Cariri Revista - Edição 7

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#caririeditorial

CARO LEITOR, Nossa sétima edição chega cheia de cores e matizes, misturando antigos saberes e novas tecnologias, raízes culturais e voos cosmopolitas – como convém a uma região que se destaca pela inquietude dos jovens talentos e o brilhantismo de seus velhos mestres. Surpreender é um verbo que os caririenses conjugam enquanto fazem arte, ciência e planos para o futuro. E o futuro está aqui. Decolamos rumo a ele com a consolidação do aeroporto regional, que está sendo absorvido pela Infraero após uma longa luta, cujos pormenores você vai conhecer na matéria que abre essa edição. Presente, passado e futuro se unem na arte de João Pedro do Juazeiro, que estampa a nossa capa, ganhando espaço para contar histórias e mostrar as mais belas xilogravuras. Sem dúvida, um mestre moderno de uma técnica muito antiga. Para os que têm fé, não importa o tempo verbal. O que virá está sempre atrelado ao que fazemos agora. Por isso os umbandistas e candomblecistas tocam os seus tambores e enfrentam os preconceitos, expressando suas crenças em nome do que é perene, duradouro, não-transitório. Vamos entrar nos terreiros e descobrir o que é um ebó. Por falar em fé, Roger Pires esteve em Barbalha, nas comemorações do Pau da Bandeira, e deixa aqui

suas impressões sobre a festa sacra mais profana do Brasil. Vamos conhecer também o projeto “Mulheres de Palha”, que capacita as artesãs do Horto, e dar um pulo na Lira Nordestina, antiga editora de cordéis. O futuro passa por novas práticas cotidianas e uma profunda consciência ambiental. Raquel Arraes foi conhecer os caminhos e desvios do lixo, e nos conta o que é preciso fazer para sepultar o passado sem prejudicar o amanhã. Nesta edição, tivemos o prazer de conversar com o escritor Emerson Monteiro e contamos novamente com a arguta colaboração do pesquisador Gilmar de Carvalho. Para encerrar, nada como as dicas do nosso sábio Sérgio Pires, especialista na arte de viver bem, beber o vinho certo e comer em harmonia. Boa leitura para todos!

Editora-Geral: Tuty Osório

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#caririconexão Por Lara Costa

A 6ª edição da nossa revista encerrou um ciclo de um ano. Até aqui, muita receptividade dos internautas, leitores e amigos. A publicação mantém a promessa de espalhar conteúdo de qualidade, pelo Cariri e pelo mundo, sem jamais se afastar de suas origens. A proposta de tornar o Cariri um patrimônio universal é reforçada pela nossa presença na web, abraçada com muito carinho por todos. E assim chegamos ao 7 º número e a uma nova fase. Boa leitura!

E-mail É a segunda vez que escrevo para falar de minha alegria pela Cariri Revista. Parabéns pelo ótimo nível das matérias, redação e programação visual. Dá gosto ler. Abraço aqui do Recife. Ronaldo Correia de Brito.

Facebook Parabéns pela magnífica 6º edição da revista. Apresentar a importância biológica e simbólica do soldadinho do araripe é, além de cultura, uma lição de cidadania. Vocês são maravilhosos! Eva Campos

Nesta sexta edição, os que fazem a revista mais uma vez surpreenderam com a qualidade do material. Parabéns. Fiquei surpresa com as reportagens do Escultor José Rangel, também sobre Sabores de Jardim, bem como ver um esportista da terra, Rafael Santos, como destaque da reportagem MMA. Parabéns aos que fazem esse meio de comunicação!!! Ana Herica Rangel

Tweets @a_dcarvalho Anderson Carvalho, estudante de design

É bem escrita, bem diagramada, graficamente organizada, as fotos são boas, e é da terrinha! Aqui no Cariri agora a moda é ler a @caririrevista.

@maricotamaria Mariana Tamas, designer

Tocante o trabalho de Afra Colodette inspirado na Fundação Casagrande. Parabéns pela matéria e pelas belas fotos, @caririrevista!

@LeylianneAlves Leylianne Alves, jornalista

Vejo a @caririrevista e lembro como é bom ver o Cariri do Mundo. Especialmente por meio de belas fotos dos “Caretas”.

@leandronetos Leandro Neto

Vou onde preciso for para garantir minha @caririrevista.

A Cariri Revista é simplesmente um absurdo. As matérias belamente escritas, as fotografias sugestivas e uma identidade própria como ainda não tinha visto neste estado. Parabéns a todos que a fazem! Só vi a edição 06, com Maria Gomide na capa e foi paixão à primeira leitura. Claro que assinarei já!!! Gilmar Costa

Envie sua mensagem para Cariri Revista pelo e-mail: contato@caririrevista.com.br, twitter: www.twitter.com/caririrevista ou Facebook: www.facebook.com/CaririRevista.

@marianamarques Mariana Marques, publicitária

Sou fã da @caririrevista. Parabéns pelo design, pela qualidade dos textos e pelo retrato tão particular do Cariri!

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#edição o7 CAPA DESTA EDIÇÃO

João Pedro do Juazeiro FOTO: Caio Paiva

CAPA

EXPEDIENTE DIRETORES Isabela Bezerra Renato Fernandes

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EDITORA-GERAL Tuty Osório tuty@caririrevista.com.br EDIÇÃO DE TEXTOS E REDAÇÃO Claudia Albuquerque claus.albuquerque@gmail.com PROJETO GRÁFICO Fernando Brito DESIGN GRÁFICO Álvaro Beleza Lívia Beleza REPORTAGEM E REDAÇÃO Raquel Arraes Sarah Coelho Roger Pires Lara Costa FOTOGRAFIA Rafael Vilarouca REDES SOCIAIS Lara Costa www.twitter.com/caririrevista www.facebook.com/caririrevista DIREÇÃO DE ARTE EM PUBLICIDADE Rubênio Lima PUBLICIDADE (88) 3085.1323 | (88) 8855.3013 comercial@caririrevista.com.br

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Gilmar de Carvalho Sérgio Pires

DESENVOLVIMENTO

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ECONOMIA CRIATIVA PICOTADO

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70 CULTURA

CONVERSA

63

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SUSTENTABILIDADE

SUSTENTABILIDADE

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GASTRONOMIA ARTIGO

89 49

LITERATURA

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#cariripicotado

EXPEDIÇÃO FOTOGRÁFICA GEOPARK Sob a batuta do fotógrafo Allan Bastos, o projeto itinerante de vivência em fotografia “Expedição Fotográfica Geopark”, é uma ação coordenada entre fotógrafos profissionais, amadores e aficionados registrando o cotidiano da cidade, paisagens e pessoas do território do Geopark Araripe. O projeto se desenvolve a partir da visita dos fotógrafos em uma das nove cidades que sediam os geossítios para, a partir dos diversos olhares assumidos durante a vivência, um acervo fotográico ser produzido. Posteriormente há uma troca de experiências e a socialização dos resultados da oicina com projeção pública para toda a comunidade local. A primeira ação se deu na cidade de Santana do Cariri, envolvendo doze pessoas apaixonadas por fotograia e pelas riquezas do Cariri. O grupo se hospedou no Museu de Paleontologia e saiu em várias caminhadas pelos municípios de

Santana do Cariri e Nova Olinda, registrando o cotidiano da cidade. A segunda Expedição aconteceu no geossítio Sítio Fundão, no Crato. O grupo pôde conhecer o único sobrado de taipa da região do Cariri, as ruínas do primeiro engenho da região, afora contemplar as águas do rio Batateiras que corta a propriedade do Fundão.

A RELEITURA DA TRADIÇÃO ARTHUR LUIZ

Fundada pela gestora cultural Dane de Jade, a ONG Beatos – Base Educultural de Ação Trabalho e de Organização Social – vem há mais de um ano promovendo ações que contemplam a tradição cultural caririense: reisado, lapinha, cabaçal, côco, São Gonçalo e maneiro-pau, bem como todas as linguagens artísticas alinhadas à música, teatro, dança e audiovisual. A ideia é promover uma releitura da experiência do Caldeirão do Beato Zé Lourenço em uma perspectiva contemporânea, considerando os aspectos eruditos da arte. 12 CARIRI REVISTA

A ONG funciona em um sítio no sopé da Chapada do Araripe. Ao longo desse ano realizou diversas intervenções integradoras entre artistas e comunidade, como o I Encontro de Contadores de História de Trancoso, o Encontro dos Mestres da Tradição e o Encontro de Músicos. Além dos intercâmbios culturais, promove festejos nos dias de tradição, ações em sustentabilidade e organização comunitária. Os próximos passos são a abertura do Museu da Tradição, o Teatro Beatos, mini-cinema, cozinha gastronômica, galpão de costura, redário e Praça dos Poetas.


PERCURSOS URBANOS NO CARIRI Depois de nove anos de experiência em Fortaleza, o projeto PerCursos Urbanos está completando um ano de implantação no Cariri. Em Fortaleza, os responsáveis são a ONG Mediação de Saberes e o CCBNB. No Juazeiro, o PerCursos Urbanos conta com o apoio da Universidade Federal do Ceará, por meio de um projeto de extensão do curso de Comunicação Social. O PerCursos Urbanos já aconteceu de forma extraordinária nas cidades de São Paulo, Porto Alegre e Rosário, na Argentina. O objetivo principal do passeio de sábado à tarde

é conhecer a diversidade cultural urbana existente na região do Cariri. O projeto pretende contemplar temas e públicos heterogêneos, com níveis de renda muito diversiicados, de diferentes segmentos sócio-culturais. Assim, a cidade “cresce”, tem sua percepção favorecida, tornando-se mais cosmopolita, ciosa de sua pluralidade e diversidade. O PerCursos funciona como um fórum de discussões sobre os desafios e as potências da região. Para participar, basta fazer a inscrição na recepção do Centro Cultural Banco do Nordeste.

JAVALU: ROTA NGONA CARIRI Javalu, verbete da família Kwa (dialeto Iorubá) designa “uma cerimônia festiva com danças e cânticos”, e Ngona, da língua kimbundu (do Banto), signiica “tambor”. Os dois termos são simbólicos e consubstanciam continuidades africanas trilhadas nas rotas e pelos repertórios dessas duas grandes famílias linguísticas, também transplantadas ao Cariri cearense. A exposição Javalu: Rota Ngona Cariri traz em fotograias a diversidade além do imaginado comumente. Também somos negros. A exposição fotográfica realizada pelo Coletivo Café com Gelo (www.coletivocafecomgelo. com) para o V Circuito SESC de Leitura já passou pela URCA e agora está indo para o Sesc-Crato. São danças e gestos incorporados nesses tantos terreiros de candomblé e umbanda presentes no Cariri.

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CAIO CESAR

O Bando: irreverência, criatividade e experimentações variadas

BANDOLEIROS EM AÇÃO O Bando surgiu em 2008 na cidade de Juazeiro do Norte com o desejo de experimentar, pesquisar, estudar, ver, ouvir, ler, sentir e criar conjuntamente a partir das experiências e percursos de cada integrante. Em permanente construção e busca da alteridade, a equipe possui 12 membros. Entretanto o número exato de bandoleiros é variável, pois o Bando está totalmente aberto a quem quiser participar, seja artista ou não. Desde sua criação, o grupo realizou diversas intervenções urbanas nas três cidades que forma o triângulo Crajubar. Dentre as experi-

mentações testadas pelo grupo: performances, grafite, lambe-lambe, exposições em galerias, instalações, vídeo-instalações, ato-ações de protestos políticos, festas e feiras. “Buscamos a experimentação de linguagens, signos, códigos, suportes. Sempre em interação, diálogo, correspondências, trocas, misturas e apropriações (in)devidas com outros grupos, pessoas, associações, cooperativas, instituições e manifestações estéticas de toda ordem, sobretudo as banais”, declara o bandoleiro Orlando Pereira.

O INIMAGINÁVEL DE TODOS NÓS Acaba de ser lançada a terceira novela gráica do cartunista e arquiteto Vitor Batista, que conta a história de um jovem de classe média que, por causa de problemas psicológicos e uso de drogas, passa a viver nas ruas de Fortaleza, entrando em contato com uma nova realidade. Ao buscar uma saída para o que vive, ele começa a criar para si um mundo totalmente imaginário, ou apenas, “O Inimaginável”. A história em quadrinhos para adultos demorou dois anos para ser inalizada e foi vencedora na categoria Luiz Sá do Prêmio de Literatura para Autores Cearenses, promovido 14 CARIRI REVISTA

pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará em 2010. Vitor Batista faz HQs desde a infância, tendo iniciado sua profissionalização ainda nos anos 90 ao ingressar na Oficina de Quadrinhos da UFC. Colaborou com estúdios, editoras independentes e eventos de quadrinhos em Fortaleza e Recife. Também ministra oficinas de quadrinhos autorais desde 2007. Visite o blog do artista: http://blogzdovitor.blogspot.com.br


GRUPO XICRA E O FIO DA XILO Formado por Carlos Henrique, Adriano Brito e Franklin Lacerda, o grupo Xicra é um coletivo de gravuristas que tem a inalidade de experimentar, difundir e divulgar a gravura, unindo as técnicas tradicionais com as chamadas práticas contemporâneas. O grupo ministra oicinas, expõe o material produzido e promove o diálogo entre artistas de diferentes linguagens e lugares, além de defender a multiplicação de saberes por meio da Biblioxicra, biblioteca formada pela doação de livros, catálogos, cadernos de artistas e gravuras de todas as partes do planeta. O Projeto “Fio da Xilo” começou através de uma proposição a grupos de jovens de 16 a 25 anos, que se dedicaram à produção coletiva, workshops, saraus e intervenções urbanas ligadas à xilogravura. A partir da documentação das ações no Cariri e em São Paulo foi produzido o livro “O Fio da Xilo – Uma Fábula em Cordel”, lançado em maio durante a SP ESTAMPA e em junho no Sesc Crato. O livro será distribuído gratuitamente em escolas, bibliotecas e centros culturais da região do Cariri.

BELA ORQUÍDEA E SEUS ACORDES Poesia e arranjos musicais em perfeita harmonia. Misturando os ritmos brasileiros com inluências do jazz, rock e blues, a banda Bela Orquídea conquista as plateias caririenses. Nascida em Crato no inal de 2011, a banda começou fazendo composições e ensaios na garagem de casa, antes do “parto prematuro” para os palcos. Com uma formação simples de guitarras, baixo e bateria, a Bela Orquídea conta com a experiência musical de ve-

teranos como Rodolfo (baixista da Mary Roots) e Anderson Matos, o Joe, ex-integrante da Nightlife. Juntam-se a eles Hitalo Mikael (guitarra e violão) e AC. Matos (bateria). “Tocamos nossos instrumentos em função de nossas almas. Compomos nossas músicas pra tocar sua alma através da nossa”, poetisa Anderson Matos, que combina suas técnicas de guitarra com arranjos limpos de violão.

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RAFAEL VILAROUCA

#cariridesenvolvimento

COMO NO SONHO DE SANTOS DUMONT Por tuty osório e roger pires

A absorção total do aeroporto regional do Cariri pela Infraero, regulamentada em portaria federal em março de 2012, foi comemorada com euforia por autoridades, população, profissionais do setor aéreo e visitantes. Depois de uma longa luta que envolveu até o Ministério Público, a portaria número 35 significa agilidade, investimentos e um planejamento adequado à prosperidade da região em segmentos diversos.

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C

onta uma versão triste da história de Santos Dumont que o inventor do avião teria se matado ao saber que sua criação transformara-se numa potente arma de guerra, utilizada para bombardear, do alto, soldados e civis. Destroçado com o uso cruel de seu invento, o gênio enforcou-se. O verdadeiro sonho que o moveu foi o de encurtar as distâncias, vencendo-as num menor espaço de tempo. Era uma ideia que revolucionava as comunicações, como fora o telefone e o rádio – os legítimos promotores da instantaneidade e da interatividade nas relações não-presenciais, bem antes do facebook e do twitter. Monsier Santos, como era chamado pelos amigos, sonhou certo e tinha razão. A presença de um aeroporto numa região revoluciona tudo. Traz consigo investidores, impulsiona os negócios, incrementa a educação e a saúde. Com o avião vem o mundo e as fronteiras são eliminadas. E quanto mais desenvolvimento o aeroporto traz, mais demandas cria. Por isso é um equipamento que necessita de constantes modernizações. Sua existência instala um ciclo que só será virtuoso se houver cuidados para que a estrutura aeroportuária acompanhe o crescimento exponencial de fluxo que ela mesma cria.

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O FUTURO JÁ COMEÇOU Entre pousos e decolagens, é possível perceber uma gama de sentimentos que transitam invisíveis num aeroporto. A angústia de ver o filho ir sem volta marcada para São Paulo. A despedida discreta entre filha e mãe, que passará poucos dias em Brasília a trabalho. A ansiedade pela chegada de uma prima que vem do Amazonas conhecer Juazeiro do Norte. O encontro já comum, mas cheio de carinho, entre namorados – quando um chega segunda-feira de Fortaleza para voltar às aulas na faculdade. Ter um aeroporto na cidade altera a dinâmica e o tempo das pessoas. Se antes a melhor opção era vir de ônibus ou de carro, agora quem vem para o Cariri já tem como alcançável a opção de vir voando e em poucos minutos estar aqui. O trecho aéreo mais utilizado, entre Juazeiro e Fortaleza, por exemplo, dura apenas 40 minutos. “Entregamos à ANAC, no final de dezembro, o Plano Diretor do aeroporto, que será o nosso guia, com a previsão do novo terminal de passageiros, da ampliação da pista, da instalação da pista paralela de táxi, do novo estacionamento e novas áreas para as empresas aéreas”, conta o superintendente regional da Infraero em Juazeiro, Roberto Germano, revelando tópicos do novo espaço que se edifica. “Trata-se de uma obra que começa agora e termina em 2015, porém prepara um aeroporto para 20 anos”, diz ele a respeito dos prazos. Por enquanto a verba autorizada restringe-se à construção, já em curso, de dois novos módulos operacionais que vão duplicar a área do terminal de passageiros. Em 2011 o aeroporto operou com cinco vezes a capacidade instalada. O atual terminal de passageiros ocupa 900 m2 de área construída. Os módulos terão 600 m2 para o embarque e 500 m2 para o desembarque. A estimativa é que os módulos atualmente em construção equacionem a demanda para os próximos três anos. Tempo em que a ampliação do novo projeto já estará quase concluída. “A Infraero só tinha a gestão do aeroporto. A responsabilidade de fazer benfeitorias era do Governo do Estado, que solicitou que a União assumisse – o que foi aceito. Dessa forma passamos a ter a responsabilidade total e a posse do terreno”, expõe Roberto Germano. Os aeroportos brasileiros têm status de funcionamentos diversos – são geridos integralmente pela Infraero ou por prefeituras, estados e empresas privadas, através de concessões. No caso de Juazeiro do Norte, a absorção do equipamento pela Infraero foi considerada o melhor caminho por todos os atores interessados na retomada da expansão.


RAFAEL VILAROUCA

Roberto Germano, da Infraero: plano diretor prepara o aeroporto Orlando Bezerra de Menezes para o futuro.

