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JONI MICHELL 50 anos de Blue
by comlimone
Por Lucas Vieira
A MELANCOLIA E A FORÇA DE OS BASTIDORES DE BLUE, ÁLBUM HISTÓRICO QUE JONI MITCHELL COMPLETA 50 ANOS
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Em janeiro de 2016, Laurie Burrows Grad, colaboradora do Huffpost, publicou um artigo em que investigou o uso da palavra “Blue” como sinônimo do sentimento de tristeza e melancolia, para além da tradução do inglês para a cor azul. Em sua pesquisa, a colunista encontrou resultados diferentes ao longo da história da língua inglesa.
Entre as associações, há a relação com o fato de navegadores hastearem bandeiras ou vestirem faixas azuis na ocasião da morte de um oficial de suas embarcações. Em literatura, o registro mais antigo encontrado pela pesquisadora data de 1385, quando Geoffrey Chaucer usou o termo em seu poema Complaint On Mars. Em 1807, Washington Irving abreviou o termo “blue devils”, utilizado como sinônimo de “presença ameaçadora” para “blues”.
No final foi através dos escravos retirados da África que colhiam algodão no Sul dos Estados Unidos. Parte dos negros escravizados vinha do lado ocidental do continente africano, onde era comum pintar as roupas com pigmento azul anil (índigo blue) em momentos de luto e morte, para indicar sofrimento. A partir de 1971, além de significar o gênero musical, a cor e o sentimento, a palavra batizou um álbum considerado uma obra prima da música folk. Lançado por Joni Mitchell, Blue é o quarto LP de sua carreira e completou 50 anos de lançamento no dia 22 de junho de 2021.
Em quase 36 minutos, ao longo de dez faixas, a artista canadense criou uma das obras mais sinceras e densas produzidas em seu tempo, reverenciada desde seu lançamento como um dos mais transparentes retratos de uma artista e aparecendo sempre em destaque em listas da crítica especializada ao longo dos anos.
Como obra confessional, Blue é um álbum de histórias, como é característico da música folk, e fala de diversos episódios ocorridos em um período difícil da vida de Mitchell. Nas páginas a seguir, conheça os caminhos percorridos pela artista nessa estrada solitária.
CANÇÕES SÃO COMO TATUAGEM
Em 1964, a canadense Robert Joan Anderson dava os primeiros passos para se tornar uma cantora folk. Aos 21 anos, havia se mudado para Toronto após abandonar a Alberta College Of Art, em Calgary, por não se adaptar ao ensino tradicional. Posteriormente, essa rejeição aos métodos padronizados se tornaria característica de sua criação como musicista, artista plástica e poeta.
Ao chegar à nova cidade, uma descoberta a desesperou: estava grávida de seu ex-namorado. Sem vínculo ou contato com o antigo parceiro, sem trabalho e vivendo na sociedade conservadora canadense, Joni teve que enfrentar a gravidez sob julgamentos, conforme revelou em 1997 ao Los Angeles Times: “Isso te arruinava no sentido social. Você não tem ideia de como era o estigma. Era como se você tivesse assassinado alguém”.
Mesmo com as dificuldades, Joni manteve a gravidez escondida. Fazer com que os pais não descobrissem não era difícil, uma vez que viviam em Saskatchewan, uma província há três mil quilômetros de Toronto, em uma época em que a comunicação não era simples. Em 19 de fevereiro de 1965, com complicações no parto, Kelly Dale Anderson, a “Little Green”, nasceu, “com a Lua em Câncer”. Após dez dias internada, Joni saiu do hospital com a intenção de prover uma vida segura à filha, apesar de suas condições.
Joni tentava a vida cantando na noite de Toronto, mas não era fácil tocar em uma cena que privilegiava músicos que eram membros de uma união. Com a ajuda do também cantor Vicky Taylor, conseguiu apresentações em casas menores, numa das quais uma noite foi vista por Chuck Mitchell, um artista folk americano que se apresentava pelo Canadá.
