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El Efecto

EL EFECTO CANTA O FOGO QUE PERPASSA A HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA

Por Matheus Medeiros

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Lembro-me de ter ouvido pela primeira vez sobre El Efecto quando um amigo me mostrou o vídeo “O Encontro de Lampião com Eike Batista”. Esse encontro inusitado pertencente ao disco Pedras e Sonhos (2012) e me chamou atenção pela mistura de rock e literatura de cordel. Para além da sonoridade, a música carrega em sua letra uma crítica sobre as parcerias público-privadas no Brasil, imaginando como Lampião e seu bando reagiriam aos escândalos envolvendo empresários, empreiteiras e licitações.

Apesar de ter me surpreendido com a composição em meados de 2016, só em março de 2018, quando foi lançado Memórias do Fogo, me aprofundei em conhecer a banda. Em referência direta à trilogia de livros do uruguaio Eduardo Galeano (Editora LP&M – Esgotado), o álbum conceitual usa o fogo como personagem para trazer à tona conflitos enraizados no continente sul-americano.

“Percebemos que, de uma maneira ou de outra, as músicas tinham em comum a referência ao elemento do fogo. E juntas, compunham um painel poético de situações, personagens e alegorias que evocam lutas coletivas contra diferentes formas de opressão, espalhadas em cenários, épocas e realidades distintas. Uma evocação à necessidade mais objetiva de torrar os ônibus, por exemplo, ou à imagem da barricada. A ideia é que cada uma das músicas seja uma chama, pra esquentar, pra botar lenha na fogueira, pra incendiar nossos corações”, explica Bruno Danton.

Armados por seus instrumentos, o então sexteto - o sétimo integrante, Tomás Tróia não participou do show - em uma das principais casas noturnas de Juiz de Fora (MG). Nas entrelinhas, tocar na cidade significava encarar sombras abrigadas num passado recente. Foi ali que a ditadura militar brasileira (1964-1985) teve seu início, quando uma tropa de 100 homens comandados pelo general Olímpio Mourão Filho, vestido de pijamas, como conta a lenda, marchou rumo ao Rio de Janeiro para depor o então presidente João Goulart.

É na obra do Uruguaio, que se sentava no Café Brasil, no centro de Montevideo, que nos transportamos para o Café Musik em Juiz de Fora, em uma noite entre moças bem maquiadas, bebidas geladas e, quem sabe, pais militares. As cinzas e o calor nos guiam.

OS NASCIMENTOS

O El Efecto tem como fio condutor duas premissas: a mistura de gêneros e o interesse político. Desde o primeiro disco, Como Qualquer Outra Coisa (2004), as músicas já traziam consigo forte teor crítico, mistura de estilos e longos formatos - semelhantes a óperas.

Tomás Rosati (vocal) e Bruno Danton (violão) - membros remanescentes da formação inicial - contam que a criação da banda foi um divisor de águas em suas vidas. “Nos conhecemos tocando em outras bandas e criamos o El Efecto para ser um espaço para executar aquilo que não se encaixava nos outros grupos. Com o tempo, as outras bandas foram caindo por terra porque era no El Efecto que estávamos canalizando nossas pilhas”.

Apesar do grupo ter se consolidado durante um período político de um governo mais alinhado com seus ideais, críticas nunca faltaram. Segundo Rosati, a proposta das letras é tratar de assuntos de natureza estrutural. “Parte das inquietações da banda são canalizadas para aquelas parcelas da sociedade para as quais o regime de exceção é uma constante. Nosso foco sempre foi quem paga o pato na civilização, seja nas capitais ou nas periferias”.

Na faixa de abertura, Café, a banda apresenta qual seria o foco do disco e do show: racismo, escravidão e a exploração do trabalho. Ambientada nas lavouras do período colonial, a canção retrata como a população negra foi sequestrada de sua terra e escravizada para servir os interesses pequena parcela rica (e branca) da sociedade. A metáfora do “gosto amargo” na boca de quem trabalhava nos cafezais - ilustrada no primeiro verso: “Colônia! Teus filhos já estão de pé. Mais um dia se inicia na colheita do café. Pesado é o fardo – e o gosto amargo”; e a imagem romantizada do casal apreciando uma xícara de café em Paris - “Do líquido no chão, revela-se um poema. A flor do bem-estar se rega com o suor da escravidão.”

Conhecida por seu público cativo por misturar estilos, o El Efecto trouxe para Memórias do Fogo algumas influências da música sul-americana. Tomás Rosati conta que esse resgate é uma forma de pensar o imaginário do cantador que

reflete a questão da terra. “No caso de Café, música que traz uma situação de colônia na América, essa vontade veio do diálogo entre letra e música”.

A aproximação com gêneros como o Joropo - ritmo colombiano/venezuelano presente na música Café - e o Festejo Peruano foi consolidada por meio da experiência da flautista e clarinetista Aline Gonçalves. “Já existia um interesse por parte da banda em reproduzir os ritmos de nossos vizinhos. Por ter uma história com estes estilos e por ter morado no Chile, fui chamada para fazer alguns arranjos para o disco”, afirma Aline.

O público juiz-forano acompanhou o ritmo de “Café” dançando como se samba fosse a mistura deste rock, arriscando o rum dos mojitos - já passou o tempo do uísque com guaraná que Chico cantou. O efeito do álcool logo em aceleração incendeia os corpos e entorpece as mentes.

