Cariri Revista - Edição 6

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cariri Edição 06

O Mundo para o Cariri. O Cariri para o Mundo

REVISTA

MARIA GOMIDE e a magia do grupo

Carroça de Mamulengos

MAURO FILHO: receitas de crescimento

e o espírito empreendedor caririense

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@caririrevista


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#caririeditorial

CAMILA ESMERALDO

CARO LEITOR, O tempo é um regente de nossa existência. Tem caprichos, surpresas, envelhece-nos. Contudo, também ensina, presenteia, amadurece, realiza sonhos. Levados pelo seu fio, somos conduzidos entre sobressaltos e serenidades pela grande aventura de viver. Há um ano, iniciávamos a caminhada da CARIRI. A ideia era revelar a imensa riqueza cultural dessa região fantástica, marcada pela magia e, mais recentemente, por conquistas relevantes de prosperidade. Contar sobre as pessoas, o imaginário, a lida do cotidiano, a chegada da sofisticação da tecnologia. Resgatar histórias e fazer história. Promover o encontro do Cariri consigo mesmo e, simultaneamente, mostrá-lo a outras paragens. É com grande alegria que chegamos à sexta edição. Leais aos nossos propósitos e com um grande grupo de amigos, anunciantes e leitores, que se incorporaram ao universo da revista. Até um ser superior, como o gato Bob da foto, se enroscou na leitura. A todos a nossa homenagem e a nossa gratidão. Nesta edição de aniversário promovemos um encontro belo e rico com Maria Gomide e seu teatro vivo da Carroça de Mamulengos. Visitamos os defensores do Soldadinho do Araripe, conhecendo melhor a dedicação dos pesquisadores na preservação desse habitante da nossa deslumbrante Chapada.

Bob, o leitor superior

O economista Mauro Filho, secretário da Fazenda do Estado, analisou a atual conjuntura internacional, expondo sua visão do futuro. Descobrimos as surpreendentes criações da jovem estilista Afra Colodette, caririense residente em Florença. Recebemos com grande honra a verve maravilhosa de Gilmar de Carvalho, contando-nos a respeito do intenso trabalho do artista Joaquim Mulato. Raquel Arraes visitou os esportistas do MMA e descobriu mais do que luta – meditação, determinação e superação. E assim, mais uma vez, a CARIRI convida para o deleite da leitura!

Editora-Geral: Tuty Osório

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#caririconexão Por Lara Costa

Chegamos à 6ª edição. Estamos com mais leitores, amigos e seguidores. A troca nas redes sociais continua deliciosa! Nesse espaço vocês conferem um pedacinho dessa interação, que inspira e impulsiona nossa equipe para novos desafios, on e offline.

E-mail Já de volta ao Rio, folheio com calma a Revista do Cariri. Me delicio com a diversidade da pauta e com a riqueza dos textos. Fotos lindas, tratamento gráfico de primeira. Mais uma, das muitas (ótimas) surpresas que tive em minha viagem ao Cariri. Primeira de muitas, espero. Beijo grande, Luciana. Pauta Positiva Comunicação

Tweets @Leurinbergue Historiador, radialista, consultor Mkt Político

Parabéns pela revista. Recebi ontem no aeroporto quando voltava pra Fortaleza. Qualidade de 1º mundo. A região merece.

@DeborahDianey Geógrafa e Guia de Turismo Regional

Deliciando-me com a minha 5ª edição!!! Parabéns pelo trabalho, ler sobre o Cariri Cearense é prazeroso!!

Facebook A cada nova edição uma boa nova surpresa!!! Um show de reportagem em #CARIRIliteratura (5ª edição): “Minúcias de um Pesquisador Apaixonado”. Mais que um convite, a obra do nosso estudioso Irineu Pinheiro é uma verdadeira viagem ao passado do Cariri Cearense. Ainda não tive o prazer de folhear a obra, mas sem sombra de dúvidas, a reportagem citada acima me instigou! #Próxima meta: Devorar “O Cariri seu Descobrimento, Povoamento, Costumes”… ;) Parabéns Cariri Revista pelo excelente trabalho da Cláudia Albuquerque. Verinha Torres

Saga do PEQUI, uma das melhores reportagens da 5ª Edição da Cariri Revista, pois retrata a realidade do povo caririense. Moisés Silva

Gente, todos da revista estão de parabéns, eu amei a capa! Gostei bastante das fotos selecionadas, os textos. Principalmente o conto de Chico Rocha, que é mais conhecido por mim como “vovô Rocha”, tudo perfeito. Um abraço! Maria Clara R

Envie sua mensagem para Cariri Revista pelo e-mail: contato@caririrevista.com.br, twitter: www.twitter.com/caririrevista ou Facebook: www.facebook.com/CaririRevista.

@dukkedonkey Henrique Lonrezo

Linda! Super inspirado com a história de Telma Saraiva.

@marcio_feitosa Estudante de Jornalismo

Sucesso editorial… @caririrevista surpreende mais uma vez com matérias, entrevistas e fotografias excelentes.

@achristiann

Christiann Oliveira

Conheci a @caririrevista nessa última Quarta (04/03) na Faculdade. Muito boa a revista, gostei muito dela. Indico a todos.

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#edição o6 CAPA DESTA EDIÇÃO

Maria Gomide FOTO: Rafael Vilarouca

CONVERSA EXPEDIENTE DIRETORES Isabela Bezerra Renato Fernandes

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EDITORA-GERAL Tuty Osório | tuty@caririrevista.com.br EDIÇÃO DE TEXTOS E REDAÇÃO Claudia Albuquerque PROJETO GRÁFICO Fernando Brito DESIGN GRÁFICO Álvaro Beleza Lívia Beleza REPORTAGEM E REDAÇÃO Raquel Arraes Sarah Coelho Roger Pires Lara Costa FOTOGRAFIA Rafael Vilarouca REDES SOCIAIS Lara Costa DIREÇÃO DE ARTE EM PUBLICIDADE Rubênio Lima PUBLICIDADE (88) 3085.1323 | (88) 8855.3013 comercial@caririrevista.com.br REDAÇÃO redação@caririrevista.com.br www.twitter.com/caririrevista www.facebook.com/caririrevista COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Gilmar de Carvalho Sérgio Pires

ESPORTE

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HOBBY PICOTADO

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CAPA

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NATUREZA

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ESTILO

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GASTRONOMIA ARTIGO

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#cariripicotado

TERREIRO EM MOVIMENTO Após uma temporada de dois meses de sucesso no Rio de Janeiro, a exposição Terreiro em Movimento seguiu para Ânkara, na Turquia, onde participa do 26º Festival da Primavera promovido pela Universidade Técnica do Oriente Médio, em maio. Além das 32 fotos que retratam a Folia de Reis do Cariri, a exposição, que faz parte do Projeto Terreiro de Fronteiras, conta com as presenças da Orquestra Armorial do Cariri, Banda Cabaçal Santo Antônio e Di Freitas, com o show “O Alumioso”. São ao todo 22 pessoas entre artistas, mestres da cultura popular, curadores, gestores e produtores com a missão de levar a cultura caririense à Turquia. “O público viverá uma experiência sensorial num espaço atemporal e interativo, podendo pisar em folhas, passar em meio a itas de cetim, curtir os sons e se sentir no meio de um grupo de Folia de Reis”, resume Emrah Kartal, sociólogo, jornalista, fotógrafo e artista plástico turco, que esteve no Brasil fazendo uma pesquisa sobre povos e se encantou com as festas populares do Cariri. No segundo semestre a exposição chega por aqui.

Folguedos caririenses na Turquia

SABORES DE JARDIM RAFAEL VILAROUCA

Lúcia Menezes: herdeira do pioneiro Helvécio

Jaca, abacate, caju, cajá, manga… Mais de 30 diferentes tipos de sorvetes e picolés foram fabricados pela Sorveteria Menezes durante 60 anos. A produção ajudou a consolidar a fama de Jardim como um recanto de bons sabores gelados. A sorveteria pioneira já não existe — fechou as portas há 12 CARIRI REVISTA

dois anos, com a morte de seu fundador, Helvécio Menezes — mas a fama dos picolés e sorvetes de Jardim permanece. “Acho que a água da cidade é boa, e isso influi muito”, avalia Lúcia Menezes, filha de Helvécio, calculando que hoje existam cinco fabriquetas de gelados em Jardim. Dona de uma pequena loja de variedades, Lúcia diz que não quer reabrir o negócio, mas mantém no canto do estabelecimento um freezer abarrotado de picolés coloridos e saborosos, feitos com as velhas receitas do pai (apenas R$ 0,50, cada). Quem produz é sua irmã, Margarida. Outro dos irmãos, Francisco, também tem a própria produção. Está no sangue: o patriarca começou a fazer sorvetes quando cansou da roça. Gelava os sucos de frutas naturais em cubinhos de gelo, na cozinha de casa, até comprar uma máquina simples que fez o negócio prosperar. Com sua morte, a Sorveteria Menezes encerrou um ciclo de 60 anos de bons serviços prestados à infância caririense. Mas o sorvete de farinha láctea — carro-chefe de Helvécio — pode ser encontrado em várias versões pela cidade de Jardim, inclusive na lojinha de Lúcia, que ica na Rua Francisco Ancilon, nº 51.


RAFAEL VILAROUCA

ACONCHEGO EM AURORA O nome da pousada é Flórida, mas pode perguntar pela “pousada do seu Costa” que todo mundo conhece. Em Aurora, cidade caririense situada à margem esquerda do Rio Salgado, Pedro Rodrigues Costa é um personagem querido. Embora tenha nascido em Camocim e vivido em Fortaleza, seu Costa já pode ser considerado cidadão aurorense, pois está desde 1969 na cidade, onde sua pousada é referência local. O negócio começou por incentivo de um amigo, quando Costa cansou do trabalho na Polícia. “Iniciei isso aqui com muita diiculdade, mas vi que a cidade estava crescendo, então procurei crescer com ela”. Hoje são 30 quartos, alguns com ar-condicionado (R$ 35,00 a diária), outros com ventilador (R$ 25,00). Limpeza, aconchego e simpatia conferem um toque de luxo ao ambiente simples. As plantas, espalhadas pelo pátio, trazem frescor à tarde sertaneja. Além de boa conversa, a pousada serve uma excelente comida caseira, “Quem quiser, pode almoçar, jantar e merendar”, diz o proprietário, sempre acompanhado por Leão, um

Seu Costa e a arte de receber bem

vira-lata preto de carisma planetário. Detalhe importante: os quartos da frente dão para a Rua Coronel Xavier, com vista para a Praça da Matriz, mas o melhor quarto é o de trás, que escancara a janela para o Rio Salgado. Só tem um porém: “Isso é uma pensão familiar, antes da meia-noite eu tranco as portas”, encerra seu Costa.

CONTOS PREMIADOS Já vai para a 4ª edição o concurso de Contos do SESC Crato, o mais importante evento literário da região do Cariri. O concurso, que é bianual, seleciona os 10 melhores contos de escritores cearenses em livro distribuído em todas as unidades SESC do Ceará, Brasília e Rio de Janeiro, além de escolas públicas do Cariri. Segundo a idealizadora Tina Borges, funcionária do SESC, o concurso recebe contos de escritores de todo o Ceará, sendo que Crato, Juazeiro, Iguatu e Fortaleza são as cidades com maiores participações. “No concurso passado,

dos 10 primeiros lugares, cinco eram caririenses”, informa Tina. A banca examinadora é composta de professores de Letras, mestres e doutores, além de um escritor cearense. Em 2008, o escritor José Mapurunga, de Viçosa, ocupou esse lugar. Nesse ano, a fortalezense Ana Miranda foi a escolhida para compor a banca. As inscrições seguem até o dia 15 de maio e a seleção ocorrerá a partir de 16 de setembro. O regulamento está disponível no endereço eletrônico www.sesc-ce.com.br e impresso nas unidades do SESC Ceará.

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A ARTE DO COURO “Couro tecido”, dirigido por Adriana Botelho, é um curta-documentário ilmado entre as cidades de Nova Olinda, Exu e Serrita. Mostra como os artigos de couro se adaptaram às mudanças através de dois mestres artíices dessa arte: Espedito Seleiro e Luís dos Couros. Resultado do VII Edital de Cinema e Vídeo da Secult do Governo do Estado do Ceará, o curta contou com o apoio da ONG de Ecocidadania Juriti (Juazeiro do Norte), ONG Aza Branca (Exu), Fundação Casa Grande (Nova Olinda), Universidade Federal do

Ceará - Campus Cariri e Prefeitura de Nova Olinda. Na equipe, os talentos reunidos de Yures Vianna, Rafael Vilarouca, Ni de Sousa, Samuel Silva, Ricardo Baptista, Antonio Luiz, Joana Collier, Bia Veneu, André Magalhães, João Ferraz e Thalles Chaves. “Couro Tecido” foi exibido pela primeira vez em abril deste ano, em Nova Olinda, e agora poderá ser visto nos espaços culturais de audiovisual e festivais de cinema, como o FESTFilmes, que aconteceu em Fortaleza, Maranguape e Redenção, entre 13 e 18 de maio. FOTOS: RAFAEL VILAROUCA

RAFAEL VILAROUCA

AS ÚLTIMAS DORES DO PADRE CÍCERO

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O diretor juazeirense Josmacelmo Geraldo está se preparando para ilmar “A Última Dor do Padre Cícero”, que mostrará os derradeiros dias do padim, com enfoque na traição do prefeito Alfeu Aboim e no sofrimento do sacerdote por conta de um antraz cutâneo, que lhe causava dores na nuca e inchaço na pele. No filme, Josmacelmo revela que o interventor José Geraldo da Cruz decretou, dois anos antes da morte do padre, a retirada de sua foto oficial do salão nobre da Prefeitura de Juazeiro — o que muito entristeceu o velho Cícero, cego e atormentado pelas dores com a obstrução do intestino.

A equipe deve começar a rodar em setembro desse ano, e o ilme tem estreia prevista para março de 2013. Vários atores interpretarão o Padre Cícero, a Beata Mocinha, os médicos Licínio Santos, Isaac Salazar, Manoel Belém, Mozart Cardoso, Elysio Gomes e Pio Sampaio. Além destes, o farmacêutico José Geraldo da Cruz, o comerciante Alfeu Aboim (eleito prefeito com o apoio do Padre Cícero e depois rompido com o mesmo), a professora Amália Xavier de Oliveira e outros personagens importantes desta história que não morre. Cinco igurantes farão as beatas e outros 55 serão romeiros.


