ERA DE TERROR
DR. MARTYN LLOYD-JONES
Sermões inéditos, pregados no contexto da Segunda Guerra Mundial até a Guerra Fria
Apresentação à edição brasileira
A Segunda Guerra Mundial começou na véspera do dia em que D. Martyn Lloyd-Jones, que se tornaria o mais influente pregador evangélico da metade do século 20 no Reino Unido, foi formalmente recebido como pastor assistente da Capela de Westminster, em setembro de 1939.1 Entre 1940 e 1941, a Capela de Westminster lutou para sobreviver aos efeitos da evacuação de muitos de seus membros ao interior do país, causada pela campanha de bombardeiros da força aérea alemã.2 Em 1943, Campbell Morgan se aposentou do ministério, deixando o pastorado da Capela de Westminster, e Lloyd-Jones se tornou efetivamente seu pastor.
A abordagem de Lloyd-Jones em sua pregação já seguia nesse tempo um método muito claro e distinto, e ele a seguiu por quase quarenta anos. Ele buscava pregar sobre um livro da Escritura, tomando um versículo, ou parte de um versículo por vez, mostrando o que o texto ensinava, como se harmonizava com o ensino do assunto em outras partes da Escritura, como o ensino todo era relevante para os problemas da época e como se contrastava com os pontos de vista contemporâneos. Ele concluía demonstrando a utilidade prática do ensino bíblico e a necessidade do ouvinte — falando, geralmente, durante quarenta a sessenta minutos.
1 Para uma introdução biográfica a D. M. Lloyd-Jones, e uma tocante entrevista com Jack Walkey, missionário inglês que serviu no Brasil e foi membro da Capela de Westminster, veja Franklin Ferreira, Servos de Deus: Espiritualidade e teologia na história da Igreja (São José dos Campos: Fiel, 2014), p. 423-440.
2 Vários dos sermões e palestras do tempo da Segunda Guerra Mundial podem ser encontrados em D. M. Lloyd-Jones, Discernindo os tempos: Palestras proferidas entre 1942-1977 (São Paulo: PES, 1994).
Sua pregação expositiva tinha como objetivo que Deus falasse diretamente aos seus ouvintes, para que eles sentissem o pleno peso da autoridade divina. Aliado a uma forte convicção na inspiração e confiabilidade das Escrituras, Lloyd-Jones enfatizou muito a importância da obra do Espírito Santo na pregação.
Em suas palavras, “se não há poder, não é pregação. A verdadeira pregação, no fim das contas, é Deus atuando. Não se trata de um homem meramente articulando palavras, mas Deus usando-o”. J. I. Packer, que frequentou os cultos vespertinos na Capela de Westminster entre 1948 e 1949, ofereceu o seguinte testemunho:
A proclamação, a defesa e a aplicação do evangelho do Novo Testamento como a última e mais profunda palavra a respeito de Deus e do homem era, de um ponto de vista, o escopo do seu ministério. Ele apresentou o evangelho em majestosa escala, relacionando-o a todo o conjunto da verdade bíblica, a todos os aspectos da vida humana e expressou ao máximo o talento evangelista ao apresentar a “velha, velha história” de forma nova e vigorosa através das intermináveis variações de um grupo de temas que, em sua opinião, revolviam em torno das realidades centrais da expiação de Cristo na cruz e da regeneração pelo Espírito. Entre esses temas estavam a loucura da sabedoria e da imprudência do mundo; a inadequabilidade de uma religião do coração sem a mente, ou da mente sem coração, ou palavras sem obras, ou forma exterior sem mudança interior; a condição alquebrada da Igreja atual, e o efeito enfraquecedor da confiança em técnicas evangelísticas e pastorais (tecnologia religiosa, poderíamos dizer); e a necessidade de avivamento — ou seja, uma visitação divina vivificadora como o único evento que pode, em última análise, evitar desastre espiritual.3
Com o fim da guerra, a congregação da Capela de Westminster cresceu rapidamente. Em 1947, as galerias foram abertas, e, de 1948 até 1968, quando Lloyd-Jones se aposentou, a congregação tinha uma frequência média de mil e quinhentas pessoas aos domingos pela manhã e duas mil pessoas à noite. Sua congregação era composta de pessoas de todo o canto do Reino Unido, além de cristãos oriundos da América Latina, Índia, África, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, dentre outros lugares.