Em poucas semanas, Chuck declarou-se para Joni e a pediu em casamento, com a proposta de cuidar dela e da filha recém-nascida. Mitchell aceitou, porém, os planos não deram muito certo e, em poucos meses, o casal resolveu entregar o bebê para adoção, acreditando que seria melhor que Kelly vivesse com uma família com melhor estrutura. Fragilizada com toda a sua situação emocional e financeira, Joni mudou-se com o marido para Detroit.
Joni sempre acreditou ter feito a escolha certa pensando na criança, e seguiu a vida e a carreira de cantora, sem ter outros filhos e sempre com a “Little Green”, personagem da sua canção gravada em Blue, na memória. A artista manteve a história em segredo e, anos depois, mais estabilizada, passou a procurar a filha. A situação começou a mudar em 1993, quando um ex-colega de quarto da época da faculdade vendeu a história para um jornal. Mitchell considerou a história uma traição, porém a notícia abriu portas para o reencontro.
Simultaneamente, em Toronto, Kelly Dale - que recebeu o nome de Kilauren Gibb após a adoção - procurava por sua mãe biológica. Quando tinha 27 anos, Gibb recebeu de seus pais adotivos a notícia de que havia sido adotada. Grávida, quis buscar informações sobre seu passado e, após muita pesquisa em instituições e na internet, que ainda engatinhava na segunda metade da década de
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1990, conseguiu confirmar que era filha de Joni Mitchell em 1997.
Mitchell conheceu Gibb quando a filha tinha 32 anos e o neto, Marlin, 4. A “Little Green” tinha uma carreira como modelo há 13 anos e, durante a década de 1980, ambas haviam morado em Nova York ao mesmo tempo. Segundo a matéria do Los Angeles Times, Mitchell confessou que a beleza do fim da história era um contraste ao tamanho da tristeza de seu começo. Ao longo dos anos seguintes, porém, mãe e filha enfrentaram momentos em que nem sempre estiveram em harmonia.
CROSBY, COHEN, NASH E MITCHELL
“Why do fools fall in love?” (“Por que os idiotas se apaixonam?”) perguntava uma canção que Joni ouvia quando criança e regravou em seu álbum ao vivo, Shadows And Light (1980). Já uma idosa, aos 76 anos, em 2020 ela revelou, em entrevista a Cameron Crowe, quando perguntada sobre o amor: “eu sou uma idiota em relação ao amor, cometo o mesmo erro várias e várias vezes”. Durante a segunda metade da década de 1960, a vida e a obra de Joni foram marcadas por relacionamentos - alguns curtos, mas todos intensos - com cantores da cena folk. Algumas dessas histórias serviram de inspiração para as histórias contadas em Blue, que traz músicas não sobre esses homens, mas sobre Joni e como ela se relacionou com eles.
Nos anos que se seguiram à adoção de Kilauren, Joni conseguiu efetivamente iniciar sua carreira como cantora folk. Após alguns shows em cafés, festivais e pequenas casas de shows, além do término do casamento com Chuck, a artista mudou-se para Nova York e, em 1967, gravou seu primeiro álbum, Song to a Seagull, lançado em 1968.
Em 2020, as gravações anteriores ao LP de estreia da cantora foram reunidas em Archives Vol 1: The Early Years (1963-1967), um box contendo cinco discos. Após quase 50 anos, Mitchell fez as pazes com gravações que ela questionava se eram ou não parte canônica de sua discografia. Conforme revelou também a Crowe, em 2004, a artista considerava as músicas muito ingênuas e “vulneráveis para esses tempos tão duros, como se pertencessem a um mundo antigo”.
Sua estreia no mercado fonográfico teve produção de David Crosby, recém-saído da banda The Byrds, com quem Joni havia iniciado um romance. Em biografia do supergrupo Crosby, Stills, Nash & Young, o escritor David Browne revelou que o produtor “adorava apresentar a cantora aos amigos como uma posse valiosa e talentosa”.
