O Pregador e o Peregrino

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Rio de Janeiro, RJ

A obra que você tem em mãos é mais uma excelente publicação da Pro Nobis Editora. Li pela primeira vez O peregrino, de John Bunyan, em 1997, em uma versão ilustrada de 1919. Lendo esse comentário de Spurgeon sobre a saga do Cristão, você descobrirá uma verdade inconteste: ler Bunyan é quase como ler a própria Bíblia, pois “a própria essência da Bíblia flui dele”.

Alan Kleber Rocha, pastor da Igreja Presbiteriana de Aracaju

Lembro que, nos idos do ano de 2005, li um pequeno texto da autoria de Larry Newcomer, intitulado “24 Fatos Notáveis sobre C. H. Spurgeon”. O primeiro fato notável mencionado foi que a primeira vez que Spurgeon leu O peregrino se deu aos seis anos, e que, a partir daí, releu-o mais cem vezes. Eu fiquei impressionado com isso. Em outra ocasião, escrevi sobre o desejo que tenho de ler livros das estantes de amigos meus ou de cristãos famosos da história da igreja. O motivo? Apenas poder observar suas marcações, seus grifos e anotações. Penso que é possível conhecer e aprender muito através do que chamou a atenção de outros leitores. Com isto em mente é que celebro a publicação de O pregador e O peregrino, pela Pro Nobis Editora. Realizei o sonho de sentar-me junto ao “príncipe dos pregadores”, para aprender a partir das suas percepções a respeito da preciosa obra do puritano John Bunyan.

Alan Rennê Alexandrino Lima, pastor efetivo da Igreja Presbiteriana do Cruzeiro do Anil, em São Luís (MA)

A Palavra de Deus, anunciada pelos profetas e pelos apóstolos, segundo o salmista, torna bem-aventurado o homem que, com prazer, medita nela dia e noite. E, então, um desses bem-aventurados, com o coração cheio e transbordante, escreve a famosa saga de Cristão, de sua salvação pelo Verbo até a sua chegada à Cidade Celestial, após longa peregrinação. Seu nome era John Bunyan, e sua obra intitulada O progresso do peregrino. Passam-se três séculos e surge outro bem-aventurado: o príncipe dos pregadores, Charles H. Spurgeon, cuja boca tinha nada mais a proferir e cujo coração tinha nada mais em que meditar senão aquela

mesma Palavra — e ele dedica bom tempo e esforço para comentar aquela saga, que é comum a todos os crentes de todas as eras. O mérito das páginas de O pregador e O peregrino está em mostrar que tudo diz respeito ao Verbo que se fez carne, por meio do qual, recebendo-o, somos feitos filhos de Deus, e nos tornamos cristãos, peregrinos.

Alberto Costa, pastor da Igreja Batista Reformada Vida Nova, em Florianópolis (SC)

Quem leria um livro sobre um livro? Intrigante, não? Ora, alguém que aprecie ao menos um dos autores! E quando os dois nos são queridos? Aí temos diante de nós um banquete interessantíssimo. Um mestre das letras escrevendo sobre a obra prima de outro mestre das letras. As interessantíssimas e profundas considerações de Charles Spurgeon sobre O peregrino, de Bunyan, compõem um livro delicioso e provocante. Recomendo que você retorne ao velho Bunyan de mãos dadas com Spurgeon, que, como um guia experiente, vai ajudá-lo a notar partes do passeio que teriam passado despercebidas; além disso, vai ajudá-lo a ver ainda melhor a glória desse velho monumento.

Emilio Garofalo, pastor da Igreja Presbiteriana Semear (DF)

Em certa ocasião, falando da contribuição de seus próprios escritos, Spurgeon disse: “Espero contribuir com um punhado de lascas e cavacos, ou, se preciso, mesmo um feixe de lenha, para ao menos um irmão, com o qual ele possa acender uma fogueira em seu próprio coração”. Certamente ele fez isto ao comentar o clássico de Bunyan. Este livro nos ajudará a fazer o que Bunyan almejou ao escrever O peregrino: “O lixo que aqui você encontrar, com coragem, jogue-o fora. Mas conserve o ouro. E, se o meu ouro envolvido em barro estiver, ninguém deve jogar fora a maçã por causa da semente”.

Jonas Padilha, pastor da Primeira Igreja Batista de Miguel Pereira (RJ)

Em seu comentário sobre O peregrino, clássico imortal de John Bunyan, Charles Spurgeon (e ninguém melhor do que ele para fazê-lo) apresenta de forma impressionante a riqueza de insights que podemos obter deste clássico da literatura cristã. Depois de lê-lo mais de cem vezes, o pregador compartilha tudo o que aprendeu neste livro. Você tem em mãos justamente aquilo que ele aprendeu. Aproveite a leitura!

Wilson Porte Jr., professor do Seminário Martin Bucer e pastor da Igreja Batista

Liberdade de Araraquara (SP)

Aprendi a amar O peregrino com Spurgeon. Ele me encorajou a ler a obra várias vezes. Cada mergulho no texto de Bunyan vai purificando a pele e o coração, como Naamã experimentou. Melhor ainda é quando podemos fazer um mergulho profundo, guiados por um mergulhador experiente — neste caso, Spurgeon. Recomendo a leitura!

Allen Porto, pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Barretos (SP)

John Bunyan foi o mestre, teólogo e principal mentor de Spurgeon. A estrutura de seus sermões, a análise da doutrina e as aplicações experienciais para o coração são herança dos sermões de Bunyan. Spurgeon dizia que Bunyan tinha sangue biblino; sobre Spurgeon, podemos dizer que sua pregação era profundamente bunyana, ecoando a voz e a teologia do latoeiro ungido.