Os sermões que o leitor tem em mãos nessa coletânea, os quais ilustram o melhor da homilética de Lloyd-Jones, foram proferidos exatamente durante o período mais conturbado da história mundial: entre a Segunda Guerra Mundial, o fim dos impérios coloniais de França e Reino Unido e a Guerra da Coreia,
eventos que redesenharam o mapa do mundo, ceifaram milhões de vidas e semearam destruição numa escala nunca vista até então. Coincide com o começo da Guerra Fria e a ameaça sempre presente de extermínio mundial numa possível guerra nuclear travada entre as duas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética e seus aliados — uma época de paranoia e temor, quando crianças nos Estados Unidos eram ensinadas nas escolas a como se protegerem de um bombardeio nuclear, e os adultos a construir abrigos contra ataques nucleares soviéticos nos quintais da própria casa.
Assim, diante de todo esse cenário de turbulência, insegurança e medo, que se espalhou em escala global, Lloyd-Jones conduziu sua congregação na Capela de Westminster à Escritura Sagrada, à palavra viva do Deus vivo, o mais precioso guia que podemos ter, o “berço de Cristo”, onde somos levados a descansar nas promessas do Deus gracioso, que é completamente soberano sobre a história, e fiel ao seu povo amado.
Agora, à medida que vamos caminhando para encerrar o primeiro quarto do século 21, estes mesmos sermões proferidos há tanto tempo podem fazer diferença na vida de muitos instigando pregações semelhantes em pastores fiéis, para alívio e direção aos membros de nossas igrejas, e para conforto e descanso dos crentes no Senhor, o Deus todo-poderoso, que tem sustentado seu povo pactual, desde Abraão, Moisés, Davi e Jesus, e que assim continuará a fazê-lo até o momento de seu triunfo final, no Dia do Senhor, que marcará a vinda poderosa e triunfante do seu Cordeiro.
Conforme somos poderosamente lembrados nesses sermões por Lloyd-Jones:
Você está cercado de dificuldades? Sente que se encontra numa situação impossível, que nada pode ser feito para resolver seu problema, ou aliviar seu fardo, ou para lhe conceder felicidade e alegria? Você está abatido e desconsolado?
[...] Eu lhe digo que, em nome de Deus, persevere. No tempo apropriado de Deus, que nem sempre nós compreendemos, ele vai responder; ele vai agir. [...] Persevere e você jamais será frustrado. [Pois,] se de fato somos cristãos, e verdadeiros membros da igreja, nós estamos do lado vencedor. Estamos do lado da igreja militante, a igreja triunfante. Nossa vitória é certa e assegurada, venha o que vier. Pode haver tempos de dificuldade e perturbação; essas coisas nos são prometidas; mas [...] a Palavra de Deus crescerá e se multiplicará, até que o Senhor [Jesus], em seu próprio tempo, bom e apropriado, virá para encerrar esta terra e todos os seus assuntos, e entregará o reino a Deus o Pai. Queira Deus que todos nós tenhamos a certeza de pertencermos como membros vivos à igreja invencível.
Que Deus, em sua amorosa providência, continue nos guardando de todo mal, sustentando-nos em Jesus até o Dia da Vitória!
franklin ferreira, pastor na Igreja da Trindade, reitor e professor de teologia sistemática e história da igreja do Seminário Martin Bucer, São José dos Campos (SP)
Prefácio do organizador
Os sermões do Dr. Lloyd-Jones que apresento aqui a uma audiência mais ampla foram pregados na Capela de Westminster enquanto as nações da Europa estavam engajadas em conflitos muito violentos, ou mal se recuperavam deles. O Dr. Lloyd-Jones e George Campbell Morgan costumavam alternar-se nas pregações. Primeiro Campbell Morgan pregava por um mês na parte da manhã, e Lloyd-Jones à noite. Depois eles invertiam o processo. Essa é uma das razões por que a série de sermões dessa época era formada de quatro ou cinco mensagens. Em agosto de 1941, Lloyd-Jones estava muito consciente dos perigos que ameaçavam a igreja na Alemanha, com a possibilidade que os mesmos problemas logo pudessem chegar à Inglaterra. Ele gastou cinco manhãs de domingo para falar sobre o perigo da perseguição e como ele deveria ser encarado. Quatro meses depois, ele pregou novamente pela manhã e optou por pregar uma palavra de encorajamento como forma de conduzir o povo de Westminster às grandes verdades do evangelho. Por um mês ele pregou sobre Hebreus 1.1-3 nas manhãs de domingo. Em agosto do ano seguinte, ele novamente estava pregando nos cultos da manhã, e percebeu que a mensagem necessária se encontrava nas exortações de Paulo em 1Coríntios 16.13-14. Cinco sermões concentraram-se em cada uma das ordens: “Sede vigilantes, permanecei firmes na fé, portai-vos varonilmente, fortalecei-vos. Todos os vossos atos sejam feitos com amor”.