FOTOS: NÍVIA UCHÔA

ÁGUA EM FOCO “Água pra que te quero! — Caderno de viagem”, livro fotográico da cratense Nívia Uchôa, é tanto um registro visual das bacias hidrográicas do Ceará como um apanhado dos relatos de quem vive em seu entorno. Tendo como temática a relação do ser humano com a água, o livro mostra o cotidiano das comunidades das bacias de Banabuiú, Alto Jaguaribe e Salgado, abordando aspectos relativos á preservação, distribuição, consumo, escassez, poluição e abundância da água. “Procurei fotografar a maneira como mulheres, ho-

mens e crianças utilizam a água, para que serve, onde a água existe, quem cuida dela e como a população lida com as decisões políticas sobre o curso da água”, explica Nívia. O livro é resultado do projeto de lei de incentivo à cultura Mecenas do Ceará. Em formato multimídia, a edição vem acompanhada de um CD com fotos e um vídeo documentário apresentando depoimentos dos moradores. O lançamento do livro será na Livraria Nobel de Juazeiro, SESC Juazeiro e em Brejo Santo, nos dias 01 e 06 de junho.

GEOPARK ARARIPE GANHA NOVA SEDE A nova sede administrativa do Geopark Araripe foi inaugurada em solenidade oicial, com a presença de integrantes do Ministério da Integração Nacional (MIN), Governo do Estado, Secretaria das Cidades e Universidade Regional do Cariri (URCA), em Crato. Foram investidos R$ 778 mil em equipamentos e obras. A nova sede conta com uma sala multiuso com capacidade para cem pessoas, diretoria e área de acesso para portadores de deficiência, além de salas de exposição, de reuniões e sala técnica. Também foi adquirido um veículo por meio do convênio irmado. Seis cidades do Cariri fazem parte do Geo-

park, onde estão identiicados 10 geossítios — alguns deles com acervos valiosos da Era Cretácea. O foco de atuação envolve o tripé geoturismo, geoeducação e geoconservação das áreas. O Geopark Araripe inaugura a sua sede com a conquista do Selo Verde, o que representa avanços significativos para o projeto, administrado pela Universidade Regional do Cariri (URCA). É um reconhecimento da Rede Global de Geoparks e da Unesco a um dos maiores tesouros da humanidade. A sede administrativa está localizada na Rua Carolino Sucupira, s/n, no campus do Pimenta, Crato - CE.

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#caririnatureza

A BATALHA DO SOLDADINHO Um colorido exército de 10 mil espécies de aves agitam as asas pelo mundo, mas cerca de 12% delas estão ameaçadas de extinção. Nessa triste estatística, o Brasil ranqueia o primeiríssimo lugar, com 114 espécies correndo o risco de desaparecimento.

S

ó no Ceará são 14 espécies ameaçadas, segundo a Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis). Uma, em especial, preocupa os pesquisadores. Por sua fragilidade, sua população reduzida (somente 177 casais) e pelo fato de só ocorrer em uma pequena faixa da encosta da Chapada do Araripe, o soldadinho-do-araripe é alvo de estudos e cuidados. A ave símbolo da Chapada míngua e sufoca no esplendor das terras cariris. Ela foi descoberta em 1996 pelo então estudante de biologia Weber Girão, numa expedição em companhia do professor Galileu Coelho, da Universidade Federal de Pernambuco. Mal foi encontrada, já entrou na lista de aves em extinção. O habitat da espécie é restrito. Somente Crato, Missão Velha e Barbalha registram a presença alegre do soldadinho. E foi em Barbalha, no distrito de Arajara, que fomos encontrar Sandoval Ribeiro, o morador que acompanhou de perto o “nascimento científico” da ave. Na casa avarandada, o quadro pendurado na porta de entrada revela a paixão do dono pelo passarinho que todos tentam proteger. Seu Sandoval abre a casa e o largo sorriso para quem, à sua semelhança, anda de apaixonamento pelo soldadinho-do-araripe. Foi ele quem, anos atrás, em 1996, recebeu os ornitólogos Weber Girão e Galileu Coelho, para que os pesquisadores pudessem, pela primeira vez, observar um macho da espécie. “A gente via esse passarinho por aqui, mas não dava muita importância”, lembra seu

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Sandoval, que costuma abrigar estudantes e professores em sua casa, sem nada cobrar. Sertanejo típico — afável e acolhedor — ele é um militante convicto da causa do soldadinho. Quando o ornitólogo Weber Girão chegou em Arajara, já encontrou seu Sandoval experiente no trabalho de apontar ótimos pontos de observação de aves. “Quando por fim avistamos e ouvimos o canto, percebemos que tínhamos nos deparado com uma espécie nova, que tínhamos encontrado uma preciosidade”, relembra Weber. O passo seguinte foi fazer a descrição da ave, ou seja, dar um nome cientifico, mapear seu habitat, suas características, alimentação e acasalamento. Em 1998, a Ararajuba — como os moradores locais chamavam o pequeno pássaro de cabeça vermelha — ganhou um nome novo e pomposo. O registro de batismo está na Revista Brasileira de Ornitologia: Antilophia bokermanni, nome científico que homenageia o estudioso brasileiro Werner Bokermann. Apenas dois anos depois do batismo cientifico, em 2000, o soldadinho-do-araripe já constava da “Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas”, feita pela União Internacional para Conservação da Natureza, a IUCN. Obedecendo a critérios precisos, a Lista Vermelha possui nove categorias, que vão desde “sem avaliação” até “extinto”. O soldadinho-do-araripe aparece na sétima categoria, como uma ave “criticamente em perigo”, a um passo de se tornar completamente extinta. Em 2003, foi a vez do Ministério do Meio Ambiente listar o soldadinho como ave criticamente em perigo


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Sandoval Ribeiro e a paixão pela ave ameaçada

“É por isso que ele é um pássaro único. Por estar encerrado em um habitat restrito, as características adquiridas se fixam de geração em geração muito rapidamente, gerando um animal extremamente sofisticado”, explica Weber. Para atrair a fêmea, o macho canta e expulsa os concorrentes de seu território. Ela gera apenas dois filhotes por ano, tendo o macho como parceiro para a manutenção das crias. Após um período de até três anos, o filhote adquire UM ILUSTRE SOBREVIVENTE plumagem de adulto. Há 15 mil anos, uma imensa floresta tropical cobria uma A necessidade das nascentes d’água para a sua grande faixa de terra que ia do Norte ao Sudeste do sobrevivência é um capitulo a parte na luta pela conBrasil, quando aconteceu a maior mudança climática servação do soldadinho. Não é coincidência que a ave e ambiental registrada na região. Da imensa floresta, só exista nos municípios de Crato, Barbalha e Missão restaram ilhas de vegetação: a Floresta Amazônica, a Velha. Estas cidades abrigam a maioria das 284 fontes Mata Atlântica e partes de mata que ocupa a Floresta de água catalogadas no Vale do Cariri. Para resguardar Nacional do Araripe. Foi nessa porção de biodiversida- os filhotes de predadores, a fêmea do soldadinho faz de, que cobre a Chapada do Araripe, que o soldadinho- seu ninho sempre em um curso d’água tecido preca-do-araripe se reproduziu e sobreviveu. riamente a menos de dois metros do solo. através da “Lista Nacional das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção”. Segundo o pesquisador Weber Girão, existe no Ceará uma segunda espécie de ave criticamente em perigo de extinção, o periquito cara-suja. “Mas o periquito ainda pode existir em outros estados brasileiros, já o soldadinho-do-araripe, não. Ele só é encontrado nessa faixa de Chapada que vai de Crato a Missão Velha”.

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“As pessoas acham que o soldadinho-do-araripe só é encontrado na Gruta do Farias, em Barbalha, mas isso é um equívoco. Ele existe em 70 % das fontes da região”, detalha Weber Girão. A Gruta do Farias é uma caverna com 2 metros de altura e 3 metros de largura. Em seu interior fica a fonte do Farias, uma das maiores em vazão da região do Cariri. Foi nesta fonte que Weber e o professor Galileu avistaram o primeiro soldadinho-do-araripe. E a partir da descoberta, erroneamente se propagou a informação de que a ave só ocorria no local. “Quando se diz isso, lançamos a ideia de que as outras nascentes não precisam ser conservadas, o que acaba criando um problema imenso”, reclama Weber. Um exemplo: a fonte que fica próxima ao Clube Recreativo Grangeiro, no Crato, foi totalmente encanada para levar água ao entorno, desrespeitando a lei federal que exige que se mantenha uma vazão de pelo menos 20% da água no leito da fonte. Ali, o soldadinho resiste contando unicamente com a sorte. A água que ele utiliza para fazer seu ninho é a que escorre das fissuras do cano enferrujado.

Weber Girão: descoberta valiosa nas entranhas da Chapada

BELEZA EM PEQUENO FORMATO Criado pelo ornitólogo Weber Girão, o nome soldadinho-do-araripe faz referência a um outro soldadinho, o Antilophia galeata, que existe no centro-oeste, ao mesmo tempo em que aponta a exclusividade da espécie Antilophia bokermanni no Cariri. Mas antes de ser soldadinho-do-araripe, o pássaro já possuía alguns nomes populares, como língua-de-tamanduá usado em parte do Crato, inspirado na onomatopeia de quem ouve seu canto. Em Barbalha, ele é conhecido como lavadeira-da-mata, indicando a plumagem semelhante à de outra ave, a lavadeira, que vive fora da mata e gosta d’água. Uirapuru-matreiro, registrado em Missão Velha, tem a primeira parte do nome alusiva à

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plumagem das aves de sua família (dos piprídeos) na Amazônia. O soldadinho-do-araripe é a única ave endêmica do Ceará, ou seja, só existe aqui. Encontra-se entre as cinco espécies da fauna local mais ameaçadas de desaparecimento. Mede cerca de 15 cm de comprimento e pesa 20 gramas. A fêmea apresenta coloração verde-oliva, enquanto o macho é branco, com a cauda e as pontas das asas negras — porém, o que mais o caracteriza é uma faixa vermelha que se estende do dorso à cabeça e que acaba num atrevido topete. O soldadinho alimenta-se de frutos e insetos, e constrói o ninho sempre sobre um curso d´água. Não anda em bandos

e protege impetuosamente o seu território dos invasores. “Não tem como ele sair da condição de ameaça em que se encontra sem a restauração lorestal de 1km2 de seu território reprodutivo, que é a mata ciliar”, pontua Weber Girão. “Ainda assim, sairá da condição de uma das 190 aves mais ameaçadas de extinção global (‘criticamente em perigo’) para entrar no ‘clube’ das 570 mais ameaçadas (‘em perigo’). Com muito mais empenho e havendo um relorestamento, ele pode ir para uma categoria onde existem 1.250 espécies, passando a ser ‘vulnerável’, até inalmente deixar de ser uma espécie ameaçada”.


SINAIS DE CONSERVAÇÃO A preservação das águas e das matas para a permanência do soldadinho na região é fundamental, mas o trabalho não acaba aí. “Não adianta preservar uma fonte e desmatar em volta. Temos hoje um total de 177 casais espremidos em uma pequena faixa de território. Com o trabalho de conservação, a tendência é que esse número aumente. E para onde vão esses novos soldadinhos-do-araripe? Temos que dar a eles espaço para sobreviver”, enfatiza Weber Girão O professor explica que o macho mais forte sempre fica com o melhor território, que dispõe de água e comida, expulsando os mais fracos, que vão se instalando em porções cada vez mais à margem, e consequentemente, com menos recursos. Com a marcha de desmatamento em curso em toda Chapada do Araripe, esses indivíduos simplesmente ficam sem ter para onde ir. O recurso da reprodução em cativeiro também está descartado, pois o soldadinho só vive na natureza.“O que todos têm que entender é que temos plena capacidade de salvar o soldadinho-do-araripe, mas é preciso proteger o ecossistema se quisermos avistá-lo ainda por aqui”, ressalta Weber.

Proteger o soldadinho é muito mais do que resgatar uma ave de sua extinção completa. É também salvar memórias, histórias de vida, identidades culturais. “Essa região era famosa pelo doce de buriti. Todo mundo que vinha ao Cariri saía carregado de doce, mas hoje, se você for procurar, praticamente não se acha. Porque o buriti desapareceu de nossa mata. O nome Araripe é proveniente de arara. Em toda essa Chapada havia revoadas de araras. E hoje, onde elas estão? Com a aniquilação das espécies também se aniquila a memória, a cultura”, reflete Weber Girão. Nessa luta pela vida tal qual a conhecemos, é preciso o engajamento das novas gerações. Com 12 anos, Elói Ribeiro, morador de Arajara e filho de Sandoval, já compreendeu o valor e importância do soldadinho para o Cariri. Meio envergonhado, exibe o quadro que pintou do pássaro em prova de seu carinho. Quando indagado sobre a tela, ele não vacila. “Pintei porque o soldadinho é bonito, tem cores vivas e está em extinção. Ele também é muito importante para o nosso ecossistema e seria muito bom se as pessoas o tratassem melhor”.

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GRテ:ICA SANTA MARTA

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#caririestilo

Por Lara Costa

CRIANDO MODA: CASA GRANDE INSPIRA AFRA COLODETTE

Conheci a Fundação Casa Grande há algumas edições, através dessas páginas em que agora escrevo. Foi na Cariri Revista nº 3. Meses depois, o projeto mais uma vez me é apresentado. Sob a leitura de Afra Colodette, a grande casa azul de Nova Olinda permanece encantadora.

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LUCAS JAMPIETRO

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ascida no Crato, e cidadã do mundo, Afra carrega em seu traço o amor pelo Cariri. Aos 23 anos, vividos no Ceará, em São Paulo e na Itália, a designer de moda coleciona desenhos e histórias de suas andanças. Em 2009, prestes a terminar a Faculdade de Moda em São Paulo, Afra convenceu a amiga e colega de curso, Drielly da Silva, a embarcar em uma viagem ao Cariri, onde a dupla faria uma pesquisa para desenvolver o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), cujo tema foi decidido logo que Drielly e a Fundação foram devidamente apresentadas. Para Afra, a coleção era mais do que um desafio profissional. Falar de suas raízes, e mais, falar de sentimentos, através da moda, sempre foi um sonho. E a colega embarcou junto. Foram dez dias em Nova Olinda, na casa da “tia Irenice”, colaboradora do projeto. “Minha amiga ficou absolutamente encantada” — derrete-se Afra, enquanto, com brilho nos olhos, também me encanta. Ela conta do envolvimento e das dificuldades, estas, no caso, restritas apenas à parte teórica, tirada de reportagens sobre a organização e arquivos internos. O resultado foi uma micro coleção, com oito peças inspiradas no universo da Casa Grande. Entenda-se universo por algo além do espaço físico. O objetivo era retratar os sentimentos e a energia do local, das pessoas, de tudo em volta.