Evandro Junior, pastor da Terceira Igreja Baptista do Porto, Portugal

O pregador e O peregrino:

A jornada de Spurgeon no clássico de Bunyan

Traduzido do original em inglês:

Pictures from Pilgrim’s Progress: A Commentary on Portions of John Bunyan’s Immortal Allegory

Copyright © 2024 Pro Nobis Editora

Obra em domínio público.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por PRO NOBIS EDITORA

Rua Professor Saldanha 110, Lagoa, Rio de Janeiro-RJ, 22.461-220

1ª edição: 2024

ISBN: 978-65-81489-54-0

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo citações breves, com indicação da fonte.

Gerência editorial

Judiclay Silva Santos

Conselho editorial

Judiclay Santos

David Bledsoe

Paulo Valle

Gilson Santos

Leandro Peixoto

Supervisão editorial: Cesare Turazzi

Tradução da obra: Gabriel Lago

Tradução Apêndice 1: Alex Motta

Tradução Apêndices 2-3: Isabela Fontenelles

Tradução Apêndices 4-5: Cesare Turazzi

Preparação de texto: Cinthia Turazzi

Revisão de provas: Gabriel Lago

Capa: Luis de Paula

Diagramação: Marcos Jundurian

Nesta obra, as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia Almeida Revista e Atualizada (ARA), salvo informação em contrário.

As opiniões representadas nesta obra são de inteira responsabilidade do autor e não necessariamente representam as opiniões e os posicionamentos da Pro Nobis Editora ou de sua equipe editorial.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Spurgeon, Charles H., 1834-1892.

O pregador e o peregrino : o progresso de Spurgeon no clássico de Bunyan / Charles H. Spurgeon ; tradução Gabriel Lago. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Pro Nobis Editora, 2024.

Título original: Pictures from pilgrim’s progress.

Bibliografia

ISBN 978-65-81489-54-0

1. Bunyan, John, 1628-1688 2. Peregrinos cristãos e peregrinações

3. Vida cristã I. Título.

24-191111

Índices para catálogo sistemático:

1. Peregrinos e peregrinação cristã 263.041

Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253

Tel.: (21) 2527-5184

contato@pronobiseditora.com.br www.pronobiseditora.com.br

CDD-263.041

Sumário

16. O Terreno Encantado........................................... 159

17. Como o Sr. Temor temeu ..................................... 169

18. Como o Sr. Temor temeu: Conclusão .................. 177

19. Os senhores Mente Fraca e Vacilante .................. 185

20. Cristã diante da porta e do rio ............................. 195

Apêndices

Apêndice 1: Casos de consciência

— C. H. Spurgeon ...................................................... 211

Apêndice 2: Batalhas da consciência

— C. H. Spurgeon ...................................................... 229

Apêndice 3: O cântico do peregrino

— C. H. Spurgeon ...................................................... 257

Apêndice 4: O guerreiro cristão

— Autor desconhecido ............................................... 279

Apêndice 5: Meditações acerca da morte e do julgamento final

— Autor desconhecido ............................................... 285

Prefácio à edição original 1

Quando me informaram pela primeira vez que uma série de discursos sobre O peregrino havia sido descoberta, regozijei-me feito alguém que encontra grande tesouro, pois esperava que, após enriquecer as páginas de The Sword and the Trowel2 [A espada e a pá], tais flores cheias de perfume pudessem ser reunidas num ramalhete encantador. Pela misericórdia de Deus, concretizaram-se minhas esperanças. Mês a mês, essas Imagens3 apareceram na Revista, e isto por cerca de um ano e meio, havendo testemunho abundante de que foram bem recebidas pelos leitores. Chegou, pois, o momento da edição do livro, e ei-lo aqui — um diadema brilhante, agora que suas pedras estão juntas e enfileiradas.

Três Imagens adicionais serão encontradas aqui, quais sejam: “Cristão diante da Cruz”, “Cristão e Apoliom” e “Feira das Vaidades”. Não é de surpreender que não se tenha encontrado traço algum, no decorrer das palestras, de qualquer referência a essas características marcantes da história. Isso não

1 Todas as notas de rodapé encontradas neste livro pertencem ao processo editorial da Pro Nobis Editora.

2 Obra de Spurgeon.

3 Referência ao título da obra original, Pictures from Pilgrim’s Progress.

quer dizer, porém, que o pregador as ignorou. Provavelmente não foram relatadas, ou os manuscritos podem ter-se extraviado. Uma breve pesquisa nos Sermões de Spurgeon e noutras obras garantiu material suficiente e, ouso dizer, apropriado para os esboços que faltavam. O pastor do Tabernáculo Metropolitano4 era tão apaixonado por John Bunyan e tão semelhante a este em fé, que me convenço de que se poderia compilar mais um volume incluindo Imagens de outras cenas e personagens distintos naquela gloriosa alegoria. Quem poderia duvidar de que é possível encontrar farto material na “Biblioteca de Spurgeon” para estabelecer Imagens de “Cristão no Monte Sinai”, “A Colina da Dificuldade”, “O Castelo da Dúvida”, “Pequena Fé”, “A Terra de Beulá” e “Valente pela Verdade”, por exemplo?