A seu biógrafo, David Yaffe, autor de Reckless Daughter: A Portrait of Joni Mitchell, a cantora revelou que Crosby agia “de um jeito embaraçoso, uma vez que eu era tratada como a descoberta dele”. A história do casal chegou ao fim pouco depois do lançamento do disco, com a descoberta de que, com o relacionamento se deteriorando, o cantor resolveu trair Joni com uma ex-namorada.
Pouco antes da gravação do disco, Joni estava tocando em um clube em Ottawa, no Canadá, na mesma noite em que o The Hollies fazia um show na cidade. Depois das apresentações houve uma festa, durante a qual a artista conheceu um dos integrantes da banda, Graham Nash. Mitchell conhecia o grupo do qual o artista fazia parte e David Crosby já havia falado sobre a cantora para o colega. Naquela noite, em que já havia a ex-
pressa vontade de ambos se conhecerem, uma paixão começou.
Mitchell e Graham não iniciaram um relacionamento logo após se conhecerem. Viajando e tocando em cidades diferentes, não conseguiam ficar juntos. Um dia, ainda casado, Graham voou para Nova York para encontrar Joni, porém, chegando lá teve uma decepção: a cantora estava namorando com Leonard Cohen.
De obra celebrada e estilo poético, Leonard Cohen é um dos principais nomes do folk de sua geração. Em 1967, estava entre as atrações do Newport Folk Festival assim como Joni. Naquele evento, começaram o que daria origem a uma relação batizada pelo cantor como “uma extensão da amizade”. O namoro acabou em poucos meses, porém os artistas foram amigos até o falecimento de Cohen, em 2016.
Muito ainda se especula sobre a música “A Case Of You”, presente em Blue. Há dúvidas sobre se ela foi feita para Nash ou para Cohen, porém, ao que tudo indica, o segundo é o homenageado nessa “canção de amor e ódio”, embora Joni nunca tenha confirmado esse fato. Apesar de já ter domínio na escrita, a artista não sabia muito de literatura na segunda metade da década de 1960. Interessada, pediu a Cohen uma lista de livros para se aprofundar. Segundo revelado no livro Joni Mitchell In Her Own Words, de Malka Marom, ao ler O Estrangeiro, de Albert Camus, a cantora percebeu que Leonard havia roubado um verso da obra e inserido na música “Hey That’s No Way To Say Goodbye”.
Muito admiradora de Cohen, a quem tem também como influência, Mitchell ficou desapontada com a descoberta. Talvez buscando vingança, em “A Case Of You” a artista escreveu uma história de término em que usou um verso dito por Leonard sem creditá-lo. Também no livro de Marom, Joni explicou: “Quando lhe mostrei ‘A Case Of You’ ele disse: ‘Estou feliz por ter escrito isso’. Leonard ficou com raiva de mim, na verdade, porque eu coloquei um verso dele, algo que ele disse, em uma das minhas canções. Para mim, isso não é plágio. Ou você rouba da vida ou dos livros. Com a vida é jogo limpo, com a literatura não. Essa é a minha opinião pessoal. Não roube a arte de outra pessoa, isso é trapaça. Roube da vida - isso está em jogo, certo?”.
Diferente de como ocorreu com os dois últimos namorados, com Graham a relação foi mais duradoura. Mitchell e o músico chegaram a morar juntos por cerca de dois anos, até 1970. No clássico álbum Deja Vu (1969), do supergrupo Crosby, Stills Nash and Young, o cantor inseriu a canção “Our House” sobre o cotidiano do casal. Joni também escreveu músicas sobre a vida ao lado de Graham, gravadas em Blue. As dela, porém, foram destinadas ao rompimento, e Nash só ouviu as versões finais após o término.