Afra Colodette: moda com as cores locais 26 CARIRI REVISTA

LUCAS JAMPIETRO

ARQUIVO PESSOAL


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FOTOS: LUCAS JAMPIETRO

A coleção com peças cheias de estilo nasceu de uma viagem a Nova Olinda

Com o trabalho em mãos, é possível observar claramente esse conceito, impregnado de sentidos. Baús, degraus, brincadeiras infantis, cores, páginas que se viram e muita liberdade, reforçada pela ambientação das fotos — um balão, pronto para se jogar no azul do céu. Nos pés? Sapatos do mestre Espedito Seleiro. Tudo conspirou para dar certo. A modelo descoberta nos corredores da faculdade, as pechinchas barganhadas, entre outras surpresas no caminho. Além da nota máxima, a apresentação arrancou elogios e lágrimas, diante de uma defesa apaixonada. O vestido com modelagem de “escada” foi exposto no VOGUE Fashion Night, evento referência no cenário fashion. Os degraus seguintes levaram Afra para a Itália, mais especificamente a Florença, onde a designer fez uma pós-graduação e mora até hoje. A distância não

a separa do Cariri, que permanece em sua essência e força criativa. Já em Florença, ela desenvolveu uma coleção inspirada no colorido das casas nordestinas, relacionando as cores com o estado de espírito das pessoas. Entre outros frutos, ganhou espaço na Vogue Itália de setembro de 2011, que seleciona, entre estudantes de moda do mundo inteiro, 180 designers emergentes. Agora, esse espaço também é dela. Afra diz enxergar na matéria da Cariri Revista a oportunidade de expor um trabalho, que, embora não seja o mais recente, merece ser divulgado, principalmente por conta do “pessoal da Fundação. Eles vão adorar!”. De passagem por Fortaleza, em encontro ao acaso, minha pauta surge, passando a galope. Os minutos de conversa com a cratense me revelam seu imenso talento, em breve do mundo, mas sempre do Cariri. CARIRI REVISTA 29


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#caririconversa

HORA DE CRESCER! O economista Mauro Benevides Filho, secretário de Fazenda do Estado do Ceará, é um especialista que discorre com facilidade e clareza a respeito dos temas que domina. Recebeu a CARIRI para uma conversa em seu gabinete, no prédio histórico inaugurado em 1928, no Centro de Fortaleza. Sem pressa, atento às perguntas e à informação relevante que poderia transmitir, analisou a conjuntura internacional, as potencialidades do Ceará e o lugar que o Brasil deverá ocupar como consequência positiva da crise que a Europa vive. Otimista, Mauro Filho acredita que esta é a hora do Ceará e do Brasil, e destaca um papel relevante para a região do Cariri nesse processo virtuoso. Defende que somente com uma economia forte e a formulação de políticas públicas que priorizem a educação, será possível tirar da miséria os milhões de brasileiros que ainda sobrevivem com uma renda inferior a um oitavo do salário mínimo.

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om experiência concreta de mais de 20 anos, Mauro Filho define que para uma boa gestão das finanças públicas é fundamental atuar em duas frentes simultaneamente. “Uma é ser eficiente no aumento da receita, e esse aumento da receita não significa aumento de imposto. Significa, sim, ter servidor público mais qualificado, assim como um padrão tecnológico capaz de fazer cruzamentos de informações que proporcionem essa eficiência”. Para ilustrar a sua tese na prática, Mauro Filho expõe a própria vivência com as finanças do Estado do Ceará. “As empresas são obrigadas mensalmente a me informar quanto vendem. Mas 70% da venda no Brasil e 80% no mundo é feita no cartão de crédito. Eu não inventei a roda, eu apenas fiz um batimento — coloquei do lado esquerdo quanto a empresa dizia que

ROGER PIRES

Por Tuty Osório

Mauro Filho: “Aumento de receita não significa aumento de imposto”

vendia e, no outro lado, quanto os cartões de crédito me diziam que essa mesma empresa vendia. Quando fiz o batimento, cheguei a uma diferença de R$ 700 milhões, um dinheiro que não estava sendo tributado”. E no trato com os números, o secretário argumenta que criatividade é fundamental. Criatividade na identificação de ações que possam elevar a receita, sem que ocorra aumento de tributos. Com os seus alunos, na Universidade onde leciona, empreende um debate onde demonstra ser possível diminuir impostos, aumentar a base de contribuintes e ao mesmo tempo elevar a arrecadação. “Uma coisa que nenhum secretário e ministro da Fazenda gosta de fazer é diminuir imposto. As pessoas só querem aumentar. Por isso a carga tributária brasileira saiu de 26% ou 28% do PIB para 36%”. Mauro Filho enfaCARIRI REVISTA 31


“O OBJETIVO MAIOR DO SETOR PÚBLICO É SER CAPAZ DE ATENDER ÀS DEMANDAS DA POPULAÇÃO. É ESSE O SEU FOCO.”

tiza que a carga tributária no Brasil sempre aumentou, e que somente com a crise internacional de 2008 o Governo brasileiro tomou consciência de que a economia precisa ser competitiva, enfrentando a redução. Simultaneamente, é necessário o controle da despesa: “Porque o objetivo maior do setor público é ser capaz de atender às demandas da população. É esse o seu foco. Então, eu aumento a receita através da ampliação da minha eficiência e, ao mesmo tempo, eu consigo controlar as despesas, com o mesmo padrão, com tecnologia, com criatividade, com seriedade no trato com a coisa pública”. POTENCIALIDADES DO CEARÁ Ao tratar das potencialidades do Ceará, Mauro analisa que o sistema capitalista ancora o seu desenvolvimento em duas indústrias fundamentais. A indústria de base — que se constitui na metalurgia e processa a maior parte dos bens de consumo duráveis em todo o mundo — e uma indústria que passe pela petroquímica. “O grande eixo do Ceará hoje está em viabilizar um sonho de 14 anos: a construção da siderúrgica, que, aliás, já começou. É essa indústria de base que criará as condições para o Ceará de acolher uma indústria automobilística. Temos que viabilizar também o polo petroquímico — o que acontecerá com a construção da refinaria, um investimento de 18 bilhões de dólares, que vai gerar 90 mil empregos. Depois disso resolvemos o segundo eixo, criando as condições de sustentabilidade e de crescimento, com uma velocidade estupenda. O Ceará tem vocação para fazer isso, e já está fazendo”. 32 CARIRI REVISTA

Na visão de Mauro Filho, o Ceará é “um polo industrial saudável, um polo que tem, por exemplo, a Grendene, maior indústria de calçados do Brasil. Tem todas as cervejarias, e agora está recebendo a Heineken, uma empresa internacional. Tudo em função dessa característica de cumprimento de contratos, de honrarmos os incentivos”. Se antes a indústria era confundida com o Centro-Sul brasileiro, de uns anos para cá ocorreu um processo de grande desconcentração, pontua o secretário. “O Ceará absorveu isso, criando inclusive níveis de emprego nunca experimentados. Além da vocação inequívoca para o turismo — e não é só o turismo para vir para a praia — o Estado está criando um dos maiores centros de eventos da América Latina, um instrumento para viabilizar eventos fora da alta estação, eventos de negócios.” A exportação de fruticultura é outro segmento citado. A atividade gerou, em 2011, cerca de 120 milhões de dólares, e o Ceará exportou um milhão, ainda restrito à região Norte. A leitura de potencial feita pelo secretário envolve o Estado inteiro. Ele lembra que sempre fomos grandes exportadores de castanha de caju, que hoje, junto com a soja, é um produto commodity — inserido nas demandas de uma conjuntura internacional, como o petróleo e o minério de ferro. “O Ceará passa a gerar condições de infraestrutura para o desenvolvimento de qualquer atividade econômica que porventura queira aqui se instalar”, sublinha, chamando a atenção para a importância da capacitação de mão de obra. A CRISE NA EUROPA E AS OPORTUNIDADES PARA O BRASIL Ao se debruçar sobre o desespero vivido atualmente pela União Europeia, Mauro Filho estabelece a diferença entre as duas crises financeiras recentes. “A crise de 2008 é diferente da crise de 2011. A crise de 2008 veio de onde? O mundo estava líquido, e o mundo inteiro depositou nos bancos americanos, que resolveram emprestar ao setor imobiliário. Venda de apartamentos, flats, casas, condomínios, shopping centers… Só que, como havia muito dinheiro, eles emprestaram deixando a prestação superior à capacidade de renda de cada um. Olha, se isso fosse no Brasil, iam dizer que nós éramos uma república das bananas, que os bancos não sabiam nem emprestar. Aí você se pergunta, mas como é que pode, os Estados Unidos?! Depois dos três anos de carência, as pessoas não tinham condição de pagar. Então, a crise de 2008 é uma crise do setor privado. Os cidadãos não puderam pagar os bancos, e os bancos foram para a insolvência.”


Em 2011 a crise é do setor público, “de dívida soberana, como a gente chama no economês”, distingue Mauro. Ele explica que o conflito atual concretiza-se na incapacidade do erário federal em honrar os seus compromissos com o sistema financeiro. “Se examinarmos os últimos 30 anos sob o prisma da evolução da dívida soberana — e nunca ninguém chamou a atenção, as agências de riscos nunca disseram nada —, identificamos que todos os países que estão em crise, salvo a Espanha, têm dívida soberana maior do que o seu PIB. A Grécia, 170%; a Itália, 140%; os Estados Unidos, 110%; a Inglaterra e a França, 108%”. Contrariando as correntes pessimistas, Mauro Filho tem uma visão positiva do posicionamento do Brasil na crise. Relembrando 2008, aponta que “quando os bancos americanos ficaram ilíquidos, eles criaram um título chamado subprime para lastrear as operações do mercado imobiliário, e foram vender na Europa. Depois, numa segunda leva, os bancos da Ásia compraram — Japão, Coréia, China, todo o mundo comprou. Quando o pessoal não pagou essa operação, foi crise financeira no mundo inteiro. E o Brasil comprou algum subprime?

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Nenhum. Isso foi o primeiro indício de que o Brasil não seria afetado da mesma maneira, como foram afetados os demais países do mundo”. E nesta nova crise, quais as vantagens do Brasil que nos salvaguardam das ameaças? “O Brasil vinha crescendo a sua dívida fortemente. Hoje ela está em 70% do PIB; só que a dos outros países cresceu tão mais rápido que nos tornamos referência de dívida baixa, passando uma segurança no nosso endividamento. A tese que eu tenho apresentado país afora é que o Brasil vai ser altamente beneficiado por essa crise. Esses 18 trilhões de dólares que estão flutuando, que vão de um país para o outro, precisam de segurança e de rentabilidade. O Brasil está mostrando ao mundo que sua dívida é muito inferior, logo aqui é mais seguro para o dinheiro vir. Mas tem uma outra variável que se chama rentabilidade. Quanto é que rende hoje o título público americano? Rende 0.28% ao ano. Aqui no Brasil a Selic é 10.75% ao ano. É dez vezes mais a rentabilidade do resto do mundo. Não precisa ser PHD em economia para vislumbrar para onde esse dinheiro vai”.

“O CEARÁ PASSA A GERAR CONDIÇÕES DE INFRAESTRUTURA PARA O DESENVOLVIMENTO DE QUALQUER ATIVIDADE ECONÔMICA QUE PORVENTURA QUEIRA AQUI SE INSTALAR.”

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A conclusão é que o Brasil vai ser o ancoradouro desse capital que ainda está decidindo aonde ir. “Não se sabe se os Estados Unidos vão dar o calote, ou a Grécia, ou a Itália, ou a França, ou a Inglaterra. Então o Brasil vai dividir com a Alemanha, vai dividir um pouco com a Índia, que também está em processo de crescimento. Esse capital não vai para a China porque é um país de economia muito fechada. Apesar de já haver uma certa abertura e uma iniciativa privada, ainda se trata de uma nação autoritária, a sua moeda é não negociável”. PROBLEMAS SOCIAIS Mauro Filho estende a sua avaliação otimista ao futuro da Europa, embora destacando todas as dificuldades que a União Europeia ainda enfrentará nos próximos anos. “Como a Alemanha conseguiu se manter sólida com toda essa crise, está fazendo pressão na Inglaterra e na França para ver se os dois saem bem. Se a Alemanha tira esses dois da possível crise à qual estão expostos, salva 60% da Europa, e aí o resto vem por consequência. O Sarkozy, mesmo sendo candidato à reeleição, tomou medidas duras de ajuste fiscal, inclusive aumentando imposto, dilatando tempo e idade para a aposentadoria. São medidas que vão recuperar a situação fiscal da França, e assim sendo, a Europa se mantém.” Os dois países citados como ancoradouros, Brasil e Índia, têm ambos graves problemas sociais. Comentando a expectativa que podemos ter em relação à mudança desse quadro, Mauro reflete: “O Brasil vai ser capaz de reduzir profundamente o que nós chamamos de extrema pobreza, temos 42 milhões de pessoas para tirar dessa situação. O que faz o sistema capitalista crescer é o nível de renda e o nível de crédito, que sustentam o consumo. A economia brasileira foi bem porque o Lula teve essa visão de que o crédito no Brasil precisava crescer. Nos países desenvolvidos, a relação crédito/PIB é de 80%, 90%, 100%. No Brasil ela é 22%. Uma taxa de juro muito elevada, com um crédito muito baixo. Ninguém investe, ninguém cresce”. Se a economia cresce, explica Mauro, “absorve as pessoas no mercado de trabalho, tirando-as da extrema pobreza. Uma coisa é tirar da extrema pobreza, outra coisa é diminuir a desigualdade. O que nós precisamos é que esse processo, além de absorver essas pessoas, crie condições para melhor distribuir renda. Aí não tem saída. O investimento é em educação. O Brasil ainda investe pouco no processo educacional.” 34 CARIRI REVISTA

“O QUE NÓS PRECISAMOS É QUE ESSE PROCESSO, ALÉM DE ABSORVER ESSAS PESSOAS, CRIE CONDIÇÕES PARA MELHOR DISTRIBUIR RENDA. AÍ NÃO TEM SAÍDA. O INVESTIMENTO É EM EDUCAÇÃO.”

Aprofundando sua reflexão e respondendo aos questionamentos de que o crescimento do consumo não é consistente como inclusão verdadeira, Mauro comenta que “todo o avanço do sistema capitalista, infelizmente é assim. Primeiro você tem que dar renda para as pessoas. Por isso existem as políticas compensatórias. Você dá o dinheiro porque a pessoa precisa comer. Depois a pessoa sai do nada e vem para o mercado de trabalho, ganhando R$700,00. É pouco, mas esse primeiro passo chega. Depois as pessoas já ficam mais instruídas, já sabem demandar um salário melhor. O formulador da política pública — no Brasil isso tem que estar muito claro — tem que se referenciar em tecnologia e educação. Educação dá acesso ao mercado de trabalho e a um melhor nível de renda. Num passo de país desenvolvido você tem que ir além disso. Você tem que ter conseguido ir para um outro padrão de ensino, quando já passa a ser capaz de criar, de propor o novo. Não é só dinheiro que você tem que ter. Você tem que ter foco”. O CARIRI E O ESPÍRITO EMPREENDEDOR O Cariri, na visão de Mauro Filho, recuperou o seu processo de crescimento pelo espírito empreendedor das pessoas. “Lá, hoje, está todo o mundo pensando em fazer um negócio diferente, um hotel diferente, um comércio diferente, uma indústria de calçados diferente. O Cariri está recompondo a sua participação econômica no bolo total do Estado, inclusive na arrecadação do ICMS. Tem um nível de qualificação de mão de obra


muito melhor do que tinha há 10 anos, e isso é fator de desenvolvimento econômico. Permita-me dizer também que há um nível de investimento do Estado muito grande, porque a região tem a escola profissionalizante, o hospital, o novo centro de distribuição, uma forte perspectiva de investimento público, que acabou desabrochando com o espírito empreendedor caririense”. Seguro do que diz, Mauro Filho avisa:“Que tomem cuidado as outras regiões, porque o Cariri vai ser, nos próximos 10 anos, a área que primeiro vai tirar esse pessoal da extrema pobreza. Por causa do empreendedorismo, das políticas públicas e da capacidade de se aprimorar a mão de obra. Se eu tirar Fortaleza, que é a capital do Estado, o Cariri vai ser a região com o maior número de abertura de novas empresas. O crescimento é significativo! Eu estou extremamente otimista com o que vai acontecer no Brasil, mais otimista ainda com o que vai ser experimentado no Ceará, e posso afirmar, de maneira enfática, que o Cariri é hoje uma mola propulsora fundamental nesse processo que estamos experimentando. E não é para daqui a muitos anos. Eu estou falando de agora, já está acontecendo!”.