SINTONIA URGENTE COM O CARIRI QUE CRESCE Atualmente, a capacidade instalada para a operação do aeroporto é de dois voos por hora. São nove voos por dia. “Com a execução do Plano Diretor poderemos atender de quatro a cinco voos por hora, assim há a perspectiva do impacto sobre a queda dos preços das passagens”, expõe o superintendente da Infraero, acrescentando que houve uma discussão positiva com as empresas aéreas, no sentido de motivá-las para a queda dos preços. “Pode-se operar, por exemplo, com o voo cheio a tarifas menores, em vez de ter um voo ocupado só em 50% a tarifas maiores. O custo é o mesmo. Buscamos que as empresas aéreas se tornem mais compatíveis com o transporte rodoviário”, conclui. Desde 2006, o professor universitário Ricardo Ness utiliza os serviços do aeroporto pelo menos duas vezes por mês e avalia pontos positivos: “As opções de horários dos voos melhoraram e os preços, para quem compra com antecedência, estão muito bons. Cheguei a ver por R$ 99,00 o trecho para Fortaleza. Acredito que a concorrência é boa para o consumidor”. Aproveita, entretanto, para destacar algumas questões que merecem atenção. “Já passei por ocasiões em que a companhia

aérea cancelou o voo sem aviso prévio”, reclama. Além disso, Ricardo sugere melhorias estruturais. “A sala de embarque é muito pequena e não comporta a demanda”. A administração do aeroporto já percebeu essa necessidade e por isso a atual reforma prevê o aumento da área. “Estamos construindo uma sala de embarque e uma de desembarque que atendem, cada uma, 187 passageiros”, conta o superintendente Roberto Germano. Os espaços usados para isso abarcarão a atual continuação do saguão. “O objetivo é trazer mais conforto. Estamos aqui todos os dias e percebemos onde devemos melhorar”, afirma Germano. A reforma não foi concluída em abril deste ano, conforme diziam as primeiras previsões, porque a empresa vencedora solicitou a dilatação do prazo para a execução da obra, alegando falta de matéria-prima no mercado, existente apenas no Rio Grande do Sul. “Por isso, a reforma está parada há mais de um mês, mas não vamos ficar esperando. Já estamos nos adiantando aos fatos para saber se a empresa vai fazer ou não. Se não, abrimos uma nova licitação e outra empresa conclui a obra”, afiança Germano. A administração estima que até o final de 2012 os novos módulos estejam em funcionamento. CARIRI REVISTA 19


*A Cariri tratou desse tema na edição 05, ouvindo especialistas na área de turismo que avaliaram as potencialidades da região.

POTENCIAL DE EXPANSÃO DO TURISMO O superintendente Roberto Germano e o gerente de Operações Fernando Caldeira defendem a criação de uma espécie de Conselho de Turismo*, juntando todos os atores interessados, para uma mesa redonda capaz de unir os interesses em torno da expansão de visitantes na região. Argumentam que o Cariri tem potencial para essa união. “Quando foi da incorporação do aeroporto pela Infraero, fizeram uma campanha, Aeroporto já!, que uniu CDL, Sindilojas, os órgãos públicos… Essa mobilização até serviu para a nossa diretoria se sentir motivada a arcar com essa responsabilidade”, entusiasma-se Fernando Caldeira. O novo aeroporto prevê espaços com captação de luz natural para a economia de energia e uma pista para aviões de grande porte, que operam as linhas internacionais. “A internacionalização do aeroporto de Juazeiro do Norte, tão necessária, está muito próxima”, prevê Roberto Germano. A oferta de lojas de produtos e serviços, outra questão fundamental na expansão da estrutura, é sujeita a licitação, o que limita a escolha de

marcas ou modalidades específicas. “Licitamos uma lanchonete, mas não podemos determinar que tipo de sanduíche ou que tipo de suco ela tem que servir. Daí, atuamos na motivação, fazendo sugestões de diversificação, de um modo que se atenda melhor aos passageiros” conta Fernando. Parte dos funcionários do aeroporto são terceirizados – inspeção de passageiros, segurança, limpeza. Os de inspeção de passageiros fazem um curso específico da ANAC porque executam tarefas que exigem um alto nível de especialização. São capacitados previamente e ficam na reserva técnica, sendo convocados conforme a demanda. A reciclagem anual é obrigatória, após a qual prestam provas para que seja verificada a continuidade da aptidão para as tarefas que desempenham. A gestão da Infraero no Cariri revela um estilo de muita interlocução com a comunidade. A empresa mantém um programa de treinamento permanente, que aborda a segurança e a relação com as pessoas. As palestras são realizadas no próprio aeroporto e a comunidade é convidada. “Todas as partes envolvi-

DETALHES TÉCNICOS QUE FAZEM A DIFERENÇA Somente em 2010, quanto a pista do aeroporto regional do Cariri já detinha o PCN 31,5 foi possível receber a companhia aérea Azul, que começou a operar meses antes do centenário de Juazeiro do Norte. O PCN consiste na compactação da pista e deine o porte de aeronaves que podem pousar naquele espaço. Quanto maior a compactação, maior o porte passível de aterrisar. O mesmo PCN tornou possível receber a TAM, que só não iniciou as operações em 2011 porque o aeroporto abria durante 18 horas, e no horário solicitado o terminal estava fechado. Quando a Infraero decidiu abrir 24 horas, a TAM já havia realocado o voo destinado a Juazeiro do Norte para uma rota no Aeroporto Santos Dumont, do Rio de Janeiro, agendando o Cariri para uma data futura. O objetivo agora é conquistar o PCN de 60,65, que permite o pouso 20 CARIRI REVISTA

de uma aeronave 737-300, de jatos intercontinentais com capacidade de 280 a 320 passageiros. Relativamente ao tempo em que os aviões da GOL sofriam uma restrição de mais de 40% na ocupação de sua capacidade máxima de passageiros, por limitações do PCN, podemos considerar que houve uma grande evolução. Outra conquista importante para o aeroporto Orlando Bezerra é o ILS – Instrument Land System – radar em terra que guia o pouso do avião, equipamento bastante coniável, já existente em Fortaleza e em outros grandes aeroportos. Aumentar o tamanho da pista para 2.300 metros, viabilizando a decolagem de jatos para a Europa, Estados Unidos, Caribe e outros destinos internacionais é mais um incremento técnico importante no caminho da internacionalização, incentivando o luxo de cientistas e de turistas interessados no Geopark Araripe.


das participam, como os taxistas, por exemplo. São palestras de motivação para o bom atendimento, e o nosso auditório é na sala de embarque”, explica o gerente de Operações. O tesoureiro da Cooperativa de Taxistas, Rubens Rubens Izidro, considera que o aeroporto possibilitou a organização dos motoristas, os quais passaram a prestar um serviço de maior qualidade e com melhor controle de preços. “Hoje podemos investir mais em veículos e treinamento, porque trabalhamos cooperados. O aeroporto qualificou a categoria. E o faturamento também aumentou, tornando o trabalho mais rentável”, comemora Rubens. O superintendente Roberto Germano emociona-se ao citar o reconhecimento ao trabalho empreendido. “Numa entrevista que deu na rádio, o Zé Roberto Celestino, vice-prefeito, um grande lutador em prol do aeroporto, falou que somos a melhor administração do Nordeste e talvez do Brasil. Fiquei muito grato por esse reconhecimento, porque a gente se dedica muito para fazer o melhor!”.

OS DETALHES DA HISTÓRIA E é José Roberto Celestino quem conta a história desde o início. Nascido em Juazeiro do Norte, engenheiro mecânico formado pelo famoso ITA, empresário e, atualmente, vice-prefeito de sua cidade natal, José Roberto especializou-se em estudar, acompanhar e agir para que a estrutura aeroportuária do Cariri se concretizasse em compatibilidade com as demandas do fluxo da região. No seu relato volta no tempo, lembrando a infância no sítio dos avós, exatamente no local onde hoje funciona o aeroporto. “A aviação de Juazeiro do Norte começa em 1919, quando o Padre Cícero doa à União o campo Marechal Farias, que era uma gleba de terra, colada à cidade, onde hoje é o nosso centro geográfico, no entorno do Cariri Shopping”, descreve Celestino. “Lá foi implantado um campo de pouso pelo Ministério da Guerra em 1923 – à época não havia Ministério da Aeronáutica. A Força Aérea Brasileira, a partir do ano de 1923, começa a operar o Correio Aéreo Nacional em Juazeiro do Norte, uma das cidades da história

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José Roberto Celestino: na liderança dos que, desde o início, lutaram pela implantação do aeroporto. CARIRI REVISTA 21


REPRODUÇÃO

do Brasil mais antigas na sua aviação. Nós temos 89 anos em atividade”, prossegue. Foi nesse campo de pouso que as primeiras companhias comerciais começaram a operar. Como a proximidade maior era de Juazeiro, Crato e Barbalha, as lideranças dessas cidades reclamaram a implantação de um aeroporto regional. Nessa luta, José Roberto destaca Antonio Correia Celestino (seu pai) em Juazeiro do Norte, Tomás Osterne de Alencar no Crato e Antonio Costa Sampaio em Barbalha. Eles se unem e escolhem o Planalto da Santa Rosa, na confluência da fronteira dos três municípios, para abrigar o empreendimento (mais detalhes no quadro da página 24)

MEMÓRIA PRESERVANDO A HISTÓRIA A história é feita por famosos e anônimos, por indivíduos de atuação pública e privada, enim, por todos os que habitam o espaço da vida e agem sobre ele ao longo do tempo. Alguns, porém, agem de forma a intervir, modiicar, impulsionar o desenvolvimento. Deveriam todas as famílias registrar em livro a saga de seus líderes, eternizando as narrativas que contribuíram para a grande história de um lugar ou de uma época. Assim fez a família de Antonio Correia Celestino, por sugestão de Rodolfo Spínola e sob a coordenação do escritor Renato Casimiro. Num livro que reúne depoimentos de familiares, de amigos e do próprio biografado, são revelados fatos de Juazeiro, incluindo a trajetória conturbada e emocionante do aeroporto Orlando Bezerra. Pai de José Roberto Celestino, Antonio Correia Celestino foi o pioneiro juazeirense a encampar a luta pelo aeroporto – mais do que um equipamento urbano, um moderno elemento cultural da região.

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DO SUCATEAMENTO À REFORMA DA PISTA O que os caririenses chamam de “luta pelo aeroporto”, durante anos pauta obrigatória de seu cotidiano, culminou para eles com a vitória, no dia 9 de março de 2012, quando foi publicado o ato do Ministro-Chefe da Secretaria de Aviação Civil, Wagner Bittencourt, atribuindo à União, através da Infraero, a administração, exploração e responsabilidade total pelo aeroporto Orlando Bezerra de Menezes, em Juazeiro do Norte. Após anos fora do Cariri, como estudante e depois como profissional atuante em São Paulo e fora do Brasil, José Roberto Celestino voltou a morar na região em 1982, engajando-se na liderança de várias causas. O Palácio da Microempresa, a consolidação de centros importantes de tecnologia de apoio à indústria e a implantação da Justiça Federal – para citar apenas algumas conquistas – tiveram a marca de sua atuação. Líder de diversas entidades empresarias, como CDL, Sindilojas e Associação Comercial, independentemente de mandatos, Celestino sempre esteve atento aos problemas gerados pelas deficiências de acesso ao Cariri por via aérea. “Meu contributo para o aeroporto começa em 1984. A Varig vem operar aqui com os boings 737, e a operação dela era de dia. Nos dias nublados o avião não conseguia descer em Juazeiro”, lembra José Roberto. Embasado por seus conhecimentos amplos de engenharia aeronáutica, ele foi atrás da Operação por Instrumentos IFR. “Juazeiro não contava com esse aparato, num tempo em que 20 cidades do interior do nordeste já contavam, a maior parte delas sem nem ter aviação comercial, como na época era o caso de Mossoró, de Paulo Afonso e de outras menores”, enfatiza. Finalmente o governador Ciro Gomes instalou a primeira Estação Metereológica do aeroporto de Juazeiro, que permitia a operação por instrumentos, CARIRI REVISTA 22


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Rubens, da Cooperativa de Taxitas: a organização em cooperativa trouxe melhorias no serviço e controle de preços.

tornando os voos mais confiáveis. Essa Estação custou R$ 150.000 e foi um repasse de verba do Programa Federal de Auxílio aos Aeródromos (trata-se de um programa que destina 10% da receita da Infraero para os pequenos aeródromos do Brasil, repartidos pelo Ministério da Aeronáutica). “Quando a Varig deixa de operar aqui por uma questão de segurança e fica só a BRA (empresa pertencente à Varig que operava voos charter, em aviões de menor porte), a pista estava na UTI!”, lembra Celestino. Àquela altura o aeroporto estava sob a administração do Estado e a Infraero administrava num subcontrato, por um convênio assinado em 2002. O convênio previa a absorção do aeroporto pela Infraero em quatro anos, o que aconteceu somente agora, em 2012. Diversas providências deixaram de ser tomadas no período de cessão ao Estado. A recuperação da pista, a confecção da cerca patrimonial, a reforma do terminal de passageiros, a brigada anti-incêndio. A ausência de medidas foi tornando o aeroporto defasado e mesmo impossibilitado de operar. ”Esquisito, porque era um aeroporto que tinha operações de jato com voos para São Paulo, dois voos por dia. Na alta estação, quatro voos, enquanto outros aeroportos até sem aviação comercial estavam aparelhados”, analisa José Roberto.

PROJETO DEFASADO “Em 2003 o governador Lúcio Alcântara assume o aeroporto nessa condição, com uma pista quase acabada. Tivemos uma audiência em março e depois ele autorizou a obra de recuperação”, remonta Roberto Celestino. Outro que também estava lá era Francisco Alberto Bezerra, atual presidente do Sindilojas de Juazeiro do Norte. “O Dr. Mauro Sampaio era o prefeito. Os deputados federais eram Zé Arnon, Salviano e Rommel Feijó de Sá, e os deputados estaduais eram sete. Havia também os presidentes do CDL, da Associação Comercial, da Maçonaria, do Rotary… Nós juntamos 22 pessoas e fomos a Fortaleza cobrar do Dr.Lúcio Alcântara. O aeroporto estava fechado há quase um ano por causa da pista esburacada de uma maneira tal!”, lembra Francisco Alberto Bezerra. “Tinha todo o projeto, inclusive os valores e a maneira de como fazer, por intermédio da Infraero, cujo presidente CARIRI REVISTA 23


era Carlos Wilson, que tinha sido colega de Senado do governador. O Dr. Lúcio ligou na hora para ele!”, lembra Francisco Alberto, descrevendo o prejuízo que a situação de então causou aos comerciantes. “Naquele tempo as estradas estavam piores que o aeroporto, então a gente nem tinha estrada, nem aeroporto. Era um sofrimento para chegar aqui. O empresário não vai sair do sul do país para vir para Fortaleza e pegar um ônibus ou um carro para passar o dia todinho na estrada”, pondera. Havia um problema que a comitiva expôs em ofício na mesma audiência de conquista da obra. Um erro no projeto previa uma pista com PCN – Compact Number (trata-se da medida de compactação da pista que rece-

be mais ou menos peso conforme o porte da aeronave) –, que não permitia a operação das aeronaves Airbus 320, utilizadas pela TAM, na época. A restrição, obviamente, limitava a captação de novas operações de voos. A própria TAM chegou a tentar operar em 2003 e desistiu pela deficiência de compactação da pista (mais detalhes sobre o PCN no quadro da página 20). O projeto foi executado e o aeroporto continuou restrito à BRA. Mais tarde recebeu a Ocean Air, companhia que havia comprado a Nordeste, além da TAF, com os aviões Caravan de oito passageiros – um avião seguro, embora seja um monomotor, mas com custo de passagem muito alto pela limitação de ocupantes.

A ÉPOCA DOS DOIS AEROPORTOS A área onde está hoje implantado o distrito industrial do Cariri foi o local escolhido em 1953 para sediar um aeroporto caririense, a ser construído para somar-se ao campo de pouso de Juazeiro do Norte. Quando os militares da aeronáutica vieram inspecionar a área, consideraram-na muito próxima da serra e pediram novas alternativas. O sargento da aeronáutica que tomava conta do campo de pouso de Juazeiro disse que conhecia um local muito bom, alto, com piçarra, e levou a equipe exatamente para o sítio Brejo Santo, onde ica o aeroporto atual. Juazeiro ofereceu esse terreno e o Crato apresentou outro, em cima da serra, na subida da estrada para o Exu. Começou então a velha disputa entre as duas cidades sobre quem iria sediar o equipamento. O ministro da Aeronáutica da época visitou ambos os locais e escolheu o sítio em Juazeiro. A Prefeitura doou o terreno, que nunca foi pago. José Roberto Celestino passou a infância lá. Nas férias, saía da casa do pai na Rua São Francisco e viajava junto com as outras crianças da família, todas acomodadas nos jumentos enviados pela tia. “Eram férias pescando peixe nas levadas, caçando passarinhos de baladeira e colhendo frutas, todas essas brincadeiras das crianças dos sítios. Uma infância maravilhosa! Essa época é a da implantação desse aeroporto, que eu vi surgir de muito perto”, recorda Celestino. A desapropriação jamais foi paga, e recentemente a União entrou com uma ação de usucapião pelo espaço ocupado. Até

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por uma questão comunitária, em prol do desenvolvimento da região, ninguém nunca questionou a ocupação do terreno. Em 1954 houve a inauguração. Conta José Roberto: “O Crato não icou satisfeito e conseguiu com o governador Virgílio Távora a construção do aeroporto de Fátima, no terreno da serra”. Era um aeroporto asfaltado e melhor equipado que o de Juazeiro, que era na piçarra. Os DC3 vinham de Fortaleza, Iguatu, Crato, Juazeiro, Cajazeiras, Campina Grande e Recife. “Desciam no Crato e desciam em Juazeiro, 15 minutos de voo separando as duas cidades. Com o tempo, as companhias aéreas começaram a alternar, um dia em Juazeiro, outro no Crato. Havia aeronaves de maior porte, os C46 – Curtis Comando – para 40 passageiros, que só desciam no Crato, onde a pista tinha maior compactação”. A serra é o primeiro lugar a icar encoberto pela neblina. Por isso, as companhias aéreas muitas vezes não conseguiam descer no Crato. Passou a haver uma espécie de “seleção de mercado”, com mais passageiros embarcando e descendo em Juazeiro. A primeira companhia que operou no Cariri foi a Aerovias. Depois a Real comprou a Aerovias e a Varig comprou a Real. Em seguida a Varig deixou de operar no Crato e apenas o aeroporto de Juazeiro permaneceu operacional. Foi então que se conseguiu, inalmente, asfaltar o espaço originado no antigo sítio de Brejo Santo com recursos federais. O aeroporto que chegou ao século XXI estava consolidado.


