10 minute read
Airto Moreira
Por Fernando de Freitas
Advertisement
Fotos: Victor Kobayashi
AIRTO MOREIRA
Os sons, as parcerias e a as viagens de uma lenda dos ritmos
Era uma mala normal. De couro grosso, comprada na Bahia. Uma dessas malas que é para ser para sempre. Acomodado entre dois cobertores estava o arsenal com o qual Airto Moreira invadiu os Estados Unidos. Era final dos anos 1960 e Airto, músico profissional desde os treze anos, decidiu ir ao encontro de Flora Purim, que estudava música na Califórnia.
Primeiro, ele arrumou a mala com os instrumentos que ele já tinha. Achou que era pouco. Ficou meio vazia. “Conversei com uns amigos em São Paulo e, naquela época, existiam apenas dois lugares no Brasil onde a percussão era realmente popular, Recife e Salvador.” Foi assim que, na próxima turnê pelo Nordeste, com o “conjunto de baile aqui de São Paulo”, ele aproveitou a oportunidade e ficou pelo Nordeste mais uns dias para encomendar novos instrumentos com artesãos que conhecia.
No Mercado Modelo, na cidade baixa de Salvador, “eu mandei fazer uns caxixis grandes com uma pessoa que conhecia lá, um senhor que fazia caxixis para berimbau. Eu perguntei para ele, qual o tamanho que você pode fazer o caxixi? ‘Qualquer tamanho’, ele me disse. Quanto tempo demora? ‘Depende quantos...’ Eu queria uns três, quatro, grandes, com sons diferentes, um com som mais grave, outro com som mais agudo. ‘Isso aí eu faço em dois dias. Te faço esses três e te faço mais umas coisas para você’, e ele fez mais uns negócios redondos, assim de cabaça, e eu comprei”. Em Pernambuco, Moreira comprou pífanos e recorreu a um músico-artesão de Caruaru chamado Tavares da Gaita “ele fazia umas coisas lindas de percussão”.
De mala pronta, Airto Moreira, antes mesmo que os Novos Baianos relembrassem a todos o samba de Assis Valente que dizia que está na hora do tio Sam conhecer a nossa batucada, desembarcou em Los Angeles para fazer exatamente isso, e ele estava preparado, “eu fui para lá levando aquele pequeno arsenal”.
CALL IT ANYTHING
Nas terras sem fronteiras do freejazz e do fusion, Airto Moreira é uma lenda. É olhar rapidamente para sua carreira e entender que não é apenas com quem ele tocou, mas quem tocou com ele. Para muitos músicos, gravar Bitches Brew com Miles Davis talvez seria o ápice de sua carreira, para outros seria a lendária apresentação no Festival da Isle of Wight. Mas para o sereno percussionista e baterista, isso parece ter sido apenas o grande chamado de sua jornada. O Weather Report foi visto inicialmente como uma continuidade e avanço da banda de Miles. Na gravação
do primeiro álbum, lá estava Airto Moreira para marcar o som do que viria ser um dos grupos mais populares de jazz da história. Ainda que tenha permanecido pouco tempo, a banda sempre contou com percussionistas brasileiros, ou pelo menos, latinos após a saída de Airto.
Em seguida, se juntou com Chick Corea, Stanley Clarke, Joe Farrell e Flora Purim no Return to Forever. Apesar de já ter uma respeitada carreira como percussionista nos Estados Unidos e ser considerado um dos melhores bateristas jazz do Brasil, Airto confessa que quando chegou no exterior “eu vi os caras tocarem, era outra coisa [...] Eu não inspirava os caras a tocar, eu tocava junto”. Foi no Return to Forever que ele diz ter se tornado verdadeiramente um baterista no estilo. Ele lembra exatamente do momento em que isso aconteceu. A banda tocava um tema de Chick Corea chamado Spain durante uma apresentação, era um solo de Farell e Airto mandava ver, meio tenso, mas, de uma hora para outra, sua mão passou a “tocar sozinha”, ele não precisava mais comandar os movimentos, como se ela tivesse vida própria. Nesse momento, Stanley Clarke olhou para ele, abriu um grande sorriso e disse um sonoro “Yeah!”. “Eu senti que subiu, e dali para frente o negócio fluiu”. Dali para frente, ele passou a tratar a bateria com a mesma naturalidade que a percussão no universo do jazz.
NATURAL FEELINGS
A música é uma paixão que vem da infância. Sem qualquer pesar, Airto conta ter vivido em pequenas cidades do interior do Paraná, em casas sem luz elétrica. Sob a luz de lamparina, o pai ligava o rádio na bateria do carro. Tudo que ele ouvia tinha que ser interpretado diante do que os olhos alcançavam e as mãos podiam agarrar, a televisão ainda era algo muito distante de sua realidade e sua ausência, por certo, fez o talento de Airto aparecer.