Por volta de abril de 1944, a Segunda Guerra Mundial já durava mais de quatro anos. Raymond Swing — um popular comentarista americano de acontecimentos do momento — havia escrito um livro intitulado A Preview of History
[Uma antevisão da história] e muita gente se perguntava qual seria o rumo da história nos próximos anos. Como ele com frequência costumava fazer, LloydJones optou por associar sua pregação a esse sentimento de ansiedade sobre o
futuro, e o resultado foi uma curta série de sermões sobre “Uma antevisão da história” com base nos textos de Apocalipse 4 e 5.
Em 1947 a guerra chegara ao fim, e “o doutor”4 planejava começar a edificar a congregação por meio de uma série de sermões expositivos. Campbell Morgan já havia falecido. Uma das séries de sermões dessa época recebeu o título de “O que é um cristão?”. Ela era baseada em textos do capítulo 8 da Epístola aos Romanos. Outro sermão importante foi pregado nessa época. O primeiro domingo de 1950 marcava o fim da primeira metade do século 20. O Dr. Lloyd-Jones tinha por costume encorajar seu povo a prestar atenção a aniversários e datas importantes durante o ano; por essa razão, um único sermão foi pregado sobre esse tema no início do ano que marcava a metade do século.
As cinco séries de sermões, mais um de 1950, de várias formas fazem parte de um só conjunto. Todos eles nos apresentam “o doutor” numa época em seu ministério quando ele se esforçava para edificar a igreja de Westminster. Muitos membros se haviam dispersado durante a guerra, e em 1945 Lloyd-Jones sabia que estava começando a edificar uma igreja com poucos membros. Esses sermões mostram um retrato de um pregador que sabe estar no meio de um tempo crucial da história, e ele fala dirigindo-se a essa situação.
Desde o surgimento do “terror” no princípio do século 21, esses sermões tornaram-se relevantes de modo surpreendente, mais do que em qualquer época anterior, para o que está ocorrendo em nossos próprios dias. Talvez devam ser lidos em ordem um pouco diferente daquela em que foram pregados. “O cristão em face do perigo” talvez devesse ser o novo título dos sermões baseados em Atos 12. Qual é o remédio para o cristão numa época como essa? O Dr. LloydJones teria começado com nosso conhecimento geral e experiência da fé cristã. Assim, nessa altura cabe um resumo do que é o evangelho. Isso leva à pergunta:
“O que é um cristão?”. Depois, talvez queiramos perguntar: “Para onde se dirige a história?”. Com certeza, a exortação deveria vir no final. “Uma palavra de exortação” da parte do apóstolo é o que se faz necessário depois de termos considerado esses grandes assuntos. Por fim, permita-me falar só mais uma coisa. Encerramos com uma palavra de sóbrio alerta: “Se o SENHOR não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam” (Sl 127.1).
4 O Dr. Lloyd-Jones costumava ser afetuosamente chamado de “o doutor”; quando adolescente, eu não conhecia outra forma de me referir a ele. Mesmo a sua esposa costumava referir-se a seu marido assim, “o doutor”.
O trabalho de editoração e organização feito nesses sermões foi mínimo. Mantive as referências aos assuntos da época e o estilo do pregador.5 As “melhorias” que tomei a liberdade de inserir foram principalmente questões de pontuação (conforme é possível constatar na comparação com as versões impressas originais desses sermões nos registros de Westminster) e a remoção de uns poucos defeitos de menor importância. O restante mantém-se tão próximo das palavras do Dr. Lloyd-Jones quanto possível. Suas introduções, em que ele resume aquilo que disse nos domingos anteriores, não são necessárias na versão impressa, e por essa razão as considerações iniciais foram abreviadas.
Estas mensagens do Dr. Lloyd-Jones não são apenas relevantes para nossos dias; também são modelos do que a pregação deve ser. Elas interpretam e expõem algumas passagens das Escrituras, mas não são meras exposições. Muito menos são simples pesquisas ou análises bíblicas. De forma alguma o Dr. Lloyd-Jones achava que “pregar” era simplesmente apresentar pesquisas bíblicas! Esses sermões são “sermões expositivos” com elevado nível de aplicação. Eles não apenas interpretam o texto; eles também extraem sua mensagem. Mas eles não apenas extraem a mensagem; eles mostram às pessoas como a mensagem se aplica a elas. É isso o que deveria acontecer em toda pregação verdadeira. É óbvio que há outro ingrediente que não pode ser captado nos sermões em forma escrita. Quando pediram permissão a George Whitefield para imprimirem seus sermões, ele respondeu: “Não faço nenhuma objeção a isso [...] mas vocês não conseguirão colocar no papel os raios e os trovões”.6 Havia momentos de “raios e trovões” na pregação de Lloyd-Jones. Não há como registrar isso no papel ou por algum outro meio de transmissão. Mesmo gravações em fitas (das quais existem milhares) e vídeos (não há nenhum do Dr. Lloyd-Jones) não conseguem captar o senso de poder que com frequência se fazia presente quando o Dr. Lloyd-Jones pregava.