Para o ex-parceiro, Mitchell dedicou “My Old Man” e “River”. Na
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primeira, a inspiração foi um dos motivos do término. Nas palavras de Nash, a canção foi feita a partir de um pedido de casamento que ele fizera à então namorada: “Eu a pedi em casamento, mas acho que ela entendeu que eu queria uma ‘esposa’ para cozinhar para mim e coisas do tipo, o que nunca foi minha intenção. Eu queria que ela fosse livre, o quão brilhante fosse possível”.
Segundo o livro CSNY: Crosby, Stills, Nash & Young, de Peter Dogget, após o término, Nash recebeu um telegrama poético de Mitchell, que viajava pela Europa, que talvez confirme o receio. Dizia a mensagem: “Se você segurar a areia com muita força, ela irá escapar pelos seus dedos”.
Outra música sobre a relação com Nash presente em Blue é “River”. Apesar de a canção falar sobre um momento difícil da vida de ambos, Graham revelou recentemente ao The Guardian que sente orgulho do fato de a canção ser dedicada a ele: “‘River’ me deixou triste, porque narrava o fim do nosso relacionamento, mas também contente, porque era uma música tão linda e ela [Joni] teve coragem de despir sua alma. Nós éramos muito apaixonados. Eu valorizava aquela relação”.
Apesar de retratar a melancolia do rompimento, com o passar dos anos, a canção passou a receber uma curiosa interpretação, como se fosse uma canção de Natal. A gravação, de fato, possui elementos que podem direcionar a essa leitura, uma vez que começa com as notas da tradicional “Jingle Bells” ao piano e diz, já no primeiro verso, que a época natalina está chegando.
Com o passar dos anos, “River” passou a ser incluída no repertório de diversas apresentações e discos natalinos, o que causou surpresa naqueles que têm conhecimento de que a canção fala sobre o término com Nash. Nas próprias palavras de Mitchell, em entrevista ao NPR em 2014, a canção é uma história sobre “assumir responsabilidade pessoal pelo fracasso de um relacionamento”. Na mesma matéria, indagada sobre a nova conotação que sua composição recebeu, a cantora respondeu, com humor: “precisávamos de uma canção triste de Natal, não é mesmo?”.
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DETROIT, 1968?
O ano de 1968 também ficou marcado na carreira da cantora como “a última vez que ela viu Richard”. Por anos, acreditava-se que a história da canção que encerra Blue ocorreu durante um encontro de Joni Mitchell com Chuck, no ano seguinte ao divórcio. Porém, o personagem da canção foi inspirado em Patrick Sky, cantor folk também surgido na década de 1960.
Nascido no estado da Georgia, Patrick Sky teve sua carreira marcada por fazer duras críticas políticas através de sátiras. Entre os anos de 1965 e 1969, teve o período mais constante de sua carreira, gravando discos anualmente. Em 1971, mesmo ano do lançamento de Blue, gravou seu LP mais radical, Songs That Made America Famous que, por seu conteúdo, enfrentou dificuldades para ser lançado e só foi aceito por uma gravadora em 1973.
Joni e o cantor fizeram parte do mesmo circuito de música folk nos Estados Unidos, aparecendo também em programas de rádio e shows em universidades. Segundo a cantora revelou em entrevista a Michelle Mercer para o livro “Will You Take Me As I Am”, em que se investiga a história de Blue, a história de “The Last Time I Saw Richard” surgiu após uma frase dita pelo colega: “Patrick Sky, um amigo e cantor de folk, me disse uma noite em um bar de Nova York: ‘Joni, você é uma romântica incurável. Só há uma maneira de você seguir na vida: com cinismo incurável’”.
Na canção, Joni uniu realidade e ficção para criar uma de suas letras mais profundas. Há elementos fictícios em “The Last Time I Saw Richard” porque, como o próprio site da cantora revela, ela e Patrick se en-
contraram em um show na Syracuse University, em 1969. Logo, a última vez em que se viram até aquele momento não foi em 1968. Além disso, a frase foi dita em Nova York, e não em Detroit.
