A Infância do Príncipe dos Pregadores - Como Spurgeon cresceu na Fé

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Rio de Janeiro, RJ

A infância do príncipe: Como Spurgeon cresceu na fé

Traduzido do original em inglês: The Child is Father of the Man

Copyright © 2020

Tom J. Nettles

Publicado originalmente por Christian Focus

Geanies House, Fearn, Ross-shire, IV20 1TW, Great Britain www.christianfocus.com

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por PRO NOBIS EDITORA

Rua Professor Saldanha 110, Lagoa, Rio de Janeiro-RJ, 22.461-220

1ª edição: 2024

ISBN: 978-65-81489-50-2

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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Capa: Luis de Paula

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Nesta obra, as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia Almeida Revista e Atualizada (ARA), salvo informação em contrário.

As opiniões representadas nesta obra são de inteira responsabilidade do autor e não necessariamente representam as opiniões e os posicionamentos da Pro Nobis Editora ou de sua equipe editorial.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Nettles, Thomas J.

A Infância do príncipe: como Spurgeon cresceu na fé/Thomas J. Nettles; tradução

Rafael Costa. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Pro Nobis Editora, 2024.

Título original: The child is father of the man.

ISBN 978-65-81489-50-2

1. Batistas 2. Spurgeon, Charles Haddon, 1834-1892 3. Vida cristã I. Título.

24-199558

Índices para catálogo sistemático:

1. Batistas: Vida cristã: História 286

Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253

Tel.: (21) 2527-5184

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CDD-286

Sumário

Abreviaturas .............................................................................. 9 Prefácio à edição em português ................................................ 11 Prefácio original ........................................................................ 19 1. “A criança precede o homem” .......................................... 23 2. “A base da minha hombridade, a glória da minha velhice” .................................................................. 43 3. “Ele não me culpa por eu ser um batista” ........................ 67 4. “Eles não brincam na pregação” ....................................... 91 5. “Que ele se dedique a ser um ganhador de almas” .......... 113 6. “Extremamente indisposto e excessivamente deprimido” 139 7. “Ele continua falando sobre si mesmo”............................ 165 8. “Uma disputa mais severa pela fé” .................................... 185 9. “Deus foi caluniado no paraíso” ....................................... 207 10. “Bendita Bíblia! Tu deténs toda a verdade!” ..................... 223 11. Um resumo de A infância do príncipe............................. 243 Referências ................................................................................ 251

Abreviaturas

Lectures Lectures to My Students [Lições aos meus alunos]

MTP Metropolitan Tabernacle Pulpit [Púlpito do Tabernáculo Metropolitano]

NPSP New Park Street Pulpit [Púlpito da New Park Street]

S&T Sword and Trowel Magazine [Revista A espada e a espátula]

SEE Spurgeon’s Expository Encyclopedia [Enciclopédia das exposições de Spurgeon]

SS Sermons of Rev. C. H. Spurgeon [Sermões de Spurgeon]

9 a infância do príncipe dos pregadores

Prefácio à edição em português

Descrever a vida e obra do “príncipe dos pregadores”, Charles H. Spurgeon, é uma tarefa que, embora desafiadora, também oferece enorme inspiração espiritual e ministerial. Vivi a alegria de escrever uma dissertação teológica sobre este bastião do século 19, analisando sua obra, destacando as três grandes controvérsias ao longo de sua vida e enfatizando sua luta contra o liberalismo — e a inevitável ruptura com a União Batista Inglesa. A firmeza espiritual, força de caráter, convicções teológicas e profunda unção ministerial dele provam a relevância de seu legado, ainda mais importante em nossos dias do que para sua própria época. Redescobrir Spurgeon hoje é uma necessidade vital para o futuro da igreja e de novos obreiros de labuta pastoral, sobretudo em tempos nos quais uma nova roupagem liberal e disruptiva ganha mais adeptos, muitos incautos e outros enganadores.

Nosso público de língua portuguesa é presenteado com esta indispensável obra, a qual se propõe a destacar as raízes fundamentais do grande pregador inglês a partir de suas bases familiares. Sua relevância em particular é perceptível pelo aprendizado e exemplificação demonstrados tanto em questões de balizamento teológico para ministros, como em modelo de genuína conversão para gerações que já desfrutam de relativa herança espiritual denominacional transmitida de avós para pais e de pais para filhos, nestes 150 anos de trabalho batista no Brasil.

A história de conversão de Spurgeon evidencia um retrato da realidade de muitos indivíduos membros de famílias tradicionais de

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igrejas históricas batistas no Brasil. Com a recente história dos batistas no Brasil chegando já à sua sexta geração, considerando que a primeira igreja batista foi organizada no ano de 1871, há muitos filhos de crentes que nascem em famílias nucleares de membros de igrejas históricas, mas que, embora conheçam desde a infância os conceitos do evangelho e tenham aprendido e ouvido a pregação em escolas dominicais e escolas bíblicas de férias, não são genuinamente salvos. São pessoas acostumadas à cultura evangélica, mas não regeneradas e sem qualquer intimidade com as Escrituras. Spurgeon, ao reconhecer em si mesmo situação semelhante, abre um caminho para inspirar gerações atuais no Brasil quanto à necessidade de salvação individual (não familiar), exclusivamente pela fé em Jesus Cristo, em total dependência dele.

É preciso coragem e autoconfrontação para sair de um status quo no qual o evangelho é conhecido, dialogado, pregado, mas não vivido. Uma grande lição a partir da vida de Spurgeon está na coragem para uma análise pessoal, na busca por salvação pessoal em Deus e no combate a um cristianismo nominal:

Tenha certeza de que o rótulo de cristão não significa ser cristão; e que nascer num país cristão e ser reconhecido como um professo da religião não tem valor a menos que algo mais seja acrescido a isso — o ser “nascido de novo”.1

Ao descrever o conceito proferido por Spurgeon de como a “criança é o pai do homem”, Tom Nettles resgata um elemento essencial na formação do caráter espiritual do grande pregador, o qual encontra forte respaldo bíblico e certamente é observável na vida de cada um dos eleitos de Deus. Esta ideia está presente na ocorrência de uma preparação antecipada da vida do pregador, a qual, por ação da soberania divina, proporcionou uma sólida educação piedosa e cristã desde a sua infância a partir de seu pai e especialmente de seu avô James Spurgeon, também ministro do evangelho. A dedicação,

1 Charles H. Spurgeon, Dia a dia com Spurgeon — manhã e noite: meditações diárias (Curitiba: Publicações Pão Diário, 2015), p. 142.

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o compromisso e a piedade de seu avô o marcaram profundamente, mas, sobretudo, o acesso às obras clássicas puritanas a partir de sua biblioteca particular foi um caminho exponencial de graça na construção do pensamento de Charles Spurgeon. Como autodidata, tais obras clássicas puritanas se tornaram o grande arcabouço teológico do pregador, sendo para ele de maior relevância do que qualquer outro curso teológico que existisse em sua época.

Tamanho comprometimento em perceber a providência divina em cada etapa de sua vida conduziu Spurgeon em ousadia diante dos dilemas e desafios de vida e de ministério a ele propostos. Um homem não é feito do mero acaso: antes, torna-se fruto da construção intencional e soberana de Deus em cada detalhe conhecido ou obscuro de sua existência. Reconhecer e proferir tal verdade não apenas é um belo destaque da graça soberana ao nos eleger misericordiosamente, como também um grande combustível para o prosseguimento no privilégio do ministério da Palavra, aos nos confortarmos com a verdade de que nada foge do reinado ativo de nosso Senhor, mesmo diante de tribulações desgastantes, comuns ao verdadeiro ministério.