“QUE TOMEM CUIDADO AS OUTRAS REGIÕES, PORQUE O CARIRI VAI SER, NOS PRÓXIMOS 10 ANOS, A ÁREA QUE PRIMEIRO VAI TIRAR ESSE PESSOAL DA EXTREMA POBREZA”.

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#caririarte

JOSÉ RANGEL:

RAFAEL VILAROUCA

O ESCULTOR DE JARDIM

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Nossa Senhora das Graças feita por José Rangel: feições delicadas e olhar expressivo


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rnada com bancos de madeira verde, a Praça Nossa Senhora das Dores fica no centro nervoso da sossegada cidade de Jardim, conhecida por seu clima ameno e serras aprazíveis. O visitante que caminha pela praça tem imediatamente a atenção atraída para uma Nossa Senhora das Graças esculpida em cimento cru. Posta no alto de um nicho azul, a santa está curiosamente de costas para a Igreja Matriz. Com as mãos estendidas em louvor, tem um olhar oblíquo. São olhos que repousam sobre a casa de dona Maroca, a mãe do artista que lhe deu vida, José Rangel (1895-1969). Essa Nossa Senhora das Graças de olhar direcionado foi entregue aos moradores no dia 1º de janeiro de 1949, numa solenidade bastante concorrida para a época. “A inauguração da estátua foi um acontecimento inesquecível, desses que raramente ocorrem nas cidades do interior. Pessoas vindas de todas as cidades do Cariri e dos Estados vizinhos encheram as ruas de Jardim para assistirem a grande festa religiosa, a maior festa do século para os jardinenses”, reporta Maria Alacoque de Lima Pereira, citada pelo pesquisador Gilmar de Carvalho no livro “Rangel Escultor – o Artista que Veio de Jardim”. Mais de 60 anos após a inauguração da estátua, o nome de José Rangel ainda não foi colocado na placa que identifica o monumento. Filho de um alfaiate e uma dona-de-casa, de origem modesta e com muitos irmãos, José Rangel foi um artista talentoso e disciplinado, cuja obra é praticamente desconhecida até de seus conterrâneos. Em Fortaleza, onde viveu alguns anos, integrou a equipe que elaborou a estátua do Cristo Redentor no Seminário da Prainha. No Rio de Janeiro, onde cursou a Escola Nacional de Belas Artes, assinou o Monumento aos 18 do Forte, que pode ser visto no calçadão central da Av. Atlântica, esquina com Siqueira Campos – trata-se da escultura em bronze de um soldado ferido, os joelhos dobrados e as mãos crispadas sobre o peito. No Crato, fez uma bela estátua de Nossa Senhora de Fátima para o aeroporto que ficava no alto da Chapada do Araripe; há anos desativado. “José Rangel não era um iconoclasta, como Victor Brecheret, escultor símbolo do movimento moderno”, analisa o pesquisador Gilmar de Carvalho. “Viveu o impasse existente, ainda hoje, entre a opção por um trabalho autoral diletante e as seduções de mercado. A escultura passou a ser o seu espaço privilegiado nas áreas públicas, nos jardins ou como valorização de imóveis residenciais pela ‘grife’ que passou a incorporar como ponto de venda”. De expressão suave, a estátua de Nossa Senhora das Graças foi um presente que ele ofereceu à cidade

natal, depois de anos de ausência. Dizem que ficou furioso quando o pároco mandou pintar a santa. Para Rangel, aquela Nossa Senhora não era um objeto de culto, mas uma obra de arte. Cinco décadas depois, em 1998, outro escultor caririense, Sérvulo Esmeraldo, nascido no Crato, foi a Jardim restaurar a escultura, encontrando pelo menos seis camadas de tinta sobre a arte de Rangel. Segundo Esmeraldo, a santa apresenta “uma simetria curiosa, rara de se ver, com influências da alta Idade Média, pois se o manto fosse cortado ao meio, teríamos duas bandas absolutamente iguais”. Desde a infância, o menino José Rangel aprontava as suas “artes”. Aos 12 anos fez um boneco de Judas com as feições do avô paterno, o que lhe valeu uma surra e uma estadia de um ano em Fortaleza. Depois disso, passou pouco tempo em Jardim e voltou para a capital, onde se notabilizou pela rapidez e perícia com que esculpia na areia. Para pagar as contas, foi aprendiz de torneiro na estrada de ferro de Baturité, ingressou na Guarda Municipal de Fortaleza, lutou com as tropas de Franco Rabelo e trabalhou como seringueiro na Amazônia. Sabia pintar e desenhar muito bem. Era ótimo caricaturista, mas sua paixão maior acabou recaindo sobre a escultura. Ainda jovem, conseguiu realizar o sonho de ir ao Rio de Janeiro aprimorar a vocação. Aprovado em sexto lugar na Escola Nacional de Belas Artes, obteve uma ajuda de custo junto ao Presidente Justiniano de Serpa. O amigo Vicente Leite, pintor cratense, gozou do mesmo benefício, que foi suspenso em 1923, quando Justiniano morreu. Para sobreviver, Rangel e Vicente chegaram a se exibir publicamente, cobrando ingressos por apresentações artísticas. Incrementando o orçamento, Rangel também foi tecelão e lavador de pratos. Nos anos 50, viveu um tempo em Recife, onde não há registros de obras suas em espaços públicos. Faleceu no Rio de Janeiro, a 11 de janeiro de 1969, no Hospital dos Servidores. “Nenhum profeta é bem recebido em sua terra. Em Jardim, só temos a Nossa Senhora das Graças, que ele deixou, mas as autoridades nunca botaram uma identificação, uma placa com o nome dele. E olhe que já batalhamos muito. No Crato, a Nossa Senhora de Fátima continua abandonada”, lamenta Nivaldo Rangel, sobrinho do escultor. Gilmar de Carvalho, que ouviu amigos e parentes e pesquisou os jornais da época para escrever sobre o escultor, pontua: “José Rangel, fez uma grande arte e não merece ser nota de rodapé ou ter seu valor eclipsado por não fazer parte de grandes coleções particulares”. O escultor deixou filhos, obras e muitas versões sobre sua vida. Uma vida a ser redescoberta. CARIRI REVISTA 39


#cariricultura

Por Raquel Arraes

CARROÇA DE MAMULENGOS:

UMA FORMA LIVRE DE VIVER A ARTE O grupo nasceu em Brasília, mas se considera “do mundo”. Viajando pelo país, busca o interior como inspiração. Modernos saltimbancos de uma mesma família, eles cantam, dançam, representam e encantam: é assim o Carroça de Mamulengos, que tem em Maria Gomide a certeza de continuidade, resistência e eternos devaneios.

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RAFAEL VILAROUCA

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Felinda: segunda turnê em terras caririenses

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ssa história começa em 1975. Brasília já gerava em seu interior a força que iria explodir em uma revolução cultural anos depois. Na época, o jovem Carlos Gomide já fazia a sua própria revolução. Convencido de que a arte é a única forma de existir no mundo, ele entra para o grupo de teatro Carroça. Já nesse período, a percepção de que o aprofundamento nas raízes culturais brasileiras era o único caminho viável para a construção de uma arte autêntica leva Carlos a palmilhar cada canto do país em busca de mestres da cultura que compartilhassem com ele os seus saberes. Um dia, o grupo Carroça é desfeito. Carlos, já casado com Schirley França, herda o nome da companhia e passa a desenvolver uma arte muito singular, a do teatro de bonecos, que no Nordeste, mais especificamente em Pernambuco, ganha a denominação de mamulengo. Com corpo de madeira e cabeça reproduzida com cabaça, os mamulengos podem ter formas e tamanhos diversos. Imitando pessoas e animais, eles às vezes cabem em uma mão e, outras vezes, possuem o dobro da altura de um homem.

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Foi através do encontro de Carlos Gomide com o mestre popular paraibano Antônio Alves Pequeno, ou Antônio do Babau, que o Carroça incorporou a poética, a linguagem e o nome mamulengo. E assim, a Cia. Carroça de Mamulengos parte em uma missão audaciosa: revirar o Brasil vivendo única e exclusivamente de sua arte. Hoje a herdeira Maria Gomide, filha mais velha do casal de fundadores, reflete: “Como é que começa uma tradição? Isso é até uma pergunta para refletirmos se podemos nos considerar tradicionais. Porque a gente simplesmente faz. O meu pai sempre trabalhou viajando. Desde o inicio, desde muito novo, desde que saiu de casa, ele sempre esteve viajando de um lugar para o outro a trabalho. E a arte possibilitou que ele fosse mais errante ainda. Ele encontrou na arte uma forma livre de existir e eu acho que essa é a maior herança que nossos pais deram para nós, filhos”. ERRÂNCIA EM FAMÍLIA “Eu não sei o ano em que nasci, presumo qual seja o mês e tenho quase certeza do dia”. É assim que Maria Gomide, a primogênita entre oito irmãos, começa a narrar a


FOTOS: RAFAEL VILAROUCA

Maria Gomide e a arte de ser livre

sua história. As incertezas do nascimento, porém, não perpassam nenhuma vez o semblante da garota. Olhos verdes que fitam certeiros, Maria é desconcertadamente segura para a sua idade. “Acho que devo ter entre 26 e 27 anos. Na verdade, nenhum dos meus irmãos sabe exatamente o dia em que nasceu. Meus pais passavam anos para registrar um filho e acabavam esquecendo a data. O que eu sei é que nasci no último dia de um festival de teatro, em Natal, no Rio Grande do Norte”. Em seus presumíveis 27 anos, Maria entrou no palco a primeira vez quando era um bebê, e de lá nunca saiu. Para ela, a luta pela sobrevivência sempre foi uma arte. “Alguns me acharam mais velha do que eu sou. Eu penso que isso se deve ao fato de estar sempre metida em tudo que meus pais fizeram. Com cinco anos, lembro de conversar com estudantes universitários, repetindo as frases do meu pai. Repetia por repetir, não entendia o que muitas significavam, mas sabia quando usar aquelas de mais efeito!”. Nem bem se sustentou em cima das próprias pernas, a garota foi contemplada com mais duas, só que essas de madeira. Na infância a brincadeira com bonecos era coisa séria. “Eu não brincava de bonecas. Eu brincava com bonecas”, considera ela, que desde cedo aprendeu que o prato do dia seguinte seria ganho no dia anterior. E que vida de artista itinerante é antes de tudo uma profissão de fé. “A praça sempre foi o lugar de nosso sustento. Após o espetáculo, rodávamos o chapéu. Quando chegávamos em casa, muitas vezes era eu que contava o dinheiro ganho naquele dia. Foi assim que aprendi matemática”. Maria não teve educação formal e nunca foi à escola — o que é de espantar, dado o vocabulário rebuscado e a profundidade de suas reflexões. Os pais tomaram pra si a responsabilidade da formação de todos os filhos. “Era normal que meu pai, toda vez que lia um livro, nos reunisse para dividir conosco o que havia aprendido”. E a família foi crescendo. A cada dois anos nascia mais um menino: Antônio, Francisco, João, os gêmeos Pedro e Mateus, Luzia e Isabel, também gêmeas. CARIRI REVISTA 43


“Então o Carroça é uma companhia de teatro, mas também é uma família, e à medida que essa família cresce, vai tendo que encaixar no espetáculo esse novo integrante, tem que dar de conta das necessidades de mais um filho. Eu também me sinto um pouco mãe, principalmente dos mais novos, porque ajudei na criação deles”, comenta Maria. É raro o nome do pai não vir à baila quando conversamos com ela. Carlos Gomide foi seu grande mentor, e balizou seus passos durante toda a vida. “Desde pequena, escuto meu pai dizer: é essa que vai dar continuidade à minha arte”. Enquanto Carlos aparece como mestre, Schirley é apresentada como a grande moderadora de amor e afeto. “Dizer o quê, né? Minha mãe sempre teve o dom de transformar qualquer lugar em um lar. Não importava se estávamos em um quarto dos fundos, em uma garagem. Minha mãe, com seus caprichos, com um tapete, ia dando um toque só seu e acabava tornando aquele lugar aconchegante. Sempre estávamos arrumadinhos, com fita no cabelo. Ela sempre conseguiu agradar e acalmar a todos”. LÚDICOS, ÚNICOS E NA CONTRAMÃO A possibilidade livre de existir é o que mais encanta a respeito do Carroça de Mamulengos. Vivendo de arte, de costa para as urgências da modernidade, eles estão na contra-mão. Não só de um saber estabelecido que definiu a escrita como a única forma legítima de conhecimento. O Carroça está na contra-mão da própria arte moderna ao não topar suas facilitações, seus enlevos com políticas culturais que transformam o artista em um produtor de cultura em série. “O Carroça é uma companhia completamente na contramão. Se hoje em dia a gente alcançou algum reconhecimento foi afirmando que estamos na contramão. Não temos nada contra os diplomas, nem as academias, muito pelo contrário, mas levantamos a bandeira da oralidade. Defendemos o conhecimento

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que pode ser transmitido através da oralidade, pelo que aprendemos vivendo”, situa Maria Gomide. Inspirado em diversas tradições nordestinas, o Carroça traz para o público a poética e a linguagem do mamulengo — linguagem esta que mescla na brincadeira dos bonecos os ritmos das festas religiosas, os folguedos e os cantos dos trabalhadores na lida da agricultura, constituindo-se uma manifestação originalíssima que tem a oralidade como elemento-chave em sua preservação. Normalmente apresentado em praças públicas, o teatro de bonecos é uma manifestação cultural proveniente da Europa. Os registros de seu nascimento datam de pelo menos 3.000 anos. O Brasil possui brincantes de bonecos desde a era colonial. No Nordeste, para cada Estado há um nome específico. Em Pernambuco, mamulengo; na Paraíba, babau; no Rio Grande do Norte, joão redondo. Por muito tempo, o espetáculo do Carroça foi constituído de bonecos que imitavam o burrinho, o bode, os palhaços, bonecas gigantes e seres fantásticos como o Jaraguá. As músicas apresentavam cada um dos personagens com o respaldo da poética popular, através de canções singelas que facilmente poderiam ser confundidas com infantis.


