voltar independente, por isso trabalhou muito, em muitas coisas diferentes, fez cursos e se especializou, foi para Brasília, tudo era só pra dar um jeito de voltar. Mesmo vivendo experiências novas, ele sempre sentia aquele aperto no peito, aperto de saudade. Ele queria voltar. Agora, voltar não só para a Ilha, mas para a antiga profissão de seu pai e de seu avô. Bené queria voltar para a pesca.    Depois de muita luta, ele retornou para a Ilha, comprou sua casa, trabalhou com pesca artesanal e abriu um bar. Finalmente estava na Ilha como tanto sonhou. Mas faltava uma coisa. Nas cidades por onde passou, mesmo com muita vontade de estar na Ilha, ele foi deixando amigos. A saudade não durou muito. porque eles vinham sempre visitá-lo no paraíso. Ele achava que estava tudo completo. Só que a vida resolveu fazer uma surpresa pra Bené e lhe deu a Vitória, sua filha. Ele decidiu que a filha viveria uma infância de liberdade. Ele ensinou Vitória a nadar e a mergulhar. Só de olhar o pai, ela aprendeu a pescar com arpão. Agora ela cresceu e não vive em Araçatiba, mas está pertinho, em Angra, e sempre aparece com o marido para mergulhar nos costões.

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Bené continua em Araçatiba, onde cuida de uma pequena plantação do mesmo jeito que a mãe cuidava. Ele planta de tudo, inclusive mandioca, e quer reativar a casa de farinha, tal qual quando era pequeno. As comidas caiçaras da sua infância ele prepara hoje para turistas do mundo todo que vão ao seu restaurante e são convidados a cozinhar também. Como quando era pequeno, todo mundo na cozinha trabalhando junto. A infância de travessuras e castigos de Bené passou, ele a reviveu muito com as travessuras da Vitória e daqui a muito pouco tempo, pode apostar, reviverá com o neto. Porque a vida em Araçatiba é como as aventuras de Bené, não importa que o castigo venha depois, o que vale é se divertir.

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Sobre viver

José Marcos Matos - Bananal

José Marcos Matos, mais conhecido como Juca, nasceu em 1940 na Enseada das Estrelas e logo foi levado para o Bananal, onde viveu com o pai, a mãe e os irmãos.   Seu pai vivia no interior de São Paulo como caixeiro viajante, levando mercadorias do patrão de um lado para o outro em cima de um cavalo. Foi a fuga de um crime que cometeu que o levou até o Bananal. Um compadre vivia dizendo que outro homem andava com sua mulher e ele resolveu conferir. Chegou do trabalho mais cedo e confirmou a informação. Não pensou duas vezes e atirou no homem, para ele um homem-macho não aceitaria traição. Saiu

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andando em busca de um lugar para viver e assim chegou ao Bananal.    Foi aqui que conheceu a mãe de Juca, Ana Matos. Casaramse e veio Juca, depois uma irmã, um irmão e outra irmã mais nova, que morreu cedo, ainda com dois anos. A menina pegou verme e a doença demorou tanto para ser tratada que ela não resistiu. O pai cedo também se foi, porque se viciou em bebida. Quem cuidou de Juca foi sua mãe e seus irmãos.    Juca não gostava de estudar. Ia para a escola, fundada por seu pai no Bananal, para namorar e para espiar as meninas no banheiro. Safadeza desde novo, diz ele. Assume se arrepender, pois se tivesse estudado hoje teria uma situação melhor. Já com quatorze anos foi trabalhar na pesca, ofício que teve a vida toda e que rende hoje sua aposentadoria.   O irmão estudou e até carta de condutor motorista conquistou, mas também se colocou pra beber, acabou perdendo todas as licenças e morreu do mesmo vício que o pai. A irmã foi professora, mas morreu jovem com um tumor na cabeça. A mãe também se foi, começou com paralisia na perna e depois só piorou. Juca acompanhou a morte de todas as pessoas que amava, mas foi forte e seguiu vivendo.    Casou-se com Benedita Brito. Ele já estava de olho nela e uma vizinha fez o papel de cupido, recomendando que ele fosse encontrá-la na cachoeira, pois a moça estava também interessada. Juca passou em casa, pegou uma toalha como quem vai se banhar e foi. Benedita estava lá com um balaio de louça na beira - era na cachoeira que as mulheres do Bananal lavavam as roupas e as louças. Papo vai, papo vem, e os dois começaram a namorar.    Mas a safadeza de menino não saia de Juca e ele, que já

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estava de namoro com outra menina havia dois meses, ainda foi neste mesmo dia tentar uns beijos e algo a mais. A menina descobriu o namoro novo e não deixou barato, com o tamanco nas mãos colocou o homem pra correr.    Segundo Juca isso não foi algo extraordinário, era comum um homem namorar várias mulheres ou tentar ter relações e depois abandoná-las.    Como a praia é pequena, Benedita ficou sabendo e não aceitou. Juca se pôs a chorar e depois de muito convencimento ela deu uma segunda chance. Estavam mesmo apaixonados.    Mas a dificuldade do romance não termina por aí. No início, os pais de Benedita não aceitaram o casamento, a menina tinha apenas treze anos e eles achavam muito cedo para casar. Juca, cinco anos mais velho, foi persistente. Casaram com o escrivão Gaspar na Praia Grande de Araçatiba e depois fizeram uma festa no Bananal, com valsa e tudo. Os pais de Benedita não foram prestigiar e até o porco que a família estava engordando para oferecer aos convidados eles venderam, porque não ficaram felizes com o casamento assim adiantado.   Preocupado, Juca colocava vigia para olhar a esposa enquanto pescava em alto mar. Ele era fiel e queria garantir a fidelidade da mulher. Os vigias viam se ela estava se comportando e, ainda bem, estava. Já se sabe que nesta família homem não aceita traição.    Benedita trabalhou na fábrica de sardinha trazida pelos japoneses. Logo depois, se tornou cozinheira das pousadas que começaram a ser construídas nas instalações das fábricas já em desuso. Com o fim do presídio da Ilha Grande, os turistas começaram a frequentar o Bananal e com o turismo

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logo sendo organizado, o fim do ciclo de sardinha não chegou a impactar negativamente a praia.   O casamento dos dois era muito bom, mas Benedita também foi cedo, com um câncer de mama, que mesmo depois de descoberto, a família teve muita dificuldade de cuidar pela distância dos médicos, falta de assistência e complicações da vida de quem mora num lugar isolado como a Ilha.    Melhor coisa do casamento foram os filhos que geraram. Juca não acreditava ser possível ter filho com Benedita. Na sua cabeça, ele negro e ela branca não sairia filho de jeito nenhum. Mas, é claro, não foi bem assim, e tiveram um total de dez, os presentes que Juca mais agradece.   Namoradeiro, ele teve outras companheiras, mas hoje vive sozinho, conhecido na comunidade por estar sempre na beira da praia de bate papo com quem passa. Os filhos, que sempre enchem a casa nos feriados, são o orgulho de Juca, todos encaminhados e trabalhando. “Um pai tem que saber educar seus filhos”, diz. Foi isso que ele construiu, é isso que o faz feliz.