“Para mim era uma coisa natural. Eu olho para um instrumento e vejo o som que ele tem. Para mim é muito claro isso. Por exemplo, quando eu era criança, tinha uma brincadeira – que eu brincava sozinho – olhava para um objeto e pensava ‘se eu bater ali, vai fazer piiiim’. Eu tinha 8 anos de idade, quem sabe 6. E, às vezes, não era isso, era um negócio bonito, eu pegava um pauzinho, batia e fazia ´toc’. Não tinha som nenhum. Eu não sabia, mas na realidade eu estava estudando percussão.”
A partir dessa brincadeira, começou a construir alguns instrumentos caseiros para reproduzir os ritmos que ouvia no rádio. E ele ouvia tudo com atenção. Tudo ficou mais fácil quando a família se mudou para Curitiba, ele tinha 14 anos. Ele começou a montar, desde então, já tocando profissionalmente em bandas de baile, seu “arsenal de percussão” e ressalta: “pelo som, não porque tinha visto”.
Airto mantém esse espírito até hoje: “às vezes eu quero um som e aparece um negocinho qualquer que não é nem instrumento, eu pego aquilo e ‘pararapapapa’, consigo um som diferente”. Ele não tem dúvidas de que foi isso que o diferenciou ao chegar nos Estados Unidos. Conta que percebeu os olhares impressionados dos músicos de jazz de Nova York com os sons que ele revelava ao tirar objetos de sua mala. “Foi assim que a percussão entrou definitivamente na minha vida”.
I’M FINE, HOW ARE YOU?
Em uma das suas raras apresentações no Brasil, Airto Moreira apresentou no palco do SESC Consolação a versão instrumental de seu álbum Aluê, acompanhado da banda formada por Vítor Alcântara (flauta, saxofone tenor e soprano), José Neto (guitarra), Fábio Leandro (piano e teclado), Sizão Machado (contrabaixo) e Carlos Ezequiel (Bateria). Aluê foi gravado em novembro de
2016 no interior São Paulo e lançado pelo Selo SESC, e se tornou o primeiro álbum de Airto Moreira como líder gravado no Brasil.
Em um bate papo com o público após a apresentação, os músicos contaram que as gravações aconteceram na Gargolandia, estúdio localizado em uma fazenda na cidade de Alambari, pela tranquilidade do local e pela possibilidade de realizar as gravações ao vivo, com todos os músicos mantendo contato visual.
Olhar nos olhos dos outros músicos é essencial para Airto Moreira. Ele acredita que “qualquer conjunto sério de música – mesmo que sejam só dois! – é como uma tribozinha, tem que olhar um pro outro. Muito tempo atrás, principalmente no jazz, eu notei que os caras não se olhavam muito. Eles fechavam os olhos e tocavam. Aquilo era um estilo. Era a criatividade deles. Mas quando eu montei meu primeiro conjunto, durante os ensaios eu falava: ‘Comunicação no palco: importantíssimo. Se você não olhar pro outro músico, você não sabe como o cara está se sentindo’. Às vezes, alguém precisa de ajuda e a maneira de pedir é olhar pros outros. Se o cara olhar para você e você olhar de volta positivamente, como se dissesse pro cara ‘legal, vamos nessa’, o cara vai melhorar. Se todo mundo se olhar tocando junto, aproveita melhor a vibração, que é a música, e o conjunto fica muito melhor assim”.
É com o entendimento de que a música se faz em conjunto e produzindo energia que Airto estabeleceu sua car-
reira, e é assim que, em Aluê, três faixas com composições inéditas, Rosa Negra, Não sei pra onde vai, mas vai e Guarany, foram gravadas todas em sessões de improvisação dos músicos. A outra regra que ele estabelece para sua banda é que depois que a banda está “bem ensaiada” ninguém mais deve ler partitura. “Se você estiver olhando sempre, você toca direitinho o que está ali. Então, quem que escreveu aquilo? Não foi você. Foi o compositor, o arranjador etc. Está tocando uma coisa que não é bem sua, mas dá certo. Mas se quiser se sentir vivo, se sentir bem mesmo, não leia – ou leia até aprender de cor e depois vá tocar”;
Sua paixão pela liberdade que o jazz proporciona musicalmente traduz em afirmações que, se ditas por outros músicos, mal colocadas, fora de contexto ou no tom errado, poderiam parecer soberba. Moreira é um músico moldado pelo trabalho na noite, de longos bailes, de dinheiro pingado. De um tempo em que, se você e sua banda não colocassem o salão para dançar por 4 ou 5 horas
seguidas numa noite, não voltariam na próxima. Depois disso, enfrentou os exigentes palcos de jazz de Nova York. Definitivamente, não é um músico de conservatório, longe de ser um acadêmico. Então, quando Airto Moreira diz que “nunca foi de estudar música”, que “criou certas coisas na bateria porque era preguiçoso”, essas afirmações devem ser acompanhadas de uma explicação: não há qualquer sinal de vaidade em sua expressão física ou em sua voz. Na realidade, é o mais perto do que alguém pode explicar o que é o feeling de que os músicos tanto falam, que é
poder expressar seus sentimentos por meio de música.