O teólogo J. I. Packer, que em 1948 como jovem cristão foi ouvir Lloyd-Jones, disse: “Eu saí cheio de reverência e alegria, com um vívido senso da grandeza de Deus em meu coração, mais do que jamais havia sentido antes”.7 Eu mesmo, como adolescente londrino, tive a mesma experiência. Eu tinha ouvido algumas
5 O esforço da Pro Nobis Editora foi manter fielmente um estilo equivalente em português. Por isso, o leitor notará um texto mais próximo da dinâmica de um sermão pregado. [N.E.]
6 D. M. Lloyd-Jones, Preaching and Preachers (Hodder & Stoughton, 1971), p. 58. [Pregação e pregadores (São José dos Campos: Fiel, 2019).]
7 J. I. Packer, Foreword to D. M. Lloyd-Jones, The Heart of the Gospel (Crossway, 1991), p. 8.
histórias sobre a pregação na Westminster Chapel, e certo dia fui até lá quando Lloyd-Jones pregava com base em Êxodo 33 sobre a oração por avivamento. Mal consigo expressar com palavras o impacto que essa pregação produziu em mim. Tentei resumi-la no domingo seguinte numa reunião de oração estudantil em Pembroe Road, Bristol. Os pontos principais dessa pregação permaneceram comigo por décadas, até que certo dia ouvi uma gravação dela e foi como reencontrar um velho amigo. O texto impresso não consegue transmitir o poder da pregação de Lloyd-Jones. Mas mesmo assim o conteúdo das mensagens nos ajudará a enxergar elementos dessa pregação. O poder terá de vir de outra maneira!
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O CRISTÃO DIANTE DO PERIGO
Perseguição religiosa
Por aquele tempo, mandou o rei Herodes prender alguns da igreja para os maltratar, fazendo passar a fio de espada a Tiago, irmão de João. Vendo ser isto agradável aos judeus, prosseguiu, prendendo também a Pedro. E eram os dias dos pães asmos.
Atos 12.1-3
Minha intenção é considerar algumas das grandes lições que encontramos no capítulo 12 dos Atos dos Apóstolos. É muito importante, ao começarmos nossa consideração desse capítulo, entendermos que esse livro específico, os Atos dos Apóstolos, conforme intitulado, é mais do que um livro de história — sendo esse “mais” ainda de maior importância do que o elemento histórico. É claro, isso é algo que podemos dizer não apenas a respeito deste livro específico, mas a respeito da Bíblia toda. Há nela esse outro elemento, o elemento do sobrenatural, o elemento do divino, a influência do Espírito Santo que o impregna. Por causa disso, esse livro é totalmente diferente de todos os outros. Embora seja um livro humano, é mais que isso. Ele é um livro de história, mas há um sentido mais profundo em sua história. É um livro que contém uma compilação de fatos, mas não é apenas uma compilação de fatos. Qualquer coisa e tudo o que dissermos sobre qualquer livro secular de história é verdade a respeito deste livro. Mas, havendo dito isso, precisamos ir além e acrescentar que, em acréscimo a todas as lições e todos os benefícios que obtivermos através do cuidadoso estudo de qualquer livro de história, existe na Bíblia aquele algo mais que não se pode encontrar em nenhum outro lugar. Este livro, os Atos dos Apóstolos, é um registro da igreja cristã primitiva. Ao mesmo tempo, de certa forma, ele é um resumo da história da igreja cristã ao longo de todos os tempos.