CAPTAÇÃO DE PARCEIROS José Roberto Celestino descobriu, então, que um colega seu da época do ITA era o diretor de manutenção da GOL. Foi até São Paulo conversar com ele e iniciou a peregrinação que diversificaria as companhias aéreas atualmente em operação no Cariri. Primeiro a Gol, depois a Azul, logo em seguida a Passaredo. A TAM só não veio porque o PCN adequado às suas aeronaves foi conquistado quando já havia acomodado a linha destinada a Juazeiro, em outra região. Com um novo ritmo instalado, a tendência é que as opções de voos se multipliquem em pouco tempo. “Será que o Wall Mart, de 80 lojas que eles planejaram implantar no Brasil em 2011, traria duas para Juazeiro do Norte, sem aviação comercial regular aqui? Eu acho que eles não empreenderiam essa epopeia. Uma multinacional como essa tem os seus pré-requisitos de segurança. O presidente mundial da Singer não podia vir na BRA porque era voo charter, eles só voam em aviação regular. Ele só visitou essa unidade quando a GOL passou a operar aqui. Muitos empreendimentos foram viabilizados, não só pelos voos de passageiros mas pela carga aérea para servir aos suprimentos das indústrias. Insumos, peças de reposição”, reflete José Roberto. Ainda será necessária a vinda dos aviões cargueiros para baratear o transporte de carga, que prossegue com impedimento de pouso em Juazeiro por conta da restrição da pista. Porém, segundo a avaliação de Celestino, com o pouco aproveitamento que faz do porão das aeronaves, Juazeiro já é uma das cidades do Brasil que mais transporta carga aérea, no interior. E em termos de carga aérea nacional, já transporta tanto quanto a cidade de Petrolina, que tem cargueiros internacionais levando frutas para a Europa e o Japão. “Defendo um aeroporto plenamente bem equipado, inclusive com terminal de carga aérea que nós não temos. No entanto, estamos equiparados a Palmas, Boavista, Joinville”, reforça.

não opera em aeroportos que não têm seção contra incêndio. Na época, Roberto Celestino dirigiu-se mais uma vez ao governador Lúcio Alcântara, solicitando a seção e a recuperação do pátio. O governador assinou a ordem de serviço dos dois, porém o DER-Departamento de Estradas e Rodagem executou apenas a seção contra incêndio, no valor de R$ 800.000 em 2006 – o que permitiu a implantação da GOL linhas áreas. O voo inaugural foi no dia 23 de setembro de 2006. Um ano depois o Estado tinha arrecadado de ICMS, somente sobre as operações de abastecimento de combustível, R$ 1.014.000. Ou seja, em menos de um ano, recuperou o investimento feito, e até ultrapassou o valor dispendido. “O Estado quando investe no Porto do Pecém e em rodovias estruturantes não está pensando no retorno financeiro. É uma verba que está sendo gasta pensando no benefício econômico, social e cultural que aquilo venha a causar. No entanto, o aeroporto daqui deu um retorno financeiro direto que nenhuma empresa multinacional, por mais bem dirigida que seja, consegue” enfatiza Celestino. “Imagine se você dimensionar os 120 passageiros que vinham na GOL, considerando os 99 dias iniciais AUMENTO SIGNIFICATIVO desse voo, quatro dias em média de permanência por DA ARRECADAÇÃO cada passageiro, e um dispêndio de R$ 200,00 por No tempo da Varig, na década de 60, o aeroporto de dia entre hotel, refeições, deslocamentos e compras, Juazeiro tinha abastecimento de querosene de aviação sendo bem conservador para quem vem de avião! Isso e de gasolina. Com a saída da Varig, motivada pela dete- dá uma receita de R$10 milhões que entraram na ecorioração da pista, extingue-se o abastecimento, que só nomia da região. Estou mostrando, o quão importante retorna com a chegada da GOL, em 2006. No entanto, socialmente é esse aeroporto!” conclui José Roberto, houve mais desafios para concretizar a presença da Gol destacando o impacto real de resultados a partir do no Cariri. Por normas de segurança internas da empre- momento em que a questão do acesso ao Cariri por sa, e não por normas da aeronáutica, a companhia via aérea foi priorizado. CARIRI REVISTA 25


PROMESSA QUITADA, MAS FALTOU UM CAÇA-PALAVRAS. por roger pires [crônicas de um viajante]

Apenas depois de algumas viradas de ano ao lado dos primos de Juazeiro do Norte é que entendi que sempre íamos para o Cariri logo depois do Natal para acompanhar meu pai. Até então, isso signiicava apenas férias. Uma promessa a ser quitada com Padre Cícero motivava o deslocamento do patriarca ao Horto nas noites do dia 31, e a família ia junto. Tudo acertado com o “padim” e as coletâneas em ita K7 e os relógios baratos comprados no mercado viraram passado. Ah! Mas ainda deu tempo de conhecer o shopping! E se passaram cerca de dez anos sem voltar. Lembrei disso tudo quando, à espera da decolagem, tentei fazer as contas das horas gastas com o trajeto de ônibus de Fortaleza até o Terminal Rodoviário de Juazeiro nessas viagens, e acabei me distraindo. Acho que minha mãe dizia que eram sete horas, mas na verdade eram oito, e se a estrada estivesse ruim, poderiam ser dez. Sem aparelhos de música nem computadores portáteis, a “diversão” era a parada em Jaguaribe para comprar queijo, mas eu nem gostava de queijo… Antes, eu não dormia porque era muita energia concentrada no corpo de uma criança. Agora eu não caio no sono porque a viagem de

avião é rápida demais. Em trajetos de ônibus no trânsito da capital é possível adormecer por mais tempo. Foi uma surpresa atestar o que eu já imaginava: a passagem aérea para Juazeiro do Norte tem um preço acessível e o tempo gasto de deslocamento é mínimo. Se seguirmos a orientação de chegar ao Aeroporto com 50 minutos de antecedência, esperamos mais tempo pelo próprio embarque. Na volta, o voo era no meio da madrugada. Sozinho e sem tantos passatempos, observei. A loja de lembranças não me atraiu. A lanchonete é pequena e não causa o mesmo desejo que as “lanchonetes de aeroporto” de outros lugares. Uma banquinha de jornais e revistas cairia bem para comprar um caça-palavras. Uma moça ia para São Paulo e parecia não ter volta marcada. Dois homens representavam pai e irmão mais velho, numa aposta que fiz comigo mesmo. O silêncio demonstrava muito bem a forma de carinho e a preocupação com a jovem garota, que talvez não volte nunca mais, ou venha apenas para visitar a família. Eu voltarei, mas na próxima trago o caça-palavras, e nem arriscarei cochilar – para não acordar amassado pouco antes de sair em busca de reportagens.

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#caririeconomiacriativa

TRAÇANDO A PALHA E O FUTURO Por Roger Pires e Raquel Arraes

Projeto de Extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC) capacita mulheres de Juazeiro do Norte a produzir artesanato com mais empreendedorismo e visibilidade.

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ransformar palha de carnaúba em objeto de uso diário já é algo natural na vida das artesãs do Horto. Uma prática hereditária que garante o sustento de muitas famílias que moram próximo à estatua do Padre Cícero, mais precisamente na subida para a colina. O grupo aprende noções de administração, design e comunicação por meio de um projeto de Extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC). Intitulado “Mulheres da Palha”, o projeto busca valorizar e dar visibilidade aos produtos das artesãs. Quem vê pela primeira vez o trançar da palha fica abismado com a habilidade dessas mulheres. Como é que dessas folhas sai uma chapéu de romeiro? Mas sai fácil até. Além das “camisas de garrafa” – peça em palha que

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reveste garrafas de vidro – o chapéu é um dos principais produtos do artesanato do Horto, que recebe boa parte dos turistas religiosos em visita ao Cariri. E romeiro precisa mesmo de um bom chapéu de palha para aguentar o sol. Porém, as artesãs perceberam que poderiam fazer mais. Quem primeiro atentou para as novas possibilidades foram as professoras da UFC Jeanine Geammal e Rosane Nunes, que logo trataram de transformar a ideia em projeto de Extensão, buscando fontes de financiamento. Deu certo. O projeto conseguiu estabelecer sua sede na própria Rua do Horto, mobilizou cerca de 25 mulheres e, em janeiro de 2011, deu início a uma parceria que mistura a teoria da Universidade com a prática das artesãs.


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Após um ano e meio de atividades em dois encontros semanais, os resultados estão materializados na sala de entrada da sede. Produtos feitos de palha, mas com uma cara diferente, moderna, graciosa. Os chapéus de romeiros, agora estilizados com mais cores e fitinhas do Padre Cícero, encaixam bem em todas as cabeças e não servem apenas para evitar o sol. Pequenos cestos coloridos, bolsas que misturam a palha ao jeans e outros artigos ocupam a mesa. “Os produtos estão mais sofisticados e isso os torna mais caros, mas sabemos que existe um mercado para eles, basta nos organizarmos para distribuir”, comenta Juliana Loss. No início, o aumento dos preços que o novo design acarretou não foi bem aceito pelas mulheres. Aos poucos, porém, elas entenderam que a estratégia faz parte de um processo de valorização do trabalho diferenciado. De muitas mulheres interessadas no projeto, permaneceram aproximadamente 10. “Eu achei que valia a pena ficar porque estou apostando nesse progresso que o projeto traz, para no futuro a gente ter uma renda fixa. Porque hoje o artesanato ainda é um bico”, justifica Maria Luiza Nunes. É interessante perceber como a iniciativa soube explorar os talentos individuais das participantes. “Cada uma tem um perfil que se encaixa melhor em alguma coisa. Tem umas que são mais técnicas, conseguem fazer produtos de trançado mais difícil. Outras têm criatividade para criar objetos. E outras 30 CARIRI REVISTA

são mais comunicativas, então o grupo se complementa”, revela Juliana. Uma dessas comunicativas é Cícera Angelina, que atende também pelo nome de Luzinha. Com um sorriso fácil no rosto, ela opina: “Da minha parte eu acho que a gente aprendeu até a falar melhor. Também ficamos mais conhecidas, pois vieram muitas reportagens. Nos eventos que participamos, muita gente viu nosso trabalho e comprou. Tem muito produto nosso que está viajando por aí!”. Para Juliana, ainda não é o momento, mas em breve o grupo deve conseguir caminhar sozinho e ter um bom lucro dentro de um modelo de gestão participativa, implantado pelas coordenadoras e pelos bolsistas. Eva Regina Nascimento, estudante de administração, compara essa relação a um diálogo aberto. “A gente não chega e diz como elas devem fazer, sempre escutamos a opinião delas e tentamos construir algo juntas”, resume.

SERVIÇO Rua do Horto, nº 504 Blog: www.mulheresdapalha.blogspot.com E-mail: mulheresdapalha2@gmail.com Facebook: https://www.facebook.com/ projeto.dapalha Twitter: @Mulheresdapalha


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#caririsustentabilidade

O LIXO EM NOSSAS MÃOS Por Raquel Arraes

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cidade mais próspera do Cariri também é a que mais produz lixo. Em Juazeiro do Norte, uma média de 240 toneladas de resíduos são recolhidas diariamente. Número que ultrapassa em muito o das cidades de Crato e Barbalha, que juntas somam 170 toneladas de lixo por dia. Esses dados levam a refletir sobre os desafios de uma região em desenvolvimento. Desafios que em Juazeiro parecem ser ainda maiores, devido ao crescimento urbano desordenado e ao fato de que, em determinadas épocas do ano, a população duplica de tamanho com a chegada maciça dos romeiros. Desenvolver-se com sustentabilidade. Essa se tornou a grande meta buscada e almejada pelos governos responsáveis e pelos cidadãos conscientes em todo o mundo. Fóruns de discussões em todo o mundo, expressam a relevância que a bandeira ambiental conquistou dentro das agendas institucionais. Unir sustentabilidade, economia verde e distribuição de renda deixou de ser uma questão teórica para se tornar plataforma de governo. O que vemos são os esforços de pesquisadores, intelectuais, governo e sociedade civil, na tentativa de acomodar interesses financeiros com a preservação da biodiversidade. Parte desses esforços resultaram na Lei 12.305, assinada em 2 de agosto de 2010 pelo então presi-

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dente Luís Inácio Lula da Silva, depois de 19 anos de trâmite no Congresso. Nela, os municípios brasileiros são obrigados, entre outras exigências, a acabar com os seus lixões, criando aterros sanitários em um prazo que se extingue em 2014. E o Nordeste precisa empreender uma verdadeira corrida contra o tempo se não quiser sofrer as punições registradas na lei. Para os municípios que não se adequarem, a conta sairá salgada. A punição resulta no corte da liberação de dinheiro para saneamento básico, que na segunda fase do Programa de Aceleramento do Crescimento – PAC, prevê um montante de 40 bilhões entre 2011 e 2014. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, ainda restam no Brasil 2.906 lixões, distribuídos em 2.810 municípios. Desses, 1.598 lixões ficam no Nordeste, sendo 300 só no Ceará. Levando-se em conta que temos 184 municípios, isso dá 1,6 lixões por cada município do Estado. Já na Região Metropolitana do Cariri, a destinação incorreta dos resíduos sólidos torna-se ainda mais preocupante devido à necessidade de preservação da Chapada Nacional do Araripe. A incidência de centenas de fontes de água e lençóis freáticos cortando diversos municípios é um constante sinal de alerta para o governo e a população.


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Dona Neta, que já morou sete anos no lixão entre Juazeiro e Caririaçu, ainda sonha com uma associação de catadores.

O VALOR DO QUE VOCÊ NÃO QUER MAIS Visível para quem passa pela rodovia CE-060, o lixão que serve de depósito para as populações de Juazeiro do Norte e Caririaçu encontra-se às margens do caminho que liga as duas cidades. O cheiro, sentido a muitos metros de distância, é só um entre os muitos incômodos de quem trafega ou reside ali. Os resíduos que se espalham com as lufadas de vento invadem os terrenos do entorno. No topo da imensa montanha de lixo, já se pode ver a mancha do chorume que escorre. Segundo Cícero Ferreira do Nascimento, Gerente Operacional da Secretaria de Meio-ambiente de Juazeiro, o quadro era muito pior. “Quando cheguei aqui, o lixo estava na pista. O odor ia todo para a cidade. Com ventos mais fortes, chegava até a Matriz. Porque não era coberto, ficava tudo a céu aberto. Não havia ninguém que orientasse o despejo. Os caminhões chegavam e jogavam o lixo em qualquer canto, porque o catador quer ficar perto do material… Até que conseguimos limpar, abrir caminho, ir cobrindo!”. Hoje o lixão é uma enorme montanha de 30 metros de altura, com cinco pátios para despejo dos resíduos. Cotidianamente, seis caminhões compactadores da Prefeitura de Juazeiro despejam material e outros tantos de empresas privadas compram e recolhem os resíduos para a venda. Mostrando que lixo é, sim, um negócio lucrativo. 34 CARIRI REVISTA

Há 40 anos vivendo da compra e venda de resíduos sólidos, Antonio Marcelino Onório é um exemplo de empresário que transformou a exploração do lixo em lucro. “Lixo só tem valor quando tem comprador que trabalhe direto para as empresas. A gente vende esse material direto para as fábricas da Bahia, João Pessoa, São Paulo… Mas se não tiver comprador, o lixo não vale nada”. Compradores não faltam no lixão, e um comércio de compra e venda de resíduos se instalou com preços fixos. O quilo de garrafa pet e plástico mole é comercializado pelos catadores por R$ 0,30; o plástico filme fica em torno de R$ 0,20 e o ferro custa R$ 0,10 o quilo. Antônio Onório, após beneficiar o produto, vende uma carrada de plástico moído por R$ 20.000. O papelão enfardado custa em média R$ 3.000. Já uma carrada de ferro não sai por menos de R$ 4.000. A futura mudança desse cenário não agrada a todos. Quando indagado a respeito da vinda do aterro sanitário, Antônio Onório reage com uma declaração polêmica. “Aterro sanitário é uma falta de senso, é uma perda! Aterrar isso aqui é desempregar cento e tantas pessoas, e mesmo que elas trabalhem como empregados, vão achar melhor estar no lixo delas. Eu já cansei de chegar aqui e oferecer trinta reais no dia e os caras não vão trabalhar. Eles dormem sonhando com o lixo, e se pudessem não iam pra casa”.


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das faculdades não, mas a maioria das pessoas tem. Uma vez eu tava no supermercado fazendo compras e uma menina perguntou pra mim se eu era a Neta do lixão. Ficou espantada por eu fazer feira. Perguntei se ela achava que eu comia lixo. Disse que o mesmo direito que ela tinha eu também tinha. Pra eles, o nosso valor é menos que nada!”, lamenta Neta, lembrando que há outros elementos de preocupação. “Tudo de ruim na cidade corre pra cá. Vamos supor, os usuários de drogas. Na cidade eles não arranjam emprego porque ninguém confia. Então eles vêm pra cá, ganham o dinheiro deles, se abastecem e por aqui mesmo usam. É duro”. Para essa guerreira do lixo, uma associação de catadores que regularize o trabalho de todos seria a melhor solução. “O meu sonho é tão pequenininho! Era só que Deus mudasse a história desse lixão e ajudasse a cada um que está aqui a mudar seu estilo de vida. Meu sonho é só esse”.