Apesar dessas considerações, há também fatos verossimilhantes na canção, segundo depoimento de Mitchell. No mesmo livro que traz o verso de “California” no título, a cantora afirma que Patrick, assim como Richard, estava naquele momento casado com uma patinadora e que saía pouco, bebendo em casa e vivendo uma vida mais doméstica. Apesar do depoimento da artista, a única mulher citada como cônjuge de Sky em sites como Allmusic e em notícias sobre seu falecimento por câncer em 2017 é Cathy Larson Sky, musicista e escritora, com quem ele se casou em 1981 e gravou, em dueto, o álbum Down To Us (2009).
Para muitos brasileiros, “The Last Time I Saw Richard” foi a canção que apresentou a obra de Joni Mitchell e o disco Blue, através da versão feita pela banda Legião Urbana em 1992 no álbum Acústico MTV (1999). Em fala antes de tocar a música, o vocalista Renato Russo diz: “Essa é uma música de um dos maiores poetas do rock’n’roll, e ela se chama Joni Mitchell. É de um disco chamado Blue, de muito tempo atrás, e é uma letra seríssima”.
VIAJANDO EM UMA ESTRADA SOLITÁRIA
No começo de 1970, o relacionamento de Nash e Joni estava se encaminhando para o fim. Em fevereiro, a cantora se juntou a uma amiga e resolveu fazer uma viagem pela Europa, com a primeira parada na Grécia. Para a estrada, a artista resolveu não levar o violão, seu principal acompanhamento, mas sim um instrumento que havia descoberto recentemente: um saltério dos Apalaches.
Tradicionalmente feito com três cordas, o instrumento da família das cítaras foi descoberto por Mitchell durante o festival folk de Big Sur em 1969, onde ela adquiriu o saltério da musicista e luthier Joellen Lapidus, que se tornou também uma referência nesse tipo de tricórdio, conhecido em inglês como “dulcimer”.
Nunca tendo ouvido um antes, Joni criou sua própria técnica de tocar o saltério. Enquanto a forma tradicional utilizava um tipo de pena, a cantora executava o instrumento de maneira percussiva, adaptando sua técnica de violão.
A escolha de levar o saltério (e uma flauta) no lugar do violão teve como principal motivo o fato de os instrumentos serem mais leves. A opção mudaria não só a viagem como a sonoridade de Blue, uma vez que a artista compôs parte do disco no novo instrumento e o utilizou no estúdio.
Já se destacando pelas afinações abertas do violão que marcariam toda a sua produção, Joni adaptou a linguagem ao novo instrumento e compôs canções definidoras de sua carreira como “Carey”, “California”, “A Case Of You” e “All I Want”.
Canção que abre o álbum, “All I Want” é um resumo de Blue, de Joni e da própria viagem à Europa. É uma música que apresenta esses três elementos, falando sobre uma viagem solitária em busca por algo desconhecido, por liberdade, sobre a vontade de amar e as dificuldades em se relacionar, tudo ao som do saltério.
Joni revelou à revista Mojo em 2019 que, mesmo que acreditem que existam mensagens nas entrelinhas (em versos poéticos como “I want to shampoo you”), “All I Want” é uma canção sincera: “Eu não sou uma compositora evasiva. Você não tem
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que cavar os significados nas palavras. Os significados estão todos ali. É muito claro”.
Não muito tempo após chegar na Grécia, Joni decidiu ir de barco para a ilha de Creta, onde fez uma viagem de Fusca por mais de 70 quilômetros até Mátala, um vilarejo de pescadores no qual hippies viviam naquela época, alojando-se em pequenas cavernas próximas ao mar.
Um dia, passeando pelo vilarejo, Joni ouviu um grande barulho e, ao olhar na direção do som, vislumbrou a figura de um homem de barba ruiva vestindo um turbante branco. Não se tratava de uma alucinação. Aquele era Cary Raditz, um jovem americano de 24 anos que fora arremessado do café onde trabalhava após um forno explodir.