Uma questão muito interessante que precisa ser discutida em qualquer lugar onde homens e mulheres estão preocupados com os problemas da vida é a seguinte: “Qual é o exato valor da história? Será que a história se repete? Será que é possível estudar qualquer período da história e, ao compreendê-lo, projetar e profetizar o que vai acontecer em qualquer outro período?”. Essa é uma questão que com frequência tem ocupado a atenção dos filósofos, e é de interesse também dos historiadores. Em certo sentido é possível dizer que a história se repete. Pelo fato de a natureza humana ser o que é, há certas qualidades que persistem e se repetem, e por essa razão os homens e as mulheres são de certa forma e fazem certas coisas de forma igual em condições e circunstâncias similares. Mas ao mesmo tempo é obviamente verdade que a história não se repete de forma exata. Há variações, mudanças e diferenças. Mas, quando você chega à história da igreja, há um novo fator, um princípio completamente novo, porque a igreja é uma associação espiritual. A igreja é, em certo sentido, uma sociedade e organização não humana, sobrenatural. Podemos dizer com certeza a respeito da igreja que a história dela em qualquer período é de fato a sua história em qualquer outro período. Com isso quero dizer que, se você lê este Livro dos Atos dos Apóstolos, penso que você estará diante de toda a história da igreja. Não existe nada que tenha acontecido na subsequente história da igreja que não tenha sido registrado de forma embrionária neste livro. Há pessoas ali que fazem as coisas que nós mesmos fazemos, e cujas ações são mais ou menos idênticas às nossas. Essa é a razão por que digo que o Livro dos Atos não é apenas a história da igreja primitiva, mas é a história da igreja em todos os tempos e em todos os lugares. Nesse livro você encontra cada uma das características da vida da igreja. Você encontra a estupidez das pessoas, os desentendimentos e os erros, as perseguições e as rivalidades. Não existe nada que tenha acontecido desde então que você não veja em sua forma embrionária aqui, por causa da natureza peculiar da igreja. Temos diante de nós, por assim dizer, em miniatura neste livro maravilhoso, aquilo que tem se repetido desde então durante os séculos. Por essa razão é que podemos afirmar com certeza que qualquer avivamento da religião nada mais é do que o retorno a esse Livro dos Atos dos Apóstolos. Qualquer avivamento religioso expressivo nada mais é do que o retorno a esse padrão. Você encontra aqui a constante alternância de ênfase, primeiro na doutrina, e depois na prática. Desde sempre existe esse conflito entre a ênfase na doutrina e na prática. Em certos tempos a questão toda se concentra na doutrina, ao passo que em outras épocas a doutrina tem sido quase totalmente desconsiderada, e a ênfase
toda tem sido colocada na prática, de maneira que o Livro dos Atos não é apenas a história da igreja primitiva; ele é também uma espécie de resumo de toda a subsequente história dessa grande instituição.
Esse capítulo 12 apresenta um importante aspecto da vida da igreja, isto é, a igreja face a face com a perseguição, a igreja face a face com o mundo, a igreja combatendo e lutando com o grande inimigo que está sempre se opondo a ela. É por essa razão que digo que é importante entendermos a filosofia deste livro. Porque aquilo que nos é apresentado neste capítulo é uma representação perfeita de cada era e período de perseguição pelos quais a igreja tem passado. Se você estudar a história da igreja, descobrirá que ela tem passado por períodos de terríveis provas e perseguições. De repente, começa uma perseguição. Daí ela parece apagar-se, e a igreja desfruta um período de relativa quietude e calma. Depois ocorre outro evento de violenta perseguição. Novamente ela desaparece, e segue-se um período de descanso. Essa sempre tem sido a história típica da igreja cristã, exatamente como você a encontra aqui. Mas o que é de importância vital é que devemos entender que os princípios que regem todo esse assunto encontram-se estabelecidos de uma vez por todas neste capítulo 12 do Livro dos Atos dos Apóstolos. Aqui encontramos as várias ênfases. Aqui encontramos o perfeito esboço de todos os aspectos da guerra. Acima de tudo, aqui nos é relatada de forma muito clara e explícita o que a igreja precisa fazer, e como ela deve comportar-se para emergir de forma triunfante.
Ora, nós estamos interessados hoje nesse assunto porque não há dúvida de que estamos vivendo numa época de acentuado espírito de perseguição da igreja. Na verdade, gastaremos todo o nosso tempo, à guisa de introdução, estudando os terríveis fatos referentes à perseguição religiosa que estão ocorrendo no continente europeu no presente momento [sob o regime nazista], e que já duram vários anos. Essa é uma das desvantagens de a Inglaterra estar insulada como nação e povo, que não temos visto essas coisas em primeira mão. Damos graças a Deus pela liberdade que temos para adorar a Deus, mas fico pensando se isso às vezes não nos leva a um estado de complacência, e muitas vezes a nos esquecer dos vários lugares onde as pessoas têm suportado coisas que correspondem exatamente ao relato que nos é apresentado neste capítulo sobre a perseguição da igreja primitiva recém-nascida. Vocês estão cientes das coisas terríveis que aconteceram na Alemanha [na década de 1930 e no início da década de 1940], e anteriormente na Rússia [na época de Stálin]. Eu acredito que um de nossos deveres como povo cristão é nos inteirar de coisas como essas, mesmo que seja
para podermos orar de forma inteligente, e podermos agir corretamente como membros da igreja cristã que conhecem algo sobre o ministério da intercessão e que se identificam com seus irmãos. Na verdade, talvez com mais urgência, devamos considerar esse assunto porque nós mesmos talvez algum dia nos deparemos com essa mesma situação. Não é nosso propósito emitir alguma profecia, ou predizer o futuro, mas há ocasiões quando eu acredito que talvez tenhamos um período de perseguição religiosa em nosso próprio país, embora não da mesma forma militante em que ocorreu na Alemanha nazista e em outros países. Mas, sem dúvida, há um grande perigo que um espírito de materialismo varra este nosso país, e que se levante uma oposição ativa contra a fé cristã. Por essa razão, é bom que nos preparemos e que nos inteiremos da natureza dessa guerra espiritual. Mas, acima de tudo, não há nada mais animador do que olhar objetivamente para o conflito que é descrito aqui. Vemos o inimigo em sua arrogância e vemos a igreja recém-nascida. Acompanhamos o conflito em seus vários estágios e vemos o triunfo final. Esse é um princípio que se aplica não somente na vida da igreja, mas também na vida de cada indivíduo. Aquilo que acontece com a igreja coletivamente pode acontecer a cada um de nós individualmente. Pois estamos todos face a face com o mesmo inimigo, e podemos triunfar da mesma forma que aconteceu com a igreja nessa ocasião, registrada para nosso ensino, do capítulo 12 do Livro dos Atos dos Apóstolos.