Há sinais internos de que essas palestras foram dadas nas reuniões de oração das noites de segunda-feira, com o propósito especial de edificar aqueles que haviam acabado de iniciar sua peregrinação. “Vocês, jovens convertidos”, disse o pregador inúmeras vezes, em seu estilo pessoal e incisivo. Todavia, estou certo de que os mais avançados em sua congregação também faziam parte dos ouvintes ávidos e encantados. Assim será com este livro. Aqui há leite para os bebês e carne para os homens. Ademais, tal é a carne, que até os “bebês” provarão um pouco dela, assim como os “homens” serão melhor satisfeitos com um ou dois goles do leite.

C. H. Spurgeon era mestre na arte de comentar. Quem, ao ouvi-lo, nunca se regozijou tanto em sua exposição das Escrituras quanto em suas orações e sermões? Ele já fez comentários impressos sobre os Salmos (The Treasury of David

4 Metropolitan Tabernacle, em Londres, Inglaterra. Trata-se da congregação batista que Spurgeon pastoreou.

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[O tesouro de Davi]), sobre Mateus (The Gospel of the Kingdom [O evangelho do Reino]) e sobre Manton5 (Illustrations and Mediations [Ilustrações e meditações], ou Flowers from a Puritan’s Garden [Flores do jardim de um puritano]); e aqui está seu Comentário sobre O peregrino, “o mais doce de todos os poemas em prosa”, segundo ele mesmo o descreve.

Percebe-se com facilidade que o Comentarista simpatiza com o Autor e ama a própria missão. Se um dia persuadissem o Sr. Spurgeon a preencher uma página do outrora popular “álbum de confissões”, tenho certeza de que, diante da pergunta “Quem é o seu autor preferido?”, ele responderia: “John Bunyan”. Spurgeon o mencionou diversas vezes como “O maior entre meus favoritos” e deixou registrado que lera O peregrino pelo menos cem vezes. A razão desse gosto não está distante. Ambos amavam “O Livro dos livros”. Incentivando o estudo sério das Escrituras, C. H. Spurgeon disse certa vez:

Ah, que você e eu adentremos o próprio coração da Palavra de Deus e façamo-la adentrar em nós mesmos! Da mesma forma como vi o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la, assim devemos proceder com a Palavra do Senhor — não rastejar-lhe pela superfície, mas sim devorá-la, até que a tenhamos absorvido em nossas partes mais íntimas. É inútil apenas correr os olhos pelas palavras ou recordar as expressões poéticas e fatos históricos; antes, bem-aventurado é aquele que absorve a própria alma da Bíblia até que, finalmente, fale na linguagem das Escrituras, e seu próprio estilo seja formado segundo o molde delas, e, o que é ainda melhor, seu espírito se impregne da fragrância que vem nas palavras do Senhor. Posso citar John Bunyan como um exemplo disto. Leia qualquer coisa desse autor, e você perceberá que é quase

5 Thomas Manton (1620-1677), puritano inglês.

como ler a própria Bíblia. Ele a leu até que sua alma ficou saturada das Escrituras; e, embora suas obras sejam encantadoramente repletas de poesia, não podemos receber seu O peregrino — o mais doce de todos os poemas em prosa — sem que sintamos e digamos a todo momento: “Ora, esse homem é uma Bíblia viva!”. Corte-o em qualquer parte do corpo: seu sangue é “biblino”;6 a própria essência da Bíblia flui dele. Ele é incapaz de falar sem citar um texto, porquanto sua própria alma está cheia da Palavra de Deus. Recomendo-lhe, amado, o exemplo dele.

Além disso, a linguagem do Eterno Sonhador estava na mente do Pastor do Tabernáculo. Falavam ambos a mesma língua. Num discurso proferido em 1862, à ocasião da restauração do túmulo de Bunyan, o Sr. Spurgeon garantiu aos seus ouvintes que as obras de Bunyan não os esgotariam tanto como as de Gill7 e de Owen8. “Constituem uma leitura agradável”, disse ele, “pois Bunyan escrevia e falava em saxão simples e era um leitor diligente da Bíblia na versão antiga”.

Sem dúvidas, era intenção de meu querido pai que esses discursos fossem publicados, já que ele havia começado sua revisão. Quisera eu que ele pudesse completar tal tarefa!

Os textos ficariam ainda mais perfeitos. De todo modo, temo-los conforme ele os proferiu. É impossível confundir sua voz nessas frases sentenciosas.

Imagino que, se ele ainda estivesse aqui para publicar essas homilias e escrever um prefácio, teria apelado aos seus leitores, como fez com os ouvintes na ocasião já mencionada,

6 No original, “Bibline”, um jogo com as palavras “Bíblia” e “hemoglobina”.

7 John Gill (1697-1771), teólogo e pastor batista, autor de An Exposition of the Old and New Testament.

8 John Owen (1616-1683), célebre pastor e teólogo puritano.

que erguessem um monumento a John Bunyan no coração, de maneira tal que se tornassem seus descendentes, ao absorver a verdade que ele ensinou, e mantivessem viva a sua memória, entregando-se à mesma fé.

Que o manusear destas páginas crie um amor pelo livro que elas explicam e aplicam, assim como pelo Livro do qual ambos os escritores ficaram “saturados”.

Thomas Spurgeon, Clapham, 1903

Prefácio à edição em português

Escrever uma narrativa de peregrinação que se notabilize por sua grandeza não é tarefa fácil. O autor não pode reduzir seu ofício à criação de personagens interessantes e diálogos envolventes. É preciso ir além e imaginar também lugares cativantes, onde o leitor desejasse ardentemente visitá-los ou mesmo evitá-los a todo custo. E mais: escrever uma narrativa de peregrinação sem tratar os lugares como se fossem personagens da narrativa, seria algo que apenas escritores desatentos se prestariam a fazer. A narrativa de John Bunyan é grandiosa justamente porque personagens e, sobretudo, lugares são narrados com notável sensibilidade. Sensibilidade jamais atingida por homens distraídos.