Cary e Joni se envolveram na mesma noite em que Penelope desapareceu, sem dar notícias, para seguir um outro rumo em sua viagem. A ida da amiga mexeu com Joni, que seguia abalada emocionalmente. Cary acabou se tornando sua nova companhia, com quem passou bons momentos durante sua estadia na Grécia.
Em uma das noites em Mátala, Joni escreveu “Carey” (que ganhou um “e” por erro ortográfico da cantora), que narra esse período passado na Grécia. A música foi apresentada ao companheiro na noite de seu aniversário e fala de seu jeito retrógrado (“you’re a mean old daddy”), sobre o café que a cantora frequentava na ilha (“come on down the Mermaid Cafe”) e diversas outras lembranças, como a bengala de ferro que Cary vivia carregando, as ruas da ilha e o vento vindo da África.
A indecisão do próximo destino também aparecia em “Carey” (“maybe I’ll go to Amsterdam/or maybe I’ll go to Rome”), mas Mitchell acabou optando pela França como seu próximo destino. Lá, encontrou a inspiração ilustrada nos primeiros versos de “California”, outra canção em que Cary é um dos personagens, referido como “um caipira em uma ilha grega”. Apesar da citação, o ruivo não é o protagonista da música, que fala sobre um sentimento de tristeza e fim da era hippie de paz e amor (“reading the news and it sure looks bad/they won’t give peace a chance”), cita uma festa ocorrida na casa do editor da revista Rolling Stone, Jann S. Wenner (“a party down a red dirt road”) e revela uma vontade da cantora de voltar para casa.
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JONI E JAMES
A volta para os Estados Unidos, após a viagem que também contou com uma passagem pela Espanha, marca o período em que Joni Mitchell iniciou um relacionamento
com James Taylor, importante nome da música folk que teve participação decisiva em Blue. Joni estava de volta a Laurel Canyon, bairro californiano onde boa parte dos músicos folk moravam.
No período em que Joni trabalhava nas composições do álbum, Taylor se adaptava a uma nova vida, após um período de internação para tratar de seu vício de heroína. O casal permaneceu junto durante cerca de um ano e, quando não estavam separados pelas turnês, acompanhavam o processo criativo um do outro.
Taylor preparava as músicas de seu terceiro álbum, Mud Slide Slim and the Blue Horizon, no qual Joni participou fazendo vocais. Em agosto, a cantora viajou com o parceiro para o Novo México, onde James gravaria o filme Two-Lane Blacktop. Durante a gravação, Mitchell tricotou um suéter que o namorado passou a vestir constantemente, segundo revela o livro “Girls Like Us”, de Sheila Weller. Estaria aí a inspiração ou a realização do verso “I wanna knit you a sweater” de “All I Want”?
Sheila sugere em seu livro que confissões de Mitchell sobre como o parceiro a tratava originaram “This Flight Tonight”, que fala do período em que passaram no set de filmagens: “Joni parece ter escrito ‘This Flight Tonight’ sobre aquela época no Novo México. Seu amante ‘gentil e doce’ a magoa com ‘aquele olhar tão crítico’, mas ela se arrepende de ir embora quase assim que o avião decola. Ela repassa um momento de ternura em que observaram uma estrela no céu entre os trailers do set de filmagem e quer que o piloto ‘vire esse pássaro louco’ para que ela possa voltar para ele”.
Meses depois, em outubro, Joni e Taylor estavam fazendo shows juntos. Um deles, gravado no dia 16 no mesmo palco em que Phil Ochs se apresentou, se deu em um evento beneficente de lançamento da ONG ambiental Greenpeace, no qual Mitchell mostrou boa parte das canções de Blue que já estavam prontas, conforme registrado no álbum Amchitka (2009).