FOTOS: RAFAEL VILAROUCA

Bonecos, oralidade e canções singelas na brincadeira do Mamulengo CARIRI REVISTA 45


SHOWS, CDS E INTERNET Tradição com modernidade, raízes que fazem voar: a Cia. Carroça de Mamulengos está lançando este ano dois novos CDs: “Passarinhos” e “Canto Fortuito”. As músicas emocionantes e as vozes ainadas de Maria e seus irmãos podem ser apreciadas também pela internet. O site www. carrocademamulengos.com.br mostra um pouco da trajetória desse grupo ímpar. Antenados, os irmãos Gomide têm twitter (@ciacarroca) e facebook (facebook.com/CarrocaDeMamulengos). A turnê Cariri 2012 aconteceu em abril, com patrocínio da Petrobras e apoio das prefeituras municipais. Eles apresentaram o espetáculo “Felinda”, que “conta a história de uma moça, nem feia e nem linda, que fugiu do circo e foi deixada para trás”. Os espetáculos aconteceram em Jardim, Crato, Barbalha, Santana do Cariri, Nova Olinda, Saboeiro, Campos Sales, Caririaçu, Assaré, Iguatu e Araripe.

“O Carroça não é uma companhia para-folclórica, não fazemos espetáculo para criança, fazemos espetáculo para pessoas. Porque o que buscamos são nossas raízes. Sempre tivemos um olhar voltado para o interior. Mesmo quando moramos em cidades como o Rio, o que buscamos é o que tem de interior no Rio”, pontua Maria. QUANDO OS CAMINHOS SE ALARGAM A história do Carroça se entrelaça com o Cariri em 2000, quando a família aporta em Juazeiro do Norte. “Meu pai sempre quis vir para cá, mas aparecia um outro lugar, uma nova cidade em nosso caminho. Até que um dia decidimos que havia chegado a hora de rumar para o Cariri”, relembra Maria Gomide. Eles passam a morar no João Cabral, um dos bairros mais humildes de Juazeiro. Lá, criam a Associação dos Artistas da Terra da Mãe de Deus. A Associação reunia grupos populares com o intuito de gerar conscientização sobre o papel e a importância do artista popular. Durante sete anos, Juazeiro foi o lar do Carroça, até o grupo se mudar para o Rio de Janeiro. Dessa permanência, nasceu um amor sólido pela região e um desejo de eterno retorno. “O Cariri é tão heterogêneo, mais parece que Deus e o diabo habitam juntos essa terra”, reflete Maria. 46 CARIRI REVISTA

Há três anos, um evento veio para dar um novo rumo à família. Carlos e Schirley se separaram e a companhia teve que reavaliar os seus caminhos. “Foi nesse momento de desagregação que tivemos força de nos unir ainda mais. Meu pai seguiu com meu irmão Antônio, e nos vimos com o desafio de dar um novo rumo ao Carroça. Foi o que fizemos”. Com rompimento dos pais e os filhos já adultos, novas veredas se descortinaram. “Quando saí do Cariri, há cinco anos, saí com um objetivo: conseguir o apoio da Petrobrás. Nossos pais já apontaram a direção, mas é um desafio diário afirmar esse caminho sem perder o norte. Porque o caminho é estreito e, às vezes, eu acho que a gente vence pela teimosia”, afirma Maria. Além de atriz, cantora e mestre-cena no palco, nos bastidores Maria produz, dirige e gerencia a companhia. “Quando meu pai passou o bastão para nós, os filhos, me vi como a irmã mais velha que deveria arregaçar as mangas e dar o exemplo. Minha vida é dedicada integralmente ao Carroça. Não falo e não penso em outra coisa”. Atualmente, o Carroça de Mamulengos recebe um patrocínio da Petrobrás. Com um novo espetáculo na rua, o “Felinda”, esse novo Carroça surge aguerrido, pulsante de expectativas, ansioso pelo futuro que o aguarda. Assim, pareceu lógico retornar ao Cariri


para mostrar o que andaram fazendo depois de tanto tempo na estrada. “Sempre que retornamos, sentimos o dever de apresentar algo novo. Um instrumento novo, um número, uma música para provar que a saída foi necessária”. Depois de dois anos de montagem, “Felinda” veio para unir a família inteira. “Nesse espetáculo, todo mundo é essencial, todo mundo é fundamental, ninguém pode faltar. No espetáculo anterior, ‘Estórias de Teatro e Circo’, a gente podia substituir alguém. No ‘Felinda’, não. Ele só acontece se estiver todo mundo. E isso foi muito importante: no momento em que tudo apontava para o Carroça se fragmentar, a gente conseguiu montar um espetáculo em que cada um tem o seu lugar. Foi a oportunidade de falar assim: O Carroça somos todos nós”, defende Maria Gomide. O sertão é o mundo. Decifrá-lo em suas veredas, só para quem tem coragem, valentia no coração. Ar rarefeito ao meio dia, sol tingindo tudo de luz branca — criança, velho, mulher, bicho. Sertão é fortaleza inexpugnável de

sensações, e qualquer tentativa de descrição cai em clichê e vazio. Em suas muitas terras, a retirância faz destino. Sair ninguém quer, mas é preciso viver. E para viver o sertão é necessário palmilhá-lo pelos passos perdidos de suas gentes, como faz agora a garota de olhos verdes. Nesse horizonte que não se acaba, olha para dentro, em busca da semente primeira que germina em cada um de nós. Logo ela, que conhece tantas terras. Logo ela, que já nasceu andarilha. Para Maria Gomide, nesse caminho de muitas veredas, o mundo todo é todo sertão. “Defendemos essa possibilidade livre de existir na vida, não somente porque acreditamos que a arte é um caminho de libertação, mas também porque não fazemos arte por encomenda. A nossa arte revela um desejo profundo das nossas almas, e eu acho que isso é ancestral. Tenho a impressão de que o Carroça já está junto há muitos séculos, estamos novamente no Brasil. Eu creio que a gente segue uma missão. Somos uma companhia de teatro secular”, encerra Maria.

FOTOS: RAFAEL VILAROUCA

Carroça de Mamulengos: família unida no palco e na estrada

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#caririesporte

RAFAEL VILAROUCA

Rafael dos Santos: nova promessa no MMA

MODERNOS GLADIADORES, LÍDERES DE AUDIÊNCIA 50 CARIRI REVISTA


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ideia original era simples. Um grande e definitivo confronto. Um torneio inspirado nas lutas dos gladiadores romanos para provar qual seria o melhor lutador de artes marciais do mundo. Quem ficasse de pé era o vencedor. Sem juízes e sem regras fixas. De proibido, apenas mordida e dedo no olho do oponente. Nada mais. Ao invés de uma arena, um octógono. Uma jaula com oito lados e grades altas, as duas portas trancadas no início da luta. Se posta totalmente em prática, a ideia incluía um fosso com jacarés ao redor da jaula e grades eletrificadas. Tudo para deter os lutadores em campo, descartando qualquer possibilidade de desistência. Em 1993 os Gracie já eram famosos no mundo inteiro (ver box). O vídeo “Gracie in Action” havia se tornado febre entre os amantes de lutas, ao mostrar membros da família Gracie representando cenas impressionantes de defesa pessoal. Além disso, o evento “Desafio de Gracie”, atordoava a todos por ser um convite aberto aos especialistas de qualquer técnica para enfrentarem um membro do clã ou um estudante de seus cursos. Após um século de lutas e desafios, não é de se estranhar que um Gracie tenha criado o Ultimate Fighting Championship, o UFC. Muito menos que ele seja um mestre em jiu-jítsu. Afinal Rorion Gracie, filho mais velho do famoso Hélio Gracie, é um dos poucos homens no planeta a envergar a faixa vermelha, último e derradeiro grau no jiu-jítsu. Rorion morava nos EUA e ganhava a vida ensinando jiu-jítsu na garagem de casa, quando, junto com o publicitário Arthur Davie, resolveu executar em terras americanas o que seus parentes já faziam há décadas no Brasil. Em sua primeira edição, o UFC reuniu mestres de caratê, muay thai, boxe, jiu-jítsu e até sumô. O Gracie escolhido para representar a família foi Royce, que venceu seus oponentes e se tornou campeão invicto do 1° Ultimate Fighting Championship. Na verdade, o que Rorion e sua família estavam criando era muito mais que um evento. O UFC seria o palco de um novo esporte, o MMA (Mixed Martial Arts, ou Artes Marciais Mistas), que tomou o lugar do boxe no cenário de esportes multimilionários, sendo o que mais cresce no mundo. O nome, Artes Marciais Mistas, representa a junção de diversas artes em um único esporte. O jiu-jítsu, mais precisamente o Gracie jiu-jítsu, é a base do MMA. A partir daí, o lutador usualmente combina boxe, caratê e muay thai ao seu repertório.

CEARÁ FIGHTERS CHAMPIONSHIP: ISSO É BUSINESS! Quando Daniel Lacerda Bezerra foi aos EUA pelos idos de 1995 e lá treinou jiu-jítsu, e mesmo antes, quando ele e seu irmão Aderson Neto praticavam a arte em Juazeiro do Norte, nem em seus melhores sonhos poderiam imaginar que um dia o interesse se tornaria profissão. “Eu fui pra lá para estudar. Comecei a treinar e ainda fiz duas lutas de MMA. Quando voltei, em 2007, já vim com esse interesse de realizar eventos aqui”, conta Daniel. Mas a ideia compartilhada com o irmão esbarrou no desconhecimento que então envolvia o esporte. “No início, tivemos que usar o nome vale-tudo, pouca gente conhecia MMA, e mesmo assim não conseguimos patrocínio, sem falar no preconceito”, relembra Aderson Neto. Percebendo que não poderiam contar com patrocínios externos, os irmãos resolveram encarar o desafio de custear o evento com a ajuda de alguns amigos. “Foi muito difícil. A gente tava tirando dinheiro do nosso bolso e, se não desse certo, ia ser um prejuízo enorme”, recorda Aderson. O primeiro Ceará Fighters Championship, realizado em julho de 2010, reuniu nada menos que 3.000 espectadores no Ginásio Poliesportivo, em Juazeiro do Norte. “Mal podíamos acreditar naquele tanto de gente nas arquibancadas. E só nós três na comissão organizadora pra dar conta daquilo tudo”, admira-se Aderson. O terceiro de quem ele fala é Márcio Guilherme, ou Márcio Cupim, campeão de vários torneios, professor e faixa preta de jiu-jítsu.

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Cupim, sócio do Ceará Fighters Championship, atua como um caça-talentos de lutadores, selecionando os melhores para garantir uma boa luta. “Nesse meio eu conheço praticamente todo mundo. Os lutadores são escolhidos com muito cuidado — e não só pelo cartel de lutas. A escola de onde vieram e a condição física é primordial também”, explica. Já o segundo CFC teve um aumento exponencial impressionante, reunindo 4.500 pessoas e dando mostras de que esse é um projeto de sucesso. “O MMA chegou pra ficar. Há cinco anos ele está batendo na porta de todo mundo e acabou entrando à força”, exulta Aderson. O primeiro CFC custou aos rapazes R$ 45.000. E o segundo, R$ 50.000, provando que esse é um esporte de muitos valores. “Agora que vamos para o terceiro evento, já começam a aparecer os parceiros, gente que entende que o MMA é um esporte e não briga de rua”, reage Daniel. Para Aderson Neto, o futuro é promissor. “Eu acredito que ainda vai dar o estouro mesmo. Teremos mais academias, mais eventos. Agora é que a coisa começou”.

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UM SENSEI NO CARIRI Yoshinori Morimitsu é um homem de muitas histórias e talentos. O nome se deve à ascendência japonesa. O avô saiu do Japão e aportou no Brasil, fugindo dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Lá, era advogado e mestre em Kendo, treinando a guarda japonesa. Quando aqui chegou, não teve outra escolha senão trabalhar no campo. O pai, físico nuclear e karateca, chegou ao Cariri singrando o sertão. A ideia era conhecer o Nordeste, mas ao aportar aqui, nunca mais saiu. De japonês mesmo, Yoshinori, o Japa, carrega os olhos e uma tatuagem. O resto, caririense puro, com orgulho. Começou a se dedicar ao jiu-jítsu aos 15 anos, quando os recém-chegados Aquiles e Sandro Lopes abriram as primeiras turmas do esporte na região. “Eu fazia parte daquelas pessoas que diziam que jiu-jítsu é um negócio esquisito, de homem se agarrando, acredita?”, gargalha o Japa. Em 2000, o jiu-jítsu se viu na iminência de não prosperar no Cariri, quando os dois únicos professores foram embora. “Nessa época eu já estava apaixonado


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pelo jiu-jítsu. Com Sandro consegui a faixa azul. Quando ele foi embora, eu ficava indo a Fortaleza para treinar na equipe do professor Sá. E acho que é por isso que dizem que sou um dos pioneiros do esporte aqui no Cariri. É porque eu permaneci praticando e continuei aqui”. A primeira turma de Yoshinori tinha somente dois alunos. “Eram amigos de minha irmã”, fala sorrindo. Hoje, os alunos e ex-alunos, as “crias” do Japa, como se diz no meio, estão a perder de vista. “Essas duas pessoas iniciais, acredito que hoje se multiplicaram em pelo menos uns 300 praticantes de jiu-jitsu no Cariri”, calcula. “Por muito tempo eu vivi só do jiu-jítsu, hoje vivo com os resultados que ele me gerou. Uma formação como educador físico, a possibilidade de ter montado uma equipe”. Atualmente Yoshinori é filiado à equipe Kimura-Nova União. Em sua academia, 40 alunos se esforçam para acompanhar os treinos rígidos. “O nosso carro-chefe é o jiu-jítsu, oferecemos treinos de MMA também, mas quem chega aqui tem que passar pelo jiu-jítsu. Reticente com o fascínio do público pelas téc-

Japa: pioneirismo e amor ao jiu-jitsu

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nicas mistas, ele pontua: “O que se tem que entender é que devemos ter muito cuidado com esse boom que é o MMA. Um professor de jiu-jítsu é especialista nessa arte, o de caratê é especialista em caratê. Mas professor de MMA, é especialista em quê?”. Segundo o Japa, todo lutador de jiu-jítsu sonha, ao menos uma vez, em subir no octógono. “Não pelo espetáculo, mas pelo orgulho, pela raça. Quando a gente luta, a sensação é de retroceder aos instintos mais primitivos de morte ou de fuga”, reflete. Logo depois abre um sorriso e volta a se deslumbrar com o esporte que é sua vida. “Falando assim parece que o jiu-jítsu é algo violento, mas não é. Minha responsabilidade é mostrar que não precisamos usar de violência, que lutador não é burro nem deve ser arrogante. Jiu-

-jítsu é disciplina para a vida. Você adquire hábitos mais saudáveis, mais responsáveis”. Pergunto se ele se ressente pelo fato do jiu-jitsu ter se transformado na base de um esporte que hoje é visto como um grande entretenimento. “De modo algum. O MMA foi fundamental para a divulgação do esporte, além de ser uma possibilidade real de renda e trabalho para lutadores”. Por fim, o Japa define o que é o esporte em sua vida. “Jiu-jítsu, pra mim, é religião. É tudo. É minha escola, meu trabalho, minha família. Foi o jiu-jítsu que me educou, que me formou. O que me deixa feliz não é só o cara que é campeão, mas os alunos que evoluem, que criam auto-confiança. Na minha vida, isso pra mim é amor”.