Li O peregrino ainda adolescente. Tinha acabado de completar dezesseis anos e papai me deu esta obra de presente, com a recomendação de que se tratava do livro mais lido do mundo, depois da Bíblia. Lembro-me como se fosse hoje. Era a primeira vez que uma obra de literatura tinha despertado a minha imaginação. É verdade que já tinha lido outros livros de ficção, mas não passavam de leituras protocolares, apenas para cumprir as obrigações colegiais. Mas agora a história era outra. Pela primeira vez, um livro de ficção tinha me despertado sentimentos tão profundos. Não conseguia parar

de ler e imaginar as cenas, seja de um pântano — mas não qualquer pântano —, seja de uma feira — mas não qualquer feira. No final do livro, a alegria era tão grande que fiquei proporcionalmente triste só de pensar que aquela jornada que acompanhara com tanta curiosidade estava chegando ao fim. Não queria terminar o livro de jeito nenhum, mas as páginas do fim se aproximavam cada vez mais rápido.

Quando terminei, procurei o meu velho para contar como a leitura tinha sido maravilhosa. Curiosamente, ele tinha nas mãos mais um livro para me dar. Dessa vez, papai me disse: “Você leu Bunyan. Agora tem de ler o príncipe dos pregadores”. E assim O conquistador de almas, de C. H. Spurgeon, foi parar, pela primeira vez, nas minhas mãos. Era uma edição da PES, de capa azul, com a imagem de um pescador no barco, preparando as redes para lançar ao mar. Este livro me acompanhou por décadas juntamente com os famosos esboços Spurgeon ainda fala, editados por David Otis Fuller. Preciso confessar meu descaramento, pois preguei em muitos daqueles esboços. Não me envergonho nem me arrependo de tê-los pregado à igreja. Todo pregador aprende imitando, copiando modelos, e é assim por um bom tempo até encontrar o seu próprio estilo, que não é outra coisa senão a reunião de todos estes modelos mimetizados.

A grata surpresa foi descobrir — depois de casado, pai de filhos, pastor de igreja — que o mesmo livro que mais marcou Spurgeon foi — quem diria?! — aquele mesmo livro que tinha capturado a minha imaginação na adolescência e me edificado desde os tempos do seminário. Qual é o segredo de Bunyan? Segundo Spurgeon, o segredo de O peregrino decorre de uma abordagem semântico-alegórica: semântica porque é da ordem da linguagem; alegórica porque é da ordem da imaginação. Em ambos, a Bíblia é ensinada.

O

Isto está patente. O que não é tão evidente assim é que o ensino bíblico é determinado não apenas pela mensagem, mas, em especial, pelo vocabulário e pela figuração bíblicos. Diferentemente da dinâmica dos textos-prova, em que nossas confissões de fé, apoiando-se nas Escrituras, formulam seus artigos, a abordagem semântico-alegórica usa a linguagem e a imagem (figuração) que a própria Bíblia costuma usar para tratar os seus temas.

Por exemplo, um leitor atento das Confissões, de Agostinho de Hipona, sempre perceberá que Agostinho não apenas fala da Bíblia, mas usa a linguagem da Bíblia para falar da Bíblia. Isto é o que Spurgeon notou na alegoria de Bunyan. Em O peregrino, as personagens não apenas falam da Bíblia, mas usam a linguagem da Bíblia para falar da Bíblia. Por isso, o príncipe chega às vias de dizer que ler O peregrino é quase como ler a própria Bíblia. A hipérbole é justificável, mas para entendê-la não basta o leitor ser inteligente; antes, ele tem de ser leitor da Bíblia. Hoje entendo melhor por que O peregrino me cativou tanto. Eu conhecia aquele sotaque, aquelas frases todas, sabia do que ele estava realmente falando quando ele descreveu os perigos do Pântano do Desânimo e da Feira das Vaidades. Tudo estava na Bíblia que meus pais me deram e me ensinaram a ler desde pequeno. Em contrapartida, se a ignorância da Bíblia for grande, O peregrino não passará de uma mera alegoria de peregrinação. Sem o conhecimento da Bíblia, o leitor será capaz de apreciar a arte do diálogo, da descrição de personagens, do enredo, mas não atingirá em cheio o objetivo do livro: ser um eco das Escrituras. Por isso, quem o lê antes de ter lido a Bíblia vai ser impulsionado a ler a Bíblia depois; e quem o lê depois de ter lido a Bíblia vai querer reler a Bíblia com os olhos de Bunyan. O peregrino é um holofote que está sempre apontando para a Bíblia.