Tudo o que pretendo neste momento é olhar para o início da história, e talvez possamos fazê-lo melhor considerando as duas principais personagens, o rei Herodes e o apóstolo Pedro.
Herodes
Herodes é o eterno tipo do antagonismo à igreja e o espírito da perseguição.
Você já percebeu que neste capítulo encontramos uma descrição perfeita de certas personalidades da atualidade? Você consegue imaginar uma descrição mais perfeita de certo homem — Hitler — do que a descrição que é feita de Herodes nesse capítulo? Será que isso não prova meu argumento de que essa não é apenas a história da igreja primitiva, mas sim a história da igreja em todas as épocas? Será que Herodes aqui não é uma descrição perfeita de Hitler? Não dá para ver o mesmo homem na maneira como ele se apresenta e em suas ações características? E, se tomássemos o tempo necessário hoje de manhã para avançarmos pela história da igreja através do tempo, descobriríamos que isso também se aplica a muitos outros tiranos que levantaram a mão contra a igreja.
Não existe originalidade nenhuma no pecado. Esses homens todos repetem as ações uns dos outros; eles todos seguem um padrão. Todos eles não passam de instrumentos do mesmo poder diabólico, satânico. Há uma espécie de igualdade mecânica nas ações deles.
Há certas coisas que devem chamar nossa atenção de forma especial. Repare na arrogância de Herodes, a pretensão, o orgulho. Ele “estendeu as mãos sobre alguns da igreja para os maltratar”. Todo o comportamento e atitude desse homem se caracterizam pelo orgulho e arrogância. Veja-o mais tarde nesse mesmo capítulo, vestido de seu lindo traje, discursando para ser admirado pela multidão, que gritou em sua estupidez e ignorância: “É voz de um deus, e não de homem!”. Que retrato típico do poder do mal, esse poder mundano que sempre se levanta contra Deus e contra a sua igreja. Não consigo entender a atitude daqueles que dizem não crer na inspiração da Bíblia. Esse acontecimento deveria nos convencer de uma vez por todas que este não é um livro comum. Aqui está uma descrição perfeita da história contemporânea em seus mínimos detalhes. Só existe uma explicação para isso. É que vivemos num universo espiritual em que Deus está presente. Esses fatores operam em todos os tempos e eras com base em linhas certas e definidas. Essa é a primeira coisa que observamos aqui.
A próxima coisa que observamos é que não há razão aparente para essa ação de Herodes. Parece que ele de repente decidiu perseguir a igreja. Lemos que “Vendo [Herodes] ser isto agradável aos judeus, prosseguiu, prendendo também a Pedro”. Ele já havia assassinado Tiago e, vendo que com isso tinha agradado o povo, decidiu dar um passo adiante. Existe algo totalmente irracional e insensato nas ações dele. Podemos desenvolver isso como um princípio. A vida pecaminosa é sempre uma vida insensata. O pecado é sempre algo baseado na paixão. Ele não consegue dar as razões das coisas que faz. Vimos isso em larga escala nos eventos ocorridos na Alemanha na década de 1930. É unicamente um desejo de gratificar uma paixão pelo poder. Não imaginemos que isso é algo verdadeiro apenas nas esferas de vida nacionais e internacionais. Essa é a mesma coisa que explica o pecado dos indivíduos. É o desejo de possuir algo que pertence a outra pessoa, o desejo pelo poder. Essa é a explicação de alguns dos pecados mais comuns das pessoas em nossos dias. Essa é sempre uma característica do espírito contrário a Deus.