O SONHO DE DONA NETA A mulher loira dando ordens a todos os caminhões que chegam é a responsável pelas 135 pessoas que trabalham no lixão. Francisca Raimunda Cena Oliveira, ou Dona Neta, sobrevive há 27 anos daquilo que ninguém mais quer. Foi parar ali devido às intransigências do marido. Dona Neta possui curso de secretariado, mas o companheiro, analfabeto, não aceitava que ela trabalhasse fora de casa. A solução foi acompanhá-lo na lida do lixo. “Eu fui a primeira mulher que teve coragem de morar aqui. Fiz meu barraco e morei sete anos no lixão. O primeiro dia foi horrível. Eu adoeci e quase que não me adaptava. Hoje não, hoje somos todos imunes. Mas ainda é duro. Eu trabalho a semana toda, o domingo passo em casa. Quando chego na segunda me dá dor de cabeça, fico tonta”. Nas palavras de Dona Neta seu trabalho é “no ritmo São Paulo”. Ela sai de casa às sete da manhã e, às vezes, encerra o expediente à meia-noite. Hoje ela mora no entorno do lixão, construiu casa própria e ajuda filho e netos. “Eu trabalhar aqui não impediu que meu filho terminasse os estudos! E os meus netos estudam em colégio particular”. O trabalho duro só não neutraliza o preconceito inerente que a profissão carrega. “A maioria que conhece a gente na cidade tem preconceito. O pessoal

UMA CRUZADA PELA CONSCIENTIZAÇÃO Surpreendentemente, o gerente de Resíduos Sólidos da Secretaria de Meio Ambiente e Serviços Públicos de Juazeiro do Norte também é ambientalista. Surpreendente devido ao histórico de lutas antagônicas que traçam as relações entre organizações não-governamentais e poderes públicos. Há quase três anos na pasta, Pedro Torquato tenta fazer o impensável: inserir na complicada e burocrática máquina municipal os preceitos de sustentabilidade que moldam seu caminho de ambientalista. “Já se começa a perceber um interesse de mudar essa questão do resíduo sólido, que é uma problemática enorme. Nós sabemos da dificuldade que essa transformação representa, mas vamos conseguir mudar esse caos de duas maneiras: coleta seletiva e, paralelo a ela, educação ambiental. Sem isso a gente não consegue transformar. É lento, mas é a única forma”, acredita o gerente de Resíduos Sólidos. Para isso, a parceria entre município, escolas e empresas privadas e estatais é fundamental. Pedro Torquato é um inveterado palestrante e visita dezenas de escolas numa maratona incansável de educação ambiental. “Hoje mesmo estamos com uma parceria com a gincana da Cagece. Levamos durante duas semanas, para 11 escolas, uma palestra sobre resíduo sólido e coleta seletiva”. Contemplada pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, a coleta seletiva de lixo tornar-se-á realidade para todos os lares brasileiros. Junto com os aterros CARIRI REVISTA 35


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a obrigatoriedade da Política Nacional de Resíduos Sólidos, o governo não viu outra saída. Aproveitando o Plano de Gestão Integrada já existente, decidiu regionalizar o plano de resíduos sólidos a partir das 14 regiões pré-estabelecidas. Como os municípios menores não têm condições de bancar sozinhos a construção de aterros, devem se reunir em um número maior para fazer parte dos 30 consórcios criados pelo Estado para a construção dos aterros sanitários. Desses, 26 já foram formalizados.

sanitários, ela é um dos pilares da Lei 12.305, que proíbe a mistura de materiais recicláveis com o lixo comum. As cidades ficarão obrigadas, então, a providenciar coletas seletivas, convencional, hospitalar e industrial. “Acredito numa grande mudança para daqui a dois ou três anos, se a nova política for de fato implantada, fiscalizada e cobrada. Já participamos de algumas feiras no Sudeste do país; lá ainda existe a problemática, mas eles já estão bem mais avançados nas soluções. Então o grande problema tem sido aqui mesmo, nas regiões Norte e Nordeste”, admite Torquato. Por anos, as discussões em torno do aterro sanitário para a Região Metropolitana do Cariri se arrastaram em trâmites sem fim entre Estado e municípios. Com 36 CARIRI REVISTA

O FUTURO DO LIXO Apesar do que se pensa, a cobertura da limpeza urbana no Brasil é satisfatória. Segundo o IPEA, a coleta de resíduos sólidos em 2009 atingiu 90% dos domicílios urbanos. Em Juazeiro, em bairros pouco distantes do centro, o recolhimento do lixo se dá três vezes por semana. Nas avenidas e no centro da cidade, acontece diariamente. Então, por que a cidade parece sempre tão suja? Para o ambientalista Pedro Torquato, a resposta aponta para a falta de consciência e de educação ambiental. “As pessoas não querem guardar seus resíduos por dois dias para só dispor no dia certo que os carros passam”. Afora a coleta convencional, o projeto de coleta seletiva “Meu Bairro é Limpeza”, desenvolvido em parceria entre o município e a ONG Kariris Ambiental, foi uma tentativa de desviar resíduos do lixão para as associações de catadores. Durante seis meses, oito pessoas capacitadas passavam por 300 casas dos bairros Tiradentes e Novo Juazeiro. Ao final dos primeiros 90 dias, a coleta já desviava 2,6 toneladas de materiais recicláveis. “A coleta seletiva diminui os custos para a administração pública. Vai haver uma inclusão social muito grande quando ela for implantada, com a minimização dos impactos ambientais negativos. Quando se implanta uma coleta seletiva efetiva, o aterro sanitário recebe menos lixo. Com esse tipo de coleta, das 200 toneladas de lixo que Juazeiro produz, apenas 60 to-


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Pedro Torquato: a mudança passa por coleta seletiva e educação ambiental.

neladas iriam para o aterro”, argumenta Pedro Torquato. O projeto está parado, esperando uma segunda etapa, que virá através de parcerias com empresas privadas. “O custo maior para a implantação de uma coleta seletiva, por incrível que pareça, não é carro ou logística de fazer funcionar. Como nós temos acesso a

associações de catadores capacitados, é fácil de fazer. O grande custo disso, talvez 60% ou 70%, é mesmo a educação ambiental”, explica Pedro. O projeto aposta na obrigatoriedade das empresas privadas de realizarem a logística reversa. Atualmente a logística reversa só existe para cinco produtos: pneus, lâmpadas, pilhas, baterias e óleos lubrificantes. Os fabricantes são obrigados a retirar da natureza esses materiais, ou recolocá-los no ciclo produtivo. Com a lei 12.305 praticamente todo o parque industrial brasileiro será obrigado a realizar a logística reversa. “Alguns empresários dizem o seguinte: ´Realizar logística reversa de um celular é fácil, quero ver de uma geladeira!´. Mas já há exemplos. Quando se trata de bem durável e grande, ao ser vendido para o consumidor ele tem lá um registro. Pois já existem os ferros-velhos cadastrados para receber esse bem. As pessoas ficam querendo botar dificuldade para não fazer, mas é importantíssimo que o consumidor tenha essa consciência, o dever e a obrigação. Eu acredito que a mudança passa por aí”, encerra Pedro Torquato.

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REPRODUÇÃO CAIO PAIVA


#cariricapa

AS HISTÓRIAS QUE A MADEIRA CONTA Por claudia albuquerque

Cangaceiros, orixás, demônios e iracemas convivem com Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e trupes de maracatus. Nas xilogravuras de João Pedro do Juazeiro, a vida pulsa, os temas deslumbram e as técnicas expandem horizontes criativos. O uso de cores e de diferentes suportes — tecido, porcelana, cerâmica — também são marcas desse mestre-operário, que restaura máquinas antigas e usa a expressão xilográfica para fixar o seu lugar no mundo.

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oão Pedro do Juazeiro nasceu em Ipaumirim e vive em Fortaleza, mas sabe exatamente onde é o seu lugar: “O meu lugar está no meu nome, e o meu nome fortalece o que eu faço. Porque o que eu faço é o que eu trouxe de Juazeiro. O que eu sou é o que eu era em Juazeiro”. João Pedro de Carvalho Neto, portanto, é o João Pedro do Juazeiro, xilógrafo, cordelista, editor de folhetos, professor de oficinas e batalhador incansável da Tipografia Padre Cícero, que funciona em sua casa, num trecho residencial da caótica Pedro Pereira, uma via de intenso movimento comercial no antigo coração de Fortaleza. (OBS: Uma semana depois da entrevista, João Pedro se mudou para a Rua Padre Mororó, perto da Av. Domingos Olímpio.) Na casa verde de muro baixo e corredor comprido, a sala-oficina é atulhada de matrizes. Moldes de madeira com sulcos, relevos e incisões revelando cidades, caatingas, revoluções, personagens históricos e fantasias mirabolantes. Papel e madeira em confusa harmonia, instrumentos de trabalho – alguns deles improvisados – tintas gráficas, caixas de tipos, máquinas que ele compra e recupera. O talho de Juazeiro para o mundo. Na

manhã de terça-feira em que recebeu a CARIRI, João Pedro estava de passaporte na mão, pronto para a sua viagem de estreia a Portugal, para onde iria a convite do SESC com a missão de mostrar a sua arte em Coimbra. É uma arte feita de madeira, persistência e insônia. Notívago, ele costuma virar a noite trabalhando. Nunca dorme antes das 3h da manhã. É comum estender a lida até às 6h. Às vezes até às 9h. “Encontro uma essência maior de criatividade à noite. E tem o silêncio, que abre as asas da inspiração… Quando durmo muito, eu adoeço mais”, acredita ele, que atravessa as madrugadas na companhia do cão Beethoven, andando pela casa, desenhando, cortando madeira, sujando vários ambientes – para desgosto de Célia, que após 25 anos de convivência conjugal tem a tranquilidade de entregar dois outros vícios do marido: cigarro e café. “Uma garrafinha de café é bom pra passar a noite, né?”, ele justifica. Os cigarros são fumados em célere sucessão, embora o usuário tenha safenado aos 40 anos. “Passei meu aniversário de 40 anos na UTI, com quatro safenas, mas foi uma batalha que venci”. João Pedro, 47 anos, venceu várias batalhas. Tinha um ano CARIRI REVISTA 39


de idade quando deixou Ipaumirim, na divisa com a Paraíba, para viver em Juazeiro do Norte, levado pela família. O pai era vigilante, o dinheiro era curto e as brincadeiras eram de “menino do interior: quintal, bila, pião”. E como tantos outros meninos, ele teve contato com o trabalho ainda na adolescência. Labutou como office boy do Banco do Brasil e depois foi ser vendedor ambulante. Durante alguns anos vendeu pomadas Padre Cícero e artefatos de alumínio. Os artefatos eram sobretudo panelas de múltiplas funções. Andou o Cariri inteiro e viajou para várias cidades interioranas brasileiras com seu mostruário mágico, alegria reluzente das donas de casa modernas. Difícil imaginar o homem tímido e contido de hoje desdobrando-se em argumentos e sorrisos nas portas de desconhecidos. Mas além das panelas existiam as pomadas. Verdadeiro milagre da criativa medicina popular, a pomada Padre Cícero serve pra tudo há mais de 100 anos: dor de cabeça, inflamação, inchaço, coceira, frieira, dor nas costas, constipação, catarro no peito, micose, reumatismo, erisipela e males da idade… É só escolher. A venda do bálsamo curativo não foi uma atividade solitária. João Pedro logo teve a a ajuda de Célia. Eles se conheceram em 1987, quando ela trabalhava num salão de beleza e ele passava pela Rua Alencar Peixoto oferecendo seus cordéis. Sim, porque entre uma andança e outra, o vendedor ambulante arriscava versos e rimas. “Eu fazia um cordelzinho aqui, outro ali, raramente, anual… Mas dependia dos amigos gravadores, que me cediam ilustrações para a capa, já que eu não sabia gravar…” A DESCOBERTA DO CAMINHO Mais que a fé, a necessidade move montanhas. Os amigos gravadores da Lira Nordestina cediam alguns trabalhos, mas o inquieto cordelista começou a pegar pedaços de umburana para tentar expressar suas próprias ideias, mesmo sem conhecimento de arte, desenho e gravura. Usava pedaços toscos, restos jogados no lixo, nacos desprezados pelos outros gravadores. “Levava pra casa e passava as noites rabiscando neles. No dia seguinte, lá estava eu na Lira Nordestina com minhas matrizes, que eram impressas por um amigo”. Quando o amigo disse que não podia perder tempo imprimindo as gravuras alheias, ele tratou de aprender a imprimir, e continuou usando qualquer pedaço de madeira que conseguisse obter. “Foi justamente nesses pedaços defeituosos e cheios de buracos que aprendi a contornar a situação, através 40 CARIRI REVISTA

da transformação do defeito em efeito. Alarguei o meu desenvolvimento técnico e aprimorei cada vez mais a composição da xilogravura”. Essa história ele conta no xilocordel que distribui entre os alunos de suas oficinas. O xilocordel, ressalte-se, é um tipo de cordel que João Pedro vem produzindo desde 2003, com muitas xilogravuras nas páginas internas. De corte em corte, de taco em taco, o aprendiz desajeitado virou mestre, com pleno domínio de seu ofício. Mais do que isso: descobriu uma vocação. “Comecei no cordel, mas acabei me desenvolvendo mais na xilo, onde eu tenho uma visão poética maior. Você trabalha a xilo como iconografia, narrando histórias. Então eu vi a possibilidade de fazer essa poética também, no talhe da madeira. Juazeiro foi o caldeirão, foi a fonte. Eu convivia, mas não tinha conhecimento do impacto da xilogravura”. Em 1998, João Pedro teve trabalhos reunidos em sua primeira exposição individual e no ano seguinte já estava em Fortaleza recebendo o prêmio de gravura no Salão Norman Rockwell, promovido pelo IBEU-CE. Havia feito a gravura premiada numa viagem de trabalho a Brejão, interior de Pernambuco. Ainda era vendedor ambulante. A estadia em Fortaleza para receber o prêmio e ministrar um workshop a convite do professor Gilmar de Carvalho foi determinante para a etapa seguinte de sua vida profissional. Com o toque do artista e o tino de comerciante, João Pedro viu a possibilidade de vender suas gravuras na capital. Voltou para Juazeiro com os cachês que recebeu, juntou todo o seu material e retornou uma semana depois a Fortaleza, com mais coisas para


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João Pedro: “Um gravador quando começa a criar, deixa sua própria marca”.

mostrar. Já tinha a segurança de quem sabe o que faz. “Um gravador quando começa a criar, ele deixa sua própria marca. Eu sou um autodidata, então não tenho o traço de nenhum professor. Também o meu traço ficou diversificado, por causa das diferentes técnicas que uso nas oficinas com os alunos”. Diligente, João Pedro passou o resto de 1999 indo e vindo entre as duas cidades. No ano seguinte mandou trazer a família. Em Fortaleza, sempre viveu no Centro, primeiro na Rua Liberato Barroso, depois na Pedro Pereira, na Francisco Sá e novamente na Pedro Pereira. “Eu sobrevivo da clientela, tenho que facilitar o acesso das pessoas”, explica o artista, enquanto mostra seus instrumentos, perdidos entre matrizes, rolos de tinta e pilhas de papéis. A mão forte acaricia uma goiva e um pequeno formão, recolhendo em seguida um buril, que serve para dar arranhaduras no desenho. “Esses são industrializados, mas tem também os instrumentos confeccionados em casa, os quicéis, os pregos, o canivetinho que substitui o estilete. O povo de antigamente improvisava tudo, usava haste de guarda-chuva como goiva”, recorda João Pedro. Ele olha em volta e para diante de uma grande matriz, onde a figura sorridente de Luiz Gonzaga espera tinta e papel para ganhar o mundo. “Em termos técnicos a xilogravura consiste em se desenhar e escavar na madeira. O escavado é a parte que fica branca, o preto é o alto relevo. Diante do que eu tenho em mente, eu pego esse taco de madeira e vou me tornar um cirurgião, vou fazer ressurgir os seres que estão adormecidos ali. Primeiro eu escavo, depois eu pinto com tinta gráfica e CARIRI REVISTA 41


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Esmero nos detalhes, técnicas diversificadas e matrizes de variados tamanhos.

então boto no papel para imprimir. A impressão pode ser na prensa ou na mão, friccionando uma colherzinha nas costas do papel”, explica o professor. As dimensões da matriz, as técnicas utilizadas e a madeira escolhida determinam o tempo do trabalho. A do Gonzagão, que é grande mas de traços simples, levou uma semana para ser concluída. A clientela de João Pedro é variada. Vai de arquitetos a poetas populares, cordelistas, estudantes, o povo em geral. “É por isso que a minha gravura é acessível”. De cada matriz, ele tira 100 cópias. “Quando você tira menos gravuras de uma matriz, ou seja, faz menos impressões, o preço é mais alto. E tenho gravuras de todas as dimensões, de 1,5 cm até de 50 X 70 cm”. Acessibilidade é uma palavra que João Pedro repete muito. “Se eu estiver numa banca de feira ou na parede de uma exposição, o cliente que chegar tem a possibilidade de levar minha gravura. A gravura é justamente a quebra de tabu. Quando ela surgiu foi para quebrar a arrogância dos prepotentes, numa época em que a arte era para os reis e príncipes. 42 CARIRI REVISTA

Quando a xilogravura chega, ela primeiro reproduz obras de grandes artistas. A quantidade múltipla de impressões possibilitou que todas as camadas sociais tivessem acesso à arte”. NOVIDADES NO TRABALHO E LABUTA COLETIVA Em 2003, depois de uma oficina com o célebre J. Borges, xilógrafo pernambucano, João Pedro começou a usar cor em seu trabalho. “Poucos usam, a xilo é mais preto-e-branco. Porém a cor vem de longe, dos primórdios… Hoje não se faz muito porque dá trabalho, é necessário mais matrizes para a composição”, detalha ele, que aperfeiçoa a técnica de transpor todas as cores em uma só matriz. “Para uma gravura como essa em que eu tenho mais de seis cores, eu teria que fazer mais de seis matrizes. Mas eu consigo fazer tudo numa só – as escavações na madeira me dão possibilidades de divisão de cores. Já trabalho com a visão de que a matriz possa ser usada com cor ou em preto-e-branco”.


ESCREVENDO NA MADEIRA Etimologicamente a palavra xilogravura tem raízes gregas: xilon (madeira) e grafó (gravar, escrever). É a arte de escrever e desenhar na madeira. Quem inventou? Impossível dizer. As origens se perdem no tempo. Uma das xilogravuras mais antigas que se conhece ilustra um exemplar da oração budista Sutra do Diamante, editada por Wang Chieh, na China, no ano de 868. A xilogravura teria chegado à Europa na Idade Média, sendo apropriada por Gutemberg, nos primórdios da imprensa. Foi trazida ao Brasil pelo colonizador português e utilizada somente depois da liberação das impressões, a partir de 1808.

Dá trabalho, mas novamente ele tem companhia. Célia e os três filhos – Wallison Pedro, 23 anos, Willyane Paula, 21 e Francisco Wanderson, 19 – ajudam na oficina caseira. Célia é boa em desenho, especialmente quando se trata de retratos. Todos sabem gravar. Já houve um tempo em que João Pedro esperava a esposa sair da cozinha, à noite, para ir fazer suas gravuras, após o jantar. “Eu não tinha espaço, não tinha ferramenta, não tinha uma banca para fazer a minha gravura. Hoje eu trabalho com essa missão, de dar ao principiante a chance de fazer o seu trabalho sem ter despesas, de construir suas ferramentas”, se empolga o antigo aprendiz e agora professor, referindo-se às oficinas que ministra para os interessados em xilo. Ensinar é aprender de novo. “Quando você está ensinando, você aprende mais. As exigências dos alunos me dão uma necessidade de busca. Então quando eu estou confeccionando e imprimindo uma matriz, eu estou fazendo um laboratório. Quando termino a escavação, eu faço uma releitura da matriz, para ver novas possibilidades. Existem erros, e mesmo não existindo

Na região Nordeste ela serviu como cabeçalho e ilustrações de jornais, passando também a ilustrar capas dos folhetos de feira e rótulos dos mais variados produtos: cachaças, doces, cigarros, vinagres, rojões… A xilo brasileira viveu o seu boom nos anos 40-50, com a atuação de José Bernardo da Silva na Tipograia São Francisco (depois Lira Nordestina), instalada em Juazeiro do Norte. Hoje, apesar do declínio das pequenas gráicas interioranas, a xilo continua resistindo nas mãos de talentosos artistas e escavando o seu lugar na história, doravante liberta dos cordéis, estudada nas academias e brilhando também nas galerias e museus.

erros, há a necessidade de inovação”. Apaixonado por folhetaria, ele confecciona cordéis usando uma velha caixa de tipos. Imprime xilogravuras no prelo e à mão. “É um resgate histórico da tipografia. Eu venho catando máquinas antigas e restaurando elas”. Nessa cruzada, João Pedro salvou seis máquinas tipográficas. Duas estão no Museu do Ceará, duas ficam na sala de sua casa e outras duas estão sendo recuperadas no quintal. São sobreviventes de 1889, 1910, 1920… “Ultimamente estão pegando essas máquinas e vendendo no quilo aos ferros-velhos, para serem desmanchadas”. João Pedro impede o naufrágio das saudosas geringonças, dando uma sobrevida meio lúdica a elas, que tantos serviços prestaram à indústria da comunicação matuta. “Essas máquinas imprimiam o cordel, o livro, o folheto, a xilogravura, os jornais. Não podem sumir”. Assim como ele não quer que sumam as mais de 3.000 gravuras que talhou com os mais diversos temas. “Dedico minha vida e defendo com o próprio sangue minhas matrizes xilográficas. Gostaria que CARIRI REVISTA 43


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posteriormente elas fossem protegidas pelos meus filhos”, afirma. Dentre as figuras recorrentes de seu imaginário destacam-se Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga, Padre Cícero (“meu protetor”). A vida rural, social e política de Juazeiro. “Fiz vários álbuns com o professor Renato Casimiro sobre a história de Juazeiro, sobre José Lourenço, sobre a beata Maria de Araújo, sobre a beata Mocinha… Tenho mais de 50 álbuns”, enumera João Pedro, que há algum tempo trabalha em cima dos orixás. Adaptável, vem utilizando vários tipos de madeira nas matrizes, porque a umburana é mais difícil de encontrar em Fortaleza. O antigo andarilho das pomadas e panelas não pensa mais em voltar a Juazeiro, mas sabe o que deve ao berço. “Tudo o que eu fiz eu bebi e absorvi de Juazeiro, por isso é importante estar ligado. Sou devoto do meu padim Cícero, já fiz várias promessas,

todas atendidas. Tem uma que cumpri pela metade… (risos)”. O problema – acha ele – é que não conseguiria viver do seu trabalho em Juazeiro. Na terra adotiva tornou-se uma figura conhecida de círculos mais amplos, inclusive acadêmicos. Em casa, mantém informalmente a Tipografia Padre Cícero, que na verdade funciona como um mostruário de antigas técnicas e materiais. “Não gosto do nome editora, tem cara de shopping. Não é questão de ser retrógrado, é uma questão de tradição. A tipografia está sendo muito utilizada no design gráfico. Os professores nas universidades estão usando as fontes tipográficas para o design. Estou melhor agregado com a tipografia do que com a gráfica moderna”, enfatiza o xilógrafo incansável, já acostumado com a visita de universitários que querem conhecer o seu trabalho. Que parece não ter fim.