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Rua de flores

Marta Maria Ventura - Abraão

A Vila do Abraão é uma das mais populosas da Ilha Grande, por muitas vezes quem é de fora pensa que a Ilha toda é Abraão. O que poucos sabem é que muita gente que vive ali nasceu das mãos de Marta Ventura e de Edite Ventura, sua mãe. As duas também nascidas ali. A vida de Marta foi “normal”, ela estudava e ajudava os pais, gostava de acompanhar o pai na plantação e a mãe nos partos que fazia. Teve vinte e dois irmãos de pais diferentes, sua mãe foi viúva de quatro maridos e morreu com 103 anos. São do tempo em que se comia o que se plantava, hoje é tudo proibido.   Aos nove, sua mãe ficou doente e ela foi morar com

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parentes no Rio de Janeiro onde conheceu Francisco Mariano. Desde aquela época eles tinham um carinho especial, mesmo depois que ela voltou para a Ilha. Quando ela completou dezesseis anos, ele a levou pro Rio e moraram juntos lá. Era casado e se separou da primeira mulher para viver com Marta. Casamento, no entanto, só depois que enviuvou e já tinham três filhos juntos no Abraão. O amor ali era maior que qualquer convenção.    Ao contrário de muitas pessoas de outros lugares da Ilha Grande, eles sentem falta dos tempos do presídio, a ausência do policiamento que existia ali traz muita insegurança. Havia visitas lá em cima, em Dois Rios, só em dias certos, quando os barcos faziam sua travessia, mas ao aportar tinham que passar por uma vistoria onde hoje é a Casa de Cultura. Para não deixar furos, também ficava uma guarnição na Curva da Morte (há uma trilha que acaba lá) para quem não fosse revistado não passar. Era proibido ir à Colônia sem consentimento. E na época de festas como réveillon e carnaval, vinha até batalhão de choque com cachorro farejador pra averiguar se as bagagens não traziam drogas. Depois que desativaram o presídio, houve uma invasão do turismo e esse policiamento deixou de existir.   Antigamente deixavam as portas abertas, não tinha perigo e eles podiam caminhar nas trilhas pra Saco do Céu, Palmas, Lopes Mendes. Iam celebrar cultos todo sábado em Dois Rios. Marta é evangélica da Assembleia de Deus desde que nasceu, sofreu um pequeno desvio no caminho, mas voltou a fazer o correto ao voltar para o Abraão. Ela ia com o marido e um grupo grande da Igreja pra Colônia levar o evangelho para os presos. Muitos convertidos, quando saíam

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da prisão, livres, iam dormir na sua casa antes de fazerem a travessia pro continente. Dali, muitos saíram e se tornaram pastores. Restou uma igreja lá, hoje administrada pela UERJ, seu pastor é o Cantuária da Teresa. Iam também pra Lopes Mendes quando ainda havia mais casas lá, hoje só resta um casal.   Os presos não machucavam ninguém por ali, eles estavam atrás de barcos pra fugir. As fugas eram muito bem orquestradas, sempre tinha gente esperando por eles, como na vez que roubaram seus patrões na Enseada das Estrelas, fizeram um refém para deixá-los numa ilha onde tinha quem os esperassem. No entanto, nem sempre eram bem sucedidos. Aconteceu perto do Sitio do Lobo: um preso rendeu um homem e mandou sua esposa pegar a arma do marido em casa. Ela foi, mas quando voltou o preso se virou e ela atirou nele, depois trouxe o cadáver pro Abraão. A mesma mulher em outro caso de fuga rendeu o preso, fazendo-o tirar a roupa para entregá-lo nu ao DPO de Abraão.    Marta nunca cobrou pelo serviço de parteira e sempre gostou de cozinhar, chegando a trabalhar na Ilha Grande para alguns dos patrões mais poderosos do Rio de Janeiro. Sinal disso foi a vez em que a patroa fez algumas ligações para conseguir uma cirurgia de redução de seios para Marta. Em um estalar de dedos ela estava na Santa Casa operando, no Rio. Uma batalha travada já há três anos nos serviços convencionais de saúde enquanto sofria muito com as dores do peso.    Ser parteira é mais que um ofício, é uma responsabilidade e Marta se orgulha muito de seu passado e presente ajudando a dar vida a tantos bebês. No entanto, ela não sai

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por aí anunciando. Vai à parturiente quando é alguém que já acompanha ou quando é imprescindível sua ajuda. Há, porém, uma mulher muito cara a ela: a grande amiga Teresa, de Dois Rios. Marta e sua mãe foram quem seguraram todos os seus treze filhos antes mesmo dela e do marido. Não só estavam na hora do parto, como acompanhavam toda a gravidez. Teresa ainda reza e espera pela próxima gestação. Numa conversa entre amigas, Marta afirma: “Se você ainda engravidar eu vou embora de Abraão!”, ao que Teresa responde: “Vou atrás de você onde estiver”.   A casa em que Marta e seu marido vivem hoje foi construída pelos dois com estuque que colheram no Pico do Papagaio. Anos depois tiraram todo o barro, a madeira e refizeram suas paredes com alvenaria. A rua em que moram é das flores de Marta, que sempre gostou de cultivar um jardim morro acima, e é onde sua mãe também viveu. As coisas mudaram bastante e a idade faz com que Marta deseje se mudar pro continente, onde poderia ter mais assistência médica. Mas ela não larga os filhos, que moram aos fundos de sua casa. E se ela fosse embora, o que seria das flores?

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Liberdade incondicional Julio Almeida – Dois Rios

Julio Almeida nasceu em Santo Antônio do Chiador, Minas Gerais, em 1931. Mudou-se para o Rio de Janeiro e teve uma vida muito conturbada, até que foi preso e veio cumprir pena na Ilha Grande, no então Presídio da Praia Preta. Ele tinha sido avisado por companheiros que tinham fugido daqui que a vida que estava tendo ia acabar o levando para a tão temida cadeia da Ilha Grande. E avisaram que era muito difícil de sair. Mas ele não se importou “se vocês podem fugir, eu posso também”. Quando chegou, viu de longe um amigo no pátio, que o cumprimentou: “Rapaz, não avisei que um dia você ia parar aqui?”