AS CARAS E AS MÁSCARAS

Alguns símbolos de luta foram adicionados a Memórias do Fogo, como é o caso da música Carlos e Tereza, na qual, a partir dos personagens Carlos Marighella e Tereza de Benguela, somos levados a lembrar de suas respectivas lutas. “Mas tu tem que lembrar – com orgulho! 25 do mês de julho! ”Mas tu tem que lembrar – eu me lembro! Do dia 4 de novembro!”. As datas em questão referem-se ao Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, sancionado em 2014 e, também, à morte do político, escritor e guerrilheiro comunista.

Tomás Rosati explica que a ideia da música era reunir vários personagens históricos para a criação de uma vinheta e que só depois a faixa se tornou uma das músicas do disco. “Decidimos estudar alguns personagens e encontramos a figura dos dois. Por coincidência, os nomes de Benguela e Marighella rimavam e isso permitiu um encaixe sonoro perfeito

na música. Cada um em seu tempo, os dois personagens travaram lutas fundamentais no contexto da escravidão e, depois, numa ditadura militar”.

O músico conta ainda que o tema explorado funciona muito bem para se pensar a questão estrutural e de como ela atravessa períodos. “Esses personagens contemplam discussões e aprendizados contemporâneos. Prestar contas a isso foi uma forma de dar continuidade ao nosso projeto de música e política”, finaliza.

Apesar de terem vivido em tempos distintos, histórias como as dos dois personagens se repetem no Brasil. Na música Chama Negra, por exemplo, a banda mostra, ainda que forma acidental, a figura de luta de Marielle Franco. “Apesar dos avanços em diversas áreas, ainda existe no Brasil a perseguição em massa à população negra e periférica. A gente acompanha e teme tudo aquilo diz respeito a essa ideia de rememorar um período ditatorial e toda a violência e brutalidade que isso carrega”.

Tatá Chama e as Inflamáveis, banda local, já havia aberto a noite para a banda carioca. O baile dos mascarados, já tão distante do Carnaval, continuou embalado pela banda, aquecido pela intensidade que o sexteto apresentava no palco.

O SÉCULO DOS VENTOS

Nomeado Século dos Ventos por Eduardo Galeano, o século XX quase extinguiu o fogo que existia. Não conseguindo realizar o feito, as chamas só se alastraram ainda mais. Mesmo com o fim da escravidão propriamente dita, outras formas de exploração foram introduzidas como forma de manter a pirâmide do capital intacta. Ambientadas no século atual, duas das mais conhecidas faixas do disco exploram essa temática em suas letras O Drama da Humana Manada e o O Monge e o Executivo.

Aliando a exploração do trabalho pelo sistema capitalista ao discurso de meritocracia popularizado pelas classes altas, as duas músicas retratam a escravidão dos dias de hoje, como exemplifica o verso da música baseado no grafite exposto na Central do Brasil [estação ferroviária do Rio de Janeiro]: “Malandro é o cavalo marinho que se finge de peixe pra não ter que puxar carroça. Não! Pera lá... Trabalha, espera, que quem trabalha prospera e quem espera sempre alcança. Não desespera, depois da tempestade vem sempre a bonança. Trabalha, espera e confia, pois a tua estrela ainda vai brilhar um dia! Um brinde à meritocracia!”.

É diante da constatação que as condições de trabalho ficaram mais precárias, direitos estão sendo suprimidos e que taxas de desemprego começaram a subir depois das manifestações de 2013 no Brasil que a banda continua sua obra. É com o olhar da popularidade de Dilma Rousseff em baixa e em sua sucessão, forçada por parte da cúpula emedebista chefiada por Michel Temer em 2016, e diante de reformas supostamente pautadas como forma de reduzir

os problemas e impulsionar novamente o crescimento econômico que se encara o calor do fogo em síntese:. “Uma música contra a reforma trabalhista, as formas de exploração e a alienação do trabalho. Contra o discurso da meritocracia e a reforma da previdência. Enfim, um samba abordando esse drama, essa luta que se faz urgente no atual contexto de precarização da vida”, explica Tomás Rosati.

Ainda que o cenário político seja conturbado, a arte se coloca como válvula de escape nas horas de maior dificuldade. Assim como era feito na década de 60 na MPB por nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque e Geraldo Vandré, a música de protesto ainda pulsa, viva, por todos os cantos. Em “Incêndios”, o El Efecto finaliza o disco, mas deixa uma mensagem em aberto: um passo atrás talvez revele outro caminho. “Não há solução dentro do seu conforto. É preciso pensar os limites dessa perspectiva de crítica social para perceber onde cada um se coloca como parte da questão. Como você se beneficia

desse processo de violência e morte em que vivemos? Você vai conseguir abrir mão, rever privilégios, questionar o peso disso para o resto das pessoas? É pensando nestes conceitos que a banda segue seus trabalhos”, endossa Tomás.

No final da noite, a tensão que El Efecto pretende produzir, em situações normais, deveria ser daquelas que se corta o ar com uma faca. Mas naquela noite, como nas últimas e nas próximas, todo mundo foi para casa vestir o pijama. Sem capacete ou cachimbo, ninguém vai derrubar o governo.

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