XILÓGRAFOS DE JUAZEIRO NO MUSEU DO CEARÁ A Tipograia Padre Cícero está provisoriamente funcionando no Museu do Ceará (Rua São Paulo, 51, Centro, Fortaleza), onde acontece a exposição “Xilógrafos do Juazeiro”, em cartaz até o dia 21 de agosto. A exposição tem a curadoria de Gilmar de Carvalho e foi organizada a partir do acervo de Geová Sobreira. É composta por obras-primas dos xilógrafos que atuaram em Juazeiro em meados do século XX: Mestre Noza, João Pereira da Silva, Antônio Batista da Silva, Walderêdo Gonçalves, Damásio Paulo e Manoel Santeiro. Dentre as preciosidades destes seis gravadores especiais, destaca-se a “Via-Sacra” de Mestre Noza. Além da exposição das xilos históricas, o público pode conhecer o processo de feitura e todo o instrumental necessário para desenhar na madeira. Duas vezes na

semana João Pedro está no Museu do Ceará, tirando dúvidas e matando a curiosidade dos que nunca viram uma pequena tipograia artesanal. Ele mostra como compor, montar a página e imprimir a estrofe do cordel, bem como desenhar, cortar, entintar e pressionar a matriz para obter a cópia da xilogravura. “Os visitantes podem ver como a xilogravura era impressa antigamente. Antes era direto do prelo para o livro, da própria matriz para o livro. Hoje você pega a gravura, escaneia e ela vai pra gráica. É digital. Antigamente o gravador trabalhava a matriz na altura do tipo e na dimensão do cordel ou do livro. O desenho era impresso junto com o texto na prensa”, ensina João Pedro. As escolas podem agendar visitas pelo número (85) 3101.2010 (Museu do Ceará).

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#caririartigo

JOÃO PEDRO DO JUAZEIRO

E DO MUNDO

Por gilmar de carvalho [especial para Cariri Revista]

A

trajetória de João Pedro de Carvalho Neto é curiosa. Nascido em Ipaumirim (CE), em 1964, é um dos oito filhos de pai romeiro, pernambucano de Belo Jardim, e de mãe afilhada do Padre Cícero. A família migrou para Juazeiro do Norte, em busca de melhorias de vida e o trabalho passou a se apresentar como a única saída. Em 1988, quando começou a cortar xilogravuras, ele já havia publicado alguns cordéis, e dialogava com o poeta Zé Mutuca, então vendedor de temperos na loja do Zé de Amélia, Beco da Cebola, no Mercado Central do Juazeiro do Norte. Na mesma loja, Mestre Antonio Batista, da geração pioneira da xilogravura, mantinha sua “banca” de relojoeiro. Ele vendia panelas, de porta em porta, e fabricava, com a ajuda da mulher Célia, com a qual teve três filhos, a “Pomada Padre Cícero”, comercializada, principalmente, nas romarias, a qual nunca seria aprovada pelas

inspeções das autoridades farmacêuticas. A família se virava como podia, dentro da lei, com escapadelas picarescas, sem maiores consequências. João Pedro decidiu enveredar pela xilogravura ao ver a animação em torno da “Lira Nordestina”, a gráfica de cordel fundada, na década de 1920, pelo romeiro alagoano José Bernardo da Silva (1901 / 1970). Era um momento especial, de mobilização de muitas pessoas e de muitos esforços, na busca das possibilidades para abrir aquele tesouro de tacos, de capas de folhetos, de rótulos, e, principalmente, de álbuns. A voracidade com a qual João Pedro se aproximava das toras de umburana, nas instalações da gráfica, então localizada na Estação Ferroviária, era impressionante. Todo pedaço de madeira que chegada às mãos dele se tornava suporte para sulcos, escavações e escrita. Ganhou dos colegas o apelido, carinhoso e depreciativo, de “pinica-pau”.

João Pedro dorme pouco, fuma feito uma caipora, toma café de garrafa e trabalha feito um condenado. Tanto empenho lhe custou um enfarto, aos quarenta anos e algumas pontes de safenas e mamárias, mas a Previdência não o aposentou. Ele já estava em Fortaleza, e foi socorrido pelo Renato Casimiro, também do Juazeiro, professor da UFC, que anteviu as possibilidades do artista, e tem sido o amigo próximo e generoso, que encomendou muitos álbuns, voltados para personagens, episódios e manifestações culturais da terra do “Padim”. João Pedro estreou com a série “Os Sete Sacramentos”, cortada na umburana e produziu os álbuns “Meninos de Rua” e “Mitos do Nordeste”, reunidos para sua primeira individual, na 4ª SR do IPHAN, em Fortaleza, aberta dia 1° de junho de 1998. Vieram outros álbuns como “Sete Fazendas”, “A Festa do Pau da Bandeira de Barbalha” e a participação na proposta coletiva “Senhoras Sertanejas”. CARIRI REVISTA 49


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O uso das cores e o acabamento refinado marcam as xilogravuras do mestre.

A partir daí, melhor será esquecer a listagem dos álbuns que produziu, das exposições das quais participou e ajustar o foco sobre o processo de crescimento dele. João Pedro se fez, com muita determinação, trabalho e com a superação das deficiências do próprio desenho, o ajuste do corte e o acabamento refinado das xilogravuras. A mudança para Fortaleza, em 1999, veio da constatação dolorosa de que não poderia viver do que fazia no Juazeiro. O medo dos amigos era de que a família saísse da linha da pobreza e fosse vítima da violência da cidade grande, com tudo o que isso acarreta de perda de auto-estima e da dignidade. Padre Cícero os ajudou e eles não se deixaram contaminar pelo que a metrópole tem de pior. Ele incorporou o Juazeiro ao seu nome artístico e passou a ser João Pedro do Juazeiro, numa atitude de quem traz um repertório, pertence a um lugar e 50 CARIRI REVISTA

tem orgulho de dizer de onde veio. Ganhou o prêmio Norman Rockwell (1999), na categoria gravura, em um salão do IBEU-CE, então em plena atividade. A cidade era grande, mas as chances de viver de xilogravuras continuavam pequenas. Foi quando ele encontrou Aléxia Brasil, arquiteta, designer, artista plástica e professora da UFC. Aléxia recorreu ao João Pedro para montar a animação interativa de sua dissertação de mestrado “Cordel Digital” (PUC São Paulo, 2002) e ele ganhou mais uma referência de amizade e generosidade. Era comum vê-lo pelo Benfica, carregado de gravuras, oferecendo-as aos professores do Centro de Humanidades e da Arquitetura. O trabalho era de formiguinha. João Pedro varava as noites e saia à luz do sol para vender sua produção. À medida que cortava e escavava, ia se afirmando como o grande gravador que é hoje, na maturidade. Foi acolhido pelo Museu de Arte da UFC

(Mauc) e, sempre recebeu muita atenção do Pedro Eymar, diretor da Instituição. O Museu do Ceará, na gestão Régis Lopes, abriu as portas para ele e elas continuam abertas pela atual diretora, Cristina Holanda. Lá, ele tem exposto muitas vezes e ilustrou uma edição de “Iracema” em cordel. Recebeu encomendas da professora Adelaide Gonçalves, da História da UFC. Expôs no Centro Cultural Banco do Nordeste (Fortaleza, Cariri e Sousa -PB). Ganhou editais que possibilitaram a edição de “xilocordéis”, poemas entremeados por vinhetas de gravuras. Ocupou, com frequência, espaços do SESC-CE, que o convidou para uma viagem a Coimbra. Expôs, mais de uma vez, no Sobrado do Dr. José Lourenço. A Secult o levou para a Feira do Livro, em Cabo Verde, onde ele mostrou gravuras e ministrou oficina. João Pedro consegue se impor por conta do trabalho vigoroso. Ele tem essa capacidade de chegar, como quem não


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Dodora Guimarães, em uma das Bienais de Arte do Cariri, levou o gravador pernambucano J. Borges para uma oficina sobre aplicação de cor, em Juazeiro. Uma Impondo-se com uma obra vigorosa, João Pedro é do mundo. iniciativa louvável, com expectativa de poucos frutos. José Lourenço, Stênio e Francorli já usavam pigmentos coloridos, com timidez e parcimônia. A cor explodiu, quer nada, ficar ali, “curubijando”, no melhor sibilidades de mostrar seu trabalho e de depois, na xilogravura do João Pedro. A modelo dos estereótipos que cristalizamos manter a família com dignidade e decência. série das gravuras que marcaram os cem dos índios, até ganhar nossa confiança e O crescimento dele foi proporcional anos de nascimento de Patativa do Assaré ao desejo de ministrar oficinas, atividade (2009), encomendadas pela Assessoria de nossa afetividade. A afro-descendência dele é forte e é que ele desenvolve com competência. É Marketing Institucional da UFC (leia-se Pauexpressa pelo maracatu, folguedo que ele didático, sem inibir os alunos. Sabe fazer lo Mamede) é exemplo de cor bem aplicada. brinca, com orgulho e ginga (já fez uma e sabe ensinar a fazer. Publicou a plaqueta O mesmo se pode dizer das pranchas sobre série e cartões postais com essa temática). “Xilogravando”, que distribui aos alunos no o sertão, que ele mostrou na Caixa Cultural, Nunca deixou — e nunca deixará de ser primeiro contato. As oficinas não formam na Praça da Sé (SP), em 2010, ou dos traba— o devoto do Padre Cícero, mas, por via o (a) artista, mas chamam a atenção para a lhos sobre Luiz Gonzaga, para os livros de das dúvidas, não tem nada contra os orixás, importância do fazer à mão, nesses tempos Bené Fonteles e Elba Braga Ramalho. tendo assinado uma série que foi exposta de velocidade, tecnologias de ponta e muiJoão Pedro foi aprovado no preto e na Galeria Antonio Bandeira, da Prefeitura tas mídias. A xilogravura “escaneada” pode branco, barroco, que faz o jogo de luz e ser ponto de partida para outros trabalhos, sombra; também no recurso, alegre ou drade Fortaleza e no Shopping Benfica. João Pedro está atento a todas as pos- abrindo muitas possibilidades criativas. mático, às cores. Pode ser considerado auCARIRI REVISTA 51


tor de gravuras de grandes formatos (a série Patativa); de iluminuras, como as de Iracema e das miniaturas de seus xilocordéis. Ele vai além e aplica a gravura, a partir da matriz de seda, em cerâmicas, azulejos, e mosaicos. Também imprime camisetas, gravuras em estandartes e panos, e faz o que pode para alardear seu trabalho e faturar mais com as vendas. João Pedro montou uma tipografia barulhenta, na casa em que vivia em Jacarecanga, e recebeu ameaças de um vizinho incomodado com o funcionamento da “quebra-pedras”. A folhetaria foi desativada, mas ele manteve as caixas de tipos, os prelos e a impressora. Comprou outras máquinas obsoletas, as adaptou, e tem hoje um museu das artes gráficas, para deleite de professores de design e dos que nostálgicos das tipografias de antigamente. Difícil falar de uma pessoa tão amiga e tão próxima. Mais difícil ainda quando se

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trata de alguém tão inquieto e criativo. Sabe-se o que ele é capaz de fazer, mas não se tem ideia de onde possa chegar, ao fazer do trabalho uma atividade lúdica e prazerosa. Monta estratégias de sobrevivência, que atualiza no dia-a-dia, com lisura e competência. João Pedro é capaz de nos deixar tontos, de tantas coisas que propõe e desenvolve. Seu currículo é de causar inveja, aos artistas que cultuam os modismos, aos que se voltam para os próprios umbigos e aos que fazem uma arte que se sustenta na explicação. O que ele faz pulsa, vibra, se sustenta e se insere na história das artes cearenses, com a força da tradição que não rejeita o enfrentamento das questões, das técnicas, e dos materiais de hoje em dia. João Pedro é do Juazeiro. Traz a fé que vem do Padre Cícero, dos caminhões dos romeiros, dos benditos “bodejados” pelos devotos, dos rosários, dos lumes que ardem e da acumulação de referên-

cias nas paredes votivas. Traz a força das pequenas oficinas, e das corporações medievais atualizadas. Incorpora a alegria dos reisados de caretas, das bandas cabaçais, dos cocos, do maneiro-pau e das lapinhas. Assimila a multiculturalidade, responsável pelo vigor das manifestações do Cariri, com referências vindas de outros Estados, como os guerreiros das Alagoas, os índios Pankararu e os penitentes de Santa Brígida. Lança mão dos brinquedos de madeira, de folha de flandres, das capelinhas de vidro, dos bonecos de barro e dos trabalhos de couro. João Pedro é do mundo. Um artista da grandeza dele ultrapassa tempos e espaços, supera limites, vai além das convenções demarcatórias de municípios, estados, países ou continentes. O mundo é pequeno para a ambição e o desvario de João Pedro. “Benza Deus”!


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Gestor municipal, é sempre hora de mobilizar sua cidade. Sua participação é muito importante no combate à dengue. Organize mutirões, promova a capacitação de agentes de vigilância, envolva líderes comunitários da sua cidade e exerça seu papel de liderança junto às organizações responsáveis pelos serviços de coleta e tratamento de lixo. Sua cidade conta com você.

JUNTOS SOMOS MAIS FORTES NESTA LUTA. Para saber mais ou fazer download do material para gestores, acesse www.combatadengue.com.br

O SUS está com você no combate à dengue. CARIRI REVISTA 57


#caririliteratura

LIRA NORDESTINA: DA CAIXA DE TIPOS AOS ARQUIVOS DIGITAIS

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atativa do Assaré sugeriu a mudança do nome da Tipografia São Francisco ao proprietário José Bernardo da Silva: Lira Nordestina. Assim ficaria oficialmente conhecida a editora de cordéis que lançou os clássicos da literatura popular caririense até meados da década de 80. As novas tecnologias da impressão, que permitem que façamos um cordel numa gráfica rápida ou mesmo em casa, prejudicou a atividade. “Agora, fazer o cordel como antigamente, não tem como, porque não existem mais os tipos, as máquinas precisam de manutenção e isso torna tudo mais caro”, comenta Cícero Lourenço na mesma mesa onde talha xilogravuras. Antes, o cordel era confeccionado manualmente por inteiro. As máquinas tipográficas carimbavam as folhas de papel com as letras escolhidas. Uma seleção especial, na qual as palavras são formadas da direita para esquerda e de baixo para cima. Para a capa, uma xilogravura encomendada aos artistas locais, que liam os versos e elaboravam uma imagem que simbolizasse a obra. Atualmente o cordel nasce como esta revista, numa gráfica, a partir de um arquivo que o autor digitou num teclado de computador, vendo na tela as estrofes se for-

marem. “Não temos nada contra a tecnologia, barateou, inclusive. Isso é bom. Mas temos vontade de resgatar a produção manual para mostrar para as pessoas como era feito o cordel original”, explica Cícero. O grande nome por trás da Lira Nordestina, José Bernardo da Silva, era alagoano e aportou em Juazeiro no ano de 1926, época em que as impressões populares estavam aquecidas, devido à vinda para o interior de máquinas rejeitadas pelos grandes centros, que já contavam com outros recursos. João Bernardo começou editando no estabelecimento alheio, comprou sua primeira impressora na década de 30 e fez de sua casa uma laboriosa oficina. O resultado foi de arrepiar e os folhetos vendiam como água. Em 1949 José Bernardo adquiriu os direitos de publicação do acervo de João Martins de Athayde, considerado o maior do Brasil. Clássicos como “O Romance do Pavão Misterioso” e “João Grilo” passaram a ser editados junto com novidades que mantinham o mercado aquecido. “Quando os clichês de zinco demoravam a chegar das capitais, as capas eram encomendadas aos artistas de Juazeiro. Que passaram a cortar na madeira dragões, CARIRI REVISTA 59


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José Lourenço mostra sua arte na Lira Nordestina

cangaceiros e beatos, reforçando uma iconografia na ponta do canivete, na haste do guarda-chuva e na faca de cortar fumo”, explica o pesquisador Gilmar de Carvalho no livro “Xilogravura – Doze Escritores da Madeira”. Com as novas tecnologias, a chegada do rádio e o advento da televisão, os folhetos entraram em decadência. José Bernardo morreu em 1972. Após algumas mudanças de sede – e consequentemente a perda de arquivos –, a Lira Nordestina foi comprada pelo Governo do Estado, em 1988, sendo administrada pela Universidade Regional do Cariri (URCA) e sediada no Campus Pirajá, em Juazeiro do Norte, onde tem os gastos com manutenção da sede pagos. Mas como editora, “só não está parada mesmo, porque temos trabalhado com as xilogravuras”, revela Cícero. Outro artista, José Lourenço, explica que alguns se encontram na sede para produzir gravuras que são expostas em feiras e eventos, onde são vendidas. “Estamos sempre por aqui produzindo e sempre recebemos turistas, estudantes, interessados na cultura popular”, afirma. Para ele, a Lira Nordestina tem muito potencial. Além de fonte para pesquisas, é um local interessante para quem quer saber mais sobre o Cariri. José Lourenço acredita que os próprios artistas que se reúnem por lá poderiam multiplicar os conhecimentos 60 CARIRI REVISTA

que acumulam desde jovens. “Poderíamos ministrar oficinas, passando a prática para os mais jovens”, sugere. A Lira Nordestina, a partir da gestão pela URCA, tem sido agraciada com financiamento de editais públicos para diversos projetos, mas os artistas ainda sentem falta da manutenção das máquinas. Cícero mostra que apenas duas estão funcionando e que as coleções de tipos (letras) estão desfalcadas. “Precisamos adquirir novas tipografias e consertar nossas máquinas”, declara. Apesar das dificuldades, a sede da Lira Nordestina guarda muita história sobre o Cariri. Expostas, as xilogravuras tornam visível o traço marcante, forte, e a inventividade dos artistas locais. Exemplares de cordéis, poucos. “Os cordéis foram se perdendo pelo mundo”, comenta Cícero, que sabe o quanto é necessário um trabalho de resgate histórico, capaz de transformar este rico espaço num grande centro de estudos para visitantes e pesquisadores.