FAMÍLIA GRACIE: LUTAR, VENCER E ENSINAR Há quem se engane com as artes marciais. Luta, golpes, machucados, supercílio aberto. Dois homens ou mulheres lutando para ver quem ica de pé, e não passa disso. Porém, o que se deve entender é que arte marcial é antes de tudo sabedoria que lui do interior. Energia a equilibrar mente e corpo. Tradição incorporada e passada adiante durante séculos a io. Pernas, braços e mãos são os supremos narradores desse saber tão antigo quanto a mais distante mitologia. A mente paciicada, guia, norteia e forja lutadores. Para nós ocidentais, tão afeitos a conceitos simplistas como perder ou ganhar, é naturalmente incompreensível exercitar com ainco, pela vida inteira, uma disciplina que tenha como destino a evolução espiritual e física. Basta uma breve pesquisa sobre os maiores mestres de artes marciais para perceber que um código rígido de conduta ética baliza as suas vidas. Código este que não distingue luta e dia-a-dia. Foi esse código que se enraizou na alma e no corpo da família Gracie. O ano era 1916 e Carlos Gracie, aos 14 anos, não dava trégua aos pais durante 54 CARIRI REVISTA

a adolescência. Na época, a família, de origem escocesa, residia em Belém do Pará. E foi nesta cidade que também aportou o japonês, mestre em jiu-jítsu, Mitsuyu Maeda, ou Conde Koma. Gastão Gracie, pai de Carlos Gracie, impressionado com a destreza de Maeda, apresentou-o ao ilho, na tentativa de apaziguar e motivar o garoto. Dos treinos entre mestre e pupilo, nasceu uma profunda amizade e o que mais tarde o que mundo inteiro conheceria como Gracie Jiu-Jítsu. “Lutar, vencer e ensinar”. Esse é o lema da família Gracie, e dessa forma Carlos ensinou a arte aos outros quatro irmãos: Oswaldo, Gastão, George e Hélio. Baixo, franzino e doente, de todos os irmãos Gracie, Hélio era o que menos possuía dotes físicos de um lutador. E, no entanto, foi exatamente pela sua desvantagem física que Hélio Gracie sagrou-se como o maior campeão de sua era. A fragilidade fez com que ele desenvolvesse maneiras alternativas de utilizar os golpes e criasse truques, como o sistema de alavanca, e a escolha do momento oportuno para agir, ao invés de força e rapidez. Através de inteligência e apuro, Hélio

Gracie revolucionou as técnicas do jiu-jítsu possibilitando que alguém visivelmente em desvantagem conseguisse vencer uma luta. Era o Gracie Jiu-Jítsu. “O que eu queria era provar que a minha arte era a melhor”, fala sem pudor algum Hélio Gracie. Em 1930 não havia campeão no Brasil como Hélio. Os Gracie eram celebridades e reinavam absolutos nas artes marciais. Desaiavam todo tipo de lutador e técnica para provar que o jiu-jítsu por eles praticado era a arte mais eiciente no combate corpo-a-corpo. Para isso, promoviam embates anunciados em jornal: “Quem quiser ter um braço quebrado, procure os Gracie”. Devido à invencibilidade no tatame, Hélio se transformou em personagem de quadrinhos, estrela no rádio, manchete de jornais e revistas. Até mesmo o grande Manoel Ruino dos Santos foi fragorosamente derrotado ao dizer que as lutas que os Gracie promoviam eram desonestas. A última luta de Hélio, contra seu ex-aluno, Valdemar Santana, durou três horas e 45 minutos. Enim, aos 43 anos de idade, Hélio Gracie seria vencido.


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#cariridefé

CARETAS EM FESTA

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RAFAEL VILAROUCA

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urante a Semana Santa, na cidade de Jardim, um cortejo de mascarados sai às ruas. Trajando roupas pesadas, botas, chocalhos, eles estão ali para incomodar. Azucrinando as crianças, irritando as mulheres, enfrentando os homens, mandam e desmandam na cidade. São os Caretas, figuras lendárias da cultura ibero-americana. Tradição arraigada em Portugal e Espanha que deságua na América Latina junto com os colonizadores, aqui ganhando cores e as nuances próprias. Segundo o estudioso jardinense Luís Lemos, as primeiras manifestações dos Caretas na cidade de Jardim datam de fins do século XIX. Inicialmente a festa era realizada na zona rural, em comemoração às boas colheitas. Os agricultores confeccionavam uma espécie de espantalho com cabeça feita de cabaça e corpo de madeira e enchimento de palha, ao qual davam o nome de “Pai Véi” ou “Vosso Pai”. No final da colheita, homens mascarados portando chocalhos e chicotes, percorriam vários sítios, pedindo donativos para a construção do que chamavam de sítio do Pai Véi. O sítio constituía-se de um círculo feito de cana-de-açúcar, com artigos diversos: frutas, bebidas, legumes, etc. Ao redor ficavam os Caretas. Munidos de chibatas, eles tentavam impedir a entrada dos intrusos que iam roubar o sítio. Ao fim da brincadeira, o boneco era explodido por bombas, e dele jorrava o dinheiro diligentemente coletado. Talvez, pela proximidade da Semana Santa, a festa tenha assumido alguns aspectos religiosos, sendo o Pai Véi substituído por Judas Iscariotes, quando a festa passou a ser realizada na zona urbana. CARIRI REVISTA 57



FOTOS: RAFAEL VILAROUCA

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#caririespaçocidades

CIDADES EM MOVIMENTO Por Isabela Bezerra

Atualmente o aquecimento global é um dos maiores desafios ambientais enfrentados pelo homem. Diante de tantas ações predatórias, a reação do planeta é inevitável. As mudanças climáticas são decorrentes da grande emissão de gases produzidos, principalmente pelo setor industrial, de energia e de transporte. A discussão sobre este assunto vem desde a década de 1970, porém foi em 1997 que, pela primeira vez, os países estabeleceram um acordo legal para a redução do CO2, formalizado com o Protocolo de Kyoto. De acordo com os cientistas, para evitarmos desastres ainda maiores, que vão desde a intensificação das secas às grandes inundações, o ideal seria limitar o aquecimento global para o nível mínimo de 2°C. Os avanços em inovação tecnológica e a eficiência dos combustíveis não estão bastando para frear o aquecimento global. Em outras palavras: a emissão de CO2 continua crescendo. É preciso apostar numa consciência ambiental global, propagando ações que viabilizem o cumprimento dos acordos, com o apoio dos governos, empresas e, sobretudo, com a participação enérgica da população. Mas será que estamos preparados para isso?

No Cariri, a paixão pelo ciclismo está indo além do esporte. No dia 24 de março, o Bike Clube Cariri promoveu o passeio ciclístico de Juazeiro do Norte ao Sitio Barreiras, em Missão Nova (33km). A ação teve como objetivo estimular a prática do esporte, discutindo sobre o uso da bicicleta como meio de transporte e lazer. Segundo João Almeida, fundador do Bike Clube Cariri, o evento contou com a participação de 130 ciclistas profissionais e não profissionais. Eu estive lá, anotando as novidades para esta coluna. A grande notícia é que o grupo vem se organizando para mobilizar a região em tono dos investimentos em infraestrutura capazes de popularizar este meio de transporte.

pessoa para cada quilômetro rodado na bicicleta é de 16g, enquanto que a dos ônibus é de 95g e a dos carros chega a 229g. A pesquisa concluiu que se os 27 países da União Europeia atingissem o percentual da Dinamarca em uso de bicicletas, a redução seria de 26% da meta estipulada para 2050.

Buenos Aires está investindo na bicicleta como meio de transporte saudável A Federação Europeia de Ciclismo e eficiente. As redes de ciclovias são se(ECF), em pesquisa recente, quantificou a guras e atrativas, e os residentes dispõem emissão de CO2 de três diferentes meios de bicicletas gratuitas e bicicletários em de transporte: bicicleta, ônibus e carro. Mes- vários pontos da cidade. Nas localidades mo levando em consideração a produção, do interior da Argentina, os passeios com manutenção e o combustível (alimentação) a bicicleta também são uma fonte de renrelacionado ao uso da bicicleta, a emissão da para a comunidade e uma alternativa registrada por este meio foi 10 vezes menor romântica para os visitantes que buscam que a dos demais. A quantidade de CO2 por vivenciar melhor o estilo de vida local. 60 CARIRI REVISTA

Pesquisando na rede, conheci o Projeto Bicicleta Brasil do Ministério das Cidades, que destina recursos para projetos que viabilizem a infraestrutura para mobilidade por bicicleta nas cidades do nosso país. Isto mostra a importância de uma mudança, e que ela é possível. Contudo, não basta aguardar as ações das esferas públicas e privadas. A nossa participação como agentes de transformação é fundamental. O uso da bicicleta, além reduzir a emissão do CO2 no planeta, é uma prática saudável e economicamente viável. Como se não bastasse, melhora o trânsito nas cidades e aumenta a nossa qualidade de vida.

SITES Programa Bicicleta Brasil do Ministério das Cidades -www.cidades.gov.br Federação Européia de Ciclista www.ecf.com Programa Bicicleta de Buenos Aires mejorenbici.buenosaires.gob.ar


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#caririartigo

JOAQUIM MULATO: SANTEIRO PENITENTE Por Gilmar de Carvalho [Escritor, pesquisador e jornalista. Especial para a CARIRI]

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oaquim Mulato é um capítulo importante da história das irmandades dos penitentes e das artes tradicionais no Cariri cearense. Este homem, nascido em 1920, morto em 2009, fez uma opção da vida inteira pelo celibato, pelo recolhimento, e pela fé. Filho de pais agricultores, foi criado por uma família da Barbalha senhorial, e afilhado da “moça velha”, dona Teresa Apolinário, de quem herdou, além da retidão aos princípios morais e religiosos, terras que ele loteou na velhice, alguns santos de um oratório muito peculiar, e uma visão de mundo que se ampliou para o canto, o cacho da penitência, a flagelação em nome de Deus, e a escultura em madeira, outra forma de manifestar sua crença. Joaquim Mulato é personagem rica de um universo marcado pelo histrionismo e pelo exagero barroco. Ele, ao contrário, tinha o ascetismo de um monge, uma sabedoria zen, e irradiava uma paz que nos 62 CARIRI REVISTA

contagiava, principalmente quando entoava, à capela, um dos “cento e cinquenta” benditos transmitidos pelo Padre Ibiapina (1806/ 1883) , cearense de Sobral, fundador das casas de caridade, e missionário com um alcance bem mais social que as ameaças dos frades capuchinhos, Frei Vitale à frente, que percorriam o sertão numa cruzada contra as festas, a bebida, o amancebamento, e as modas (missões que tiveram continuidade com Frei Damião de Bozzano). Joaquim Mulato se integrava à paisagem do sítio onde vivia, chamado de Vila Mulata, em sua homenagem, partindo de Barbalha rumo ao Crato, via Arajara. Quando não estava a perambular pelas casas dos amigos, o que fazia com maior frequência nos finais de semana, estava sentado na calçada alta da casa, como a ver o tempo passar, ou a esperar as visitas que não eram tantas. Chegamos lá (eu e depois o fotógrafo Francisco Sousa), por intermédio do Mon-

senhor Murilo, e na companhia de Daniel Walker, e isso nos deixava em uma situação muito favorável. O Monsenhor, um espírito iluminado, despido de preconceitos contra o tradicional e o popular, com a mente aberta para as formas de reverência ao Criador, que passassem por uma compaixão diante dos humanos, essas criaturas tão desamparadas. Antes de nos levar ao Mestre Joaquim, ele nos falou de sua retidão, chamou a atenção para as esculturas que fazia, e evocava com emoção os benditos que os penitentes entoavam. Foram muitas as visitas que fizemos à casa velha e mal cuidada do Mestre Joaquim, mas o que importava era sua aura. Voltei, outras vezes, levando grupos de alunos da Comunicação Social da UFC, e também colegas pesquisadores, como Wellington Junior e Inês Vitorino. Saímos de lá, algumas vezes, com o carro cheio de mangas; outras vezes, com as primícias da macaxeira aciolina. A emoção se reno-


FRANCISCO SOUSA

Mestre Joaquim: a contundência dos cortes e a poesia dos nós da madeira

vava, sempre. O Mestre vivia este (des) conforto austero, de uma casa sem móveis, com redes nos armadores, e um fogão apagado, pois a comida dele era feita nas cozinhas da vizinhança. O mundo era barrado à porta e não entrava via rádio ou televisão. Algumas vezes, outros penitentes se achegavam, cantavam benditos, e evocavam as caminhadas dentro das noites, com o cruzeiro à frente, e todo o desejo de purgar os pecados da Humanidade. O canto deles tinha a emissão de um cantochão gregoriano ou de um “mantra”, o que fez o antropólogo Ismael Pordeus Jr. cochilar, de tão relaxante. Vale também relembrar a tranquilidade com que falava, sem a eloquência que se espera de um pregador popular, e sem a arrogância dos donos da verdade. Mestre Joaquim era um homem doce na compreensão das fraquezas dos outros, e rígido na observância às normas da ordem. Era contra a bebida durante os rituais, e rejeitava a presença das

mulheres durante a flagelação, um estopim perigoso, nas caladas das noites, quando deviam prevalecer a dor e o sofrimento. Tânatos triunfaria sobre Eros, e a vida continuaria, no dia seguinte, com as mesmas foices e enxadas na roça, as mesmas conversas com os vizinhos, e a mesma vidinha de sempre, entoada como um louvor. Não nos interessávamos pela flagelação. Era uma cerimônia íntima demais para merecer um registro, e não queríamos sangue, queríamos paz, elevação espiritual, e entender o segredo daquelas esculturas tão duras, cortadas a facão, capazes de provocar a emoção mais forte, pela sinceridade, pela contundência dos cortes, e pela poesia dos nós da madeira, da falta de acabamento, e da expressividade que ele conseguia com poucos elementos e sem recurso aos truques. As esculturas vieram pela observação das imagens da Igreja Matriz de Santo Antonio, padroeiro de uma Barbalha com