Somos feitos indivíduos únicos, preparados soberanamente por Deus para um legado específico a partir de nossas fundações soberanas, as quais incluem contexto social, religioso e familiar, todos escolhidos por ele antes de nosso nascimento. Assim, somos fruto da influência espiritual de nossos pais, estejamos conscientes ou não desta realidade. Como ouvi certa vez de um querido missionário norte-americano em solo brasileiro, “os frutos não caem distantes de sua árvore”; logo, o legado de Spurgeon foi uma construção intencional da influência soberana de Deus na vida e espiritualidade de seus ascendentes. De forma semelhante, nossa tarefa de vida, como eleitos do Senhor e convictos de sua soberania, perpassa por identificar, compreender, abraçar e honrar tais legados em nossa individualidade e, assim, glorificar o nome do Senhor como fez o mestre dos pregadores.

Há poucas obras publicadas em português sobre este “último dos puritanos”, embora exista vasta publicação sobre seus trabalhos

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e também de seus próprios sermões em idioma inglês. Suas mensagens foram publicadas em milhares de tiragens, alcançando a marca de mais de um milhão de cópias distribuídas além do continente europeu durante o auge de seu ministério. Tais cópias, junto com outros recursos, promoveram o financiamento de obras sociais a partir do ministério de Spurgeon, que se estendia para além do Tabernáculo Metropolitano, de onde proferia mensagens sobre a graça soberana e salvadora de Deus. Ademais das enormes filas de londrinos que se reuniam semanalmente para ouvirem seus sermões no século 19 — muito antes da atual tendência de “megachurches”, nas quais milhares de pessoas se reúnem em prol da espetacularização da fé —, Spurgeon, baseado em seus valores de fé sólidos, ortodoxos e verdadeiramente tradicionais, captava sua audiência com fidelidade bíblica, inteligência, aplicação contextualizada e oratória ungida pelo Espírito Santo, sob total dependência do agir divino em oração. O mestre expunha intelectualidade, mas de forma compreensível e aplicável a todos, enquanto exortava pecadores ao arrependimento e à fé exclusiva em Cristo com autoridade oriunda de uma vida íntegra de santidade. Ao mesmo tempo, demonstrava profunda emoção quando, inspirado no amor inegável pelo Senhor Jesus, lacrimejava no púlpito ao se lembrar de tão imerecida e graciosa salvação dos eleitos.

Seu legado evangelístico nos conclama a jamais negarmos a autenticidade do evangelho, em sua mais sublime pureza para nossos dias atuais. Longe da busca pela popularidade ou da métrica do pragmatismo, as gerações atuais necessitam de púlpitos e ministérios fidedignos, que sejam eficientes em sua comunicação para nosso tempo. Os dilemas humanos continuam, amplificados pelos malefícios sociais pós-modernos, como a dependência da tecnologia e das redes sociais. Nesse cenário, há também enorme potencialidade para a pregação das verdades imutáveis que continuam poderosas para o homem moderno.

Ainda sob a realidade das tendências atuais, quando pregadores se rendem ao uso de técnicas de psicologia positiva para conduzir o ouvinte a se sentir bem consigo mesmo e anestesiado diante de

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frustrações, a biografia de Spurgeon relatada nesta presente obra nos convida à sabedoria para lidar de forma realista com nossas próprias debilidades físicas e emocionais, firmados na cruz de Cristo. Considerando uma época em que a saúde mental era considerada algo supérfluo em detrimento da produtividade, Spurgeon não ocultou suas lutas e dificuldades físicas e emocionais. Hoje, a pauta da saúde emocional e integral está em voga. Desta forma, a releitura dos aprendizados de sua vivência contribui em muito para lidar com um mal inevitável de uma sociedade em luta contra uma epidemia de enfermidades emocionais, como transtornos de ansiedade e depressão. Em suma, uma personalidade forte, assim como a firmeza de convicções, se torna explícita quando diante de lutas emocionais. E não se pode esperar algo diferente diante do chamado à pregação fidedigna do evangelho sob contínua ameaça crítica das redes sociais. Como proferiu o mestre em sua época ao rebater críticas feitas às suas pregações: “Não sou muito especial no que prego. Não fico a cortejar homem algum por sua amizade; não peço a ninguém que cuide do meu ministério; prego o que quero, quando quero e como quero”.2

Sua total dependência da Palavra de Deus e seu desejo contínuo de proclamar o evangelho fortaleciam a autoridade de suas pregações. Para Spurgeon, uma vez tendo sido totalmente inspirada por Deus, a sua Palavra representa a autoridade máxima sobre qualquer outro tipo de conhecimento humano. Qualquer tipo de elucidação dos homens precisa se submeter à autoridade maior das Escrituras. Como ele mesmo afirmou:

As palavras da Escritura emocionam minha alma como nada mais. Elas me erguem às alturas ou me arremessam para o chão. Rasgam-me em pedaços ou me edificam […]. Prefiro falar cinco palavras deste livro do que cinquenta mil palavras dos filósofos. Se quisermos reavivamentos, temos de avivar nossa reverência

2 Charles H. Spurgeon apud Iain Murray, O Spurgeon que foi esquecido (São Paulo: PES, 2004), p. 53.

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pela Palavra de Deus. Se quisermos conversões, temos de colocar mais da Palavra de Deus em nossos sermões.3

O grande poder de suas mensagens no Tabernáculo Metropolitano não estava apenas em sua capacidade de oratória e muito menos nos tipos de subterfúgios e atrativos na liturgia de culto. Ao contrário, uma liturgia simples e focada na pregação das Escrituras era priorizada, e a Palavra de Deus ganhava proeminência em detrimento da citação de teólogos ou poetas durante as preleções. Em seu devocional, Spurgeon enfatiza suas convicções doutrinárias ao reconhecer todo o poder que somente a Palavra de Deus tem:

Você pode relembrar as citações de grandes homens; pode guardar os versos de poetas renomados; não deveria então ser um profundo conhecedor das palavras de Deus, de modo a ser capaz de citá-las prontamente ao solucionar uma dificuldade ou demolir uma dúvida? Como “Ele tem dito” é a raiz de toda a sabedoria e a fonte de todo o conforto, permita que isso habite ricamente em você, como “uma fonte a jorrar para a vida eterna”. E você deverá crescer saudável, forte e feliz na vida divina.4

É certo que palavras como estas precisam ser relembradas na memória e no coração das igrejas contemporâneas, uma vez que o púlpito cristão tem se tornado local de entretenimento, piadas e discursos de autoajuda com foco em conquistar pessoas. Os pilares doutrinários de Spurgeon o conduziam na contramão de sua época, num contexto em que a busca pelo entretenimento de púlpito e por maneiras diferentes de pregar estava em voga. Ainda assim, inevitavelmente, a postura sólida do pastor de New Park Street contava com a bênção de Deus, fazendo com que, a partir de pregações simples e diretas da verdade divina, incontáveis novos nascimentos fossem testemunhados continuamente.

3 Charles H. Spurgeon apud Steven J. Lawson, O foco evangélico de Charles Spurgeon: um perfil de homens piedosos (São José dos Campos: Fiel, 2012), p. 39.

4 Charles H. Spurgeon, Dia a dia com Spurgeon — manhã e noite: meditações diárias (Curitiba: Publicações Pão Diário, 2015), p. 114.

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A convicção na inspiração divina das Escrituras e em sua inerrância era um pilar que sustentava seu ministério de pregação e fortalecia sua ênfase na evangelização. “Se eu não acreditasse na infalibilidade da Escritura — que é absolutamente infalível de capa a capa —, eu jamais voltaria a subir neste púlpito.”5 Por mais complexo ou difícil que fosse aceitar as verdades bíblicas, isso não isentava Spurgeon da responsabilidade de as proclamar integralmente. Nessa postura estava o cerne de sua autoridade na pregação.