SERVIÇO Lira Nordestina Campus Pirajá Av. Castelo Branco, 150. Pirajá - CEP: 63050-480 Tel: (88) 3571-1106


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RAFAEL VILAROUCA

#caririconversa

EMERSON MONTEIRO:

LIVROS PARA TODOS

O escritor Emerson Monteiro desafia as dificuldades e se coloca no front de batalha literário.

Por Raquel Arraes

Jornalista, escritor, advogado, Emerson Monteiro possui quatro livros na bagagem. O primeiro, de 1991, é “Sombra e Luz”, um ensaio de 18 páginas baseado em uma pesquisa sobre a lateralidade do cérebro. Depois vieram “Noites de Lua Cheia” (1994), “Cinema de Janela – Crônicas e Narrativas” (2002) e “É Domingo – Narrativas de Proveito” (2006) – todos de ficção. Afora sua ativa colaboração na cena literária caririense, Emerson se tornou um editor engajado. Sua missão: popularizar a literatura caririense e seus autores. Nesta conversa com a CARIRI Revista, ele aborda a literatura de interiores, as origens medievais da cultura nordestina e a autenticidade sertaneja no contar e ouvir histórias. CARIRI REVISTA 63


“EU SOU UM APRECIADOR DA LITERATURA DOS INTERIORES. GUIMARÃES ROSA ESCREVEU NA EUROPA, MAS ELE ESCREVEU COM BASE NO INTERIOR DE MINAS, NAS HISTÓRIAS QUE ELE OUVIA QUANDO CRIANÇA DOS AVÓS”.

CR: E quando você começa a editar livros de outras pessoas? EM: Eu descobri o gosto que a edição me dá e eu comecei a querer que os outros usufruíssem da mesma satisfação. Porque a gente não tem grandes parques gráficos, então tem que fazer à nossa maneira. Seria algo entre o artesanal e o industrial. A gente faz avião de lata aqui, mas voa. A única carência que eu vejo hoje é na distribuição. É preciso uma distribuição que leve nossos livros lá pra fora, para darmos o nosso recado caririense.

CR: Impressiona o histórico cultural e literário do Cariri. Como uma região no interior do Nordeste possui tal tradição artística? EM: Bem, o Crato foi um dos primeiros centros da CARIRI REVISTA: Emerson, quando você colonização do Nordeste. A colonização europeia se foi fisgado pela literatura? desenvolveu mais aqui do que no Norte do Estado. EMERSON MONTEIRO: Quando a gente começa Houve duas experiências de se iniciar a colonização a se entender como gente, começa a se interessar por por Fortaleza, por Aracati, Camocim, e não funcionou. determinadas coisas, de acordo com a vocação que Então o Ceará começou a ser colonizado pelo Cariri, nos atrai. Quando criança eu comecei a me interessar através da Casa da Torre de Garcia D’ávila, por famílias pelos fotogramas dos filmes de cinema, eu tinha uma que vieram de Pernambuco, Sergipe, Bahia, tangendo o coleção daqueles quadradinhos. Depois, coleção de gado do Rio São Francisco até chegarem a essa região. selos, histórias em quadrinhos e daí para cordéis. Da Depois vieram os engenhos, no ciclo da cana. Temos literatura de cordel para os livros de histórias de cava- um Seminário que tem 150 anos, isso aqui é um polo laria, de fadas, conto popular… Minha mãe, professora, cultural. A impressão que dá é que qualquer lugar podeobservando esse meu gosto, começa a trazer livros ria ser assim, mas não é não. Nas minhas viagens pelo para casa. Eu tinha a coleção completa de Monteiro interior, eu observo que existem cidades bonitas, com Lobato e Machado de Assis. Eu me interessei por lite- a natureza fértil, mas quando você espreme o substraratura a ponto de passar a ser uma segunda natureza to cultural, você percebe a diferença de perspectiva de minha. Então, o livro na minha vida é o como se fosse vida. E isso tem um peso. É uma coisa afetiva, está no um sucedâneo natural. ar. O Crato tem um peso civilizatório, não tenha a menor dúvida. O Crato tem uma literatura. E eu digo o Crato CR: Quando você decidiu passar de leitor porque o Juazeiro é mais novo. Mas pra mim, o Cariri é para editor de livros? um caldeirão só: Crato, Juazeiro, Barbalha… EM: Existe um dado divisor: a vinda do computador. Eu sou da geração intermediária entre a máquina de CR: Nós temos uma literatura caririense? escrever e o computador. O teclado é o mesmo, mas o EM: Temos uma literatura típica caririense. Como há resultado é outro. Isso me despertou para a facilidade uma religiosidade caririense, uma arte popular caririenda produção do texto e, depois, para a edição do texto se, um futebol caririense. E nós temos grandes nomes: em livro. Meu primeiro livro foi um ensaio, um opúsculo Fran Martins, José Carvalho, J. de Figueiredo Filho, Iride 18 páginas. Esse não teve muito problema. Eu já neu Pinheiro, José de Figueiredo. Na atualidade temos mandei pronto para a gráfica e alguém editou. Mas nos José Flávio, Roberto Jamacaru, o poeta Francisco Assis livros seguintes, eu mesmo comecei a diagramar desde de Souza Lima, um grande poeta; João Alves Rocha, a capa até o conteúdo. um grande sonetista da primeira metade do século

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REPRODUÇÃO

Os livros reunidos: criações de um autor que crê na literatura universal das aldeias.

passado. Na poesia popular temos Luciano Carneiro, que eu considero o maior poeta vivo do Nordeste hoje. Temos Ronaldo Brito, de projeção nacional, sem contar com a literatura messiânica de Juazeiro. CR: E quais são as características dessa literatura? EM: Olhe, Leon Tolstoi dizia assim: se queres ser universal, canta a tua aldeia. Então, a nossa literatura canta a nossa região, ela tem traços característicos de Cariri até no estilo de linguagem, no jeito simples de dizer. Eu mesmo não me proponho a fazer literatura intelectual, meu esforço é dizer o pouco que aprendo. É contar as histórias que meus avós e pais me contavam, o anedotário popular da região, sem perder o foco do eterno, do universal. E não deixo de falar do meu jeito brejeiro, meu jeito telegráfico. Então o que caracteriza essa literatura são as histórias que a gente guarda do nosso povo, a memória social, a etnografia do lugar. CR: Seria, no caso, uma literatura universal... EM: O que eu noto é que a grande literatura vive da pequena literatura, da literatura dos interiores. Eu sou um apreciador da literatura dos interiores. Guimarães Rosa escreveu na Europa, mas ele escreveu com base no interior de Minas, nas histórias que ele ouvia quando criança dos avós, nas estradas, nas fazendas das Gerais. Então, a base da grande literatura é o interior. A base da grande literatura não são os hotéis de luxo. Por isso, a gente não pode perder o foco. Porque aqui é onde estão as origens medievais da cultura nor-

“TEMOS UMA LITERATURA TÍPICA CARIRIENSE. COMO HÁ UMA RELIGIOSIDADE CARIRIENSE, UMA ARTE POPULAR CARIRIENSE, UM FUTEBOL CARIRIENSE.” destina, as origens da casa grande, da senzala, dos engenhos, aqui é onde estão as histórias dos índios, do lendário indígena. É como se o sertão fosse mais autêntico no contar e ouvir as histórias, nas varandas da casa, nas contadoras de histórias, no imaginário popular. Então é isso que eu vejo como esse Brasil verdadeiro. Não que seja arcaico, é um Brasil atualizado com raízes originais. CR: Então, a permanência dos livros está garantida. EM: Há muito tempo, eu perguntei a um professor por que a gente lia tanto, se depois a gente esquecia o nome do autor, o nome do livro… Aí ele me respondeu: “Emerson, cultura é exatamente isso, é o que fica depois que tudo passa”. Então cultura é esse amaciamento que fica na alma da gente. Quem sabe o valor, o prazer de um bom livro, sabe o prazer de ter um bom amigo, sabe o prazer de uma boa viagem, sabe o que é o prazer de um bom sonho, sabe o que é o prazer de um bom filme. Uma tela bonita é um livro bom, porque tudo é uma coisa só. CARIRI REVISTA 65


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#cariripoesia

SALTEADO Por Guto Bitu [Poeta]

ILUSTRAÇÃO JULIÃO JUNIOR

Você diz que tem que gastar Para alimentar o seu corpo E eu pergunto: E tua alma? Um quilo de feijão Te alimenta por dias Uma palavra te alimenta Pela eternidade Comprem poesia Comprem poesia

Nem todo teto tem gato Nem todo gato tem teto Nem todo pau dá baladeira Pois nem todo pau é reto Nem todo livro é papel Nem todo facho é pincel Nem toda pedra é concreto

Pros playboy eu sou um hippie E pros hippie eu sou playboy

Eu te dei uma folô Não te dei um holograma só merece apanhar aquele que não reclama pedi sim o teu calor eu não pedi a tua cama só merece apanhar aquele que não reclama

Eu brinco com as palavras Não como tu brinca com o vídeo game Mas como um matuto brinca Com uma baladeira

Fui convidado à privação Para provar minha incapacidade E devidamente estimulado com a necessidade Mais uma vez tirei zero Parabéns poeta! Parabéns! Novamente atingiu a sua meta De ser na vida sempre poeta.

Eu sinto a cidade A cidade grande Na carne No sangue No oco da alma Seus carros blindados Seus chesters assados A sua preocupação Eu sinto a cidade O não lugar O lugar nenhum Em qualquer lugar A vida vulgar A dormência em comum Eu sinto a cidade Como se fosse uma bala Uma bactéria mortal A boca que cala O transito infernal Os canais de TV A promoção do rádio O arranha céu O papel que voa A mosca no fel CARIRI REVISTA 69


#cariridefé

TODOS OS SANTOS NA TERRA DO PADIM Por claudia albuquerque

Terra das romarias e da devoção a Padre Cícero, o Cariri derrama sua fé por múltiplas veredas, inclusive pelas vias labirínticas da umbanda e do candomblé, que durante anos enfrentaram perseguições e bloqueios policiais. Pavimentando novos espaços com iniciativas como uma caminhada anual contra a intolerância religiosa, os terreiros estão em toda parte. Em Juazeiro do Norte, para ouvir os tambores, basta aguçar os ouvidos.

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anã deu o barro e Oxalá moldou o corpo. Olorum soprou a matéria, e com esse sopro o homem caminhou. Assim nascemos nós, povoando a terra com a ajuda dos orixás. Pelo menos, assim nascemos no mundo do candomblé, religião de matriz africana que faz a cabeça de milhares de adeptos, ajudando a temperar o caldeirão de culturas que transformam Brasil num país singular. “Fazer a cabeça”, aliás, é uma das várias expressões que saíram dos terreiros para integrar o vocabulário leigo, adaptando-se ao cotidiano nacional, assim como o verbete “axé”. Dos tempos das senzalas ao século XXI, o caminho desdobrou-se tortuoso. “Durante nossa história, as religiões dos índios e dos negros foram sistematicamente combatidas como heresia, supertição e charlatanismo”, comenta o professor e pesquisador Ismael Pordeus Jr. no livro “Umbanda – Ceará em Transe”. O catimbó, a jurema, o candomblé, a umbanda e os rituais de pajelan-

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ça são citados pelo estudioso como vítimas da “santa guerra” que tentou minar – sem sucesso – o culto aos orixás, caboclos, pretos-velhos e demais entidades. Até meados do século passado, isso era caso de polícia. Hoje o desconhecimento ainda é grande, o que atiça o preconceito, mas o povo-de-santo já não se esconde em confrarias indevassáveis. Babalorixás e ialorixás ganharam as ruas, seduziram adeptos da classe média urbana, tornaram-se objetos de teses acadêmicas e penetraram no imaginário nacional através de novelas, canções, romances e ensaios fotográficos. Roger Bastide, com o livro “O Candomblé da Bahia” (1957), ajudou na campanha de esclarecimento, tirando a névoa que encobre o tema por meio da análise das possessões, cânticos, danças e os rituais candomblecistas. “Uma das características da religião dos orixás é seu espírito de tolerância e ausência de todo proselitismo”, sintetiza o também francês Pierre Verger, que


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em 1981 publicou “Orixás: Deuses Ioribás na África e no Novo Mundo”, obra incensada por erigir uma ponte entre os cultos do Brasil e da África, comparando os ritos de cada orixá. O olhar arguto de Verger, fotógrafo e etnógrafo de excepcional sensibilidade, muito ajudou na valorização e desvendamento do candomblé, pelo qual ele se apaixonou a ponto de receber na África o nome de Fatumbi – “nascido de novo graças ao Ifá” – e se tornar um babalaô – adivinho na tradição iorubá. Com uma cosmogonia riquíssima e um intrincado conjunto de rituais, as religiões de influência africana têm as suas próprias interpretações do mundo, códigos internos e orientações de conduta, com fundamentos trazidos pelos escravos africanos, especialmente os do grupo angolano-cangolês, mas com um corpo que se formou sob as influências e arranjos da nova terra. O processo de transculturação foi lento, complexo e cheio de peculiaridades locais. Dos 600 orixás da tradição africana, cerca de 20 sobreviveram no Brasil, calcula Reginaldo Prandi, sociólogo e pesquisador da USP, outro renomado estudioso do assunto. Ao longo do caminho, o feitiço não se perdeu. “A umbanda e o candomblé são religiões mágicas. Ambas pressupõem o conhecimento e o uso de forças sobrenaturais para intervenção neste mundo, o que privilegia o rito e valoriza o segredo iniciático. Além do sacerdócio religioso, a magia é quase que uma atividade profissional paralela de pais e mães-de-santo”, escreve Prandi. DNA RELIGIOSO O turismo religioso movimenta Juazeiro do Norte, e de certa forma define o DNA da cidade. O que nem todos percebem é que longe das igrejas católicas e dos templos evangélicos também há vida, força e fé. Não se sabe quantos umbandistas e candomblecistas evocam seus santos, mas cada terreiro tem o seu axé, os seus segredos e os seus pontos (ou músicas cantadas nos rituais) preferidos. Difícil falar em números, mas é fato que na região as casas de umbanda superam as de candomblé – como no resto do país. Em muitas dessas casas, a imagem de Padre Cícero convive tranquilamente com a Pomba-gira e o Zé Pelintra. As festas de Preto Velho, Toque de Orixá e Festa de Exu atraem também os não-adeptos. Fundado em 21 de abril de 2001, o Grupo de Valorização Negra do Cariri-GRUNEC, organiza há três anos a Caminhada Pela Paz Contra a Intolerância Religiosa, 72 CARIRI REVISTA

sempre no primeiro mês do ano. Em 2012, a marcha aconteceu excepcionalmente no dia 23 de janeiro, quando pais e mães-de-santo se uniram a padres, pastores e seguidores em geral nas ruas centrais de Juazeiro do Norte, fazendo ressoar os tambores a fim de dissipar preconceitos. Nas duas primeiras edições, o evento aconteceu no dia 21 de janeiro, em memória à ialorixa Mãe Gilda (BA), que foi agredida e teve o seu templo invadido por praticantes de outra religião. Abalada com o vandalismo, Mãe Gilda morreu no dia 21 de janeiro de 2000 – data que o Governo Federal estabeleceu como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Há mais de 20 anos, a Constituição Brasileira garante a liberdade de culto no país, mas para umbandistas e candomblecistas “sair do armário” nem sempre é tarefa fácil. Além do preconceito, há o fato de que “a maior parte dos atuais seguidores das religiões afro-brasileiras nasceu católica e adotou a religião que professa hoje em idade adulta”, como pontua o sociólogo Reginaldo Prandi. No Cariri não é diferente. “Acho que aqui as pessoas pensam que os terreiros são uma atividade paralela ao catolicismo”, pondera o enfermeiro obstetra e pesquisador Glauberto da Silva Quirino, que nasceu em uma família cristã, participou da Renovação Carismática Católica e foi para o kardecismo antes de encontrar as respostas que procurava no candomblé. No caso dele, a crença nos orixás foi o passaporte espiritual para uma nova etapa, e sua vida experimentou um grande avanço depois que o pai-de-santo fez um ebó em seu nome (oferenda de comida seca para a entidade, com o objetivo de eliminar energias negativas). Glauberto conheceu o Pai Linconly de Ayrá em 2007, e sentiu-se imediatamente identificado com os ensinamentos, a ponto de decidir ser um filho-de-santo naquele mesmo ano. Começou como um abiã (simpatizante que ainda não recebeu qualquer tipo de obrigação), para então se tornar um yawo ou iaô – filho-de-santo já iniciado, que empreende aos poucos o passo-a-passo ritualístico necessário. Esse passo-a-passo envolve obrigações complexas de um, três e sete anos. Ao fim do sétimo ano, o yawo será um ebomi, ou egbomi, um integrante do alto clero. Isso, de acordo a hierarquia da nação Ketu, uma das correntes candomblecistas existentes no Cariri. Para Glauberto, morador do Juazeiro, a lógica da ciência não eliminou o percurso da fé. Em 2009 ele


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a umbanda e o candomblé são religiões mágicas de matriz africana.

defendeu a primeira dissertação de mestrado do Programa de Bioprospecção Molecular da URCA e hoje é professor Assistente do Departamento de Enfermagem da mesma Universidade. EBÓ DE LIMPEZA E LUTA “Convergi espiritualidade, ativismo social, arte e vida acadêmica num ebó só. Ebó de limpeza e luta!”, proclama Ridalvo Félix, pesquisador da cultura afro-brasileira, ao abordar sua trajetória pessoal, que começou em uma família meio católica e meio espírita. Ainda adolescente, ele visitou com sua mãe um terreiro de umbanda no bairro Batateiras, em Crato, e também frequentou com os irmãos a escola de samba Unidos de São Sebastião. “Esse foi nosso modelo de engajamento mais próximo às práticas de origem afro-brasileira”, relembra. Mais tarde a curiosidade em pesquisar terreiros para montar uma apresentação artística colocou-o em contato com o GRUNEC, um marco em sua vida. “Comecei a visitar os terreiros do Cariri, tanto de umbanda

como de candomblé, conciliando as questões e lutas do movimento negro com a pesquisa de caráter artístico. E uma coisa foi levando à outra”, reconstitui Ridalvo, que montou com Yáskara Rodrigues o espetáculo de dança Perfil Azeviche. Convidado a formar um afoxé pelo babalorixá Pai Linconly – que teve grande importância na região – o grupo de Ridalvo começou a trabalhar com a dança e as religiões de influência africana, organizando o afoxé Obá Orum (Rei dos Céus). “Convidamos todos os terreiros que conhecíamos para fazer parte do afoxé, principalmente os do Juazeiro”, recorda Ridalvo, cujas pesquisas também inspiraram a exposição Bombojira, em que Rafael Vilarouca mostra as artérias negras do Cariri, com o registro fotográfico de diferentes terreiros. Para os que desejam minimizar a presença da cultura negra na região, Ridalvo Félix, que hoje faz mestrado sobre o assunto, guarda uma resposta enfática: “Não desconsidero a importância que o meu Padim Cícero Romão Batista tem e teve enquanto líder religioso e CARIRI REVISTA 73


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Os terreiros recebem adeptos, curiosos e pesquisadores da cultura.