Doze dias depois, a dupla performou no Royal Albert Hall, em Londres, durante sua breve temporada na Inglaterra, instalados em um apartamento com o guitarrista Peter Asher. Segundo depoimento do músico no livro de Sheila Weller, ele estava presente na noite em que a artista compôs a canção que batizou seu álbum lançado em 1971: “Tenho uma memória distinta”, diz Peter, “de ouvir Joni tocar ‘Blue’, que ela acabara de compor no piano.” Asher achou a música extraordinária. As referências às ‘agulhas’ de um viciado em drogas e ao fato de Joni oferecer uma concha para seu amante - John Fischbach se lembra dela dando uma concha para James em uma noite em Los Angeles - deixam bem claro que ‘Blue’ é sobre James”.
Mesmo sendo inspiração de ao menos duas canções de Blue, James Taylor revelou ao The Guardian, em matéria sobre os 50 anos do álbum, que sua faixa favorita do LP é “California”, que dialoga também com o momento de separação do casal: “Depois de viajar, sua casa ganha um contexto diferente e essa canção capta isso. É encantador, pessoal e genuíno. Quando eu estava levando Joni para encontrar minha família na Carolina do Norte, entre os voos, ela repentinamente disse que precisava voltar para a Califórnia e me deixou no aeroporto - no altar, por assim dizer. Talvez ela tenha sentido os destroços dos meus próximos 15 anos e não quisesse ser amarrada. Ela é totalmente real e é uma das melhores coisas da minha vida que eu a tenha conhecido”.
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ENFIM, O ÁLBUM
Com seu vocabulário poético, Joni contou em entrevistas como estava sua saúde mental quando Blue foi gravado. À revista Rolling Stone a artista revelou: “Eu não tinha defesas. Me sentia como a embalagem de celofane de um maço de cigarros. Eu sentia que não tinha segredos para o mundo e que não poderia fingir ser forte ou feliz na minha vida”.
Outra analogia da cantora sobre Blue foi publicada no livro Joni Mitchell: In Her Own Words, de Malka Marom. A artista revelou ter tido um sonho em que estava assistindo “uma banda de mulheres meio gordas tocando tuba. Mulheres enroladas em vestidos de náilon tocando grandes trompas e eu era uma sacola plástica cheia de órgãos expostos, soluçando em uma cadeira no auditório. Foi como me senti, com minhas entranhas expostas. Eu fiz Blue nessa condição”.
Em janeiro de 1971, Joni começou a gravar Blue, ao lado de poucos músicos: James Taylor (violão), Russ Kunkel (percussão), Stephen Stills (baixo e violão) e Sneaky Pete Kleinow (pedal steel). As gravações se estenderam até março, nos estúdios da A&M Records, em Hollywood.
No mesmo lugar estavam gravando a banda Carpenters e a cantora Carole King, que era amiga do casal, e naquele mesmo ano lançaria Tapestry, seu histórico LP de estreia do qual James e Joni participaram, na produção. No mesmo ano, em Mud Slide Slim, o cantor gravou “You’ve Got A Friend”, sucesso composto por Carole registrado também em Tapestry.
Enquanto Carole gravava no estúdio B, Joni escolheu a sala ao lado para gravar Blue. Lá havia um piano Steinway de cauda que seria ideal para a sonoridade do disco. Em uma manhã antes de Mitchell chegar para as gravações, King aproveitou as horas vagas e gravou com o instrumento o clássico “I Feel The Earth Move”.
Se era possível aproveitar o estúdio C quando Mitchell estava ausente, na presença da cantora era tudo diferente. A artista optou por fazer uma gravação bastante reclusa, na qual apenas ela e os profissionais responsáveis pela gravação transitavam pelo estúdio - “se alguém entrasse pela porta, eu me acabaria em lágrimas”, confessou. Com percussões abafadas, majoritariamente utilizando instrumentos acústicos, Joni fez registros carregados de emoções profundas, como revela o livro de David Yaffe: “Joni estava traduzindo aquelas emoções que ninguém gostaria de ter em uma música que todos gostariam de ouvir”.