Por isso, mais do que surpreender a homens com novos ensinos ou com elucidações diferentes e atraentes, ele se portava como simples distribuidor e entregador da Palavra como ela é aos seus ouvintes. Preferia ser reconhecido por uma pregação simples a sê-lo por uma preleção rebuscada e sofisticada. Seu desejo era que as doutrinas essenciais da fé fossem bem compreendidas e, por isso, baseava seu ensino nos pilares centrais da fé (salvação, arrependimento, fé, regeneração, suficiência de Cristo, entre outros). Fazia isso com esmero, para que as Escrituras fossem compreendidas sem serem deturpadas ou manipuladas: “Eu me contento em viver e morrer como mero repetidor do ensino da Escritura, uma pessoa que nada pensou e nada inventou, senão que concluiu que deveria ser boca de Deus para seu povo, lamentando qualquer coisa proveniente de si mesmo que interferisse no que Deus diz”.6 Por isso, é com gratidão que somos presenteados com uma excelente obra do “príncipe”, a qual contribuirá para o legado e desenvolvimento do povo de Deus eleito em nossa nação. Que Deus levante novos Spurgeons em nossos dias!

Alex Campinas Uemura, pastor presidente da Igreja Batista Paulistana em São Paulo/SP, presidente da Subseção Centro da Capital da OPBB/SP, presidente do Ministério Razão para Viver

5 Charles H. Spurgeon apud Steven J. Lawson, O foco evangélico de Charles Spurgeon, op. cit., p. 43.

6 Ibid., p. 46.

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Prefácio original

No ano de 1857, o Reverendo Mood escreveu um artigo para um periódico denominado The Southern Christian Advocate [O advogado sulista cristão] intitulado “The Modern Whitefield” [Whitefield moderno]. Esta era uma publicação originalmente metodista, porém foi utilizada e reimpressa, em 2 de junho de 1857, pelo periódico The Southern Baptist [O batista do sul]. Em tal publicação, Mood descreveu a grandiosidade do canto de 10.000 pessoas, após um relato sobre o tamanho do local no Surrey Gardens Music Hall, a dificuldade de obter ingressos e a pressão da multidão. The Modern Whitefield relatou que Charles Spurgeon havia anunciado o hino de Watts denominado “Come Ye that Love the Lord” [Vinde vós que amais ao Senhor], em uma “voz clara, ampla e prateada”, e a congregação cantou. Na sequência, Spurgeon orou e anunciou outro hino, “Grace, ‘tis a Charming Sound” [Graça, que doce som], e leu o Salmo 84. Enquanto lia, o periódico relata que “o orador faz alguns comentários simples e, em geral, apropriados”. Necessário frisar, mais uma vez, quão maravilhosamente capaz é a voz para atrair a atenção extasiada de forma repentina! “Ouça-o e observe como seus gestos são bem escolhidos. Sua voz enche o auditório e, mesmo que você esteja sentado no final do corredor, cada sílaba falada é claramente compreendida.”

O redator registrou da seguinte maneira o esboço do sermão de quatro pontos baseado no Salmo 106.8: “Mas ele os salvou por amor

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do seu nome”. Primeiro ponto, quem os salvou; segundo ponto, quem é salvo; terceiro ponto, por que eles são salvos; e quarto ponto, o que está implícito em “mas”. Mood destacou a respeito do pregador (Spurgeon) a maneira bem escolhida de gesticular e notou o silêncio absoluto da congregação durante a pregação, com uma breve pausa para tossir e mudar de posição, após a conclusão de cada ponto. Ele ainda observou que Spurgeon foi “ousado em sua pontuação e denúncia acerca do pecado e, o tempo todo, na exposição da cruz”.

O culto foi encerrado com o canto da doxologia. “Todos cantam”, observou Mood, “e você sai do local com um coração grato e edificado.” Ele ponderou que “Spurgeon é um exemplo notável do poder da voz e da ação”. Ademais, Mood, falando do tema de que, em muitos dos jornais críticos de Londres, “seus sermões, em composição, são superados por várias centenas de ministros todos os sábados, na própria cidade em que ele prega”, ainda acrescentou a seguinte verdade notável: “Embora muitos destes ministros falhem em obter uma razoável congregação, nenhum auditório pode ser encontrado grande o suficiente para acomodar sua audiência (a de Spurgeon)”.1

Após 31 anos, em uma tarde de sábado do ano de 1888, William E. Hatcher fez uma visita a Spurgeon que durou cinco horas. Naquela época, o periódico A controvérsia do declínio já havia causado uma censura a Spurgeon e provocado sua renúncia à Baptist Union (União Batista). Hatcher e mais dois colegas pegaram uma carona de Crystal Palace para Beulah Hill, onde se situava o lar de Spurgeon, em Upper Norwood — Inglaterra. Ao chegarem, perceberam que tudo na casa dele era impressionante: tamanho, localização, jardins, pastagens e animais, flores e árvores, estábulos, cavalos e carruagens, estátuas, lagos e riachos, horta e vacas leiteiras. Tudo isso fez com que Hatcher se espantasse “ao descobrir que ele vivia em tamanha magnificência e elegância”. Logo, ele soube como Spurgeon havia adquirido a propriedade e também

1 F. A. Mood, “The Modern Whitefield”, The Southern Baptist , 2 de junho de 1857, p. 2

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como aquele local lhe havia causado ansiedade. Além disso, também descobriu como Spurgeon a utilizou para produzir renda e direcioná-la aos muitos ministérios do Tabernáculo, tornando-se uma importante fonte financeira para tais atividades após sua morte.

A conversa foi tanto alegre quanto séria, jocosa e melancólica, e se desenvolveu ao longo de uma caminhada pelo terreno que culminou em uma discussão na casa de verão. Quando A controvérsia do declínio entrou na discussão, Hatcher notou “um tom sóbrio e até mesmo comovido em sua abordagem sobre o assunto”. Spurgeon, ao contrário do que se comentava nos Estados Unidos da América, não havia deixado de ser um batista, “mas ele simplesmente se recusa a permanecer participante de uma organização que parece ser demasiadamente tolerante com o erro”. Os amigos ficaram para o chá e, na sequência, ocorreu um breve momento de adoração em seu escritório. Hatcher descreve que, nesta ocasião, “a leitura foi tornada encantadora e impressionante por seus comentários expositivos”, proporcionando um encerramento encorajador e edificante para esta visita de sábado.

Eles partiram às 18h, pois foi nessa hora que Spurgeon começou a trabalhar em seus sermões para o dia seguinte. Ao encerrar a narrativa, Hatcher fez uma extensa observação, relatada a seguir.

Partimos de Beulah Hill em um brilho de felicidade. Foi algo digno de gratidão termos passado cinco horas na agradável companhia do pregador mais famoso do mundo; todavia, muito melhor foi a santificação do deleite espiritual dele próprio. Ele vive no monte e a luz transfiguradora está em seu rosto. É impossível tocá-lo sem se emocionar com o poder espiritual sobre sua vida, por isso nós sentimos como se houvéssemos experimentado um avivamento e nos aproximado do Senhor. Foi um precioso e inestimável privilégio, o qual eu não esperava vivenciar de novo. Felizmente, para mim, foi apenas o início de experiências ainda mais preciosas, as quais estava destinado a desfrutar na companhia do Sr. Spurgeon.2

2

21 a infância do príncipe dos pregadores
William E. Hatcher, “An Evening with Spurgeon”, The Baptist Courier, 24 de janeiro de 1889, p. 1.

Uma extensão de 31 anos vai de uma mera curiosidade, porém plenamente satisfeita a um sentimento de privilégio à presença de um homem cuja composição do sermão foi menos impressionante do que a de uma centena de outros pregadores próximos, considerando que este é o “o pregador mais famoso do mundo”. Há de se frisar a controvérsia que envolve desde a vontade de confrontar até a noção de que a presença de alguém manifesta uma ambiência espiritual transcendente — fenômeno que implora por alguma explicação analítica. Este livro, que é um complemento de minha biografia mais extensa de Spurgeon, é uma tentativa de isolar vários fatores-chave e consistentes (em harmonia uns com os outros) que se desenvolveram desde sua juventude até a velhice e moldaram em Spurgeon o homem e pastor fascinante, interessante, confiante, humilde e espiritual, cuja obra e testemunho predominaram no evangelicalismo durante a última metade do século 19. A infância do príncipe traça dez convicções-chave que foram evidenciadas antes ou imediatamente após sua conversão, amadureceram em poder e clareza ao longo de seu ministério e o disciplinaram constantemente, capacitando-o para um “ministério integral” como um pregador versátil.