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figura política para a cidade de Juazeiro do Norte e o Cariri. Entretanto, essa áurea católica que sombreia a região e, principalmente, Juazeiro, tenta suprimir mas não consegue abafar a sonoridade dos tambores que batucam nos corpos e espíritos das comunidades religiosas de matrizes africanas”. Ser umbandista, negro e homossexual envolve uma série de questões. “Se você é filho-de-santo, dê uma voltinha pela Praça Padre Cícero ou em frente à igreja da Sé, no Crato, e verá pessoas lhe apontando, titubeando em passar perto de você… Pode até acontecer de não lhe atenderem numa loja”, informa o pesquisador, que aproveita para provocar, bem humorado. “Não é por acaso, caro leitor. Sou singular. Somos únicos. Tenho felicidades com o meu povo. Pasmem as pessoas ignorantes da contribuição e existência negro-africana e afro-brasileira na nossa região: Juazeiro do Norte é a cidade do Cariri que tem a maior concentração de famílias de santo”. É o povo do axé pedindo passagem. UMA TARDE COM PAI BIRA Pai Bira é Inácio Bezerra Leite, 33 anos, herdeiro de uma tradição espiritual que começou com a sua mãe, Maria da Anunciação, a Mãe Santa, que o criou na cultura umbandista. “Na infância, tive muitos problemas e apelidos ofensivos. Eu dizia às outras crianças que sabia quando uma pessoa ia morrer, então elas me apelidaram de ‘caveira’, por causa da minha mediunidade. Só descobri que não era igual a todo mundo aos 12 anos”, relata o babalorixá. Numa ida a Juazeiro da Bahia, o rapaz nascido umbandista teve um contato mais profundo com o candomblé. E um novo mundo se abriu. “Fiquei encantado. Não conseguia comer, dormir, beber”. Então estudou, se dedicou e “fez a cabeça” (o mesmo que fazer o santo, ser raspado, passar pelos rituais de iniciação). Quando seu babalorixá morreu, Bira foi a Salvador em busca de orientação na Casa Branca do Engenho Velho, ou Ilê Axé Iyá Nassô Oká, considerada a primeira casa de candomblé a se organizar no país, um bem cultural tombado pelo IPHAN como Patrimônio Histórico do Brasil. “Quando estive lá, eu já tinha 12 anos de santo, e deu nos búzios que eu ia ter meu próprio terreiro”. O que a entidade escreve, o homem não declina. Em 2001, Bira assumiu a casa de sua mãe, que deixou de ser o Terreiro de Santa Bárbara, de umbanda, para ser o Terreiro Ilê Axé Gitofalogi, de candomblé. Há algum tempo mudou de nome, mas continua encravado no bairro do Triângulo, em Juazeiro do Norte. Olhar atento, fala mansa, Pai Bira abre as portas diariamente, jogando búzios, botando cartas, curando


PEQUENAS E GRANDES DIFERENÇAS Candomblé, umbanda, xangô, tambor-de-mina, batuque gaúcho e batuque paraense são algumas modalidades religiosas de origem ou inluência africana. Destas, a umbanda e o candomblé se destacam em permanência e número de adeptos. Entre uma e outra, há vários pontos de interseção, mas também profundas diferenças. O candomblé foi trazido ao Brasil pelos africanos escravizados na época da colonização, e sua origem é remota. A umbanda teve o primeiro impulso no início do século XX, com o médium Zélio Fernandino de Moraes, e veio a se organizar depois, fundando seu primeiro centro na década de 1920, no Rio de Janeiro. Alguns estudiosos sustentam que esse primeiro centro nasceu como dissidência do kardecismo, que não aceitava guias espirituais de pretos-velhos, caboclos, espíritos de índios e de escravos – muito respeitados na umbanda, que também admite os orixás do candomblé, com algumas variações.

dores e resolvendo todo tipo de quizila. Só não faz atendimento individual às segundas e sextas – são os dias de Omolu, o padroeiro da casa, e Oxalá, o pai da criação. “Você não pode ofender o seu orixá. Orixá é o senhor da cabeça, como o anjo da guarda”, ensina o babalorixá, acrescentando que “ao redor de uma pessoa existem no mínimo sete anjos, que cuidam de vários setores da sua vida”. Ao entoar os orin (canções) e orikis (evocações aos orixás), Pai Bira procura passar os ensinamentos candomblecistas às quatro filhas, nascidas de diferentes uniões. A luta contra o preconceito se desdobra em várias frentes. “Já tirei uma filha minha de uma escola evangélica, porque a professora a isolou das outras, como se fosse uma doente”, lamenta, mas não se abala. Vestido de branco, ele recebe a reportagem com

Orixás são divindades que remetem às forças da natureza, com características muito próximas às dos seres humanos. Cada qual tem seu sistema simbólico particular, composto de cores, comidas, evocações, rezas e até horários que devem ser respeitados. Dependendo da nação étnica, eles podem ser chamados de inkices ou vodunci. O sincretismo dos orixás com os santos católicos foi uma estratégia de sobrevivência espiritual nas senzalas. No candomblé, todos os cantos são em iorubá, língua da família nigero-congolesa. Na umbanda se canta em português. Entre os candomblecistas, são os búzios que revelam ao pai-desanto o orixá do cliente e qual a sua sorte. “A importância do oráculo do jogo de búzios é um dos divisores de água entre candomblé e umbanda”, comenta Reginaldo Prandi. A umbanda dispensa os búzios. O cliente escolhe a entidade com quem se consultará, e esta é incorporada pelo pai-de-santo, que entra em transe.

um colar de Oxumarê no pescoço – uma cobra que devora o próprio rabo, símbolo da vida e do movimento. Tendo apoiado as marchas contra a intolerância religiosa organizadas em Juazeiro, Pai Bira leva o samba de roda para escolas e eventos e, durante o carnaval, participa do afoxé que desfila nas ruas. As festas em seu terreiro reúnem não apenas adeptos do candomblé, mas apreciadores da cultura afro-brasileira. Uma das mais concorridas é a Festa de Boiadeiro (“é uma entidade da comunidade, então tem comida e bebida do sertão”). Quitute ritual é coisa séria e amansa qualquer orixá, mesmo os de gênio difícil, como Exu, sempre o primeiro a receber oferendas e saudações. Por isso mesmo, é favor não confundir o ebó: o apetite das divindades, assim como a fé dos humanos, varia conforme a natureza, e é cheio de mistérios. CARIRI REVISTA 75


NA CASA DE MÃE MARIA Terreiro Ilê Axé Omim Dandereci Mutalêgi. Turbante na cabeça, saia rodada, sandália florida, unhas pintadas e cintilantes, Mãe Maria é uma negra formosa, corpulenta, exuberante. Nos olhos, uma suave sombra verde e nos lábios, batom cor-de-vinho forte. O celular vermelho descansa nas mãos roliças. Um colar de muitas voltas cai sobre a bata branca. Teria algum significado especial? “Não, é só porque é bonito mesmo”, gargalha Maria Isabel dos Santos Gaudino, 55 anos, 33 deles dedicados aos tambores. Filha de uma família de crentes e católicos, Mãe Maria entrou no mundo dos orixás por acaso. “É uma longa história”, ela adverte risonha, enquanto se balança na cadeira preguiçosa, posta no quintal de sua casa, que é um terreiro híbrido de umbanda e candomblé. “Eu nasci na umbanda e me criei no candomblé. Eu viro com caboclo, eu viro com exu, mas dentro de mim é um orixá”. O “nascimento inaugural”, na umbanda, aconteceu quando seu marido, José Galdino, foi curado por uma umbandista. “Ele tava com um egum (alma ou espírito desencarnado) perturbando a vida dele. Foi a mãe-de-santo que descobriu. Entramos no terreiro com receio, mas ele ficou bom”. Depois disso o que era medo virou curiosidade, e o desconhecido atiçou a fé. A jovem Maria se iniciou nos mistérios e permaneceu anos na umbanda, na casa de seu primeiro pai-de-santo. Hoje adepta do candomblé, ela relata sem detalhes a troca feita: “Tive um problema de saúde e precisei oborizar o santo. Fui oborizada a primeira vez há 17 anos. Então eu nasci na Angola e me criei no Jeje”. A frase é um tanto cifrada para os não-iniciados, mas significa que hoje ela é seguidora da nação Jeje, uma das correntes condomblecistas que aportaram no Brasil. Não pretende mais sair. “Respeito a umbanda, mas acho que o candomblé tem mais fundamento”. A mudança de crença não é incomum entre os adeptos, e muitas vezes envolve a cura de uma doença. O marido José Galdino, o Pai José, permanece umbandista. Por isso o terreiro da família é versátil: “toca uma semana para umbanda e uma semana para candomblé”. Fica numa rua tranquila do bairro João Cabral, em Juazeiro do Norte, onde Mãe Maria desenvolve projetos sociais, recebe a clientela, joga búzios e faz ressoar os tambores. Com a ONG Ilê Axé Omim Dandereci Mutalêgi, ajuda a meninada do bairro a sair das ruas. “E assim vou vivendo…” Vivendo e lutando contra a hostilidade, que é grande. “Grande mesmo! Apesar de que sempre existiu muito terreiro por aqui, as pessoas se escondiam. 76 CARIRI REVISTA

Há força, vida e fé nos terreiros da região.


Nós organizamos a Caminhada Contra a Intolerância Religiosa justamente para mostrar que o candomblé não é bicho de sete cabeças”, sublinha a ialórixá, que acompanhou as três edições da marcha. “A desse ano deu umas 3.000 pessoas”, exagera. “A gente bombou! No próximo vai ser melhor”. Muitos políticos – inclusive o prefeito de Juazeiro – prestigiaram o evento.

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SANTO QUER SILÊNCIO Depois de tantos anos dedicados à causa, Mãe Maria de Oxum tem muitos filhos-de-santo. Os herdeiros carnais foram dois – um deles tem mais de 10 anos “de feitura no santo”, ou seja, já “é raspado”, iniciado nos altos mistérios do candomblé. Ela é colaboradora do GRUNEC, realiza apresentações durante a Mostra SESC Cariri de Cultura e participa do afoxé no carnaval. Tem a voz forte e uma casa acolhedora. “Minha casa é uma casa de orixá. Aqui não tem aparelho de som. O som daqui vem de lá (aponta os instrumentos de percussão usados nos rituais). Santo precisa de silêncio”, determina Mãe Maria, admitindo, entretanto, que uma festinha vai bem. O santo gosta. Por isso são várias durante o ano. Tem festa de Xangô, de Oxossi, de Erê, de Boiadeiro… Oxum, a sensível e vaidosa rainha das águas doces, é quem governa a casa, por isso sua festa é especial. Os quitutes ritualísticos Mãe Maria faz no carvão ou na lenha. “Comida de santo não pode ser no fogão a gás, porque isso não existia antigamente. E o que se usava para cozinhar? Sal, azeite, dendê, quiabo…”. É preciso respeitar. Tudo o que Mãe Maria conseguiu na vida foi por meio do candomblé. Isso ela garante e repete: tudo. No entanto, o que mais desejam os que a procuram? Quais as demandas dos visitantes ocasionais, dos jogadores de búzios, dos endinheirados que batem à porta, às vezes às escondidas? O que arrasta devotos de outras religiões para os terreiros? A resposta é rápida como a flecha de um cupido: “O amor! Homens e mulheres, sem exceção, o que mais pedem é o amor. Ah, minha filha, fazem loucuras por causa disso!”. Quando nos despedimos, Mãe Maria se declara rica. De fé, de alegria, de proteção. Já no portão, acrescenta: — Você pode não acreditar, mas eu não faço trabalho para prejudicar os outros. O mal não precisa ninguém fazer. Ele bate na porta! A DOR E A FÉ DE MÃE ALEXANDRINA Era um grupo grande de pessoas subindo a serra do Araripe, com bebida, comida e três bodes vivos. Os bodes seriam sacrificados em troca de um favor das CARIRI REVISTA 77


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entidades. O cliente que contratara o serviço solicitava ao mundo espiritual a volta da mulher amada, o reatamento de um casamento falido, a costura milagrosa de um afeto em frangalhos. Trabalho tinhoso. Mãe Alexandrina, respeitada mãe-de-santo que há anos mantém um terreiro de umbanda em Juazeiro, liderava a intricada operação. E justo quando o primeiro bode ia ser sangrado, a polícia apareceu. — O que está acontecendo aqui? O que é isso?– grita o chefe da equipe, num tom de poucos amigos. Mãe Alexandrina não se altera: — É um trabalho para a saúde de um rapaz! Ele está quase morrendo! Então os policiais relaxam, comovidos talvez com os esforços de salvamento ao moribundo. “Eles acabaram bebendo e comendo com a gente, porque eu sempre levo uma galinhazinha com farofa pra comer no final, né? E também não falta bebida: cachaça, Rum Montilla, Drink Dreher”, se diverte a pernambucana Patrícia dos Santos, 55 anos, a Mãe Alexandrina, moradora de Juazeiro desde os cinco e “desenvolvida no terreiro” a partir dos 14. — Minha família era católica, morria de medo de macumba! – declara ela, que por uma dessas ironias do destino morava colada à casa de um pai-de-santo. O catolicismo familiar não segurou o ímpeto da adolescente desassossegada, que acabou pulando a cerca eclesiástica e se bandeando para a umbanda. “A gente não vai na seita porque quer. Vai por amor ou por dor. Eu fui por dor. Minha cabeça era muito esquentada. Quando entrei na umbanda consegui sossego. Mais do que isso: consegui paz, prosperidade e juízo”. O caminho não foi curto. Depois de passar quatro anos na casa de Zé Pretinho, um pai-de-santo que foi assassinado, ela andou “de casa em casa” até encontrar Zezé Homi, em cujo terreiro foi “feita no caboclo”. Incorporando espíritos como o da negra Ana (“uma entidade da linha de cura”) e a Pomba-gira Rainha (“para as mulheres atrás de homem”), Mãe Alexandrina é direta, despachada e sem artifícios. Acolhe todo tipo de petição – das súplicas amorosas ao rogo por dinheiro, sem descuidar das demandas do poder. “Político aqui vem muito. Uma vez fiz um trabalho grande em Penedo (AL) para o prefeito ganhar a eleição. E ele ganhou”, garante a experiente mãe-de-santo, 78 CARIRI REVISTA

Pais e mães-de-santo ainda enfrentam preconceitos e hostilidades.

que confia no seu taco (“doido quando entra aqui sai manso”) e não esconde o orgulho pelo saber (“aqui em Juazeiro não existe umbandista no meu rastro!”). O que acontece nas sessões ela conta de maneira sucinta: “Recebo primeiro um caboclo de luz, e ele pergunta se o caso é de trabalho ou de palestra. Se for trabalho, ele sobe e a Pomba-gira desce, para dizer se faz ou não. Quando uma pessoa fica manifestada (entra em transe), é como se estivesse meio adormecida, mas dá pra ver alguma coisa. Eu sempre fico manifestada”. Há pedidos estranhos, acordos de encruzilhada, pactos escusos com o além. Um “trabalho difícil” pode chegar a R$ 2.000. Ou mais. Nos animados dias de Toque de Exu, a casa enche. Ainda assim, as coisas não estão fáceis. “Ah, o dinheiro tá curto. Vem muita gente aqui, mas tem vezes que eu passo de três meses sem fazer um trabalho. Eu me viro, cozinho bem, vou vivendo como posso”. Apesar do jeitão aguerrido, Mãe Alexandrina condena as rixas entre os terreiros e as quizilas de pais-de-santo. “Quando vejo fuá pro meu lado, saio de banda”. No terreiro da Travessa São Damião, o espaço é pequeno para tantos santos e entidades. Na parede,


uma machadinha de Xangô repousa ao lado da imagem de São João Batista – um dos santos que lhe correspondem no sincretismo afro-brasileiro. O objeto de duas faces representa a justiça e é citado nos pontos de Xangô: “A sua machadinha brilhou/ A sua machadinha brilhou/ Quem manda lá na mata é Oxossi/ Quem manda na pedreira é Xangô”. É o orixá guerreiro e cheio de majestade a quem Gilberto Gil solicita numa conhecida canção: “Tome conta do destino, Xangô, da beleza e da razão!”. Sentada em sua minúscula sala azul, vermelha e verde, a anfitriã direciona o olhar: “Aquela ali é Iansã”. Para os católicos, Santa Bárbara. Tem também o Zé Pilintra de terno branco, um preto-velho com seu cachimbo, um São Gerônimo de longas barbas, um São Sebastião representando Oxossi, um índio que é o caboclo Coração da Mata. As estatuetas infantis são os erês, que ajudam na comunicação com os orixás. No meio de tudo, portando túnica preta e cajado marrom, um tradicional e austero Padre Cícero, perfeita imagem do catolicismo popular. “Sou muito apegada a ele!”, declara Mãe Alexandrina, sintetizando a riqueza de um universo mágico que funde dados culturais e reinterpreta mitos, numa saborosa união de elementos aparentemente díspares.

PARA NÃO SE PERDER Pai Bira: Travessa Francisco Vicente, 38B. Bairro Triângulo, Juazeiro do Norte. Tel: (88) 9950.8500 e (88) 8828.2589. Mãe Maria: Rua Cap. Coimbra, 1099, Bairro João Cabral (é a última casa da rua), Juazeiro do Norte. Tel: (88) 3571.3947 e (88) 8826.8038. Mãe Alexandrina: Travessa São Damião, 41, Juazeiro do Norte.

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o povo-de-santo se reúne em festa e caminha contra a descriminação.

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#cariricultura

SANGUE, FÉ E TRÊS TONELADAS DE TRADIÇÃO Por roger pires

N

itidamente extasiados. A fé em sua potência máxima concentrada em cerca de 100 corpos alcoolizados, masculinos e coloridos com os tons da terra. 2.800 quilos numa estimativa não exatamente precisa. Os carregadores arredondam para três toneladas. Alguns populares, baseados na média geral, falam em duas toneladas e meia. O comprimento beira os 22 metros de um tronco de jacarandá levemente torto e com uma extremidade bem grossa e outra mais fina. Lá da frente, uma voz capta o momento certo e convoca o início do percurso de 6 km. A informação passa por todos até chegar lá atrás, onde oito homens seguram cordas amarradas na extremidade mais fina do tronco para dar apoio. O pau é suspenso com a força dos homens pela primeira vez antes das 10h da manhã e dali pra frente há intervalos apenas quando o limite físico do coletivo é extrapolado e a gravidade leva a madeira ao chão livremente. Questionar qual a razão do carregamento do Pau da Bandeira, símbolo oficial dos festejos de Santo Antônio, não tem sentido quando se percebe que é a religiosidade que fundamenta essa tradição. Todos os anos, em Barbalha, desde 1928, junho é um mês especial e a crença que vem das igrejas toma a cidade e atrai visitantes da região, do Brasil e do mundo. Conhecido como o santo casamenteiro, o homenageado atrai mulheres solteiras em busca de um marido, mas também festeiros a fim de diversão.