E foi exatamente no feeling e nessa troca que Airto Moreira teve uma experiência muito especial com Jaco Pastorius. Juntos eles gravaram uma faixa chamada Nativity para um álbum de Airto que estava curto demais para ser prensado. Hoje, essa faixa pode ser encontrada em diversas coletâneas que compilam a obra de Jaco, cuja monstruosa criatividade sempre está acompanhada das ressalvas sobre sua instabilidade psíquica. “Parece que todo mundo quer contar as histórias ruins do Jaco”, diz Airto “mas a minha é boa”.
O fato foi: após ouvir as gravações do disco, a equipe se deu conta de que eles precisavam preencher mais seis minutos para completar os quarenta exigidos pela gravadora. Flora sugeriu para Airto tocar um solo “free”, mas ele não achou que era o que queria. A solução foi convidar o baixista, que estava gravando em uma sala ao lado do estúdio para gravar. Porém, Flora, que fez o
contato com Jaco, esqueceu de contar que era preciso tocar por seis minutos. Jaco entrou no estúdio e perguntou o que era para fazer. Airto conta que respondeu “vamos tocar um free, vamos tocar aí, vamos fazer um negócio” e começou sua improvisação. “E ele aproveitou e tocou melodias lindas. Às vezes eu cantava um pouco e ele acompanhava, depois ele tocava a liderança. Era o líder de novo. Então foi... Não foi bem uma conversa, foi uma troca de energia. Houve aquela troca de energia incrível. Ele ia para lugares que era muito fácil ir junto. Era um bom motorista, vamos dizer, ele mandava o pé. Aí teve uma hora que a gente parou, eu olhei para ele e ele olhou para mim. Ele não fez outra frase, nem eu fiz som nenhum. Quando pararam o tape, começamos a rir, ele me deu a mão e disse ‘estava ótimo’. Quando ouvimos o tape, deu seis minutos”. Era exatamente do que Airto precisava: “eu já contei muitas vezes essa história porque foi importante para mim. Foi algo que eu gostei de ter feito”.
NÃO SEI PARA ONDE VAI, MAS VAI
Dessas experiências, Airto fala que a energia musical é a energia vital. Mas nem sempre foi tão fácil. Ele encarou o desafio de gravar e se apresentar com Miles Davis quando vivia somente há um ano nos Estados Unidos. E Miles era uma figura imponente, era o músico de jazz mais famoso do mundo e talvez um dos mais inovadores. “Ele está sempre meio sério. Se dava bem com os músicos, mas mantinha uma certa distância”, lembra o percussionista.
Nesta época, Airto evitava olhar para os demais músicos. Se sentava em uma cadeira, abria sua mala-arsenal em sua frente, abaixava a cabeça jogando o cabelo sobre o rosto. “No palco – e fora do palco também – se ele te olhasse de certa maneira, ou seja, se ele te olhasse como o Miles Davis olha. Você não sabia se ele estava gostando ou não gostando, se ele estava pensando ‘isso está uma merda’ ou ‘tô gostando desse negócio aí’. Então, para não confrontar ele, que andava no palco para lá e para cá, quando não estava solando lá na frente [...] oportunamente me veio a ideia, não vou olhar mais para esse cara”.
Essa atitude se tornou um desafio para o próprio Miles, “eu via a ponta da bota dele na minha frente. Eram botas italianas caríssimas, pois ele sempre estava na lista dos homens mais bem vestidos das revistas. Eu ficava lá fazendo minhas coisas, tocando e ele parado ali, às vezes um minuto na minha frente. E eu sei que ele queria que eu olhasse, mas eu não olhava”. Mas ele admite “Aquele Airto tinha medo”, o que claramente é um assunto superado.
Mas depois de tudo que viveu e de todo mundo com quem teve a oportunidade de tocar, com quem Airto Moreira ainda quer tocar? A resposta está na ponta da língua: Hermeto Pachoal e Ron Carter. “Mas você não gravou com eles seu primeiro álbum?” foi nossa reação espantada. “É que faz tanto tempo que
não tocamos juntos, mas tanto tempo, que eu mudei muito meu jeito de tocar e eles também. Seria como se a gente tocasse junto pela primeira vez de novo” explica Airto. “Mas não sei se vai acontecer”, lamenta. Nós esperamos muito que aconteça, por nós e por você.
TRÊS ÁLBUNS ESSENCIAIS
NATURAL FEELINGS
LIGHT AS FEATHER (com Return to Forever)
ALUÊ