Outra coisa que caracterizava esse homem era o seguinte: seu supremo desejo era apresentar-se como Deus. Em última análise, esse era o seu objetivo. Essas pessoas que chegaram até ele com bajulação e gritando: “É a voz de um deus!”,
sabiam exatamente do que ele gostava. Ele queria que as pessoas o considerassem como um deus, e que para ele dobrassem os joelhos. É sempre assim que acaba quando um homem começa a andar na estrada da glorificação de si mesmo. Isso tem ficado evidente no mundo moderno. O homem que deixa de crer em Deus tenta deificar a si mesmo. Estamos numa época em que se crê nas infinitas possibilidades do homem.
Contudo, ao mesmo tempo existe algo absurdo, e quase ridículo naquilo que nos é relatado aqui a respeito dessa criatura arrogante, orgulhosa e atrevida, que se apresenta como se fosse Deus, e que parece tão independente do homem. Ele sente que pode governar toda a humanidade, mas repare como ele é sensível à aprovação e aplauso do público. Foi porque viu “ser isto agradável aos judeus” que ele prendeu Pedro. Aplique isso novamente ao indivíduo. Isso é verdade a respeito de todos os homens que tentam governar todos os outros. Essa aparente independência só está na superfície. Aqueles que se aliam às forças inimigas de Deus são sempre escravos de sua própria vaidade e orgulho.
Aí está, num esboço simples, uma figura do poder que se levantou contra a igreja. Ele se caracteriza pela adoração ao homem, pelo poder, pela arrogância e pelo orgulho. Ele atacou a igreja recém-nascida, que consistia num simples punhado de gente. Esse é o pano de fundo da história.
Pedro Agora olhe por um momento para o outro personagem, o apóstolo Pedro. Há uma ou duas coisas que desejo dizer sobre ele, e as encontramos no final do versículo 3: “E eram os dias dos pães asmos”. Não sei se você entende que essas são palavras muito importantes. Aqui novamente somos lembrados do caráter único da natureza das Escrituras. Há duas maneiras de interpretar as Escrituras. Um é o que se pode chamar de método exato, literal. O outro é o que se pode chamar de método imaginativo, e é de vital importância usarmos ambos esses métodos. Se você interpretar essas palavras pelo método literal, dirá que elas significam o seguinte. Lucas, o historiador meticuloso, precisa nos informar que o tempo exato quando esse homem foi colocado na prisão ocorreu durante “os dias dos pães asmos” (At 12.3). Isso é perfeitamente verdadeiro. Ou você pode dizer que Lucas, o escritor muito inteligente, nos concede uma pequena pista no princípio da história de que, se não fosse durante “os dias dos pães asmos”, o rei Herodes não apenas teria prendido Pedro, mas também o teria matado imediatamente. Ele não podia fazer isso porque havia uma lei dos judeus que
estabelecia que ninguém deveria ser morto nesse tempo específico. Assim Lucas aqui, ao escrever essas palavras, nos conta o segredo de como se tornou possível aquilo que ocorreu na sequência. Isso é o que você pode chamar de interpretação exata, o estabelecimento de um fato. Mas no momento em que você faz uso do método imaginativo, abrem-se imediatamente outras perspectivas. Com certeza existe um sentido espiritual muito profundo nessas palavras. Pedro está preso. Ele está posto na prisão e lemos: “E eram os dias dos pães asmos”. Será que isso não nos transmite nada? Qualquer coisa que isso possa significar para nós, podemos estar bem certos de que significava muita coisa para o apóstolo Pedro enquanto estava sentado naquela prisão. Será que consigo ler o que ele tinha em mente? Será que posso lhe dizer o que aconteceu naquela cela?
“Ah, sim”, diz Pedro para si mesmo, “foi durante os dias dos pães asmos que Jesus de Nazaré foi preso” Jesus, o Salvador e Senhor de Pedro. Essas palavras finais do versículo 3, portanto, nos contam três coisas.
A primeira é: o servo não é maior do que o seu Senhor. “Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos?” (Mt 10.25). “Se eles me perseguiram”, disse Cristo, “também vos perseguirão” (Jo 15.20). Pedro está preso e colocado na prisão. Ele se lembra de que seu bendito Senhor foi preso nessa mesma época do ano. Nos capítulos 13 a 16 do Evangelho de João, vemos como nosso Senhor se dedica a preparar seus discípulos para isso. Parece que ele estabelece o princípio de que o alcance do nosso discipulado é medido pelo tanto que somos perseguidos. Ele diz: “Vocês não podem ser meus discípulos sem que o mundo os odeie. Se eles me odiaram a mim, com certeza odiarão vocês”. Aconselho você a ler esses capítulos do Evangelho de João, prestando especial atenção nesse assunto. Lembre-se de como o apóstolo Paulo coloca o assunto: “Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Tm 3.12). Isso não significa que devamos ser pessoas excêntricas, esquisitas. Mas o fato é que os santos de Deus sempre têm sido perseguidos. A vida deles tem sido uma reprovação aos ímpios e a conduta deles tem atraído a inimizade. O servo forçosamente reflete seu Senhor.