Após uma manhã de muito suor e cachaça, oferecida pelo “vigário”, os carregadores superam o terreno irregular entre o sítio em que estava o pau e a pista. Se a caminhada fica mais fácil, os curiosos em torno da apoteótica ação podem atrapalhar. Moças ansiosas para tocar na madeira ou até tirar uma lasca, rapazes que querem testar a força e turistas com câmeras fotográficas em punho. OS COADJUVANTES Para as mulheres, os carregadores são simpáticos, arrumam espaço para que sentem. Mas para o cidadão que chega perto a fim de carregar o pau – apenas para sair dizendo que o fez –, nenhum sorriso ou simpatia. Para as fotografias, um comportamento semelhante ao pescador que mostra o peixe enorme que acabara de fisgar. Nesse momento, escrevendo sobre os “rapazes aproveitadores”, confesso que, enquanto repórter, pensei na possibilidade de acompanhar o trajeto e até ajudar a carregar o pau. Mas logo percebi que eu não teria saúde e, talvez, na metade do caminho já não tivesse energia e lucidez suficiente para acompanhar nem andando o restante do trajeto. Resguardei-me ao posicionamento de observador, mas bem próximo aos carregadores, tentando ouvir os resmungos, ver de perto as caras feias e também a resistência deles. “Faz 17 anos que eu carrego. Aqui é uma tradição e não é qualquer um que chega e vai carregar. Precisamos ter confiança um no outro, e uma pessoa nova CARIRI REVISTA 81


ou de fora não deixa a gente seguro. É preciso ter uma habilidade que nós vamos conquistando com o tempo”, fala rapidamente e ofegante o educador físico Bruno Filgueira, de 29 anos. Ele acabara de abandonar o grupo por alguns momentos, pois não estava concordando com a “tática” adotada. Explicou tecnicamente o motivo, mas admito que não compreendi – como alguém que não sabe as regras de algum esporte. FORRÓ CONCENTRADO Se pela manhã acontece o desfile de diversos grupos culturais locais, durante a tarde uma das principais ruas da festa, a rua do Vidéo, se torna o lugar da farra. As pessoas bebem e dançam forró em frente às casas dos familiares e amigos, mas sempre informados sobre o percurso do pau, aguardado com certa ansiedade. Barbalha está lotada e é difícil sair ou entrar da cidade nesse horário. São caririenses que voltam à cidade para o evento tradicional, pessoas que estão aproveitando para passar o final de semana no Cariri e os próprios moradores locais, que passam um período de agitação incomum na pacata e residencial cidade dos verdes canaviais. RETA FINAL Pouco antes das 21h, o carro de som que vem à frente do pau da Bandeira já pode ser ouvido. Um locutor anima os carregadores com palavras de incentivo e contagiando o público. Este ano um problema atrapalhou bastante. Na parte mais grossa do tronco, que segue na frente, a sequência de quedas, que acontecem quando os carregadores se cansam ou quando o movimento é sinuoso, acabou criando uma rachadura no pau, tornando o carregamento perigoso. Algumas tentativas de contornar a situação deram sobrevida ao carregamento, mas a solução era mesmo arrastar o pau. Já próximo ao destino final, os carregadores passarm a puxar e empurrar a madeira. Os presentes aplaudem, pois têm consciência do esforço feito “longe dos holofotes” durante todo o dia.

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Quando liberados, os carregadores sentem uma espécie de alívio e orgulho. Tiram fotos com as pessoas, comemoram entre si com as frequentes simulações de brigas – que assustam no começo e causam risadas no final – e aguardam o ápice do hasteamento do pau, que ficará em frente à Igreja da Matriz por quase um ano inteiro. As marcas do sol e as dores físicas só devem ser sentidas na segunda-feira, já que cachaça não falta no show musical que acontece mais tarde. No começo do percurso, um homem sofreu um acidente e foi levado de carro para o hospital. Poucos ali o conheciam e não souberam dizer o nome para acompanhamento do quadro clínico do rapaz.

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#caririespaçocidades

MUNDO SUSTENTÁVEL Por Isabela Bezerra

Durante o mês de junho, o Brasil sediou a maior Conferência das Nações Unidas para Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. O evento reuniu governos, instituições internacionais, empresas e sociedade civil a fim de acordar medidas inteligentes para o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza, promovendo o trabalho decente, energia limpa, e o uso mais justo e sustentável dos recursos. Como apaixonada pelo assunto, estive no Rio de Janeiro acompanhando os briefings das reuniões oficiais no Rio Centro e participando dos eventos paralelos que aconteceram em diversas partes da cidade. Para o secretário geral da Rio+20, Sha Zukang, o compromisso voluntário é o maior legado do evento. Segundo Zukang, os governos não podem avançar para uma transição sozinhos, e a força do trabalho voluntário, através do setor privado e da sociedade civil, será fundamental para que as decisões tomadas durante a conferência sejam verdadeiramente implementadas. José Maria Figueres, presidente da Carbon War Room, reafirmou a importância do compromisso voluntário ao dizer que 50% das emissões de carbono podem ser reduzidas sem a necessidade de acordos intergovernamentais. Citou como exemplo dois compromissos assumidos pelo governo de Aruba: acabar com o uso de combustível fóssil até 2020 e investir US$ 1 bilhão em construções com eficiência energética nos próximos 15 anos*.

Michelle Curling-Ludford, da National UN Volunteer da Jamaica, falou do trabalho com 500 voluntários, que reduziu a erosão e provocou o aumento da produção de alimentos em seu país. Ela destacou a importância da união para o sucesso desse tipo de ação. “Por favor, unam-se para transformar suas ações”, exortou*. Carlos Minc, secretário do Meio Ambiente do Rio de Janeiro, disse confiar mais nos resultados das cidades e das regiões. “As metas que os governos das cidades apresentaram são palpáveis. Como o corte de 25% das emissões dos transportes, 25% das emissões da construção civil — com prédios inteligentes, com a captação de água da chuva —, acabar com os lixões até 2016, incluindo os catadores, e captar o metano. É essa escala local e regional que vai influenciar positivamente os chefes de Estados”.

É preciso pensar no planeta como uma grande aldeia global. Entender que partilhamos dos mesmos recursos escassos e queremos o crescimento econômico com base na tríade social, econômico e ambiental. Compreender a importância do conjunto dos ecossistemas para a sobrevivência da vida no planeta. Repensar o modelo de desenvolvimento econômico, incluindo o equilíbrio dos biomas. E ser responsável pela mudança que começa nas nossas pequenas ações.

*Fonte: Informativo da Rio+20. 84 CARIRI REVISTA


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#cariricolunadesaúde

DIABETES E PRIVACIDADE Por Drauzio Varella

As obrigações e os limites da interferência do estado na abordagem de uma doença sempre provocou discussões acaloradas. O tema ganhou especial relevância no meio científico a partir das medidas adotadas recentemente pelo Departamento de Saúde da cidade de Nova York para combater o diabetes. O que chamamos de diabetes é um conjunto de doenças que se caracterizam por aumento das taxas de glicose no sangue. Na clínica, os dois tipos mais frequentes de apresentação são classificados como diabetes tipo I e tipo II. O primeiro é caracterizado pela destruição das células pancreáticas responsáveis pela produção de insulina; seus portadores costumam ser crianças ou adolescentes que dependem da administração de injeções de insulina para levar vida normal. O segundo, geralmente se instala depois dos 40 anos, está fortemente associado à obesidade e ao sedentarismo e pode ser tratado com simples mudanças do estilo de vida ou com a ajuda de drogas hipoglicemiantes. Em linguagem médica, diabetes do tipo I é conhecido como insulinodependente; o do tipo II, como insulinoindependente. Diabetes é uma doença potencialmente grave, porque o excesso de açúcar presente no sangue pode, no decorrer dos anos, levar ao transplante de rim, infarto do miocárdio, derrames cerebrais, amputações de membros e à cegueira irreversível. Para evitar essas complicações que causam sofrimento aos portadores da enfermidade e gastos incalculáveis ao sistema de

saúde, é fundamental controlar com rigor os níveis de glicose no sangue através de um estilo de vida que inclua alimentação adequada, atividade física diária e regularidade no uso da medicação. Toda pessoa que sofre de diabetes deve ser submetida a determinações periódicas das taxas de glicose na circulação, através de exames como a glicemia e a hemoglobina glicada. Em 2005, o diretor do Departamento de Saúde de Nova York descreveu o diabetes como “o único problema de saúde que estava se tornando cada vez mais grave no país, e que piorava rapidamente”. A afirmação foi feita para justificar uma medida polêmica: obrigar os laboratórios a comunicar por via eletrônica ao Departamento de Saúde todos resultados dos exames de hemoglobina glicada executados na cidade. Os resultados mostraram que 31% dos doentes atendidos particularmente e 42% daqueles assistidos pelo sistema público apresentavam valores indicativos de falta de controle da doença. E, que apenas 10% conheciam seus níveis de hemoglobina glicada. A partir desses dados, o Departamento invocou sua autoridade para entrar em contato com os médicos e seus pacientes toda vez que os exames alterados indicassem a necessidade de revisão do quadro clínico ou mudanças no tratamento. Sem precedente no caso de uma doença não-transmissível, a medida foi justificada como um dever moral do Estado para prote-

ger as populações mal assistidas. A “American Diabetes Association” foi favorável à nova política por considerá-la benéfica aos que vivem à margem do sistema, mas surgiram vozes conflitantes que levantaram dúvidas como: a) uma questão pessoal pode se tornar pública? b) no caso de uma doença não-transmissível, teria o Estado direito de se intrometer numa informação que interessa apenas ao paciente e ao médico escolhido por ele? c) o medo de ter sua condição revelada não levaria muitos a evitar exames laboratoriais cujos resultados poderiam eventualmente cair em mãos indesejáveis? Em resposta a essas indagações, o Departamento de Saúde adotou medidas conciliatórias: os laboratórios continuam obrigados a comunicar todos os resultados das dosagens de hemoglobina glicada, mas o paciente tem direito de optar se deseja ou não receber supervisão clínica e intervenção do Departamento. Por trás dessa disposição, está o debate que ocupará o epicentro das discussões sobre políticas públicas de saúde no século 21: até que ponto tem direito o cidadão de adotar estilos de vida causadores de enfermidades que aumentarão os gastos dos que pagam impostos ou dos que fazem seguros privados de saúde? Até que ponto o Estado tem direito de interferir?

REFERÊNCIA Science, vol 33, 14 July 2006, p. 1175.

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#caririgastronomia

PARA TODAS AS OCASIÕES Por Sérgio Pires [Ex-funcionário do Banco do Brasil, praticante de karatê e diretor responsável pela comunicação da ABS-DF, Associação Brasileira de Sommeliers. No momento elabora dois livros sobre vinho, devidamente engavetados ao lado da adega]

“O peixe deve nadar três vezes: uma em água, outra em molho e uma terceira em vinho, no estômago.” JOHN RAY (1628–1705), filósofo e teólogo, é considerado o pai da história natural da Inglaterra.

TORO LOCO TEMPRANILLO Um grupo de especialistas elegeu um vinho vendido em um supermercado popular por apenas 3,59 libras (cerca de R$ 11,50) como um dos melhores do mundo. O vinho espanhol Toro Loco Tempranillo, de 2011, da marca do próprio supermercado, ganhou a medalha de prata em competição internacional no Reino Unido. Ele foi fabricado na região de Utiel-Requena, na província espanhola de Valencia. Segundo a imprensa britânica, nos chamados “testes cegos” a bebida superou outras que custam até dez vezes o seu valor. A uva Tempranillo é a mesma que a Tinta de Toro, só que de uma variedade mais escura, e talvez venha daí o nome do vinho. Pena que não seja vendido fora da rede de supermercados ingleses! Mas estou apostando que o preço já subiu… DEGUSTAÇÃO “ÀS CEGAS” Existem diversas possibilidades de se organizar uma degustação de vinhos. Pode ser uma degustação vertical, com o

mesmo rótulo de safras diferentes, que é degustação comparativa entre vinhos da mesma uva, mas produzidos em condições diferenciadas. Porém, entre estas e outras, a mais difícil para os participantes é a degustação “às cegas”, que é quando o degustador não tem nenhuma informação sobre o vinho que está saboreando, e, portanto não é influenciado por preço, origem ou fama do vinho. Fica fácil para qualquer pessoa organizar uma degustação às cegas, basta apresentar as garrafas, já abertas, envolvidas por papel alumínio. É bom numerar as garrafas a fim de não confundir a ordem em que foram servidas. Gosto muito de frases, citações, aforismos, ditados, máximas, adágios e provérbios, por acreditar que conseguem sintetizar em poucas palavras toda uma situação. Coleciono algumas referentes a bebidas – já estou perto de 3.000! Então, nada melhor para resumir o que penso sobre a degustação às cegas do que algumas frases daqueles que tão bem sabem resumir seu ponto de vista: “A degustação separa a literatura da realidade” (Fernando Point). “Na degustação às cegas todo mundo fica humilde” (Otávio Piva de Albuquerque Expand - importador e exportador de vinho). “Sempre que pudermos, devemos de-

gustar às cegas. Não existe um exercício de mais humildade para um amante de vinhos que esse. Quando o rótulo não está à vista, nos sentimos muito mais livres para julgar” (Luiz Gastão Bolonhez - Enófilo e editor da Revista Adega). O MUNDO DO SAQUÊ A Embaixada do Japão promoveu uma apresentação das bebidas alcoólicas japonesas, conduzida pelo especialista japonês Hitoshi Utsunomiya. Foram servidos seis diversos tipos de saquê, bebida obtida da fermentação do arroz tipo Yamadaniski cozido, ao qual são acrescentados fungos de koji. Ainda foram degustados quatro destilados, tipo de bebida conhecida no Japão como Shochu, que pode ser feita a partir de diferentes matérias-primas, como cevada, arroz, batata doce, trigo, ameixa japonesa, etc. CARIRI REVISTA 89


A palavra chave para definir o sabor do saquê é umami. Este seria o quinto gosto básico do paladar humano, somando-se ao doce, ao amargo, ao azedo e ao salgado. O umami, que em japonês significa delicioso ou saboroso, origina-se de aminoácidos e peptídeos. O queijo parmesão é o produto mais rico em umami. CONVERSA DE PESCADOR Lendo a “Conversa de Pescador!”, na Cariri Revista no. 6, me deparei com o tambaqui, peixe que nada entre as minhas preferências culinárias, sempre com origem na pesca legal. Meu pai gostava muito da costela de tambaqui na brasa, e por diversas ocasiões convidou os filhos para irem na cidade satélite de Taguatinga para enfrentar o famoso prato. Experimentei depois o tambaqui em outras apresentações, algumas que levam vinho entre seus ingredientes, mas considero que a carne gordurosa do peixe fica melhor assada ou na grelha. Assim, a minha preferência ainda é pela costela na brasa – se bem que as de agora são de filhotinhos, se comparadas àquelas dos anos 70. Como todos sabem, a harmonização do vinho com a comida pode se dar tanto por semelhança como por oposição. Comidas encorpadas com vinhos encorpados, comidas leves com vinhos mais leves. Mas também podemos combinar por oposição, como um foie gras salgado com um vinho Sauternes, doce. Há ainda diversas outras combinações, considerando características das comidas e dos vinhos. Então qual o vinho para o tambaqui? Vai depender de como ele foi elaborado. Se cozido, temperado com limão, pede um vinho mais ácido como contrapeso à gordura, com a presença de frutas cítricas, bem aromático. Então podemos optar por um Riesling. Se assado ou grelhado na brasa, harmonizaria melhor com um vinho branco com mais estrutura, de preferência que tenha passado em carvalho. Nesse caso, um Chardonnay chileno seria perfeito. Mas 90 CARIRI REVISTA

não vamos nos esquecer do nosso coringa, o espumante: com um brut ficaria bom, mas com um rosé ficaria ótimo! O blogueiro Inácio Morais nos ensina que “para comer a costela de tambaqui não é obrigatório estar-se de joelhos o tempo todo, embora seja necessária uma reverência inicial. Portanto o restaurante deverá dispor de um genuflexório para essas ocasiões.” SÃO JOÃO, SÃO JOÃO! Acende a fogueira no meu coração! Junho sempre chega trazendo as festas juninas e o meu aniversário. Muitas vezes comemorei meu dia com uma festa junina no estilo, sendo que nas bebidas nunca faltou o quentão, principalmente o de vinho. Além do quentão temos seu primo, o vinho quente, sendo que ambos, como é óbvio pelo nome, são feitos com vinho aquecido, o que diminui a graduação alcoólica. O vinho quente é consumido em muitos países, com pequenas variações da receita, levando pimenta, baunilha, anis estrelado e outros condimentos. É conhecido como Mulled Wine na Inglaterra, Gluhwein na Alemanha e Holanda, Gløgg nos países nórdicos, Vin Chaud na França, Vin Brulé na Itália, Glintwein na Rússia e como Sangria Caliente na Espanha Vou dar uma receita de cada um, mas desde já aviso que a única testada aqui em casa é a de quentão. Um alerta, não se deve usar vinho de baixíssima qualidade, daqueles de garrafão — são dor de cabeça garantida! — nem também o restinho de fundo de geladeira, do tipo que “se não serve para beber tempera a carne ou põe no quentão”. Tanto na vida, como na culinária, para se obter um resultado de primeira qualidade o segredo é também utilizar ingredientes de primeira. Tem um povo que fala que o vinho quente com canela é abortivo, já outros dizem que ajuda a menstruação a descer, caso esteja atrasada. Sabe como são estas coisas: tem hora que eu acredito, tem hora que eu não acredito, mas fica o alerta.

VINHO QUENTE Ingredientes: 1 copo de açúcar Canela em pau à gosto Cravo à gosto 1 l de vinho tinto seco 1/2 l de água Raspas de casca de laranja e de limão 1/2 maçã (verde ou vermelha) descascada e cortada em fatias Modo de Preparo: 1. Queime a metade do açúcar com o cravo e a canela 2. Acrescente o vinho, já misturado com a água 3. Junte a maçã, as raspas de casca de laranja e de limão e o açúcar restante 4. Deixe cozinhar um pouco e sirva bem quente QUENTÃO Ingredientes: 1 copo de água (200 ml) 2 litros de vinho tinto seco 2 paus de canela 1 1/2 copo de açúcar Gengibre a gosto Cravos a gosto Modo de preparo: 1. Numa panela coloque o açúcar e o gengibre cortado em fatias finas 2. Leve ao fogo 3. Quando o açúcar começar a derreter acrescente os demais ingredientes 4. Assim que levantar fervura, deixe por mais 10 minutos. 5. Em seguida sirva bem quente.


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#caririespecial

Encontro

Por Max Uchoa

Max Uchoa, artista visual e criador do Studio Uchoa na busca do possível ainda invisível no real.

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