Mas, cá para nós, acredito que Spurgeon herdou da obra de Bunyan não apenas o uso do vocabulário bíblico para pensar e se expressar biblicamente. Ele também herdou o amor pela alegoria. Hoje em dia, o sermão chamado “alegórico” comprometeu consideravelmente a exposição fiel das Escrituras. Por isso, muitos pregadores, com razão, evitam o recurso da alegoria. O que é uma pena. Um pregador que não usa alegorias, que não recorre à imaginação da sua audiência, é como um peixe tentando respirar fora d’água. A crítica da alegorização das Escrituras não deveria implicar uma proibição do uso de alegorias em nossos sermões. Isso vale até mesmo para um pregador iconoclasta. Parece indubitável a iconoclastia de João Calvino. Ele realmente não via com bons olhos os vitrais repletos de imagens de cenas bíblicas. Entretanto, a iconoclastia de Calvino não era uma revolta contra a imaginação. Em seu comentário aos Gálatas ele diz que “aqueles que desejam desempenhar bem a tarefa do ministério da Palavra devem aprender não apenas a discursar e a falar em público, mas especialmente a penetrar na consciência, para que as pessoas vejam o Cristo crucificado e seu sangue escorrendo. Se a igreja tiver esse tipo de artista, ela não precisará de madeira nem de pedra, ou seja, não precisará de representações sem vida e, na realidade, não precisará mais de imagem alguma”. Um bom pregador, que é também um bom artesão da palavra, tem de suscitar na mente dos seus ouvintes a mais bela das imagens da Bíblia: o nascimento, a vida, a morte, a ressurreição e o triunfo de Jesus. E assim o faz não com barro, mas com palavras. Com certa confiança, posso garantir que, ao terminar de ler os comentários de Spurgeon a respeito de O peregrino, você perceberá que Bunyan e Spurgeon descobriram que, para guiar o povo de Deus, é preciso entender não somente

de peregrinação, mas da arte de narrar a peregrinação. Um pastor deve fazer isso todos os domingos quando sobe ao púlpito. Ali, ele encontrará peregrinos: alguns cansados, outros desanimados; alguns cheios de dúvida, outros cheios de culpa; alguns sob tentação, outros em provação; alguns alegres, outros tristes; alguns imaturos e fervorosos, outros maduros e frios... Enfim, ao vê-los assim, a cada domingo, o pastor deve, do púlpito, anunciar o Cristo crucificado, que, ressurrecto dos mortos, tem nos guiado até aqui e continuará nos guiando, por sua Palavra e Espírito, até a Cidade Celestial. Meu desejo é que este livro possa despertar cristãos de língua portuguesa a falarem da Bíblia não mais com o vocabulário de um pagão, mas com o próprio vocabulário das Escrituras. E não apenas isto. Que este livro nos desafie a imaginar o mundo não mais com as categorias céticas e niilistas dos nossos dias, mas com a figuração que a própria Bíblia nos oferece do mundo e do porvir.

Jonas Madureira, pastor da Igreja Batista da Palavra, SP

Apresentação à edição brasileira

Recebi com alegria a notícia de que mais uma obra de C. H. Spurgeon (1834-1892) seria lançada no Brasil. Há décadas, esforços vêm sendo feitos para colocar à disposição do público leitor em língua portuguesa verdadeiros tesouros do reconhecido príncipe dos pregadores. Ainda maior alegria tive ao saber que essa nova obra é fruto de suas percepções e comentários sobre O peregrino, de John Bunyan (1628-1688), que, para mim, depois do maior e melhor dos livros, a Bíblia Sagrada, é a mais notável das obras.

Nosso Senhor Jesus Cristo e seus apóstolos jamais ocultaram, nem fizeram ajustes linguísticos para amenizar as lutas enfrentadas por todos aqueles que se põem a caminho, rumo à Cidade Celestial. A vida digna do evangelho, à qual somos chamados, exige a clara consciência dos acontecimentos muitas vezes provocados pela fé em Cristo e a tomada de decisões que honram a Deus por todo caminho. Não nos é suficiente, conforme é dito, começar bem, mas é preciso terminar bem. Para isso, faz-se necessário conhecer o caminho a partir do testemunho deixado por aqueles que nos antecederam.

Os desafios e perigos da jornada são de toda espécie e intensidade. O mundo, a carne e o diabo, às vezes revezando entre si, e de maneira ininterrupta, operam ferozmente para

nos desviar do caminho ou nos fazer perder o rolo1 de onde extraímos segurança, conforto e paz. Cristão é exposto a medos e terrores causados por Apoliom, pelo gigante Desespero ou mesmo por tagarelas superficiais que, “não compreendendo, todavia, nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações” (1Tm 1.7), se põem apenas a tagarelar. Acerca desses, diz-se: “nuvens sem água impelidas pelos ventos” (Jd 12)!

Essa pode ter sido a razão para Spurgeon ter se dedicado a expor O peregrino durante seu abençoado ministério no Tabernáculo Metropolitano, em Londres. Ele sabia quais os tipos de viajantes seus ouvintes, muitos dos quais estavam iniciando sua jornada na fé, poderiam encontrar no percurso, e como eles poderiam interferir, para o bem ou para o mal, em suas decisões. Como pastor de almas, ele deveria adverti-los para que fossem corajosos diante dos perigos e capazes de ignorar os infiltrados, ou mesmo silenciá-los por meio do santo evangelho. Bunyan e Spurgeon figuram em meio àqueles que fazem parte da antiga tradição reformada entre os batistas ingleses, cujas influências chegaram ao Brasil ainda no século 19 por meio de missionários ingleses e americanos, embora apenas recentemente venha sendo consolidada. Amantes das Escrituras, sólidos doutrinária e eclesiologicamente, exímios pregadores do evangelho, médicos de homens e de almas, mas separados por cerca de dois séculos, ambos foram mentes brilhantes e produtivas para benefício da igreja de Jesus, do que somos testemunhas.

A obra que agora chega ao Brasil — O pregador e O peregrino: A jornada de Spurgeon no clássico de Bunyan — é o resultado de

1 Referência à cena em que Cristão, sonolento, o deixa cair sob uma árvore agradável no Monte da Dificuldade.

manuscritos encontrados mais tardiamente, cujos capítulos foram publicados original e semanalmente na revista The Sword and Trowel. Esse verdadeiro achado de uma pequena parte do ministério do Sr. Spurgeon projeta luz ainda maior sobre o profundo afeto que ele nutria por Bunyan, este que, em suas próprias palavras, era o seu autor “favorito” entre os grandes nomes dos séculos que o antecederam.

