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Carta a Esperanza Spalding

CARTA à Esperanza Spalding

Cara Esperanza,

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Você se lembra da década de 1980? De quando éramos crianças? Tudo parecia tão longe. Nós vivemos quase em 2020 e o futuro não chegou como imaginávamos, nem os Jetsons nem a catástrofe absoluta. Estamos em uma versão agridoce daquelas previsões e preciso contar a você, acho que a tecnologia não nos uniu. Existe um argumento fácil, eu não preciso mais procurar por dias (quem sabe semanas ou meses), ir de loja em loja para, finalmente, achar, em uma portinhola especializada em gravações de Jazz o seu disco. Eu movimento os meus dedos e, por meio da transferência de dados criptografados em cabos, nuvens, ondas ou outras forças misteriosas, tenho em meus ouvidos a sua música na qualidade em que foi gravada, na sala da minha casa, ou até mesmo no meio da rua. E como eu gosto da sua música! “12 Little Spells” me encantou. Foi um disco meditativo para mim. Voltei-me para o meu próprio corpo e revisitei-me. Foi dele que parti para te procurar para uma entrevista. Eu queria saber como você relacionava tecnicamente a música com os temas do corpo. E enquanto eu me encantava, você lançou mais quatro “spells”. Tive esperanças renovadas de conseguir conversar com você. Me perdoe os trocadilhos. Mas não é só isso. Eu sei, porque você já disse por aí, que você gosta de música brasileira. Que tem uma paixão especial por Milton Nascimento. Fico pensando se, em uma de suas passagens pelo Brasil, você visitou o Bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, mítico lar do Clube da Esquina. Bairro em que viveu, e ainda vive, boa parte da minha família. Na igreja que meu bisavô ajudou a construir e onde se casaram meus avós. Do cinema, hoje um centro cultural, onde meu pai assistia os Westerns americanos, dessa terra tão longínqua. Na praça das histórias que se contam por aqui e a qual estou tão ligado, por sangue e tradição. Se você foi naquela praça, eu podia não estar lá, mas você me encontrou um pouco por ali. Mas eu queria falar com você e não te encontrei. Você, que tem a minha idade e foi a mais jovem professora de Berklee e agora leciona em Harvard (tentei contato com as duas). Você, que tem um website e representantes contatáveis. Você, que foi fotografada por um amigo meu em um show em São Paulo, em uma foto lindíssima. Tão perto. Mas a tecnologia não nos uniu. Nessas contradições, quanto mais eu me encontrava em sua música, mais distante parecia a possibilidade de te entrevistar. Eu pensei seriamente em deixar de lado essa matéria. Mas meu encontro com sua música, na contradição do espectro da sua voz com o som de teus dedos percorrendo o baixo, me fez decidir que eu não poderia deixar de lado a conversa que queria ter com você diante dos meus leitores. E tem horas que não importa se Sinatra tem uma gripe. Sabe, Esperanza, ainda tem muita coisa que eu gostaria de conversar com você. Por enquanto, eu te mando um girassol e tambores de Minas por meio dessa carta, esperando receber de volta palavras, respostas e explicações em clave de Fá.

Abraços, Fernando de Freitas.

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