O segundo princípio é: devemos sempre ser cuidadosos para evitar o pecado. Sente-se por um momento na prisão com Pedro. Você não consegue imaginar os sentimentos dele sentado ali, prisioneiro de Herodes, nos dias dos pães asmos?
Sua mente deve ter voltado aos dias quando seu bendito Senhor foi preso e Pedro o negou com palavrões e juramentos. “Eu não o conheço”, disse ele. Isso tudo voltou à sua mente. Sim, o pecado se faz lembrar. Mas isso não significa
que estamos condenados. Com toda a certeza, cada cristão, olhando para trás em sua vida sente o pecado e com tristeza lamenta certas coisas que fez, talvez mesmo antes de se tornar cristão. Não apague essa página! Creia em Cristo. Tome cuidado com sua vida e conduta. Algo que você talvez faça agora pode causar-lhe tristeza e tormento em anos vindouros. Esses “dias dos pães asmos” trouxeram de volta a Pedro a lembrança de seu próprio fracasso e negação. Mas nós podemos avançar um passo mais. Precisamos enfatizar a notável mudança ocorrida em Pedro. Na ocasião anterior, durante “os dias dos pães asmos”, ele fracassou completamente. Ele negou seu Mestre e Senhor. Ele estava com tanto medo de ser preso, que negou seu Senhor com juramentos e palavrões. Mas, agora, que mudança maravilhosa! Que quadro diferente encontramos nesse capítulo! Encontramos o próprio Pedro numa prisão e se alegrando ali. Há uma lição que todos podemos acatar para nós mesmos. Talvez tenhamos falhado com nosso Senhor, mas ele está pronto a nos perdoar. O capítulo 21 do Evangelho de João e o capítulo dois de Atos estão entre o capítulo 14 do Evangelho de Marcos com a história da negação e do choro de Pedro e este capítulo 12 do Livro dos Atos dos Apóstolos. Podemos ter falhado; mas, se nos arrependermos, podemos ser perdoados e, mais maravilhoso do que isso, podemos ser restaurados e colocados novamente na mesma posição onde podemos reafirmar nossa fé e provar nossa lealdade.
Aí está o quadro! O inimigo arrogante, poderoso e forte. O apóstolo do Senhor em sua cela na prisão. Mas já vimos outro fator se apresentando, pois o homem na prisão, que uma vez foi um fracasso e um fraco, é agora um novo homem como resultado da graça de Deus.
ENQUANTO LONDRES ERA BOMBARDEADA PELOS NAZISTAS, LLOYD-JONES PREGAVA O EVANGELHO NA CAPELA DE WESTMINSTER
Instrutivos, impactantes e encorajadores, os sermões de Martyn Lloyd-Jones são apreciados por cristãos do mundo todo. O Doutor havia deixado a promissora carreira de medicina para dedicar-se ao ministério pastoral. Após um período no interior do País de Gales, ele assumiu o púlpito da Capela de Westminster no mesmo ano em que a Segunda Guerra Mundial teve início. Na era entre este horrendo con ito e a Guerra da Coreia, milhões de vidas foram ceifadas e um número incontável foi tragado pelo desespero. A Guerra Fria e as tensões de um con ito nuclear aumentavam a angústia. Já o púlpito de Lloyd-Jones resplandecia a luz do evangelho em meio à escuridão.
A el pregação da Palavra foi essencial para guardar o coração do povo de Deus. Os dias de terror, medo e insegurança foram tenebrosos, mas as promessas de Deus se provaram botes de salvação naquele mar de a ições. Nas palavras de Lloyd-Jones: “Vista de maneira puramente material e carnal, a situação parece desesperadora, sem solução alguma. Mas, no meio das trevas, há esse lampejo de esperança. Deus se faz presente neste momento. Deus se importa. Deus está ao lado da igreja, e isso faz toda a diferença”.
Este livro é uma preciosíssima coletânea de sermões inéditos, pregados durante os anos de 1941-1950, um dos períodos mais sombrios da história humana.
Martyn Lloyd-Jones (1899-1981), aos 27 anos, abdicou de uma promissora e brilhante carreira médica para tornar-se pregador da Palavra. Seu ministério na Capela de Westminster (Londres, 1939-1968) e seu legado literário têm in uenciado gerações até hoje. “O Doutor”, como também era conhecido, foi casado com Bethan, com quem teve duas lhas, Elizabeth e Ann.
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