Prefácio original 22
“A criança precede o homem”

Meu coração salta quando vejo

Um arco-íris no céu:

Assim foi quando minha vida começou;

Assim é agora que um homem sou;

Assim seja quando eu envelhecer,

Ou me deixe morrer!

A criança é o pai do homem;

Eu poderia desejar que meus dias fossem

Ligados, um a um, por uma piedade natural.

Quando Charles Spurgeon revisou uma biografia de William Wordsworth escrita por A. J. Symington no ano de 1881, ele descreveu a força de Wordsworth como um intuicionismo característico de si mesmo. O poder de Wordsworth estava em sua “afeição com o espírito que está personificado nas coisas visíveis e em sua percepção do ensino moral de todas as coisas que existem”.3 O próprio amor

3 Para saber mais sobre o uso que Spurgeon fazia da natureza como material substancial em sermões, há um exemplo em sua obra Teachings of Nature in the Kingdom of Grace [Ensinamentos da natureza no reino da graça] (Londres: Passmore and Alabaster, 1896). Este livro, que contém 56 seleções de artigos, sermões e breves ensaios, não vai da natureza para o sermão, mas de um texto bíblico, que tem alguma referência a um fenômeno natural, para uma exposição de como o evangelho emprega tal fenômeno como uma ilustração apropriada da verdade espiritual.

23 a infância do príncipe dos pregadores
1

que Spurgeon tinha pela natureza, somado ao seu compromisso de observar os fenômenos naturais como repletos de aplicação espiritual e ilustração da doutrina divina, o tornaram mais amigável e grato por esse entendimento do que por aquilo que o conhecimento baseado na intuição mística de Wordsworth poderia ter provocado em si mesma.4 Considerando seu profundo conhecimento da providência divina, Spurgeon concordaria que “a criança é o pai do homem” e, também, que nossos dias estão “ligados um a um”, não tanto por uma “piedade natural”, mas sim devido ao propósito divino, que é mais claramente percebido na piedade alicerçada no evangelho.

Em 1874, Spurgeon citou uma frase de Wordsworth como tendo uma visão espiritual para estimular a “ampliação da esfera de nossa vida”. Wordsworth escreveu sobre um fazendeiro que, imerso nas maravilhas naturais contidas em cada estágio de sua vocação, não é capaz de enxergar sua beleza transcendente:

A prímula à beira do rio

Era para ele uma prímula amarela, E nada mais!

Arar e semear, colher e ceifar constituíam a filosofia do fazendeiro e inspiraram a seguinte citação por parte de Spurgeon: “Não há nenhuma homilia sagrada para ele; os pássaros cantavam, mas ele teria ficado muito satisfeito se estivessem em silêncio; as colinas eram cansativas de escalar e a vista a partir de seu cume não lhe provocava pensamentos; sua alma estava dentro de seu agasalho e de suas calças de veludo cotelê, e ele nunca quis ir além disso”.

Spurgeon também acreditava que as cidades estavam repletas de homens que encontraram a “música das esferas” no tilintar de soberanos. Suas almas eram “como esquilos em gaiolas, e a cada dia sua roda gira”. Por outro lado, Cristo veio ao mundo para dar ao seu povo “uma vida mais ampla e mais abrangente do que esta!”. 4

“A criança precede
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o homem”
S&T, agosto de 1881, p. 417.

Muitos homens meramente naturais veem com perspicácia as maravilhas da natureza, são profundos na filosofia “e forçam seu caminho para as recâmaras secretas onde os princípios das coisas ainda estão amadurecendo em seu ninho”.

No entanto, tais homens estão limitados pelo tempo e pelo espaço. Por outro lado, uma nova vida em Jesus amplia a esfera da mente e faz com que um maior intelecto perceba “que, antes de conhecer a Cristo, seu entendimento estava encurralado, contido [e] confinado”. Quando alguém é “lançado sobre o tempestuoso mar do pecado, e desce às profundezas do tremendo oceano de terror”, a “graça de nosso Deus que perdoa” nos faz contemplar um novo mundo. Quando podemos ver seu sorriso, banquetear-nos com seu amor e desfrutar da comunhão com o infinito, “não estamos mais fechados para nós mesmos, mas conversamos com o Espírito diante do trono de Deus e comungamos com todos os santos que foram redimidos pelo sangue!”. Dessa forma, passamos a enxergar os mistérios que “antes estavam escondidos de nossos olhos”.5

Mesmo assim, quando uma pessoa detém um conhecimento meramente cognitivo acerca da verdade bíblica e uma familiaridade superficial com as realidades espirituais, ela não se torna menos “encurralada, contida [e] confinada”. Tal pessoa deve receber uma nova visão para olhos cegos, bem como pistas espirituais para destravar os mistérios já revelados. No momento em que seus olhos forem abertos, haverá tanta coisa diante dela que seu progresso será rápido e imediato. Spurgeon atentamente observou o seguinte: “Suponho que todos os poderes do homem estejam na criança; entretanto, muitos deles estão adormecidos e só serão exercidos quando a vida for mais abundante”. Dentre as várias chaves para o pleno exercício dos poderes que fazem parte da natureza humana, está o conhecimento adequado: “A vida está no coração deles [...] mas está apenas parcialmente em sua mente, pois eles não estudam o evangelho nem usam o cérebro

5 MTP 20:1150: “Life More Abundant” [“Vida mais que abundante”].

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o homem”

para entender suas verdades”.6 Para Spurgeon, o cérebro foi ativado antes mesmo que houvesse vida no coração.

A possibilidade expansiva da preparação antecipada

Quando os olhos são abertos, devem ser utilizados para enxergar as coisas que estão diante deles. Quanto mais há, mais se vê.

A profundidade do conhecimento mais rapidamente se transformará em maturidade estabelecida e utilidade expansiva, ao passo que o treinamento precoce produzirá frutos abundantes.

Na história do apóstolo Paulo, é possível notar como as vantagens da preparação antecipada podem ser significativas. Ele afirma que, “quanto ao judaísmo, avantajava-me a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais” (Gl 1.14). O conhecimento do apóstolo sobre o Antigo Testamento e a compreensão das interpretações recebidas excediam os de qualquer um de seus contemporâneos. Então, ao refletir sobre a relação entre a soberania divina na salvação e os efeitos imediatos de sua vida intelectual, ele relatou: “Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios, sem detença, não consultei carne e sangue, [...] mas parti para as regiões da Arábia” (Gl 1.15-17).

Paulo se dirigiu às regiões da Arábia com um duplo propósito: 1) ao ser chamado com surpreendente certeza como apóstolo, foi receber a revelação da nova aliança que consiste na pessoa e obra de Cristo — “aprouve revelar seu Filho em mim”. Isso aconteceu com maior sabedoria e profundidade do que a qualquer outro apóstolo (2Pe 3.15; 1Co 3.10,11; 4.1,15). 2) E tal revelação seria dada de acordo com o conhecimento que ele já possuía da revelação que constitui o Antigo Testamento. Sua interpretação foi significativamente modificada, mas o conhecimento que ele já havia obtido tornou a

6 Ibid.

“A criança precede
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utilidade de tal conhecimento prévio sobremaneira ampliada. Por isso, transcorrido pouco tempo, Paulo “pregava, nas sinagogas, a Jesus, afirmando que este é o Filho de Deus” e “mais e mais se fortalecia e confundia os judeus que moravam em Damasco, demonstrando que Jesus é o Cristo” (At 9.20,22).