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Como tinha dito, e a palavra pra ele sempre contou muito, se preparou para fugir. Não era fácil, tinha que entender onde estava sem ajuda de mapa, conhecer o movimento da maré e andar por trilhas que não conhecia. Mas ele já estava pronto. Na Prisão do Lazareto, esperou escurecer e pegou a trilha para o Bananal. Sozinho e escondido, roubou uma canoa e se lançou ao mar, mas só conseguiu chegar até a Ilha do Pitanguy, também conhecida como dos Porcos. Foi capturado e mandado de volta. Passou pelo castigo e depois fugiu de novo. O diretor tinha perguntado se ele ia fugir e ele tinha dito que ia. E assim fez… Era tudo pela liberdade que a Ilha não oferecia. Durante a noite, foi para o Saco do Céu e pegou outra vez uma canoa. Novamente não queria ser visto por nenhum morador e conseguiu. Chegou em Conceição de Jacareí, de lá andou até Itacuruçá e pegou o macaquinho, como chamavam aquele trem até o Rio. Ficou quatro anos forasteiro até que foi preso novamente e mandado de volta. Dessa vez para ficar.   Foi levado para o Presídio de Dois Rios. Num local chamado de Britador, já chegando na Vila, viu uma placa que dizia “Bem Vindo”. Bem vindo ao lugar que ele achava que era o pior do mundo? A placa já não existe mais, mas está viva na memória dele. Dessa vez ele queria tentar um jeito diferente de passar pelo que vinha. Resolveu se adaptar. Cadeia pode ter castigo, mas tudo depende do comportamento. Com bom comportamento se tem tudo, com mau comportamento não se tem nada. Trabalhou em muitas atividades, da reforma da estrada até a lavoura. Por fim, viram que ele tinha experiência como cozinheiro e foi trabalhar na casa do diretor do presídio.

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Julio aproveitou as oportunidades que surgiram. Com os professores que iam aplicar o supletivo para os funcionários aprendeu a ler e também começou a estudar música. Além da experiência do lado de fora, conhecia bem o que tinha na cadeia. Quais os equipamentos existiam e como poderiam tornar o trabalho que tinham que fazer melhor e mais rápido. Cuidou também do estábulo, tirando leite das vacas. Foi acumulando uma série de funções e por fim só selecionava os internos que fariam o trabalho e coordenava as funções. E assim ensinava os outros presos a obediência necessária para sobreviver com dignidade na cadeia. Porque duas coisas são importantes: a palavra e o respeito. Palavra para ter credibilidade e respeito para ser tratado da mesma forma. Sem julgar ninguém, pois a ele não compete. E a quem compete?    Foi vivendo a vida, estudando o que podia e trabalhando bastante. Conseguiu o respeito de todos, mas faltava uma companhia. Teve três pretendentes, duas amigas de presos que vieram para conhecê-lo e ainda chegou a se envolver com a mulher de outro preso. Mas foi tudo sem importância. Sua companheira estava vindo de longe. Zindoca saiu de Vitória para trabalhar na casa do diretor do presídio, onde ele trabalhava como cozinheiro. Se conheceram e ele tratou logo de contar sua vida para a moça. E ela já estava decidida a ficar com ele. Assim foi.    O presídio foi desativado e ele ficou vivendo na Ilha em liberdade condicional. Sua pena acabou e hoje ele já não deve mais nada à Justiça. Não precisa mais fugir. Mas agora também não quer mais sair da Ilha Grande. No caldeirão do inferno, como ele mesmo diz, conseguiu encontrar uma

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forma de viver em paz. Trabalhou, estudou, encontrou sua companheira de vida, teve filhos e netos. Quem vĂŞ Dois Rios agora nĂŁo consegue nem imaginar o que Julio e tantos outros devem ter passado aqui. Mas de uma coisa dĂĄ pra ter certeza: ele sobreviveu.

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Mar de tranquilidade Osório Belmiro de Souza - Longa

Olga Francisca de Souza nasceu na praia da Longa em 1942. Osório Belmiro de Souza também. O Souza, sobrenome que os une, foi fruto do casamento, quando a história de cada um virou uma história só.   Osório foi o único dos irmãos que nasceu na Longa, talvez por isso tenha um amor tão grande por ela. Assim que nasceu foi pra Praia Grande do Pouso da Cajaíba, em Paraty. Os avós maternos moravam lá e, como o pai trabalhava na pesca e ficava muito tempo longe, a mãe decidiu morar perto da família.   Quando criança, o ganha-pão foi o peixe que o pai

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matava. Plantar eles até plantavam, mas não dava colheita com regularidade e ganhar dinheiro com lavoura sempre foi um sacrifício. Morando em Cajaíba, estudar era uma missão quase impossível: era preciso remar cerca de cinco horas e, por isso, Osório e seus irmãos nunca frequentaram a escola.    Foi com o pai que Osório aprendeu tudo sobre o mar. Quando tinha quatorze anos sua família decidiu voltar para a Longa e Osório começou a trabalhar com a pesca, atividade que executou até seus quarenta e oito anos. Na época pescava sardinha em Santos, ficando vinte ou trinta dias em alto mar, e vendia para os japoneses, que enlatavam em fábricas por toda a Ilha.   E não eram só estes que trabalhavam nas fábricas de sardinha, pelo contrário, moradores de diversas praias também. Foi o caso de Olga, que aos doze anos iniciou o trabalho na fábrica.   Olga e Osório começaram a paquerar quando tinham cerca de vinte anos, depois veio o namoro, o noivado e o casamento. Tudo como Olga queria, tudo como deveria ser. O casamento civil foi no cartório com o escrivão da Praia Grande de Araçatiba e a festa aconteceu na Longa, na casa dos pais da noiva. Sapato, vestido, toalha de mesa, cada detalhe foi comprado em Angra. Dezesseis cruzeiros pagaram todas as despesas. Nessa época o dinheiro era pouco, mas o custo das coisas não era assim como é hoje.    Quando as fábricas de sardinha entraram em decadência muitos ficaram desempregados. Pessoas que vieram de Araçatiba e Praia Vermelha foram embora e a população teve que procurar outros ofícios. Em diversas praias a alternativa para sustento foi o turismo, atividade que não pegou muito

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na praia da Longa.    A quantidade de barcos parados hoje na beira da praia é reflexo da mudança que a Longa sofreu. Ainda que a pesca seja a principal atividade - especialmente a de camarão – muitas pessoas não conseguem mais pescar por tão cara que ela se tornou.    Para Osório essas alterações não fizeram tanta diferença. Longe da violência e da confusão das cidades, ele está aposentado e leva uma vida tranquila. Ele e Olga recusam os convites dos filhos de morar no continente em troca da calma que encontram aqui. Cercados por cuidados, aproveitam o clima solidário e amigável que, em meio a tantas mudanças no mundo, ainda se mantêm na tão amada praia da Longa.