Ao longo de vinte capítulos, Spurgeon expôs toda a jornada de Cristão em forma de homilia, por meio de linguagem simples, mas nem por isso superficial. Ao contrário! Nelas, são vistos seus ternos afetos e preocupações pastorais e seu sincero desejo de que cada um de seus ouvintes chegasse à Cidade Celestial, atravessando o rio da morte e entrando, finalmente, na presença do Rei daquelas terras, o mesmo Senhor que se deu pelos peregrinos e que ainda os faz exclamar:

Bendita a cruz! E o túmulo! E mais bendito seja O homem que vergonha e dor por mim sofreu!2

Essa obra chega em um momento bastante complexo do movimento cristão no Brasil. Há nuvens espessas, indícios de tempestades de consequências alarmantes, pairando sobre nós. Idolatria e imoralidade, disputas e cancelamentos, arrogância e escárnios promovem enorme confusão às pessoas. Dentro e fora da igreja de Jesus, há imprecisões sobre o significado bíblico, portanto verdadeiro, do que é ser um cristão. Não são poucos os que têm compartilhado dos pensamentos de Formalista e Hipocrisia, que acreditavam que um costume, sendo mantido por muito tempo, torna algo lícito. Esquecem-se, contudo, de que essa não é a maneira divina de lidar com as coisas.

2 Palavras de Cristão ao se ver livre do seu fardo.

Todos estamos cientes, em maior ou menor grau, que “a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestes” (Ef 6.12). Entretanto, seus agentes posicionados para o combate, os inimigos da cruz de Cristo, não transitam apenas fora dos arraiais da fé. Há infiltrados que usurpam para si as insígnias de Cristo sem quaisquer direitos, pois não entraram pela porta estreita.

Por isso, rogo ao Senhor das Montanhas Deleitáveis, aquele que sempre sai em defesa de seus filhos em jornada, que a leitura deste livro seja um meio eficaz, sob a condução do Espírito Santo, para reajustar, à medida que lemos as Escrituras Sagradas, nossa visão sobre o ensino de Cristo e o sentido de ser cristão fiel. Que a boa mão de Jesus o conduza, caro leitor, e que Cristo seja formado em nós, enquanto aguardamos o glorioso dia de sua vinda. Amém.

Paulo Valle, Tyndale House Cambridge, Inglaterra

Inconstante vai com

Cristão

Logo depois da Bíblia, o livro que mais valorizo é O peregrino, de John Bunyan. Creio que já o li pelo menos umas cem vezes. Trata-se dum volume de que jamais me canso; e o segredo de seu frescor está em ser uma vasta compilação das Escrituras. É de fato um ensino bíblico apresentado na forma de uma alegoria simples mas impressionante.

Veio-me à mente elaborar uma série de discursos sobre

O peregrino, pois os personagens descritos por John Bunyan contam com representantes vivos hoje, e suas palavras contêm uma mensagem para muitos que se encontram em nossas congregações.

Você lembra que, quando Cristão, com “um livro na mão e um grande fardo nas costas”, gritou: “O que devo fazer para ser salvo?”, ele “viu um homem chamado Evangelista indo em sua direção”, o qual lhe apontou a porta estreita e a luz radiante. Então Bunyan diz:

Eis que vi, em meu sonho, que o homem começou a correr. Ele ainda não havia corrido longe demais de sua própria porta; porém sua esposa e seus filhos, percebendo-o, começaram a chorar para que voltasse, mas ainda assim o homem meteu os dedos aos ouvidos e correu, gritando: “Vida! vida! vida eterna!” (Lc 14.26). Ele não olhou para trás; antes, fugiu pelo meio da campina (Gn 19.17).

CAPÍTULO 1

Os vizinhos também saíram para vê-lo correr (Jr 20.10); e, enquanto ele o fazia, uns zombavam, outros o ameaçavam, e alguns ainda gritavam para que retornasse. Ora, entre tais homens, havia dois que resolveram trazê-lo de volta à força: o nome de um era Obstinado, enquanto o outro se chamava Inconstante.

Em vez de ceder, Cristão de pronto passou a implorar para que o seguissem. Obstinado respondeu a todos os apelos com zombaria e insultos, ao passo que Inconstante foi facilmente persuadido a ir. Este é um tipo daqueles que parecem pôr-se em direção ao céu, todavia não têm em si a raiz da questão, logo desistindo da viagem. A semelhança que Bunyan desenhou dessa figura merece nossa consideração atenta, porquanto é verdadeira em cada linha.

É significativo que, no primeiro momento, Inconstante acompanhou Obstinado na missão maligna de tentar trazer Cristão de volta à Cidade da Destruição. Da mesma forma, alguns dos que amiúde mantêm as piores companhias podem, às vezes, mesmo sem a operação da graça de Deus sobre eles, ser induzidos a abandonar suas más companhias para tentarem a sorte, por algum tempo, com os seguidores de Cristo.