Quando Paulo considerou “tudo como perda”, porém, ele não estava rejeitando o valor de seu profundo conhecimento das Escrituras ou da justiça estabelecida na Lei. Ele não havia entendido as Escrituras à luz de Cristo; por isso, quando o Messias foi a ele revelado, tanto no encontro salvador quanto na reorientação radical da interpretação bíblica, todo ganho que ele anteriormente detinha em justiça além de seu conhecimento e suposta pureza étnica se tornaram nada em si mesmos. No lugar disso, “o valor insuperável de conhecer a Cristo Jesus” substituiu e reinterpretou todas estas coisas.

Mesmo assim, a preparação inicial de Spurgeon em conhecimento doutrinário e expectativas de piedade, quando colocada sob a luz da obra salvadora de Cristo, floresceu em seu chamado pastoral de forma consistente e incomparável. Um biógrafo americano, ousando emitir um julgamento quando Spurgeon tinha apenas 23 anos (em 1857), escreveu:

Antes de deixar Cambridge, enquanto os dignitários da universidade e da cidade desfrutavam de seu conteúdo letrado, Spurgeon costumava se dirigir às Escolas Dominicais, seja durante o ano letivo ou durante as férias; ao visitar os vilarejos vizinhos, com o dia já findando, bem como ao amanhecer, ele ainda era encontrado ocupado, buscando levar alívio aos cansados e espiritualmente destituídos. Assim, na própria manhã de sua vida, no orvalho de sua juventude, o encontramos em obras mais abundantes, com seu ardor e amor suprindo a falta de experiência, e enchendo seus amigos das maiores esperanças de sua futura utilidade e fama, a serviço de seu Divino Mestre.7

27
a infância do príncipe dos pregadores
7 SS 1:vii.

Imediatamente após sua conversão (e mesmo antes), Spurgeon começou a manifestar diversas características que seriam proeminentes em toda a sua peregrinação cristã. Ele percebeu tal verdade sobre si mesmo e se gloriou no poder dessas primeiras impressões:

“Em primeiro lugar, eu bendigo a Deus por conhecer as doutrinas da graça desde a minha juventude; elas têm sido a base de minha hombridade e acredito que serão a glória de minha velhice. Longe de ter vergonha da eleição da graça, ela ordena o entusiasmo de todo o meu ser”.8

Compromisso fundamental com a doutrina da providência

Spurgeon tudo compreendeu à luz do propósito divino e mediu sua resposta, externa e internamente, à luz da doutrina bíblica. Durante um sermão anterior sobre a providência, ele refletiu sobre a visão das rodas em Ezequiel, afirmando o seguinte: “Os olhos de Deus estão em toda parte; a providência é universal”. Mais uma vez, ele enfatizou: “Em todas as estações, em todos os momentos, em todos os perigos e em todos os climas, existe a mão de Deus”. Até o último evento da história e durante toda a eternidade, todos os acontecimentos são “firmados para sempre pelo decreto eterno do Deus poderoso”. Tais eventos incluem desde as coisas aparentemente sem importância até aquelas que são mais poderosas e devastadoras. “O rastejar de um inseto sobre o botão da rosa é tão firme quanto a marcha de uma peste devastadora — a queda das folhas secas de um álamo é tão totalmente ordenada quanto a queda de uma avalanche.”9 Um ano após seu batismo, ele escreveu para sua mãe, lembrando-lhe que até mesmo as dificuldades surgem como resultado da aliança eterna da graça e, portanto, ela não deveria desejar retroceder em nenhum passo. “Observe as providências deste ano; com que clareza você viu a mão do Senhor em coisas que os outros consideram acaso!

8 SEE 7:35.

9 SS 2:194, 197, 201.

“A criança precede o homem” 28

Deus, que moveu o mundo e ocupou seu vasto coração e pensamento por você. Durante toda a sua vida, sua vida espiritual, todas as coisas cooperaram para o bem; nada deu errado, pois Deus tudo dirigiu e controlou.”

Em seus comentários sobre Mateus 10.29-31, Spurgeon observou os detalhes entrelaçados da providência de Deus para com seu povo. Mesmo que seus cabelos estejam contados, “na mais ínfima circunstância, a vida de todos está sob os arranjos do Senhor de amor. O acaso não é o nosso credo; o decreto do Vigilante Eterno governa nosso destino, e o amor é visto em cada linha deste decreto”.10 Spurgeon estava comprometido em entender como os arranjos providenciais agiam em sua vida e formação.

Arranjos providenciais da infância

Charles Spurgeon nasceu em Essex, na vila de Kelvedon, em 19 de junho de 1834.11 Seus pais eram John e Eliza Jarvis Spurgeon, sendo ele o primeiro de 17 filhos, dos quais apenas oito sobreviveram à infância. Ele foi morar com seu avô, James Spurgeon, que foi um ministro independente na vila de Stambourne12 durante mais de quatro anos. Em seguida, retornou a Colchester em 1840. Naquela época, sua avó, Sarah, e sua tia, Ann (de 18 anos), o cercavam de afeto e favor, colocando biscoitos recém-assados para o menino na prateleira de baixo. Ele também brincava com um cavalo de balanço tão resistente que até mesmo um membro do Parlamento Britânico poderia se sentar nele. Durante anos, Spurgeon voltava com frequência durante os verões e as férias escolares.

Ele recordava a alegre confraternização que ocorria às segundas-feiras entre seu avô e o ministro da congregação, pastor Hopkins. Chá, pão de canela quente e saborosas conversas espirituais davam

10 Matthew, p. 74.

11 Kelvedon é uma vila no condado de Essex, localizada entre Chelmsford e Colchester — Inglaterra. [N.R.]

12 Stambourne também é uma vila em Essex. [N.R.]

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impressões indeléveis da unidade em Cristo. A posição social do posto eclesiástico se dissolvia diante do poder nivelador e exaltador da verdadeira fé alicerçada no evangelho. Além disso, a necessidade de uma manifestação visível da verdadeira comunhão entre todos os redimidos influenciou a visão de Spurgeon sobre a Ceia do Senhor. Spurgeon aprendeu, tanto em Stambourne quanto em casa, que o tempo de preparação do sermão detém fundamental importância. Ele poderia até estar de vigília, mas não deveria conversar ou ter qualquer outro tipo de distração, porque o que estava em jogo na sensibilidade espiritual que dava origem a um sermão era nada menos que a fidelidade à glória de Deus e as almas de homens.

Além disso, ele carregava um permanente compromisso com a beleza e o poder dos autores antigos. Seu amor e familiaridade com os puritanos se desenvolveu nas prateleiras de uma biblioteca de livros puritanos que haviam sido deixados na casa pastoral da congregação dos dissidentes. O cômodo que abrigava tais livros era escuro porque as janelas haviam sido rebocadas devido à instituição de um tributo sobre as casas de acordo com o número de suas janelas. Spurgeon não entendia a política de taxar a luz, mas recebia compensação mais do que suficiente da luz doutrinária na companhia daqueles livros. Nesse local, ele adentrou as páginas e percorreu todos os caminhos de O Peregrino. Também ali, no Livro dos Mártires, de John Foxe, ele conheceu o horror da perseguição religiosa, bem como o poder do sangue dos mártires lançado como semente na terra. Spurgeon se deleitava até mesmo com as próprias capas dos livros, pois, como os santos perseguidos da antiguidade, andavam por aí com peles de ovelha e de cabra. As capas eram ótimas, mas o conteúdo melhorava à medida que ele se familiarizava com as obras de Sibbes, Brooks, Owen, Henry e outros. Os puritanos se tornaram o contexto pelo qual ele julgou tanto a fidelidade quanto a maturidade do compromisso doutrinário. Na visão de Spurgeon, renúncias à piedade e ao pensamento puritano eram evidências suficientes de ceticismo crescente e infidelidade doutrinária. Em seu sermão “Faith” [Fé], que foi pregado em Surrey

“A criança precede o homem” 30

Gardens em dezembro de 1856, Spurgeon disse à enorme multidão reunida de toda a cidade de Londres: “Quanto aos autores antigos, que são de longe os mais sensatos — você poderá notar que os livros que foram escritos pelos antigos puritanos há cerca de duzentos anos têm mais sentido em uma única linha do que uma página inteira de nossos livros atuais, e mais sentido em uma única página do que um volume inteiro de nossa literatura teológica moderna”.13

Além disso, ele também aprendeu a respeitar as observações espiritualmente perspicazes feitas por cristãos disciplinados sobre os eventos cotidianos da vida. Ele desenvolveu seu personagem favorito, John Ploughman, a partir dos escritos de seu próprio avô e de um sagaz homem da cidade chamado Will Richardson, que era famoso por seu vocabulário informal. “Eu odeio ver o sujo falando do mal lavado.”