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Sabiá da mata Zenaide Ramos - Araçatiba

A risada e a simpatia acompanham essa forte mulher de Araçatiba. Com as unhas sempre feitas, o cabelo elegantemente penteado e, quem sabe, um chapéu, ela se apresenta ao mundo. Zenaide Ramos Martins nasceu em 14 de junho de 1949. Bem ali onde é a casa de seu irmão hoje em dia. Levou três dias e três noites pra finalmente sair do corpo de sua mãe, que já sofria com a trabalheira. Foi tanto esforço que o médico, buscado em Angra para fazer seu parto – a parteira não teve sucesso - virou seu padrinho. Seu nome veio do tio, que pescava em Niterói. Lá conheceu uma moça chamada Zenaide e insistiu para que sua irmã 76


batizasse a filha assim.   As raízes de Zenaide na Praia Grande têm história. A avó paterna veio de Jacareí para trabalhar como doméstica e depois casou com seu avô, que teria chegado ali de jangada num tempo bem antigo. Já os avós maternos eram descendentes de portugueses, segundo sua mãe. Os avós paternos moravam no Castelo, lá no alto do morro. Seu pai era pescador, mas fazia outras coisas como plantar mandioca, feijão, “coisas de milho”, batata doce, verdura, banana. Ele chegava da pescaria, pegava as ferramentas de roça e partia pra lá, “sempre tinha essa ideia de plantar”. Sua mãe também plantava e Zenaide acompanhava, plantava mandioca e chegou a fazer a farinha, coisa que até hoje sabe. Quando a pescaria não era produtiva, a roça era a única fonte de alimento que tinham. Sua mãe também era parteira. Fez muitos partos, inclusive o de sua segunda filha, Simone. Mas quando foi instalado o posto de saúde da Praia Grande, com toda aquela burocracia, fazer parto só com diploma.   A roça já foi ali perto, na Limeira, depois passaram a plantar no caminho pra Araçatibinha, no sertão onde subiam quase uma hora. Depois que sua mãe ficou de idade não conseguia mais subir, então parou de plantar e tomaram o terreno. Comovida, Zenaide compôs uma música para sua mãe, Maria Amélia: Maria Amélia trabalhou lá no sertão/O tempo foi passando, não pôde voltar lá não/Pôs suas pernas e seus joelhos a confundir/O morro era tão alto ela não pôde lá subir. “Eu e ela nos dávamos muito bem”. Zenaide tem saudade do tempo da roça, de plantar. Era uma época boa, assim como gostava de sua infância, da liberdade, de ser solteira e livre: “Ai que vida boa, não esqueço!”

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Como tem saudade daquela época. As pessoas eram aconchegantes, hoje elas estão o tempo todo “conectadas”. Quanto às outras praias da Ilha, atualmente o posto de saúde serve de ponto de encontro entre moradores dos arredores, como da Praia da Longa e da Praia Vermelha que se encontram lá ou quando vão a Angra. Ir às comunidades é mais difícil, leva mais tempo. Na época de sua mãe, Zenaide frequentava mais as outras praias, as pessoas se visitavam mais.    Ela adorava brincar de roda, pique, cozinhado, pular corda, jogar peteca, as crianças faziam os próprios brinquedos. Desde pequena, quando a mãe trabalhava na roça, Zenaide cuidava da casa e dos irmãos mais novos, fazia comida pra eles e até levava pra mãe na roça. Com o tempo, Zenaide foi deixando a infância pra trás e vieram outras experiências. Ela morou com a prima em Dois Rios pra ajudar a cuidar das crianças e depois morou dois anos com ela no Rio de Janeiro. Uma vez foi visitar seus pais e não voltou mais. Conheceu um moço, começou a namorá-lo, está casada com ele há mais de 47 anos.   Ele era Manoel, também nativo de Araçatiba e mais conhecido como Joréia. O apelido vem dos tempos da pesca, não muito bem sucedidos: os enjôos o pegaram pra valer. Casaram e foram morar com a mãe dela, que deu um ano para ficarem lá. Era durona, mas estava certa, “se não se acomoda, né?”. Casou com 18 anos, em maio. Teve quatro filhos: Saionara, Simone, Leonardo e João Gabriel. A vida em família foi construída aos poucos. Moraram numa casa que não tinha nada, tinham um bar na época que não dava muito dinheiro, era mais pra comida e olhe lá. Ainda assim,

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conseguiram construir a casa. Quando jovem e com saúde, trabalhar era sua vida. Tinha vezes que ela tava cansada, deitava no chão, se esticava toda e voltava a trabalhar. Ainda mais quando o presídio acabou e vieram os turistas.    O bom humor e a alegria de Zenaide são contagiantes, não é à toa que ela com um grupo de amigos reavivou o carnaval de Araçatiba, que já foi muito animado, e passou a compor canções. Se Zenaide vir um tema já sai compondo. Hoje esse cenário se transformou e carnaval é mais pra quem gosta e pros turistas, a influência da igreja evangélica é forte na comunidade, havendo muitos evangélicos quando antes estes eram só as pessoas idosas. Zenaide é católica, mas de vez em quando frequenta a igreja evangélica, vai mais quando tem festa, louvor, acha bom ouvir a palavra de Deus, da forma que for.   Araçatiba, pra Zenaide, significa liberdade. Conhecer todo mundo, ter mais espaço pra viver, tendo alguém estranho, todo mundo logo sabe. Vontade de sair pra longe ela não tem, gosta de ficar ali mesmo, em sua terra, isolada pelo mar. De vez em quando vai a Angra pra não cair na rotina. Há quem diga que onde mora é muito parado, mas ela já está acostumada. Liberdade também é dançar, adora forró e samba. Seu marido até aprendeu a arte, ela mesma ensinou. Não gosta de dominação, alguém dizendo o que pode e não pode fazer. A melhor coisa é poder ser ela mesma, sem proibição de nada. Quando vê uma placa de “Proibido! Cão bravo” já sente uma tristeza, não gosta mesmo. Ela tem medo de um dia isso acontecer com o lugar onde nasceu. Proibições, restrições de ir e vir, o que é provável, ela acha. Mas não vai ser justo. De toda forma, Zenaide vai cantar.