água farta, plantações de cana, engenhos de rapadura, e até uma usina falida de açúcar. Com a observação, veio o desejo de esculpir, como uma forma de se sobrepor à rotina dos aviamentos das casas de farinha, ao madeiramento dos telhados das casas, e aos móveis rústicos e sem um desenho mais sofisticado, que ele fabricava desde jovem, no intervalo das atividades da roça. A madeira era umburana, a mesma das matrizes das xilogravuras, usada, por ser dócil ao corte, “feminina”, no dizer do poeta e gravador Abraão Batista, proibida pelas autoridades, o que faz com que este material para a expressão artística se torne clandestino. Santo Antonio foi a primeira imagem e a lembrança mais viva. O São Sebastião, no entanto, fazia a ponte entre a reverência do penitente e a alegria do escultor devoto. O santo mártir protegia contra a fome, a seca, e a peste. Estava num dos benditos ensinados pelo Padre Ibiapina, e incorporado ao repertório dos penitentes. A Nossa Senhora da Conceição era a herança da colonização portuguesa. A madona trazia os anjos nos pés e a aura de Mãe de Jesus a abrir as portas, cada vez mais trancadas, do mundo. Mestre Joaquim fazia seus próprios instrumentos. Melhor dizer que ele os improvisava, com lascas de metal, restos de facas e facões, colocando cabos de madeira, e assim cortava rostos, detalhes das mãos e pés, fazia o panejamento dos mantos, e sempre se pautava pela iconografia da Igreja Católica, respeitando os atributos e a visão canônica. Ao mesmo tempo, imprimia sua marca, nesse meio termo entre a delicadeza e a “grossura”, optando pela contenção, pela força que se potencializava na secura do corte, na limpeza da composição, e na proposta, da qual ele nem se devia dar conta, de um outro barroco, também de oposições (entre o todo e as partes, o céu e a terra, o pecado e a purgação), de exagero (aqui da contenção) e de fervor. Mestre Joaquim talvez seja uma das assinaturas mais vigorosas da escultura religiosa sertaneja, que condensa para exprimir, que opta pelo mínimo, ao invés de CARIRI REVISTA 63


FRANCISCO SOUSA

Contrição e fervor nas mãos hábeis de Joaquim Mulato

se derramar pelas volutas, pelos torneados, e pelas sinuosidades dos mantos. É uma escultura essencial, daí sua mestria. Ele desenvolveu uma série de mais de cinquenta “vultos”, que fazem parte do acervo do Museu de Arte da UFC. Curioso como ele gostava de “encarná-los”. Tinha pincéis precários e latinhas de tinta a óleo (esmalte), de uma marca comercial que servem para pintar portas das casas. Ele ficava frustrado com as “encomendas” porque não podia exercitar a “encarnação”. Constatou, a contragosto, que existiam as peças para devoção, com as cores exuberantes das paletas das fábricas, e outras para os museus, para a “cultura”, como se referia a elas. Não aceitava pagamento, mas cestas básicas que iriam para a despensa dos que preparavam suas refeições. Mas o alimento que o preocupava era o do espírito. Queria estar bem com Deus e não hesitava, junto com o grupo do qual fazia parte, a purgar, por meio dos “cachos” das disciplinas, os pecados do mundo. Um dos cachos tinha sido herança do Padre Ibiapina, sempre uma referência das histórias que contava das curas; das caminhadas pelos cruzeiros, cemitérios, e capelas da região; dos sangramentos; dos exemplos e da disseminação de um catolicismo que o povo modelou e difundiu a seu modo. 64 CARIRI REVISTA

O universo da penitência começou a ganhar espaço com a gravação do documentário (não editado) “A Noite dos Penitentes”, de Jefferson de Albuquerque Jr, Cristina Prata e Maria do Carmo Buarque de Holanda (Pií), de 1978. Depois veio a publicação de “Cultura Insubmissa”, de Oswald Barroso e Rosemberg Cariry, em 1982. O texto de Cariry fugia ao clichê do “fanatismo”, expressão fartamente usada para se referir a essas práticas devocionais. Em 2000, Rosemberg Cariry e seu parceiro Calé Alencar, tiveram a sensibilidade de levar o grupo a um estúdio, para gravar os benditos. O CD foi lançado e tornou possível a reprodução técnica de um canto até então reservado a poucos. Não era justo que aquelas vozes de anjos sertanejos fossem privilégio de iniciados. Agora, o “bodejado” poderia ser fruído por muitos. Petrus Cariry assinou o documentário “A Ordem dos Penitentes”, em 2002. Josiane Ribeiro publicou, em 2006, sua dissertação, defendida no Mestrado em História da UFC, sobre Padre Ibiapina, intitulada “Penitência e Festa”. Tudo isso os levou a uma excursão além dos muros de Barbalha, dentro do Programa Sonora Brasil, do SESC. Desde a segunda metade dos anos 1990, eles desfilavam, meio sem jeito, no cortejo da Festa do Pau da Bandeira.

Por conta da mídia e do envelhecimento do Mestre Joaquim, os conflitos começaram a se evidenciar e se instalou no grupo uma tensão que culminou com uma forte discussão e um afastamento entre o “decurião” (Mestre Joaquim) e o “segundo” na hierarquia do grupo, Seu Severino. A exposição dos penitentes trouxe alguns benefícios. Joaquim Mulato foi escolhido Mestre da Cultura Tradicional Popular do Ceará, e ganhou um banheiro construído ao lado de sua casa pela Prefeitura de Barbalha, num programa de instalação de “kits” sanitários. As desvantagens vieram com o “progresso”, o asfaltamento da estrada que implicou a construção de um botequim, quase em frente à sua casa. Poderia ser uma “provação”. O som era ensurdecedor e atrapalhava as conversas. A bebida rolava solta e o barulho das motos era um incômodo contraponto àquele mundo, ao mesmo tempo, celestial e telúrico. Uma dessas motos colheu um dos penitentes, e Joaquim Mulato foi morto também em consequência do atropelamento por uma dessas geringonças, adquiridas graças aos consórcios pagos, quase sempre, por meio da pensão dos idosos. Outra provação foi o fato de ter sido convidado a viajar para o Rio de Janeiro e de ter sido colocado em um carro alegórico da Mangueira, em pleno desfile de carnaval de 2006, no sambódromo da Marquês de Sapucaí, como parte do enredo que defendia a transposição das águas do São Francisco para o semi-árido nordestino. Nem o “barroquismo” de Glauber Rocha poderia imaginar situação tão lancinante. O Mestre pode ter fechado ou aberto bem os olhos e / ou vivido ali, seu instante de epifania, sobrevoando aquele cortejo de dragões pirotécnicos, carrancas monumentais, monstros ribeirinhos, bestas feras, serpentes voadoras, e compreendido, que a festa contribui (mesmo que por vias tortas) para a maior glória de Deus, muito mais generoso e compassivo do que pretende nosso fundamentalismo.


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#caririhobby

ARQUIVO PESSOAL

José Hugo e Nelinho de Freitas fazem da pesca ao tucunaré seu hobby preferido

CONVERSA DE PESCADOR Para relaxar, para esquecer, para exercitar, para divertir… Um hobby é um prazer que tem segredos e estratégias. Abrindo a nova seção da Cariri Revista, conversamos com os empresários Nelinho de Freitas e José Hugo, campeões na arte de fisgar grandes peixes.

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erritorial, voraz, brigador, o tucunaré é uma paixão quase obsessiva para aficionados do Brasil inteiro, que viajam quilômetros em busca das águas doces e paradas onde os cardumes repousam. De variados tipos, colorações e tamanhos, esses peixes de corpo alongado nasceram nos rios da Amazônia, mas já se espalharam pelo Pantanal e os açudes do Nordeste. “Para qualquer pescador esportivo, o que apaixona é a forma como o tucunaré pega a isca, o desafio que isso

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representa. Ele chega a sair da água, pra tentar jogar a isca artificial fora. Isso, quando ele não quebra a linha. Ou a vara!”, vibra Rondinelle de Freitas, o Nelinho, 29 anos, dono da Multi Resíduos, empresa que gerencia resíduos sólidos em Juazeiro do Norte. Ao seu lado, o também empresário José Hugo, 58 anos, sócio do buffet Beijo Doce, arremata: “Ele luta de um jeito que apaixona todo mundo. É um peixe muito esportivo, muito brigador. Para pegar um tucunaré, você tem que cansá-lo antes. Tem que usar bem o sistema


CONTRA A PESCA PREDATÓRIA “A pescaria é um prazer, uma emoção, mas precisamos colocar na cabeça de outros pescadores a ideia do pesquee-solte. Muitos amigos nossos já estão aderindo”, informa Nelinho. Hugo detalha melhor a preocupação dos pescadores conscientes: “Hoje está acontecendo uma pesca predatória, de mergulho, a chamada caça submarina. Essa pesca acontece até de noite — e não é difícil, porque o tucunaré é um peixe territorial, que ica sempre numa determinada região. Os caras entram com arpão e lanterna. Assim que o peixe vê a lanterna, se aproxima e eles matam. Matam principalmente os grandes, prejudicando a reprodução, porque esses peixes grandes são os que protegem a ninhada. Se você tirar

um deles, acaba com a ninhada inteira, que ica indefesa”. A pesca esportiva, ao contrário, não ameaça o equilíbrio ambiental. Gera inclusive uma fonte extra de renda para a população do entorno. “Em Nova Jaguaribara, muita gente vive disso: há guias que nos conduzem para os locais de pesca”. Pescadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e outros lugares são atraídos pelos tucunarés gigantes. “Mas se esse tucunaré grande acabar, acaba todo esse movimento”, advertem os pescadores de Juazeiro, que citam ainda como ameaças (embora menores) os pescadores de redes e o ribeirinho desinformado que pega peixes abaixo do peso ideal.

de carretilhas, acochar o freio para o peixe ir cansando, até ele chegar perto”. A pescaria é um hobby muito sério para o grupo de 10 a 12 membros em que Nelinho e Hugo se incluem. Moradores de Juazeiro do Norte, eles excursionam pelo menos uma vez por mês ao Castanhão, onde passam dois dias sob o sol, na luta com os valentes tucunarés, que chegam a pesar 5 ou 6 kg. “Recentemente, um amigo nosso bateu o recorde, pegando um peixe de 11 kg e 800 gramas”, comemoram os amigos, mostrando a foto do feliz pescador com a sua presa. Importante dizer que depois da foto o bicho é solto. Isso mesmo. Para espanto de muitos, Hugo e Nelinho são adeptos do “pesque-e-solte”. Ou seja, libertam o peixe depois de fisgá-lo, ajudando a preservar a espécie, já que a imensa maioria sobrevive depois que volta às águas. “Ficamos com os menores, para assar à noite”, dizem os amigos, explicando que o que vale é a emoção da luta; a vitória suada sobre o

hábil e resistente tucunaré, um comilão que só pega iscas em movimento. Incentivado por um tio, Hugo começou a pescar aos dez anos de idade. Nelinho iniciou-se aos cinco, por influência de um amigo da família. A pesca que faziam na infância era lúdica, simples, a velha pescaria “de espera”, bem diferente da que praticam atualmente, um hobby de equipamentos sofisticados. Nelinho inclusive tem um barco. Hugo recorda os velhos tempos: ““Eu, por exemplo, pescava nos açudes aqui de perto. Usava iscas naturais e anzóis; pegava traíra, piau, pescada, corró-baiano, os peixes da região”. Hoje a pescaria é com isca artificial, que se divide em diferentes tipos: de superfície, sub-superfície, meia-água e de profundidade. As varas são leves, de carbono; as linhas são mais resistentes, de multifilamento. Existem lojas na região com produtos de pesca. O que falta é pedido pela internet. Revistas e dvds sobre o tema também fazem parte da biblioteca básica dos pescadores esportivos.

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OBJETO DE DESEJO “O tucunaré só era conhecido na Amazônia e no Pantanal Matogrossense. Aqui no Nordeste surgiu ninguém sabe como. Talvez já existisse e fosse atrofiado. Quando o Rio Jaguaribe começou a despejar suas águas dentro do Castanhão, começaram a aparecer esses tucunarés enormes”, relata Hugo. Quase três vezes maior que o Orós, o açude Castanhão, em Nova Jaguaribara, abriga diferentes espécies de peixes, como o pirarucu, o pintado, a tilápia, o piau, a pescada, a sardinha… Mas a grande estrela das águas doces é mesmo o tucunaré. Nelinho, que tem um barraco perto do açude, explica que quando ele e os amigos vão pescar, geralmente saem de Juazeiro na tarde de sexta-feira e chegam ao destino no começo da noite. Passam o sábado e o domingo na luta. Às cinco da manhã já estão em busca dos melhores lugares para jogar a linha. O “expediente” só acaba às 17h30. É trabalho duro: como o tucunaré é atraído pela presa em movimento, o pescador não pode ficar parado, tem que jogar a isca continuamente na água, puxando sempre e cansando o braço. O dia inteiro no açude,

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sob o sol, não assusta a ala feminina. Márcia, mulher de Hugo, às vezes acompanha o marido, e na última pescaria fisgou oito tucunarés. Outro açude que eles frequentam é o Trussu, que fica mais próximo que o Castanhão, em Iguatu. Lá os peixes não são tão grandes, porque foram introduzidos há menos tempo, mas em março desse ano um pescador fisgou um tucunaré de 5 kg. Nelinho já foi pescar no Pará, no açude do Tucuruí, em Jacundá. Este ano trocou o carnaval em Fortaleza por quatro dias de pescaria no Castanhão. Planeja ir para a Serra da Mesa, em Goiás, onde se encontra o tucunaré-azul. Hugo explica que existem vários tipos de tucunarés, além do azul: o borboleta, o açu, o albino, o amarelo, o paca… No universo dos pescadores, cada espécie possui seus encantos, e todo encanto leva a um lugar. Existem aficionados que rodam o mundo atrás de seus peixes preferidos. O tucunaré, garantem Nelinho e Hugo, atrai gente até da Europa para o Castanhão. “Tem um cara da Alemanha que todo ano passa de um mês lá”, concluem os amigos, achando que isso é perfeitamente natural.


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#cariricolunadesaúde

DIABETES

e veias. Como o diabetes compromete a circulação nos pequenos vasos sanguíneos (retina e rins) e nos grandes vasos (coração e cérebro), fumar pode acelerar o processo e o aparecimento de complicações; •฀ O controle da pressão arterial e dos níveis de colesterol e triglicérides deve ser feito com regularidade; •฀ Medicamentos à base de cortisona aumentam os níveis de glicose no sangue. Não se automedique; •฀ O diagnóstico precoce é o primeiro passo para o sucesso do tratamento. Não minimize seus sintomas. Procure logo um serviço de saúde se está urinando demais e sentindo muita sede e muita fome.