Ademais, Spurgeon desenvolveu um precoce fascínio pela memorização de hinos, que começou sob a influência de sua avó e por ela era recompensado. Tanto o avô quanto a avó Spurgeon fizeram promessas para “o menino”: seu avô lhe daria alguns trocados por uma dúzia de ratos capturados em sua propriedade, e sua avó lhe daria 1 centavo por hino decorado. Com isso, ele logo percebeu qual era o mais lucrativo monetariamente e aprendeu hinos tão rápido que sua avó precisou reduzir o pagamento. Por outro lado, havia uma abundância de ratos para capturar nos hectares ao redor da propriedade. Ele aprendeu que, mesmo em um ritmo reduzido, o aprendizado de hinos transcendia espiritualmente a matança de ratos. “Não importa o tópico sobre o qual eu esteja pregando”, afirmou Spurgeon, “posso agora mesmo, no meio de qualquer sermão, citar alguns versos de um hino em harmonia com o assunto. Os hinos permaneceram comigo.”14 Augustus Toplady, William Cowper, John Newton e Isaac Watts eram particularmente ressonantes tanto com

13 SS 1:366.

14 Autobiography, 1:44.

31 a infância do príncipe dos pregadores

sua teologia quanto com seu gosto literário. Para embasar um ponto em seu primeiro sermão na New Park Street Pulpit, intitulado “The Immutability of God” [A imutabilidade de Deus], Spurgeon citou trechos de seis diferentes hinos. Ao falar da imutabilidade da eterna

aliança de redenção de Deus, ele deu um crivo emocional a seu argumento, ao citar o verso de um hino popular:

Deus não altera seus planos, por que deveria? Ele é Todo-Poderoso e, portanto, pode realizar sua vontade. Por que deveria? Ele é o Onisciente e, portanto, não pode ter planejado incorretamente. Por que deveria? Ele é o Deus eterno e, portanto, não pode morrer antes que seu plano seja cumprido. Por que ele deveria mudar? Seus átomos inúteis de existência, efêmeros do dia! Seus insetos rastejantes sobre esta folha de louro da existência! Você pode mudar seus planos, mas ele nunca, nunca mudará os dele. Então ele me disse que seu plano é me salvar? Se sim, estou seguro:

Meu nome nas palmas de suas mãos

A eternidade não vai apagar; Gravado em seu coração permanece, Em marcas de graça indelével.

Em seus sermões, ele frequentemente citava em especial dois dos hinos de Toplady. Do hino ‘Rock of Ages’ [Rocha eterna], Spurgeon frequentemente citava:

Nada em minhas mãos eu trago, Simplesmente à tua cruz me agarro.

Já no hino “Whence This Fear and Unbelief” [De onde vem tal medo e descrença], Spurgeon focou a certeza da obra expiatória da morte substitutiva de Cristo nestas palavras:

Deus não pode exigir o pagamento duas vezes

Primeiro das mãos ensanguentadas do meu fiador

E então novamente das minhas.

Spurgeon editou um hinário para sua congregação no Metropolitan Tabernacle [Tabernáculo Metropolitano], publicando-o

“A criança precede
32
o homem”

no ano de 1866. Esse hinário, intitulado Our Own Hymnbook continha, incluindo os Salmos, um total de 1.060 hinos.

Profecia, convicção, conversão

Quando Spurgeon tinha dez anos e estava visitando seu avô, Richard Knill, em delegação da Sociedade Missionária de Londres, passou três dias na casa pastoral. A partir de tal convivência, Knill ficou profundamente impressionado com os comentários e perguntas do menino de dez anos. Ele e Spurgeon combinaram de orar juntos por três manhãs, às 6h. Antes de partir, Knill previu que Spurgeon pregaria para grandes multidões e um dia chegaria a ministrar na capela de Rowland Hill. Para materializar tal profecia, ele fez com que Spurgeon prometesse memorizar o hino “God Moves in a Mysterious Way His Wonders to Perform” [Deus age de formas misteriosas] e fazê-lo ser cantado quando ele finalmente estivesse pregando na capela. As coisas aconteceram como Knill disse e Spurgeon pregou em ambas as capelas de Hill, cantando esse hino em cada uma dessas ocasiões. “Para mim”, comentou Spurgeon, “foi uma coisa maravilhosa, e não entendo mais hoje por que o Senhor é tão gracioso comigo.”15

Logo após o encontro com Knill, ele sentiu uma condenação cada vez mais severa do pecado. Spurgeon suportou cinco anos de intensa convicção quando “a lei de Deus estava me açoitando com seu chicote de dez tiras, e depois me esfregando com salmoura, de modo que eu tremi e estremeci de dor e angústia”. Já sua consciência também testemunhava contra ele: “Nosso Pai celestial geralmente não nos leva a buscar o Salvador até que ele nos limpe de toda a nossa confiança; ele não pode nos fazer zelosos diante dos céus até que nos faça sentir algo das torturas intoleráveis de uma consciência dolorida, o que é um antegozo do inferno”.

Por sua vez, sua mãe orava por ele, ensinando e alertando. Ele confessou que não tinha a capacidade de falar para agradecer o

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15 Memories of Stambourne, p. 104.

suficiente “pela bênção escolhida que o Senhor me concedeu ao me tornar filho de alguém que orava por mim e comigo”. As orações não apenas o confortavam, mas o alarmavam, pois sua mãe terminava dizendo: “Agora, Senhor, se meus filhos continuarem em seus pecados, não será por ignorância que eles perecerão, e minha alma deve dar testemunho contra eles no dia do julgamento, se não se apegarem a Cristo”. Spurgeon testificou que tais palavras “perfuravam minha consciência e mexiam com meu coração”.16

Posteriormente, Spurgeon se lembraria daqueles dias de intercessão e declararia seu efeito como uma convicção estabelecida:

Além disso, não é necessário, mas pode fortalecer o argumento, se acrescentarmos que nossa própria experiência nos leva a crer que Deus responderá às orações. Não devo falar por você, mas posso falar por mim mesmo. Se há alguma coisa que eu sei, algo de que estou absolutamente certo de que está além de qualquer dúvida, é que o fôlego para orar nunca é gasto em vão. Se nenhum outro homem aqui pode dizê-lo, atrevo-me a isso e sei que posso provar. Minha própria conversão é resultado de oração — longa, afetuosa, fervorosa e persistente. Meus pais oraram por mim. Deus ouviu seus clamores e aqui estou eu para pregar o evangelho.17

No ano de 1848, Spurgeon foi para a escola em Maidstone por um ano.18 Ali, ele convocou uma discussão com um vigário anglicano sobre o batismo. Quando o vigário procurou fazer com que Spurgeon se submetesse à correção do batismo na igreja estabelecida e o pressionou a buscá-lo, Spurgeon respondeu: “Oh, não! Já fui batizado uma vez, antes do dever; portanto, vou esperar da próxima vez até estar apto para isso”. Em reflexões posteriores, Spurgeon ironicamente relatou: “É devido ao catecismo da Igreja da Inglaterra que sou um batista”. Embora tivesse modificado sua visão sobre o batismo (em relação à Igreja Anglicana), ele ainda estava inalterado no coração.