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Um homem rico João Firmino Filho - Praia Vermelha

Original de Aventureiro, João Firmino viveu lá sua infância, mas foi na Praia Vermelha onde ficou adulto e constituiu família. Sua irmã migrou para dar aula e seu pai a acompanhou, levando o filho João de quinze anos. Ele lembra a época em que chegou ali e como as pessoas eram mais felizes. As mulheres cantavam, ouvia-se o som de rádio e gente cantando, faziam bailes semanais, era muita alegria. A pesca e a salga de sardinha eram base de sustento de todo mundo. Havia um movimento intenso de barcos que chegavam e saíam o dia todo, todos os dias, levando sardinha imprensada, descarregando, trazendo sal pra salga. 80


O número de habitantes sofreu uma queda drástica desde essa época. A falta de escola para os mais velhos e o fracasso da sardinha foram os principais responsáveis.    Da infância, guarda a sensação mágica de poder acreditar em tudo, da beleza de ser criança, e de tudo ser uma novidade. Lembra que quando tinha cinco anos caiu um avião no Aventureiro no qual as pessoas acharam ouro. João é marcado por histórias que seu pai contava: o lobisomem que comia peixes crus, a mula sem cabeça e a Sexta-feira da Paixão em que não se pode pescar. Foi numa Sexta-feira da Paixão, não muito tempo atrás, que ele, a despeito de recomendações do pai, acordou às duas horas da manhã e foi pescar lula. Não ligava para o dia santo. A primeira esquisitice aconteceu ao passar por uma pousada em que mulheres dançavam e deixavam suas peças íntimas à mostra, elas pareciam hipnotizadas e não o viram. Ao levar a canoa para o mar, avistou uma outra fundiada com duas proas em que havia um homem negro (negros não são comuns ali) sentado com um chapéu de palha bem grande pescando. A lua brilhava em seu rosto, dançando conforme o movimento do mar. Ele tentou ver quem era, mas quando passou pelo barco sua vista ficou cor de sangue. Tentou passar por cima, mas se deparava apenas com mar. Ele estava consciente, não foi invenção. Até hoje se pergunta o que teria acontecido, quem seria aquele homem. Passou a acreditar no pai desde então.    Como muitos habitantes da região, João também trabalhou na pesca e na sardinha e viveu seu declínio, segundo ele, devido ao aumento de exigências do governo no manejo e nas condições de trabalho nas fábricas. Ficou insustentável

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fabricar sardinha e vender no preço do mercado. Depois, os moradores dali passaram a viver de agricultura e do turismo. A pescaria hoje é bastante artesanal, de sobrevivência, não dá pra ganhar dinheiro.    Hoje João é evangélico, mas quando criança era católico e os forrós eram uma tradição. Os bailes dançantes aconteciam no alto da comunidade, animados por sanfoneiros que vinham de outras praias, inclusive do Aventureiro. Nunca houve igreja na Praia Vermelha e as celebrações ocorriam na escola. Ele não participava muito das festas porque logo casou, aos vinte e cinco anos, entrando pra igreja evangélica. Sua riqueza está ali: a liberdade, o ar puro, o contato com a natureza. Ver os bichos correndo, pegar um peixe no mar, uma banana no mato, plantar um pé de fruta vale mais do que qualquer dinheiro. Enquanto ele puder viver ali, vai ficando. Dos cinco filhos, apenas Estela mora com ele, mas logo vai sair para dar aula, é seu sonho.   A segurança que sente é maior agora, pois sempre encontrava presos nos dias da Colônia, ali era passagem para muitos, que se fingiam de turistas para ter livre transporte. Já fizeram reféns em troca de canoas pro continente. Uma vez, ainda no Aventureiro, quando tinha apenas oito ou nove anos, foi com sua mãe na cachoeira encher o garrafão d’água e viram que ao redor estava tudo molhado. Mais tarde veio barulho de latidos e os homens pegaram espingardas para verificar. Eram sete presos tentando pegar canoas para fugir, mas os homens não deixaram. Os fugitivos ainda revelaram que eram eles que estavam na cachoeira mais cedo e viram João com a mãe. Tiveram pena do garoto e, assim, não a atacaram. Está mais seguro agora, mas o turismo, como

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única fonte de renda, precisa ser fortalecido. Em muitos pontos a assistência do governo piorou e a Ilha sofre com diversos problemas: drogas, alcoolismo, educação, embora ainda seja um bom lugar pra se viver.    Em dias em que o dinheiro fala mais alto, João assiste à desunião da comunidade e à quebra do espírito harmonioso que existia. A política da boa vizinhança não deixava ninguém cobrar favores. Hoje ele trabalha no Saae - Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Angra dos Reis, mas já fez de tudo: pesca, serviços de construção, pequenas obras, salga de sardinha, roça. Foi o último a fazer farinha e vai voltar a fazer. Já está montando a casa e plantando pra isso. Como a Ilha é dividida em Unidades de Conservação, teve que explicar para o Inea - Instituto Estadual do Ambiente, que faz cultura rotativa e conseguiu uma permissão. Numa questão ele concorda com o órgão: a Terra está fora de sintonia.      Ele observa e se preocupa com a falta de chuvas, com as mudanças no equilíbrio do planeta, o que acredita ser uma situação irreversível e mesmo quem fala em conscientização está muito preocupado com o dinheiro que pode arrecadar e ainda piorar a situação. O planeta vai entrar em colapso, não suportará e, só aí, quem sabe, vão perceber a real pobreza que o dinheiro é capaz de trazer.

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Menina mulher Lucinéia dos Santos - Aventureiro

Lucinéia dos Santos de Souza nasceu no Aventureiro dia 25 de agosto de 1963. Foi por ser a queridinha da tia Gloria Maria que Lucia, como era chamada, foi morar aos 6 anos no Rio de Janeiro com ela e seu marido. A mãe deixou, afinal tinha outros nove filhos para criar.   Quando tinha treze anos, Lucia foi visitar os Meros durante as férias escolares. O Aventureiro havia deixado de ser casa da família desde que seu pai se tornou policial na Colônia Penal. Na verdade, a estadia da família nos Meros durou mais do que o trabalho do pai, que, por conta do vício no álcool, foi dispensado antes do previsto. 84


