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Lara Aufranc
LARA AUFRANC
AS REFERÊNCIAS VINTAGE QUE FAZEM UM NOVO ATUAL
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Eu você um nó entrelaça referências e simplifica o complicado, confundindo para explicar
Por Fernando de Freitas
É o terceiro disco, e o mais cru. Nua na capa e crua no som. Se os anteriores eram tese e antítese, este é a síntese. A conclusão e o sumo. Lara Aufranc lança Eu Você um Nó com a produção irretocável de Romulo Fróes, com a banda mais enxuta, mas afiada e direta.
Os primeiros dez segundos são um protesto. O ruído distorcido de um amplificador que, se considerados a sonoridade e temas da obra, é mais que um fetiche vintage, mas uma declaração que se contrapõe ao excesso de produção, correções digitais e plug-ins das gravações que saem dos mais diversos estúdios.
Já é possível encontrar uma unidade na carreira de Lara, a artista se relaciona com aquilo que é real. As relações reais, a existência física das pessoas, da cidade, o amor real e até a sinceridade das relações fugazes.
A sonoridade remonta ou olho no olho, os músicos em sintonia perfeita, seres humanos que buscam a melhor performance, em que cada nota é uma meta a ser atingida, seguindo compasso a compasso de entremeios e surpresas.
A GENTE CANTA
Sua voz foge dos timbres usuais da música brasileira. As incursões aos agudos são apenas eventuais, quando necessárias para o funcionamento da melodia. Seu registro vocal está nos médios, arredondados e suaves como veludo, que, não fosse o volume natural da voz de Lara, seriam sussurros confidentes. Como tudo na cantora, ela absorve as experiências de suas antecessoras e inspirações. Assim, canta como uma crooner que precisa do timbre noite após noite, madrugada adentro, e, com essa elegância, garante a continuidade de seu espectro, sem a necessidade de caminhar semitons abaixo ao longo das décadas que virão.
A sonoridade do disco também é marcada pelo power trio que a acompanha - aliás, estes são os elementos que dão molho às composições de Lara. Allen Alencar é um guitarrista de frases bem articuladas e comentários bem colocados. Daniel Doctors é um pilar de sustentação, sempre levando, no baixo e no sintetizador, a base sólida aos passos que a cantora deve dar à melodia. Victor Blum completa o trio com suas batidas e suingue, na cozinha ele dá o tempero ao molho de Daniel.
E, se ouvirmos com cuidado, aparecem no disco elementos acidentais, que nos lembram os discos antigos. Lara disse à Revista 440Hz que Na hora da mixagem, nós tomamos a decisão de não suprimir alguns errinhos. Uma frase instrumental com uma nota fora ou uma pratada a mais. São coisas mínimas que poderiam ter sido retocadas mas que funcionaram nos arranjos.
Trouxeram elementos que a gente não imaginava. Essas escolhas são um reflexo da parceria com Romulo Fróes, músico experiente que soube transpor à produção as referências sonoras que a própria cantora vem exprimindo ao longo de sua carreira.
NADA É O QUE É
Lara e seus álbuns são inclassificáveis apenas para aqueles que tem a necessidade organizar a arte em caixas e prateleiras - que me perdoe quem gosta valorizá-la com este argumento. Talvez seja difícil explicar a síntese do excesso, mas isso é necessário para o contexto a que pertence a cantora. Quando dizemos que ela exprime temas urbanos ou contemporâneos, nos referimos ao fato de que o processo de maturação intelectual dessa pessoa que compõe e grava música se deu simultaneamente com a eclosão da era da informação. Nenhuma geração anterior teve acesso tão indiscriminado à informação, em especial à música. Ao mesmo tempo, e no caso específico de Lara, alguém interessada em arte no sentido abrangente, que pode conversar com as artes plásticas, com a dança, o cinema, a moda navegando por tantas outras, com as quais se relacionou por toda vida.
A eventual dificuldade para entender Lara Aufranc está exatamente na necessidade de fazer com ela o que ela não deseja, classificá-la. Procurar em sua música os sons ciganos de Django Reinhardt podem funcionar com o mesmo sucesso que procurar a acidez de John Lennon e a altivez de Nina Simone. Talvez a defina mais a leitura de Por quem os sinos dobram, de Hemingway a visão de uma pintura medieval que a tocou, a vista do pôr-do-sol em São Francisco que a compreensão de Ottis Redding. A música e a composição, em especial deste álbum, estão na esfera das sensibilidades.
Ao abordar o que é primitivo e urgente em sua profundidade, Lara se despe dos excessos e dos penduricalhos contemporâneos, enxugando a segunda metade do século XX e essas duas décadas do novo milênio. Se engana quem pensa que ela encara o mundo de uma perspectiva mais simples, na realidade, seca e crua, é sumo medular o cerne das questões de cada um dos temas que explora.
GRITOS NA AVENIDA
É provável que seja por isso que o rock de Lara Aufranc soe tão deslocado, pois ele pertence a uma releitura do modernismo, que se perdeu na contemporaneidade e na tão surrada pós-modernidade. Seu rock invade, inclusive, o terreno de um jazz que não existe mais, da raiz do blues, do qual a bossa-nova já se despedia, mas sem qualquer sinal de nostalgia.
Aliás, quando revisita qualquer referência, Lara relê e avança, para se libertar das amarras dos estilos. Assim, cada declaração vintage tem por objetivo derrubar o status quo e propor algo novo, explorar a partir da própria experiência e conhecimento aquilo que está por vir, aproveitando o que existe de mais autêntico, nem que para isso seja necessário despir as roupas, os excessos, os conselhos e expectativas. É a contramão da avenida Brasil, mas também é o caminho que tão poucos estão fazendo.