16 Autobiography, 1:44.

17 MTP 11:619: The Golden Key of Prayer.

18 Maidstone está localizada no condado de Kent. [N.R.]

“A criança precede
34
o homem”

Em agosto de 1849, Spurgeon mudou-se para Newmarket,19 onde auxiliou J. D. Everett como tutor assistente. Eles se tornaram bons amigos, assim como companheiros de quarto. Everett descreveu Spurgeon como “pequeno e delicado, com rosto pálido, mas rechonchudo, olhos e cabelos castanhos escuros, e um jeito brilhante e animado, com um fluxo constante de conversas”.20 Everett sabia que Spurgeon fora criado com “tendências puritanas”, mas não estava a par da turbulência interna que sofria. Ele ainda estava procurando estar bem diante de um Deus santo.

A conversão de Charles Spurgeon ocorreu em 6 de janeiro de 1850. Embora alguns tenham contestado a data devido a evidências meteorológicas, penso ser seguro confiar nas lembranças de Spurgeon. Naquele dia, ele não pôde acompanhar seu pai ao pregar, então, no meio de uma tempestade de neve, se deparou com uma igreja chamada Primitive Methodist Chapel, em Colchester. Spurgeon se refere a isso em todo o seu ministério, dando suas implicações em diferentes contextos de pregação. Naquele culto, o ministro regular não estava presente, o que levou a um leigo subir ao púlpito e pregar com base em Isaías 45.22. A partir desse texto, ele pregou por vários minutos sobre Jesus como o Salvador cuspido, açoitado, crucificado, sepultado, ressuscitado, ascendido e intercessor. Em seguida, ele escolheu Spurgeon entre o esparso grupo de participantes, apontou para ele e chamou-o para ouvir as palavras de Jesus: “Olhe para mim!”. Naquela noite, Spurgeon falou com seu pai sobre isso e lhe disse: “No texto ‘Olhe, olhe, olhe’, eu encontrei a salvação esta manhã. No texto ‘Aceito no Amado’, pregado naquela igreja à noite, encontrei paz e perdão”.21 Spurgeon procurou, foi aceito, sua vida mudou — e, a partir de então, o mundo de língua inglesa mudou.

19 Newmarket é uma cidade do condado de Suffolk. [N.R.]

20 Pike, 1:39.

21 Pike, 1:36.

35 a infância do príncipe dos pregadores

Chamado e capacitado

Após sua conversão, Spurgeon manteve sua palavra sobre o batismo. Depois de uma tensa demora para receber a permissão de seu pai, ele foi batizado em 3 de maio de 1850 (aniversário de sua mãe), por um homem chamado Cantlow em Isleham. 22 Ele testemunhou que sua timidez o havia deixado naquele evento e sua língua fora solta. Spurgeon havia trabalhado por quase um ano como subtutor em uma escola em Newmarket dirigida por Swindell e, provavelmente, durante seu primeiro mandato naquele local, ele passou por um ataque de ceticismo filosófico e experimentou suas devastações mentais e emocionais. Além disso, conheceu uma mulher firme, chamada Mary King, a qual os alunos chamavam de “Cook”, e, com ela, Spurgeon aprendeu a desfrutar da conversa vigorosa e experiencial de uma calvinista profundamente comprometida, ao passo que os membros fervorosos da igreja buscavam extrair o melhor nos sermões do ministro. Ele confessou abertamente que Mary King lhe ensinou sua teologia e, depois de sua conversão, ela lhe deu um encorajamento ainda mais profundo. Por fim, nas férias de inverno, ele teve seu confronto salvador com o primitivo pregador metodista.

Ao retornar a Newmarket, Spurgeon começou a distribuir folhetos aos sábados. Ele escreveu para sua mãe em fevereiro: “No momento, há 33 casas onde deixo folhetos”. Em junho, ele distribuía folhetos regularmente para 70 pessoas, sentava-se com elas e procurava levá-las a observar as importantes realidades espirituais envolvidas naquelas palavras. Além disso, ele trabalhava na Escola Dominical, ensinando em uma classe para meninos e logo passando o final da tarde ensinando os outros professores.

No final do verão de 1850, sob o incentivo e influência de seu pai, Spurgeon mudou-se para Cambridge, para estudar na escola de Charles Leeding, um professor que ele teve em Colchester.

“A criança precede o homem” 36
Isleham é uma pequena vila no condado de Cambridgeshire. [N.R.]
22

Mais uma vez, ele era aluno e também tutor. Em seguida, ingressou na St. Andrews Baptist Church, que outrora teve Robert Robinson como pastor. A igreja sobreviveu à sua jornada da ortodoxia ao socinianismo e forneceu um lugar para Spurgeon, dando-lhe a oportunidade de continuar o ministério no ensino da Escola Dominical.

Naquela igreja, muitos ficaram impressionados com seu ensino e previram um futuro influente para ele, enquanto outros sentiram que sua atitude confiante, fortes convicções doutrinárias e ousadia de apresentação eram características rudes e impetuosas para alguém tão jovem. Esta não seria a última vez que Spurgeon precisaria lidar com críticas e oposições.

Aquela igreja também tinha uma associação de pregadores leigos e James Vinter era o principal. Vinter, ao perceber a habilidade de Spurgeon no discurso público e tendo confiança em sua experiência religiosa e solidez doutrinária, providenciou, sem que Spurgeon o conhecesse, para que ele pregasse em Teversham. Ele disse a Spurgeon que um jovem não acostumado a pregar o faria em Teversham e, por isso, o jovem precisaria de companhia. Por seu turno, estaria Spurgeon disposto a fazer a viagem para Teversham? É claro. Porém, ao longo do caminho, ele descobriu que seu companheiro de viagem nunca havia pregado, não tinha essa intenção e, se Spurgeon não pregasse, não haveria sermão para o povo. Além disso, ele continuou, “você ensina regularmente na Escola Dominical e a pequena capela da congregação em Teversham se beneficiaria com uma das lições recentemente ministradas”. Durante o resto da caminhada, Spurgeon refletiu no texto “Para vocês que creem, ele é precioso” (1Pe 2.7). Assim, ao chegar no local, ele pregou, dividindo claramente o sermão em introdução, desenvolvimento dos pontos e conclusão. Quando ele começou o hino de encerramento, uma mulher mais velha o interrompeu, dizendo: “Deus abençoe seu querido coração. Quantos anos você tem?” Ele suavemente repreendeu àquela pergunta, iniciou o hino e então disse à inquiridora que ele tinha menos de 60 anos, ao que ela respondeu: “Sim, e menos de 16”.

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Os itinerários da Associação de Pregadores Leigos levaram Spurgeon a muitos vilarejos e despertaram um interesse cada vez mais intenso no jovem pregador. Uma dessas viagens o levou a uma igreja onde passou a tarde em debate com Potto Brown, o zeloso seguidor de Charles Finney, o próspero “moedor de grãos de Houghton”.

Um pastor

Em meados de outubro de 1851, Spurgeon, então com 17 anos, escreveu a seu pai sobre um “lugar chamado Waterbeach, onde há uma igreja antiga, mas incapaz de sustentar um ministro”. Os irmãos daquela igreja eram muito semelhantes às pessoas de Stambourne e, por isso, imediatamente tiveram afinidade com Spurgeon, e ele com aqueles irmãos. Assim, ele renunciou ao cargo em Cambridge e mudou-se para Waterbeach.23 A igreja experimentou crescimento numérico e avivamento espiritual, enquanto a cidade passou por uma transformação social e moral. Lá, ele ouviu falar sobre a primeira pessoa convertida sob sua pregação e, então, foi procurá-la. A emoção de tal crivo em seu ministério não poderia ser superada. Milhares de outros ainda viriam, mas o primeiro era o selo necessário e a causa do próprio Magnificat interminável de Spurgeon.