Já as férias de Lucia foram férias para a vida toda, pois nunca mais voltou para o Rio. Ainda em Angra, chegando do Rio, Lucia trocou olhares com um rapaz que - não coincidentemente - estava logo mais nos Meros, conversando com seu pai.   Naquela altura vinha a descobrir: o rapaz era o ex namorado de sua irmã. Antonio de Souza, conhecido desde criança como Vovô, não quis perder o tempo de casa e, depois de namorar por quatro anos com Neuzeli, que rompeu o namoro para casar com outro homem, se interessou por Lucia, sua irmã. Tudo em casa, querido pelo sogro, tudo mais fácil.    Fácil não foi, os dois, entre um olhar e outro, uma conversa e outra, um sinal e outro, marcaram uma fuga para viver juntos na casa da família do rapaz, no Aventureiro. Vovô jogava conversa fora com seu ex e futuro sogro, enquanto Lucia arrumava as roupas.    A fuga era prática comum entre os casais da Ilha. Noiva fugida era o que mais se via. Dizem por aí que tinha até sinal: quando o galo cantava à meia noite era alguma moça fugindo para casar.    Lucia tinha apenas trezes anos, nunca havia namorado, estava fugida de sua família e não conhecia mais ninguém na praia onde nasceu. A vida com a família do noivo, na casa ainda de estuque, foi difícil, mas ela foi forte e não desistiu.    A menina que sonhava com os casamentos de novela e acreditava que bebês eram trazidos pela cegonha teve que aprender tudo bem cedo. Com dezessete anos de diferença, Vovô foi amor, irmão e amigo. Marido se tornou muitos anos depois, quando Lucia já era maior de idade.

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Foi aos quinze que teve sua primeira filha. Mas até mesmo ter filhos foi tarefa complicada. Eles tiveram que recorrer a José Isidoro, rezadeiro de confiança, para fazer a moça ganhar barriga. Ele passou um remédio para Lucia e acertou em cheio. Depois do primeiro, foram mais quatro.    Os filhos davam uma alegria muito grande, mas também muito trabalho. Na época, a vida era na roça e ela com barriga grande subia o morro com um bebê em caixinhas de peixe, enquanto os mais velhos ajudavam na lavoura. Era muito trabalho, mas muita fartura: arroz, feijão, guando, melancia, abóbora, cará, inhame, laranja, abacate, carambola, abiu, cambucá. Ah.. o cambucá!    Naquela época, por causa do presídio não tinha turismo. E se havia alguma coisa horrível nessa vida era o presídio. Invasões e ameaças de presos fugidos causavam pânico em todos do Aventureiro. A mensagem chegava: “tem preso no mato!” e o horror era geral. Os homens armados iam para a praia tomar conta do rancho e as mulheres se reuniam todas em uma só casa, no alto do morro. Com as crianças, passavam de dois a três dias sem pregar o olho, com medo da invasão. Quando chegava a mensagem de que a polícia havia achado os presos, todos voltavam para suas casas na torcida de que o pavor não se repetisse tão cedo.    A união dessas mulheres, ainda bem, não era só na hora do horror. Elas conversam na beira da praia, se reúnem na igreja, cozinham juntas, mas o que as une mesmo é a bola no pé. Há anos as mulheres do Aventureiro se juntam para jogar bola, entre si e contra outras praias. Sempre o time das solteiras contra o time das casadas. As mulheres foram ganhando filhos e então começaram com brincadeiras mais

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simples: o golzinho fechado, a bandeirinha, a queimada.    O tempo passou e hoje aquela menina, que mal conhecia seus vizinhos e por tantas vezes pensou em desistir, junta as mulheres, comanda as missas na igreja e é Agente de Saúde. Afere pressão, mede glicose, pega remédio em Provetá, leva o médico na casa do paciente, chama a Defesa Civil, cuida de moradores e de turistas. É a mulher que não dorme tranquila em nenhuma noite porque a qualquer momento alguém pode precisar.    E parece que tudo isso vale a pena. “Cuidar dos outros me dá muita alegria. Quando eu chego, antes de eu falar qualquer coisa a pessoa já fica feliz. Parece que eu olho nos olhos do doente e tudo melhora”, diz a menina mulher, orgulhosa do que é.

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Dono da terra

Dário Porcidônio- Palmas

O pai e a mãe de Dário nasceram em Palmas. Os pais e mães deles também. Assim como os avós. Mais longe no tempo não dá pra ir, vieram pra cá escravizados para trabalhar na Fazenda do Cantagalo que ocupava os morros acima da Praia de Palmas. Era uma grande fazenda de café. Dário conta que foi aqui que o café chegou primeiro. Mas quando ele nasceu já não era assim, os pais trabalhavam na lavoura e plantavam de tudo, eles não moravam perto da praia, achavam que o pessoal que morava na parte de baixo era preguiçoso porque só queria pescar. Nesse tempo tinha bastante gente em Palmas, mas depois todo mundo foi deixando a vila porque 88


quase não tinha trabalho. Quando ainda era bem povoada tinha até Carnaval. Mas ele era pequeno e nem aproveitou muito porque queria era dormir. Pena, porque depois ele cresceu, queria Carnaval e já não tinha.    No tempo em que era criança não tinha escola e o médico era muito longe. Ele aprendeu com os pais a plantar, pescar, construir casa, cortar cabelo e usar as ervas para tratar as doenças, até picada de cobra. Brincavam de andar a cavalo e faziam churrasco de passarinho.   Em Palmas não tinha muito trabalho, então muitas pessoas iam trabalhar na fábrica de enlatar sardinha em Angra. Quando ele ficou crescido só tinham três famílias em Palmas. Mas as famílias eram grandes. Seu pai, por exemplo, teve três casamentos, ele era fruto do terceiro. E só nesse eram cinco irmãos. Todos moravam em Palmas, mas foram crescendo e indo embora. Como todo jovem, ele queria agitação e aqui em Palmas não tinha, então ele ia nas outras praias para se divertir, nas festas no Abraão e Lopes Mendes. No Abraão além das festas tinha o futebol do “Expressinho”. E quando precisava ia no Lazareto porque lá tinha preso que era médico e barbeiro e eles atendiam o pessoal da Ilha. Tinham uns presos que fugiam e tentavam roubar as canoas, mas os cachorros davam sinal.    Ele cresceu e deu vontade de sair também. Foi servir o Exército na AMAN - Academia Militar das Agulhas Negras, passou um frio danado lá. Depois morou também na Grota e na Ilha do Governador. Mas um dia acabou voltando. Todo mundo da família foi indo embora, mas ele quis ficar pra cuidar das terras. Já tinha o costume e a vida lá fora foi ficando difícil. Aí começou a assumir umas funções que o pai tinha.