Os Inconstantes, que ainda compõem uma família assaz numerosa, são muito dependentes daqueles por quem estão cercados. Se acaso nasceram numa família piedosa, é provável que façam uma profissão de fé. É possível até mesmo que sejam altamente estimados e, talvez por anos, demonstrem um caráter bastante respeitável. Por outro lado, se acabam entre más companhias, então são mui facilmente atraídos por elas, sendo levados a beber, a xingar e a cair em todos os vícios dessas pessoas mais fortes pelas quais são influenciados. Mal parecem homens. São meras águas-vivas, arrastadas a cada impulso da maré. Falta-lhes o verdadeiro elemento da

virilidade, que é a firmeza. Isto, aliás, é o que Obstinado tinha em excesso. Se juntássemos um Obstinado com um Inconstante, tornando-os um, teríamos, falando do homem natural, algo mais próximo da verdadeira virilidade do que qualquer deles tem em separado. Obstinado possuía toda a firmeza, enquanto nada disto havia em Inconstante.

Creio que Inconstante era um tipo de criatura moldável, logo Obstinado fez tudo o que queria com ele, até que o pobre e fraco sujeito caiu nas mãos dum homem mais forte do que Obstinado: Cristão. Afinal, não existe homem que seja páreo para um cristão quando se trata de influência. Há uma força na verdade, confiada à nossa responsabilidade, que, quando aplicada em jogo limpo, não pode ser igualada por forma nenhuma de mentira. Se a mente de um homem é inconstante de fato, não há dúvida de que um cristão sincero, guiado pela graça divina no bom caminho, terá um controle maravilhoso sobre tal pessoa. Tão forte foi a influência de Cristão, que, mesmo diante dos ultrajes de Obstinado, Inconstante o repreendeu, afirmando: “Meu coração está inclinado a ir com meu vizinho”. Cristão não tinha falado muito, tampouco parecia ter exercido muita influência; mas algo já havia tocado Inconstante. Na própria presença e olhar de um cristão, há poder sobre o coração dum homem. Ademais, a influência vai crescendo, pelo que Inconstante foi ainda mais longe e declarou, corajoso: “Pretendo ir junto com este bom homem e tentar a sorte com ele”.

Perceba, no entanto, que Inconstante não levava carga às costas, diferentemente de Cristão. Esta é uma das provas de que ele não era um peregrino de verdade. O que leva os homens a Cristo é a noção de que necessitam dele. Embora o senso de pecado não seja um requisito para a salvação, é contudo o único motivo que leva os homens a confiarem em Jesus;

trata-se do ímpeto que a graça divina emprega quando atrai ou conduz os homens ao Salvador. Inconstante não parecia, a princípio, muito perturbado quando soube que a Cidade da Destruição estava condenada; porém, quando Cristão falou de modo tão belo a respeito do céu, o outro pensou que talvez pudesse haver alguma coisa aí: com efeito, ele sentiu que devia haver, considerando que um homem como Cristão estava disposto a deixar sua família e seus negócios para se lançar numa longa peregrinação; então julgou que provavelmente se sairia melhor se fosse com Cristão. Não obstante, em nenhum momento havia peso nas costas de Inconstante; ele não tinha ideia da própria necessidade de um Salvador; e esse, para começar, era um defeito muito grave em alguém que professava estar em peregrinação à Cidade Celestial. Você pode notar, também, que a única coisa que tentou Inconstante a ir foi a palavra de Cristão sobre a “herança incorruptível, imaculada, que não se desvanece”. Há certos pregadores que podem discorrer com tamanho encanto sobre o céu — as benditas associações daquela pátria feliz onde eles “se encontram para nunca mais se separarem” —, que metade de seus ouvintes são obrigados a dizer: “Nós também iremos”. Tais sacerdotes falam da muralha de jaspe, dos portões de pérola, da rua de ouro, do mar de vidro e do arco-íris de esmeralda ao redor do trono, de maneira tal que as pessoas de temperamento poético, e especialmente as de disposição inconstante, sentem suas emoções afloradas pelas descrições que dão só uma visão material daquilo que devia ser entendido no sentido espiritual. Elas pensam mesmo que o céu é, literalmente, o que o Livro de Apocalipse diz ser em figura. Nunca chegam ao âmago do sentido interior; é a casca do significado externo que as atrai. Sentem-se satisfeitas, encantadas, enfeitiçadas, fascinadas por isso, e então resolvem partir para a jornada.

Para dizer toda a verdade a respeito do Sr. Inconstante, devo confessar que ele começou muito bem. Já recordei que ele defendeu Cristão quando Obstinado o insultou; e, quando este voltou seus insultos para Inconstante e disse “Quê?! mais um tolo?”, o último não pareceu estremecer diante dele. Algumas dessas pessoas inconstantes até conseguem suportar muita perseguição e contentar-se em serem ridicularizadas e zombadas; chegam mesmo a sofrer perdas em vez de voltar atrás. Se o fazem de fato “por amor a Cristo”, muito bem; contudo, o mais das vezes, suportam-no apenas visando ao próprio engrandecimento, a fim de obter algo melhor como recompensa, de sorte que ainda são governadas pelo egoísmo. Abrem mão de um pouco do bem que há no mundo — e, afinal, não é muito que sacrificam — em prol do mundo melhor que ainda há de ser revelado. Não desistem de tudo o que possuem — “ou casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou esposa, ou filhos, ou terras” — por Cristo e pelo evangelho, logo não são verdadeiros discípulos de Cristo. Estão preparadas para fazer um pequeno sacrifício, e isto só para ganhar o céu ou escapar do inferno.