Vários observadores da singular habilidade de Spurgeon desejavam que ele fosse para o Stepney College, uma escola de treinamento para ministros batistas. Seu pai, por sua vez, concordou. Em busca disso, o doutor Joseph Angus marcou uma reunião com Spurgeon na casa do editor MacMillan. Contudo, devido a uma falha de comunicação bizarra por parte da jovem empregada responsável por receber os convidados, Angus e Spurgeon foram acomodados em salas separadas e, por isso, nunca tiveram seu encontro. No caminho de volta para casa em Waterbeach, no entanto, Spurgeon passou por uma experiência a partir da qual decidiu que não buscaria uma educação universitária.

23 Waterbeach é uma vila localizada aproximadamente 10 quilômetros ao norte de Cambridge. [N.R.]

“A criança precede o homem” 38

Ao cruzar o Midsummer Common, ele contemplava um futuro de aprendizado e reconhecimento, mas pensava em uma ação que iria “deixar meu pobre povo no deserto para que eu pudesse me tornar algo grande”, e, então, um verso veio a ele: “Busca grandes coisas para você mesmo? Não as procure”. Naquele momento, ele decidiu não mais buscar a mudança.24 Assim, escreveu a seu pai, pedindo-lhe que determinasse o caso para ele, mas oferecendo sua própria opinião de que preferia permanecer em Waterbeach. Dentre os quatro importantes argumentos que dirigiu a seu pai, ele disse: “A providência me lançou em uma grande esfera de utilidade — uma congregação de quase 450 pessoas, uma igreja de amor e oração e um público desperto. Muitos já reconhecem que a pregação tem sido com poder do céu. Ora, devo deixá-los?”25

E ele não os deixou. Mas em dezembro de 1853, então com 19 anos, foi convidado por carta a pregar em Londres, na New Park Street Chapel. Ao receber a carta pela primeira vez, tinha certeza de que havia sido entregue por engano e que deveria se remeter a algum parente seu. Todavia, seu fiel diácono, irmão Coe, assegurou-lhe que o convite era dirigido a ele, pois sabia que esse dia chegaria em breve. Aquela igreja havia sido fundada em 1652 e teve como pastores, dentre outros, Benjamin Keach por 36 anos, John Gill por 51 anos e John Rippon por 63 anos. Joseph Angus havia sucedido Rippon por quatro anos. Desta maneira, com o coração pesado e cheio de temor, Spurgeon obedeceu à convocação e foi a Londres para cumprir seu dever no dia 18 de dezembro de 1853. Depois de uma noite miserável e intimidante em uma pensão na Queen Square, Spurgeon dirigiu-se para a New Park Street. Naquela manhã, a congregação não passava de um mero punhado de ouvintes, o que fez a capela parecer grande e sombria. No entanto, ele cumpriu sua tarefa, pregando sobre Tiago 1.17. Já no culto da noite, houve

24 NPSP 4:215, “His Name: Counsellor”.

25 Murray, Letters, p. 36.

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um aumento significativo na frequência, onde a congregação ouviu um sermão com o tema “Eles são irrepreensíveis diante do trono de Deus”. Após aquela ocasião, foi-lhe pedido que voltasse no primeiro, terceiro e quinto domingos de janeiro de 1854 e, antes do último, ele recebeu um convite, datado de 25 de janeiro, para um período probatório de seis meses. De sua parte, porém, ele rebateu, oferecendo um período de três meses, mas, antes que estes terminassem, a igreja fez-lhe um convite para assumir como pastor, com oração por “um derramamento do Espírito Santo e um avivamento da religião em nosso meio; para que seja frutífero na conversão dos pecadores e na edificação dos que creem”. Tendo a confiança de que aquilo era fruto da direção divina, Spurgeon aceitou.

Em uma noite do ano de 1854, Spurgeon pediu a derrubada das paredes traseiras da Capela como os muros de Jericó, para a expansão do edifício. Sua prudente insistência no projeto levou à expansão e reforma da New Park Street Chapel. Consequentemente, enquanto a obra era executada, a igreja passou a realizar provisoriamente seus cultos no Exeter Hall, o que ocorreu de 11 de fevereiro a 27 de maio de 1855. Durante esse período, o edifício ficava lotado. A oposição severa a Spurgeon durante esse tempo o tornou mais famoso do que infame e aquele local expandido foi insuficiente para comportar as multidões que desejavam ouvi-lo. Mesmo a capela reformada passou a ser insuficiente para conter o volume de pessoas.

Por isso, em agosto de 1856, havia planos em andamento para a construção de um edifício inteiramente novo. Em 16 de outubro daquele ano, os cultos começaram no Royal Surrey Gardens, entretanto a tragédia (impulsionada por pessoas sem lei, sem princípios e vilões gritando “fogo” e outros avisos de perigo) levou ao pânico que matou sete pessoas e feriu outras vinte e oito. Devido a tal catástrofe, Spurgeon ficou arrasado e compelido a parar de pregar, mas retornou no domingo, 31 de outubro, e aos poucos recuperou sua saúde física e mental.

Transcorridos dois anos e meio, em janeiro de 1859 a igreja possuía os recursos financeiros suficientes para adquirir um terreno

“A criança precede
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o homem”

em Elephant and Castle, o local da nova construção. Assim, a primeira pedra do Tabernáculo Metropolitano foi colocada em 16 de agosto de 1859. A congregação, no entanto, deixou o Surrey Music Hall em dezembro daquele ano devido a um desacordo sobre o uso das

instalações para diversões no dia do Senhor. Por conseguinte, eles, pela terceira vez, passaram a ocupar o Exeter Hall, retornando àquele local no dia 18 de dezembro de 1859. O uso daquelas instalações ocorreu até 31 de março de 1861, quando Spurgeon pregou pela manhã em Exeter Hall e à noite no Tabernáculo Metropolitano concluído. Mesmo com as obras, a igreja foi concluída sem deixar dívidas.

Duas semanas seguidas de cultos inauguraram os ministérios que só aumentariam em número e eficácia com o passar dos anos. A programação do período contou com uma noite batista em 2 de abril; uma reunião pública de “várias denominações” em 3 de abril; e a pregação de Octavius Winslow sobre o tema “A obra consumada de Cristo” em 4 de abril. No domingo, 7 de abril, Spurgeon pregou sobre “Purificação Perfeita”. Na segunda-feira, 8 de abril, houve uma “Reunião de nossa própria igreja” com pregadores do passado e do presente fazendo comentários pertinentes. Em 9 de abril, Hugh Stowell Brown pregou sobre o “Batismo Cristão” e, caminhando para o fim, o dia 11 de abril foi dedicado a uma exposição sobre as doutrinas da graça.

Henry Vincent pregou na noite seguinte sobre o tema “Não conformidade”. Ele encerrou sua oração marcante e comovente com este encorajamento:

Traga consigo as marcas desta antiga glória. Nunca manche seus princípios ancestrais. Marche, sabendo que até que o último vestígio do erro eclesiástico esteja morto, até que a liberdade seja desfrutada por todos os estados, você tem uma obra gloriosa a fazer, e Deus o abençoará, santificará e fará de você uma bênção, até que venha a plenitude de todas as nações, e o Espírito do Senhor será derramado em poder triunfante sobre todas as terras, para consumir toda a impureza e encher a terra de luz, amor e liberdade.26 26

41 a infância do príncipe dos pregadores
MTP 7:344, “Nonconformity”.

A congregação, liderada por seu pastor de 27 anos, iniciou seus trabalhos regulares no Tabernáculo em maio de 1861. As convicções evangélicas, em uma orientação calvinista, comunicariam tudo o que ali foi realizado. A construção do prédio não deixara dívidas, e aquele local se tornaria o cenário de um ministério expansivo de pregação, evangelismo, benevolência e educação sem paralelo em qualquer igreja local do cristianismo evangélico. A criança foi o pai do homem. De quantas maneiras seus dias “estavam ligados um a um” em fervorosa piedade fundamentada biblicamente, é o que passaremos a investigar.

“A criança precede o homem” 42

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