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Assumiu o cuidado com a Igreja de São Benedito, onde foi batizado, fez primeira comunhão e crisma. E cumpre esse dever até hoje. Sente falta das festas de São Benedito e São João que eram tão grandes antes, mesmo com pouca gente morando.   Dário tem saudade da Palmas de antigamente, ele não gosta do tipo de turismo que chegou aqui, essas raves com drogas e muita gente abusada. Já foi pior, teve época em que no Carnaval e no Ano Novo nem dava pra sair da casa, com tanta barraca nas portas. E quando os turistas vão embora ainda deixam a sujeira. Agora são as festas que duram dias. Não teria problema se fossem só as festas, mas os jovens se drogam muito e invadem as casas como se não tivesse dono, até entraram na Igreja que ele cuida com tanto carinho e quebraram uma imagem. É por isso que ele se aborrece.    Mas não é todo turista que ele acha ruim. Tem uns que ele gosta e até recebe em casa sem cobrar nada, só por prazer. E não julga ninguém, da porta pra fora faz o que quiser sem desrespeitar. Quando Dário gosta, ele gosta muito. Cuida tão bem da casa do vizinho veranista, que eles mandaram fazer uma placa de agradecimento. Foi ele quem construiu a casa e agora cuida dela quando a família não está.   E cuidar é o que Dário faz melhor. Cuida da Igreja, da casa que nasceu e mora, e da casa que construiu. Mas principalmente, cuida dos ensinamentos de plantas medicinais que aprendeu com o pai e da terra que pertenceu aos seus avós. Terra que é sua, onde seus ancestrais tanto sofreram. Por causa de toda dor, a Fazenda do Cantagalo é mal assombrada até hoje. Dário mesmo já viu a cobra enorme que só as pessoas veem. É uma cobra que parece

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comum, mas só aparece de sete em sete anos ao meio dia, quando o galo canta. Eles sabem que ela é diferente porque, ao contrário das outras, além de enorme, é invisível para os cachorros. Ela não faz nada, só aparece e some. Talvez seja só pra assustar, talvez seja pra lembrar que aquela terra tem que ser respeitada porque foi conquistada por seus antepassados com muito sofrimento e luta. Vai saber. Do mesmo jeito que não dá pra saber porque ele ficou quando a família toda foi embora. Pode ser por costume mesmo, ou pode ser porque o umbigo dele está enterrado por ali.

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Voo livre Neuseli Cardoso - Abraão

Se alguém disser que ela é um pássaro da Ilha Grande não estará errado. De caminhar suave e leveza ao falar, Neuseli transita com liberdade de um canto a outro da Ilha, como se pudesse voar. Vai ver foi uma fala de seu pai, quando ela tinha sete anos, que a inspirou a ser mesmo esse pássaro, que voa atrás do que deseja e espalha encanto onde passa.    Era 1964 quando Joaquim Cardoso, pai de Neuseli, a viu escrever pela primeira vez. No papel estavam uma sequência de letras ‘a’, ‘e’, ‘i’, ‘o’ ‘u’ e depois a sequência de cada uma delas repetidas de mãos dadas. Para ele, que era analfabeto, as letras eram desenhos. Foi ao ver o conjunto de ‘is’ que 92


Joaquim falou, com a emoção de um pai que vê um filho fazendo algo pela primeira vez: “Isso aqui parecem pássaros voando no céu. Minha filha vai ser professora”.    Neuseli nasceu em Aventureiro, como os pais e os avós, e viveu lá com os pais e os 10 irmãos. Aventureiro tinha cerca de 40 casas e todos formavam uma grande família. Tudo era plantado, pescado e trocado dentro da própria comunidade. Comprava-se pouca coisa, apenas sal, querosene e tecido para fazer as roupas. Quando alguém precisava de alguma coisa os homens da praia se juntavam e iam remando de canoa até Angra dos Reis, vendiam algumas bananas, cocos ou peixes e com o dinheiro compravam o que faltava.   Os tecidos serviam para as vestimentas de homens, mulheres, crianças e bonecas. As roupas de bonecas eram peça importantíssima para Neuseli e suas irmãs. Suas bonecas eram feitas com tanto carinho, que mereciam estar sempre bem vestidas. Quando seu pai ia pescar, próximo a praia do Sul, levava o samburá – recipiente para carregar iscas – e à medida em que ia percorrendo o mar ia achando pedaços de bonecas, um braço, um corpo, uma perna, as vezes só um pé. Quando chegava em casa entregava para Teresa, a mãe, que com todo o esmero completava as bonecas com tecido.    Neuseli dava o cuidado que mereciam. Até adulta cuidou de uma muito querida, a Lili, que foi passada para uma sobrinha poucos anos atrás.    Com os meninos, as brincadeiras eram pique, contação de história, roda. Como não tinha energia elétrica brincar era mais na lua cheia, que ficava iluminado. Isso porque durante o dia criança também tinha que trabalhar, cada uma tinha sua função na lavoura, na limpeza da casa ou na criação dos

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bichos. Brincar era à noite e ir à praia só domingo. A mãe era severa e cronometrava o tempo das crianças no mar, subia na pedra sacudindo um lenço branco e todos já sabiam: era hora de voltar. Ela não brigava, não batia, bastava um olhar para todo mundo entender. Mas esse olhar tinha tanto amor que ninguém reclamava.    Como naquela época o Aventureiro só tinha escola até o primário, Neuseli teve que voar para o Rio de Janeiro, aos nove anos, para estudar. Morou até seus vinte e um em Campo Grande com um casal de amigos do pai. Foi todo o tempo que investiu no sonho de ser professora. Fez o curso primário mais uma vez, repetindo o que já tinha feito no Aventureiro, depois o ginásio e o curso de professora, se formando em alfabetizadora.    Seu pai era conhecido como Meu Santo, por assim chamar todos os homens da vila – as mulheres ele chamava de Minha Santa. Sempre disposto a ajudar, a dar um abraço e, principalmente, a escutar, Meu Santo gostava era de gente, não fazia distinção entre ninguém. Foi uma referência de bondade em toda a Ilha Grande e uma referência de ser humano para Neuseli. Por isso suas palavras e desejos para ela tinham tanto valor.    Com o diploma debaixo do braço, Neuseli voltou para a Ilha Grande e se tornou professora da Escola Municipal Brigadeiro Nóbrega e a primeira orientadora pedagógica da Ilha Grande. Aí mais uma vez a arte de voar guiou Neuseli, que percorria, a pé ou de carona com pescadores, as 13 escolas municipais da Ilha, acompanhando crianças e professores. Nessa época seus pais e irmãos também já tinham ido morar no Abraão, porque Aventureiro seguia sem escola a partir do