Quando Blue chegou às lojas, em junho de 1971, causou reações diversas. Johnny Cash, por exemplo, sentiu o pesar do disco, como revelou a Joni: “Você está suportando o
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peso do mundo”. Quando Mitchell mostrou o LP ao cantor country Kris Kristofferson sua reação foi dizer: “Jesus, Joan, preserve algo sobre si mesma”.
Ao chegar nas lojas, com fotografia feita por Tim Considine, de Joni tonalizada de azul na capa, Blue foi um grande sucesso internacional, atingindo lugares expressivos em listas das gravações mais ouvidas, e recebeu um certificado de disco de platina duplo (600 mil cópias) pela Britsh Phonography Industry (BPI). Além de consolidar Mitchell como cantora e compositora, tornou-se um parâmetro de qualidade para LPs relacionados da época.
O disco também foi bem recebido pela crítica especializada. Com repertório que já vinha sendo celebrado por publicações como NME e Melody Maker, Blue recebeu uma longa análise na edição de agosto de 1971 da Rolling Stone, feita por Timothy Crouse, que encerra o texto com a seguinte declaração: “Ao se retratar de forma tão nítida, ela arriscou o ridículo para alcançar o sublime. Os resultados raramente são ridículos; em Blue, ela combinou suas habilidades musicais populares com a pureza e a honestidade do que uma vez foi chamada de música folk e, por meio da combinação, ela nos deu alguns dos mais belos momentos da música popular recente”.
Em tom confessional para Cameron Crowe, Joni refletiu sobre sua obra: “Na época do meu quarto álbum eu estava vivendo aquela terrível oportunidade que as pessoas têm em sua vida, quando descobrem que são completamente idiotas e precisam decidir seus valores, quais partes são realmente necessárias. Blue foi um ponto de virada em diversos aspectos da minha vida”.
O disco foi precisamente resumido por Rob Hughes, em texto publicado na revista Uncut em 2017: “Mitchell estava tentando reconciliar sua vida com sua arte, comprimindo uma busca indescritível por contentamento pessoal em uma grande declaração artística. Blue é triste, engraçado, poético, revelador e, muitas vezes, dolorosamente sincero. E uma experiência tão intensa que parece muito mais longa do que relativamente breves 35 minutos”.
CINQUENTA ANOS DEPOIS
Segundo informa o site oficial de Joni Mitchell, a soma das vezes que as músicas de Blue foram regravadas de forma oficial nos 50 anos após seu lançamento ultrapassa 1400 gravações. Só “River” recebeu 793 versões. Com o passar dos anos, o álbum se posicionou entre as obras mais importantes de diversas listas publicadas pela imprensa, com destaque para o ranking publicado pela NPR em 2017, que posicionou o LP como o maior álbum feito por mulheres entre 150 obras.
Em 2021, Joni Mitchell celebra o cinquentenário de Blue em dois lançamentos. O primeiro deles é o box The Reprise Albums, que reúne os quatro primeiros discos da cantora em edições em vinil e CD. O outro, lançado nas plataformas digitais, é o EP Blue (Demos & Outtakes) que traz versões alternativas de “A Case Of You”, “California” e “River”, além de “Hunter” e “Urge For Going”, canções gravadas nas mesmas sessões, mas que não entraram na edição original do disco.
Além de ser uma obra de qualidade acima dos padrões, eternizada na história da música pop, Blue consolidou Joni Mitchell com a projeção de uma grande artista. Aos 27 anos, a cantora criou uma obra ideal para momentos de sofrimento e “dark cafe days”. Quem já sentiu o peso desse disco ao ouvir suas músicas, sem dúvidas entendeu o que quer dizer o verso da canção que batiza o LP: “Blue, songs are like tattoos”.
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