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Clemente

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A voz de Anná

A voz de Anná

Por Fernando de Freitas

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Seu caminho na música, pela liberdade de fazer o que gosta

Eram os anos 90. Clemente estava meio sem perspectiva. Quando você tem uma banda de relativo sucesso e perde o contrato com uma Major, você está desempregado mesmo que a essência da sua atividade não tenha mudado. Na realidade, Clemente ficou desnorteado: com menos de 40 anos, uma dura realidade, ele era velho e ultrapassado para a indústria da música. Sua forma de fazer música estava fora de moda, mas ele precisava sobreviver, afinal, à parte do sonho rockstar, estava a necessidade operária e periférica de colocar comida na mesa. Muito embora a “Lenda Clemente” tenha nascido no SESC Pompeia, numa noite antes do fim do mundo, em 1982, essa persona referencial para qualquer um que pegue uma guitarra e planeje trilhar um rumo a partir de um cenário independente apareceu nos anos 90. Ou seja, cerca de 10 anos depois do punk lendário. Foi conversando com Edvaldo Santana que caiu a ficha. Viver de música ia muito além de gravar álbuns e sair em turnê (por mais divertido que isso fosse!), mas havia uma série de atividades-satélite que poderiam ser desenvolvidas no dia a dia, quando minguassem os shows, como estava acontecendo naquela época. Um dos problemas é que Clemente não tinha qualquer formação como músico, nem se sentia à vontade de ensinar alguém a tocar um instrumento. Mas ele havia aprendido coisas valiosíssimas que poderiam ser ensinadas: como montar uma banda, como gravar uma demo, como produzir shows e festivais, como construir uma cena, como fazer um rider e um mapa de palco, todas as coisas que um jovem ambicioso quer aprender e nenhum professor de guitarra ensina. Foi assim que começou uma série de oficinas em centros e casas de cultura espalhadas por São Paulo, o projeto que levou clemente (de ônibus) de periferia em periferia para conversar com jovens que tinham o mesmo sonho que ele um dia teve: pintar de preto a asa branca...

SEGUIR EM FRENTE É IMPRESCINDÍVEL

A atitude punk implica em uma certa iconoclastia que pode ser resumida na frase de Groucho Marx: jamais aceitar fazer parte de um clube que te aceite como sócio. As consequências desse lema são muitas, mas quando “o sistema” te abraça, estão entre as opções mais palpáveis (por incrível que pareça): a autodestruição ou a transcendência. Clemente optou pela segunda. “As pessoas não falam sobre isso, mas teve uma

grande treta no fim do festival e foi por isso que a polícia baixou”, lembra Clemente sobre o “Começo do Fim do Mundo”, em 1982. “Teve gente que aproveitou aquela oportunidade para acertar as diferenças”. Assim, o que era, aos olhos do establishment, o surgimento do punk, para Clemente já era seu fim. Ao ser colocado como um expoente do movimento, ele passou a se questionar se queria ocupar aquele lugar. “Eu não queria ser representante de uma música que não necessariamente compartilhava meus valores”. “Eu queria fazer música. Eu queria tocar rock”, explica o guitarrista que também “gostava de outras coisas e que eu queria tocar também, eu gostava de Gang of Four, de Toots & The Maytals, que eu não podia tocar numa cena punk, por isso eu me inseri no rock paulista”. Sabia que podia ser um grande expoente de uma cena, que estava ali naquele festival, ou poderia buscar sua liberdade e caminho. Não que Clemente queira negar sua história ou passado. Ele os valoriza, como poucos músicos, toda sua história. Montou um selo independente, o Kaos, para produzir algumas bandas, mas, entre outras coisas, para lançar as gravações de sua antiga banda, Restos de Nada. Ele se divide entre muitos projetos e bandas (Inocentes, Plebe Rude, Clemente e a Incrível Banda sem Nome, Selo Kaos, Showlivre...), e explica: “no Inocentes, nós temos um compromisso com nossa história, com o nosso público, eu já fiz muita experimentação, mas agora nós temos que entregar um pouco o que as pessoas esperam”. E foi assim que ele desaguou uma série de composições na Incrível Banda Sem Nome, aproveitando para tocar com alguns amigos que conquistou durante os anos. “Tinha umas coisas que enchiam o saco. Se o Inocentes tocasse uma balada, a gente era criticado pelo mesmo cara que adorava outra banda que só fazia baladinhas hardcore.” Mas como Clemente nunca aceitou ser colocado no lugar que lhe impunham, ele seguiu da sua própria forma, sem ligar para o que era esperado dele. Entre as coisas que esperam dele é que tenha uma opinião sobre tudo: “nem sempre eu tenho o que dizer, cansa. Eu não sou o Caetano Veloso, ele é um puta intelectual. Às vezes, esperam que eu suba no palco e faça discurso, deixa a música falar por mim.”