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primário e seus irmãos mais novos precisavam estudar.    Foi também em seu retorno para a Ilha que Neuseli se casou com o grande amor de sua vida. Julio era um homem interessante e vivido, quarenta e oito anos mais velho que ela, ele ensinou muita coisa do que Neuseli sabe hoje, especialmente sobre as causas ambientais e a luta pela Ilha. Ele era paulista e foi como preso político que conheceu a Ilha pela primeira vez, mas, ao invés de se traumatizar, criou uma paixão pelo lugar que o trouxe de volta.   A amizade de Julio com Meu Santo sempre foi muito forte, por isso quando Neuseli se interessou pelo homem o pai logo apoiou, enquanto sua mãe não gostou nada da ideia. Como a palavra do pai vale muito, Neuseli apostou na relação, que durou vinte e quatro anos, até Julio falecer. Antes de morrer fez um pedido que Neuseli concretizou: ser enterrado no cemitério do Abraão, ao lado do Meu Santo e de Teresa Cardoso.   Depois de viúva, Neuseli foi se ocupando com outras atividades que lhe trouxessem a alegria de outrora. Após tanto tempo afastada da igreja teve um sonho daqueles que a gente acredita ser verdade. Era um padre a chamando “Venha, venha” Poucos dias depois ela conheceu Frei Luis e há quatro anos é missionária da igreja o acompanhando em suas celebrações por toda a Ilha Grande. Com a missão de espalhar bondade por aí, Neuseli dá seguimento ao que seu pai começou, voando de praia em praia como quem quer apenas duas coisas: voar e amar.

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O homem invisível João Bulé - Parnaioca

Filho de Laranjeiras, Paraty, da época que lá não havia nada, antes mesmo de expulsarem seus moradores, ele veio pra Ilha Grande, com apenas dez anos de idade. A irmã havia casado no Bananal e ele a seguiu. João Rodrigues dos Santos, registrado só recentemente e mais conhecido como João Bulé, poderia representar a Ilha Grande toda sozinho. Antes de chegar na Parnaioca, João viveu em Abraão, na Camiranga, na Longa, na Jaconema, em Provetá, em Araçatiba e no Bananal, onde começou essa jornada. Gosta particularmente dos japoneses, com quem adorou trabalhar, chegando a ir inclusive pra 25 de Março trabalhar pra eles no 96


comércio. Mas São Paulo não deu muito certo com ele não. Voltou pra Ilha depois de poucos meses.    Ele nunca foi pra escola. Trabalhou na pesca, mas nunca gostou de banho de mar, é frio, dá febre, mas também não gosta de banho quente. Diz que trabalhou com o japonês mais rico do Brasil, na salga da sardinha, e veio depois pra Parnaioca fazer um serviço pra um alemão, capinar, limpar o terreno e cuidar de sua casa de estuque junto a outro colega. Na época, anos 70, já não havia quase ninguém na praia, houve uma evasão devido à falta de peixes e principalmente aos perigos que o presídio trazia. Um dia o alemão teve que sair. Quem ainda tinha casa ali precisava que alguém tomasse conta. Foi ele mesmo quem se candidatou. “Fica tomando conta, João?”. “Fico”.   E ali ficou – sozinho – por onze anos. Todo domingo passava por Dois Rios e pelo presídio, motivo de tanto temor na Ilha, a caminho de Angra do Reis para fazer as compras da semana. Ele, por sua vez, não conhecia tanto esse medo. Como os presos ficavam muito tempo encarcerados, era muito perigoso, principalmente pras mulheres que andavam pelas roças e pelas trilhas. Sabia de casos de estupros e assassinatos com requintes de crueldade. No caso de João Bulé, ele não os tratava mal, portanto os presos também não o machucavam. Se tratasse mal correria sérios riscos. Além disso, era frequentemente avisado quando havia fuga: “Tem muito malandro no mato!”, e tinha tempo pra se esconder. Já o pessoal do Aventureiro... ah, enfrentava mesmo. Um caso famoso é de quando morreram três de cinco fugitivos lá, pois fizeram reféns. Eram os mesmos homens que no dia anterior tinham passado ali na Parnaioca a tarde toda sem fazer nada.

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Na praia do Leste eles batiam, metiam o pau nos presos. Não à toa, as pessoas que lá moravam sofreram com a ira e a vingança de quem fugia e os alcançava. Em Provetá, os crentes “davam muita colher de chá”, não batiam e até ajudavam a fugir, davam carona. Já João nem brigava nem dava colher de chá, se escondia ou fingia que não estava vendo. Afinal, na Parnaioca ele sempre tinha a companhia ou dos funcionários do presídio ou de seus internos fugitivos.    Ele prefere os dias de hoje. Com oitenta e um anos, adora uma companhia, uma visita, e conhece gente do Brasil todo. Está sempre a par de tudo que acontece ali em sua praia e na Ilha, sabe de todo mundo que põe os pés naquela areia. E impressiona pela sua perspicácia e pelo seu dom de chegar e desaparecer sem ser notado, o que fazia muito bem desde a época do presídio. Essa habilidade, que hoje o torna uma figura misteriosa, foi, talvez, sua salvação nos tempos da Colônia. Ele não gosta de bagunceiros, e às vezes eles aparecem por lá. Outro dia mesmo um grupo de turistas foi até sua casa, roubou alguns cocos e o deixou possesso.    No entanto, já houve os dias em que fazia certa bagunça ele mesmo. Foi tanto que parou de beber há trinta anos e hoje se orgulha muito de não ter mais certos hábitos... boêmios, digamos. O carinho por crianças, ele guarda para as filhas de Janete, a vizinha, que voltou a morar na praia com o fim do presídio. Elas cresceram em seus braços e agora ele fala com o amor e orgulho de um avô sobre cada passo de suas vidas, cada conquista.   O maior medo de João agora é o vento forte, que já arrancou seu telhado três vezes e o deixou na rua, ou melhor, na praia. Devoto de Nossa Senhora Aparecida, ele é católico

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e mesmo com dificuldades vai pras celebrações que ainda acontecem na igrejinha de Parnaioca e até visita Aparecida.   Uma das maiores questões de morar tão isolado é sua saúde. Ele já passou por algumas cirurgias e já sente cansaço de andar pela praia, não é forte como antes. Há um ano não vai ao Aventureiro, pra onde costumava ir todo sábado. Frequentemente vai a Angra de lancha checar nos médicos o funcionamento do corpo, que já não acompanha a mente atenta. Poucos dias depois bate a agonia, ele quer voltar pra sua casa à beira do mar. A praia que mais gostou de morar foi Araçatiba porque trabalhava no japonês, mas foi mais feliz ali na Parnaioca, mesmo com toda a solidão e isolamento. Pra ele, o sossego é a felicidade.

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