•฀ Neuropatias diabéticas provocada pelo comprometimento das terminações nervosas; Na verdade, não se trata de uma doença única, •฀ Distúrbios cardíacos e renais. mas de um conjunto de doenças com uma característica em comum: aumento da con- FATORES DE RISCO centração de glicose no sangue provocado •฀ Obesidade (inclusive a obesidade infantil); TRATAMENTO •฀ Hereditariedade; por duas diferentes situações: O diabetes não pode ser dissociado de outras •฀ Diabetes tipo I – o pâncreas produz pouca •฀ Falta de atividade física regular; doenças glandulares. Além da obesidade, ouou nenhuma insulina. A instalação da doen- •฀ Hipertensão; tros distúrbios metabólicos (excesso de corça ocorre mais na infância e adolescência e •฀ Níveis altos de colesterol e triglicérides; tisona, do hormônio do crescimento ou maior é insulinodependente, isto é, exige a aplica- •฀ Medicamentos, como os à base de produção de adrenalina pelas supra-renais) ção de injeções diárias de insulina; cortisona; podem estar associados ao diabetes. •฀ Diabetes tipo II – as células são resistentes •฀ Idade acima dos 40 anos (para o diabetes O tipo I é também chamado de insulinodeà ação da insulina. A incidência da doença tipo II); pendente, porque exige o uso de insulina por que pode não ser insulinodependente, em •฀ Estresse emocional via injetável para suprir o organismo desse geral, acomete as pessoas depois dos 40 hormônio que deixou de ser produzido pelo RECOMENDAÇÕES anos de idade; pâncreas. A suspensão da medicação pode •฀ Diabetes gestacional – ocorre durante a •฀ O tratamento do diabetes exige, além do provocar a cetoacidose diabética, distúrbio gravidez e, na maior parte dos casos, é acompanhamento médico especializado, metabólico que pode colocar a vida em risco. provocado pelo aumento excessivo de O tipo II não depende da aplicação de insuos cuidados de uma equipe multidisciplipeso da mãe; nar. Procure seguir as orientações desses lina e pode ser controlado por medicamentos •฀ Diabetes associados a outras patologias profissionais; ministrados por via oral. A doença descomcomo as pancreatites alcoólicas, uso de •฀ A dieta alimentar deve ser observada cri- pensada pode levar ao coma hiperosmolar, certos medicamentos, etc. teriosamente. Procure ajuda para elaborar uma complicação grave que pode ser fatal. o cardápio adequado para seu caso. Não Dieta alimentar equilibrada é fundamental SINTOMAS é necessário que você se prive por toda a para o controle do diabetes. A orientação de •฀ Poliúria - a pessoa urina demais e, como isso vida dos alimentos de que mais gosta. Uma uma nutricionista e o acompanhamento de a desidrata, sente muita sede (polidpsia); vez ou outra, você poderá saboreá-los des- psicólogos e psiquiatras podem ajudar muito a reduzir o peso e, como consequência, •฀ Aumento do apetite; de que o faça com parcimônia; •฀ Alterações visuais; •฀ Um programa regular de exercícios físicos cria a possibilidade de usar doses menores •฀ Impotência sexual; irá ajudá-lo a controlar o nível de açúcar no de remédios. •฀ Infecções fúngicas na pele e nas unhas; sangue. Coloque-os como prioridade em Atividade física é de extrema importância •฀ Feridas, especialmente nos membros infesua rotina de vida; para reduzir o nível da glicose nos dois tipos riores, que demoram a cicatrizar; •฀ O fumo provoca estreitamento das artérias de diabetes. Por Drauzio Varella

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#caririgastronomia

PARA TODAS AS OCASIÕES Por Sérgio Pires [Ex-funcionário do Banco do Brasil, praticante de karatê e diretor responsável pela comunicação da ABS-DF, Associação Brasileira de Sommeliers. No momento elabora dois livros sobre vinho, devidamente engavetados ao lado da adega]

UMA GARRAFA DE BOLLINGER Jacques Bollinger faleceu em 1941, em pleno período da ocupação alemã, sua viúva, Lily Bollinger, assumiu a administração da famosa casa de champagne Bollinger, fundada em 1829. Ela dirigiu a empresa até a morte, em 1977. A Bollinger prosperou sob a liderança de Lily, dobrando de tamanho. Ela era uma figura amada em Champagne, onde costumava ser vista andando de bicicleta pelos vinhedos. Em 1961, quando um repórter de Londres perguntou em que ocasiões ela bebia champagne, Madame Bollinger respondeu: “Só bebo champagne quando estou feliz e quando estou triste. Ás vezes, bebo quando estou sozinha. Quando estou em companhia, considero obrigatório. Bebo um golinho se não estou com fome e bebo quando estou com fome. Caso contrário, nunca toco nele, a não ser que esteja com sede”. UM BRINDE PLANETÁRIO No dia 17 de abril, a Wines of Argentina, entidade privada que reúne as adegas argentinas, celebrou, pela segunda vez, o Dia Mundial do Malbec. Em mais de trinta países aconteceram eventos de degustação, promoções em restaurantes e até brindes — nas alturas — em balões aerostáticos. A Argentina busca assim se consolidar como o “país do Malbec”, onde ele é praticamente o “vinho nacional” e um im74 CARIRI REVISTA

Conta-se que, certa vez, Ana Bolena portante embaixador do país. Em Brasília as celebrações foram realizadas na Embai- (1507—1536), segunda mulher do rei Henxada da Argentina. rique VIII, da Inglaterra, mandada decapitar pelo marido sob a acusação de adultério e MAIS UM BRINDE incesto, tomou banho diante dos cavaleiros Na Inglaterra o brinde se popularizou no sé- da corte. Um deles ficou maravilhado com culo 16. Sua origem está ligada ao alimento, o corpo da soberana. Pegou um copo, tanto que, em inglês, brinda-se com a palavra encheu-o com a água do banho e bebeu, “toast” (torrada). Explica-se: os ingleses tinham saudando os demais. Só um cavaleiro se o hábito de colocar um pão torrado no cálice. recusou a participar do ritual. Interpelado, Ao brindar à saúde de alguém, era preciso explicou porque quis ficar de fora: “Gostaria tomar todo o vinho para comer aquela torrada. de reservar-me para o toast”.


NACIONAIS X IMPORTADOS Um grupo de empresários do Rio Grande do Sul, com apoio da bancada gaúcha no Congresso Nacional, defende, num suposto interesse da indústria nacional, o estabelecimento de um sistema de cotas de importação, além da elevação das alíquotas do vinho importado dos atuais 27% para 55%. O argumento dos produtores nacionais é de que o consumo de vinho nacional está estagnado, enquanto que o de vinho importado vem crescendo de ano para ano. Ao invés de analisar quais são as razões para tal estagnação, os empresários miram sua estratégia em aumentar, mais ainda, o preço do produto importado. De acordo com diversos importadores consultados, o preço do vinho europeu, para nós consumidores finais, sofre um

acréscimo de 500% em cima do valor original. Ou seja, um vinho que custa € 2.00 na Europa, chega às prateleiras brasileiras a € 10.00. Com as novas medidas, seriam acrescidos a este valor final, no mínimo, mais 20%. E o vinho, já tão encarecido, sairia por € 12.00. Muitos analistas comentam que a solução é desonerar o vinho brasileiro, tornando-o mais barato e competitivo. Mas esta é apenas parte da equação, a melhora da qualidade do vinho nacional é um ponto crucial. Segundo dados da UVIBRA - União Brasileira de Vitivinicultura, em 2011, de toda a produção de vinho do Rio Grande do Sul, apenas 7,83% foi obtida de vinhas viníferas, ou seja, mais de 90% é vinho de garrafão, produzido com uvas americanas. Será que

é este o produto que eles querem que nós passemos a beber? Na história econômica do Brasil, proteção de mercado sempre significou produto nacional de baixa qualidade e com preço elevado pela falta de concorrência. Nunca pensei em dizer isto, mas tenho de aplaudir a iniciativa de formadores de opinião como os chefs Roberta Sudbrack e Alex Atala, que estão boicotando estes produtores gaúchos. Vinho não é uma commodity com preço tabelado internacionalmente. Cada vinho é um produto único, fruto da combinação de diversas variáveis: uva, solo, clima, condições de plantio, vinificação, madeira do barril, assemblage e diversos outros. Se o meu dinheiro não der para tomar um bom vinho, a minha primeira opção não será tomar um vinho ruim, mas sim, talvez, uma boa cerveja.

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#caririespaçogestão

UMA NOVA DIMENSÃO Por Renato Fernandes

Foi-se o tempo em que a competitividade de uma empresa era, quase exclusivamente, definida pela relação custo/benefício de seus produtos. Ou a afinidade com o consumidor determinada pelo design da logo e impacto do slogan. No contexto mercadológico dinâmico e competitivo que experimentamos hoje, o sucesso ou fracasso de uma corporação passa pela sua aceitação social. Isso reforça a importância e a atuação do marketing corporativo na missão de alinhar os ideais, valores e atitudes das empresas aos do mercado. Para uma empresa que busca projeção e visibilidade, agir para atender às expectativas ideológicas de seus consumidores e criar uma relação sentimental é imprescindível para desenvolver uma boa imagem institucional e posicionar-se estrategicamente. A necessidade impulsionou a consultoria Sart Dreamaker a desenvolver o ICHM Índice de Conexão Humana da Marca — uma pesquisa que indica o valor sentimental que os consumidores têm em relação às marcas, o que chamamos de “gut feeling”. O estudo avalia 34 pontos de conexão entre marcas e consumidores e mede a sensação, emoção ou intuição que elas despertam no mercado e, por consequência, a capacidade que têm de influenciar psicologicamente a compra. 76 CARIRI REVISTA

O ICHM informa às empresas, de forma transparente e sem ruídos, a imagem que o consumidor moderno — rico em informação, formador de opinião e exigente — faz das marcas, e como reage a elas, apontando parâmetros para ações que busquem estreitar seu relacionamento com um mercado que renova suas necessidades rapidamente. Assim, investir no posicionamento e na valorização da imagem institucional, tornou-se uma regra comum do marketing corporativo, criada para atender as relações comerciais em uma nova dimensão onde, para uma empresa, “vender” é a consequência de suas atitudes

e imagem de mercado; além dos aspectos promocionais. Iniciativas admiráveis que tendem, por exemplo, a preservar e potencializar a cultura, a sociedade e o meio ambiente, hoje, invariavelmente, recebem atenção e investimentos empresariais que são revertidos em marketing positivo, espontâneo ou não. É uma estratégia de sobrevivência, para as empresas que buscam ter longevidade, compreender o cenário social no qual se inserem e atender, dentro de suas possibilidades, aos anseios não materiais de seus consumidores. Fica a dica.


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INFORME PUBLICITÁRIO

Porto de

Fortaleza O Porto de Fortaleza, há quase 60 anos, conecta o Ceará ao Mundo. É a porta de entrada e saída de grande parte das mercadorias e tecnologias comercializadas pelo Estado.

F

undamental na economia cearense, a história do Porto de Fortaleza, ou Porto do Mucuripe, como também é popularmente conhecido, impulsiona a economia cearense e acompanha o desenvolvimento econômico do Estado. Hoje, cumprindo seu papel de catalisador econômico, executa o Plano de Expansão e Modernização; área de atracação mais profunda, terminal de passageiros, novo cais e outras tantas melhorias fazem parte do projeto de ampliação do Porto de Fortaleza. Com localização privilegiada, próximo à África, Europa e à Costa leste dos Estados Unidos, o Porto de Fortaleza se conigura como um dos principais canais de transporte de cargas da região Nordeste do país para o exterior, em especial, por possuir acessos terrestres diversos, que o conecta a rodovias federais – BR-116, BR-222 e BR-020, a rodovias estaduais – CE-085, 78 CARIRI REVISTA


OBRAS E INVESTIMENTOS: PAC Copa – R$ 150 milhões. - Terminal de passageiros - Urbanização de área - Pátio para contêineres PAC 2 – R$ 60 milhões. - Aprofundamento da área de atracagem (derrocagem) - Armazém - Nova pavimentação Outros. - Iluminação - Combate a incêndio - Abastecimento de água - Novas defesas do cais - Ampliação das tomadas frigoríicas

CE-040 e CE-020 – e o integra a ferrovia Transnordestina. Um elo fundamental na cadeia logística regional, que atua como agente de desenvolvimento econômico e social não apenas do município de Fortaleza, mas de todas as regiões do Estado, inclusive o Cariri, de onde são oriundos diversos produtos exportados pelo Porto de Fortaleza, como redes de dormir, máquinas de costura, frutas e calçados, por exemplo. Pela estrutura do píer petroleiro do Porto de Fortaleza chega todo petróleo bruto para reino e transformação em óleos naftê-

nicos e asfalto; os derivados de petróleo, suprindo a demanda de consumo dos meios de transporte em todo o Estado; e o GLP (gás de cozinha). Também pelo Porto de Fortaleza vem o trigo, matéria-prima principal para a produção de farinha de trigo de três grandes moinhos instalados no Ceará que fazem do Estado o 2° maior pólo moageiro do Brasil. Além do combustível e do trigo, outra grande vocação do Porto é a exportação de castanha de caju, calçados e frutas, como melão, manga, banana, melancia, uva, acerola, mamão, abacaxi e lima-ácida. CARIRI REVISTA 79


O Porto de Fortaleza como vetor do desenvolvimento social. Gerador de 1.000 empregos diretos, o Porto de Fortaleza se preocupa em atender as necessidades tecnológicas do mercado; as operações portuárias vêm se tornando cada vez mais modernas. E, para o novo mercado de trabalho, a Secretária de Portos da Presidência da República, em conjunto com a Companhia Docas do Ceará, inaugurou em 2010 o Centro Vocacional Tecnológico Portuário de Fortaleza, uma ferramenta voltada para a qualiicação e requaliicação proissional. Constituindo-se como a maior ação de Responsabilidade Social Empresarial da Companhia Docas do Ceará, envolvendo trabalhadores, prestadores de serviço e moradores das comunidades do entorno, fortalecendo a relação Porto/Cidade. O Centro Vocacional Tecnológico Portuário oferta mais de 20 cursos, entre eles, Artíi-

Os números de exportações e importações feitas através do Porto de fortaleza no mês de março de 2012 em (dólares): Exportações: U$$ 34.720.386,00 31,85% do total das exportações cearenses.

Importações: U$$ 39.262.499,00 20,53% do total das importações cearenses.

Fonte: IPECE - Instituto de Pesquisa e Estratégia do Ceará.

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ce da Construção Civil, Auxiliar de Farmácia Comercial, Básico em Secretariado, Bombeiro Hidráulico, Digitação, Educação Ambiental, Marketing Pessoal e Qualidade em Atendimento. Todos ministrados por professores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Sua estrutura conta com salas de aula, auditório, videoconferência, laboratório de eletromecânica, laboratório de informática e biblioteca. Resultado de Investimento do Governo Federal de R$ 1,8 milhão. Em 18 meses, o Centro Vocacional Tecnológico Portuário formou mais de 3.000 alunos. Hoje, o projeto social vive um segundo momento, com cursos técnicos direcionados às atividades portuárias e turísticas, tendo em vista a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

A via marítima é o mais acessível meio para as exportações. Economicamente viável, o transporte de mercadorias aquaviário possui alto índice de segurança e baixo impacto ambiental.


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#caririespecial

Blumarine

Por Dukke

Dukke, 17 anos, integrante do Coletivo CafÊ com Gelo. É estilista e ilustrador.

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