Observe a maneira como Cristão tratou Inconstante depois que Obstinado os deixou. Atrevo-me a dizer que ele já o conhecia e sabia muito bem como ele era um sujeito tranquilo, fácil de lidar, e com que facilidade poderia ser influenciado dum jeito ou de outro; ainda assim, ele não desprezou sua companhia, antes lhe pediu: “Venha, vizinho Inconstante; estou contente por você ter aceitado ir comigo”. Vocês e eu, caros amigos, estamos obrigados a convidar os homens a virem até Cristo, não importa quem ou o que sejam; e devemos tentar encorajá-los o máximo que pudermos, ainda que tenhamos em nosso coração um receio bem fundamentado de que alguns deles não resistirão até o fim. Não creio que

devamos contar aos jovens aparentemente desinteressados em questões espirituais que temos medo de que não perseverem, pois isso os desencorajaria. Nosso trabalho é dizer a cada um deles: “Venha, vizinho, venha comigo, e você terá o mesmo destino que eu”. É obra do Espírito encher a rede do evangelho; nosso dever é jogá-la e arrastá-la pelo fundo; e, quer peguemos peixes bons, quer ruins, esta é uma preocupação mais de nosso Mestre do que nossa. Cristão, embora ainda não estivesse em paz, mostrava um amor louvável pelos outros. É um belo traço que gosto de ver naqueles que sentem a obra secundária da graça na própria alma, desejando que os outros sintam o que eles mesmos sentem. Este proceder de Cristão deve ser uma lição para alguns de vocês, os quais há muito tempo tiveram alegria e paz ao crer, mas não dizem aos outros: “Venha, vizinho Inconstante”. Procurem ter em si mesmos algo do zelo e da compaixão desse pobre peregrino, que revela uma consciência atribulada mas um coração compassivo. Inconstante, pois, sem calcular o custo nem avaliar, por um momento, todas as dificuldades do caminho, partiu, de forma impensada e despreocupada, nessa jornada que sempre será longa demais para aqueles que a iniciam apenas pelas próprias forças. Enquanto cruzavam a campina, Cristão começou a falar com Inconstante sobre o que ele mesmo havia sentido — “os poderes e terrores do que não se vê” —; porém, assim que o fez, Inconstante mudou de assunto. Ele não queria saber nada dessas coisas; na verdade, ele havia considerado tudo num sentido carnal, de modo que, quanto aos poderes e terrores do mundo invisível, ele estava em completa ignorância; e, em princípio, nem sequer queria saber de tais coisas, pois voltou ao que o havia atraído de início e pediu a Cristão: “Diga-me mais agora: que coisas são essas e como podemos desfrutá-las no lugar aonde vamos”.

Ambos os homens, enquanto caminhavam e proseavam, caíram no erro de falar demais sobre coisas que nenhum deles entendia direito. É verdade que Cristão disse: “Já que você está desejoso de saber, lerei a respeito disso em meu Livro”. Havia aquele bom elemento na conversa dos dois, o que cordialmente elogiamos; não obstante, até mesmo isso pode não ser o procedimento mais sábio para jovens iniciantes.

É de fato sábio ler a Bíblia e falar do que ela contém; isto, porém, deve ser feito com muita oração, se é para um benefício espiritual real. Procuro em vão por qualquer palavra sobre Inconstante ter orado, mas li a respeito de Cristão, ainda antes de ele iniciar sua peregrinação:

Ele também caminhava sozinho pelos campos, aqui lendo, ali orando; e assim passou seu tempo por alguns dias. Ora, certa vez, enquanto ele caminhava pelos campos, vi que estava, como de costume, lendo seu livro, e parecia muito angustiado em sua mente; e, enquanto lia, exasperou-se como havia feito antes, clamando: “Que devo fazer para ser salvo?” (At 16.30-31).

Não foi assim com Inconstante. O que ele ouviu Cristão ler do Livro não o deixou pesaroso, mas encantado e alegre. Ele só pensava na Pátria Celestial, não na praga de seu próprio coração, tampouco na natureza condenável de seu pecado.

Tais coisas nunca o espantaram como fizeram com Cristão, de forma que ele não dizia “Venha, ajoelhemo-nos juntos e imploremos por misericórdia”, e sim “Bem, meu caro companheiro, fico feliz por ouvir essas coisas; venha, apressemos o passo”. Sim, a princípio, não há ninguém que seja tão entusiasmado quanto esses sujeitos vazios, ocos. “Apressemos o passo”, disse Inconstante. Sem dúvida, irmãos, o conselho é bom, mas não me agradam os lábios donde emanam. É uma exortação muito apropriada em seu devido lugar, porém não quando procede de

alguém que nunca sentiu o fardo do pecado, nem foi moído sob o martelo da lei de Deus, tampouco levado a sentir a própria nulidade e inutilidade. Vocês vazios podem muito bem viajar rápido; vocês que nunca sentiram o peso do pecado no coração podem muito bem correr leves. Inconstante ama incitar, agitar e fazer barulho. Ele comparece a cultos de avivamento e gosta de prolongá-los: quando está atacado, dispõe-se a ficar de pé a noite inteira, a virar sua casa de cabeça para baixo e a fazer todo tipo de coisas extraordinárias, tudo para ostentar quão cheio de zelo ele é. Em pouco tempo, porém, tudo isso se esgotará. É como o crepitar dos espinhos sob uma panela, os quais queimam com tanta força, que fazem o conteúdo transbordar e apagar o fogo.

“Venha”, disse Inconstante, “apressemos o passo”. Cristão respondeu: “Não posso ir tão depressa quanto gostaria, por causa deste fardo que levo às costas”. Então, assim que terminaram o diálogo, Bunyan nos conta que “eles se aproximaram de um pântano muito lamacento, no meio duma campina; e, estando desatentos, caíram ambos de súbito no brejo. O nome do pântano era Desespero”.

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