ROTINA

Em um determinado momento da década de 1990 surgiu uma oportunidade na Paradoxx Music. Ali ele começou a desenvolver um trabalho com as bandas que tanto conhecia, desde a cena que estava inserido, passando por bandas de ska (como Skamundongos) de que ele tanto gostava, ou de RAP (como o Pavilhão 9). Ficava claro que, além de um músico talentoso, Clemente tinha faro apurado para novidades e que seu perfil era agregador. Foi então que o telefone tocou novamente. Era Gastão Moreira que, após deixar a MTV, foi para a TV Cultura e estava preparando o Musikaos. Clemente já conhecia Gastão do dia a dia da cena musical, mas nunca havia trabalhado com ele. Por sinal, Gastão o estava convidando para ser produtor musical do programa, graças à recomendação de um amigo em comum (que era a primeira opção do apresentador, mas que aceitara um emprego em outra rede de TV na mesma época). Bateram um papo e Clemente topou. Mas, ao desligar o telefone, ele se perguntou: “O que faz um produtor musical em um programa de TV?”, conta rindo. “Eu fui para a primeira reunião na

Com o Projeto Rock de

Garagem eu rodei São Paulo inteira pelas Casas de Cultura. Quanto eu voltava, o pessoal tinha contruido uma cena.

Cultura e fiquei quieto, para entender o que esperavam de mim”. E a proposta era boa! Além da grana fixa (da qual ele precisava!), ele tinha a oportunidade de trazer todo aquele pessoal que ele conheceu nas oficinas que havia dado São Paulo a fora. O Musikaos estreou em fevereiro de 2000 e, até fevereiro de 2003, foram produzidos 143 programas que deram voz a diferentes estilos, ritmos e movimentos culturais, sempre com música, poesia, artes visuais e experiências. Passaram pelos Palcos do SESC Pompeia de Marky Ramone a Jorge Mautner. Lá fizeram seu debute bandas como com 22, Cachorro Grande e Okotô, entre outras. Dos orgulhos de Clemente está de ter trazido a Pitty, ainda pouco conhecida, na época vocalista do Inkoma para se apresentar no programa. “Ali a gente passou anos construindo cena e massa crítica” explica Clemente, que sabe que, de alguma forma, as bandas e artistas de rock que estiveram em evidência nos últimos 20 anos passaram por aquele palco que antecipou muitas tendências. “A gente recebia muita fita de hardcore melódico, mas era tudo cantado em inglês. Um dia eu disse, a hora que aparecer uma banda fazendo esse som em português, vai estourar”, e esse foi o caso do CPM 22 que apareceu como banda nova em sua primeira aparição e consagrada na segunda, no espaço de cerca de um ano.

Com o Projeto Rock de

Garagem eu rodei São Paulo inteira pelas Casas de Cultura. Quanto eu voltava, o pessoal tinha contruido uma cena.

Com o fim do Musikaos, Clemente viu no Showlivre a oportunidade de dar continuidade àquele trabalho e passou a desbravar a internet quando tudo ainda era mato. A proposta, por outro lado, tinha que ter um apelo comercial forte, uma vez que não tinha uma rede de televisão estatal por trás. Nesse equilíbrio, ele poderia manter certa liberdade de curadoria, para continuar fazendo o que vinha fazendo, mostrar música boa. Ao longo dos anos, o Showlivre teve diversas parcerias, com portais e patrocinadores. Shows, entrevistas, quadros. Como sempre, Clemente fazia de tudo: produzia, entrevistava, apresentava. É hoje um catalizador e referência de produção de conteúdo musical na internet brasileira.

LIBERDADE E ROCK & ROLL

“Eu queria passar uma tarde com o Iggy Pop, ele faz o que quer, rock, jazz, samba, canta em francês”, explica Clemente. “Roqueiro se leva a sério demais, fica com essa coisa de ‘o que eu faço é bom e o que você faz é ruim’, a gente deveria ser mais como o Iggy Pop”. Pode parecer uma declaração esquisita para alguém tão dedicado à música e ao rock como Clemente. A questão é que é possível levar a sério o seu trabalho com música sem se levar tão a sério. Clemente não esconde de ninguém que se considera um instrumentista esforçado e, inclusive, brinca que, em todas as bandas, sempre tem um cara não toca tudo aquilo - ele sempre acha que é ele. Ele lembra que, quando adolescente, o amigo Douglas assistiu Tommy no cinema e decidiu que seria roqueiro. O cara queria ser guitarrista solo mas precisava de alguém para o acompanhar. Foi Dou

glas que ensinou Clemente a tocar violão e depois o convidou para entrar no Restos de Nada. “Eu nem sabia como se afinava um baixo. Cheguei no ensaio, me deram um baixo na mão e, naquele dia, eu descobri como funcionava”, conta o músico que hoje se dedica mais à guitarra. E o caminho daquele ensaio na Vila Carolina até palcos na Inglaterra com os Inocentes foi bastante longo. “O Inocentes nunca deixou de ser uma banda da periferia, nunca tivemos grana para investir numa turnê pela Europa. A oportunidade veio com a HBB que financiou essa viagem para a gente”, explica Clemente sobre a viagem que fizeram para Inglaterra e Finlândia em 2019. A gravadora, que é hoje é importante selo de punk e hardcore no Brasil, também lançou recentemente o EP “Cidade

Eu não queria ser representante de uma música que não compartilhavava meus valores

Solidão” em vinil. Entre os que receberam a banda na Inglaterra estava Jeff Turner, vocalista do Cockney Rejects, que acabou fazendo amizade com a banda e participando de apresentação recente da banda no SESC Pompeia, onde Clemente mostrou toda a energia da banda. No público, era possível ver roqueiros velhos e senhores de ar respeitável (que muito bem poderiam ter aprontado muito no final da década de 1970), uma porção de gente chegando aos seus 40 anos e que cresceram durante a carreira de Clemente, além de alguns adolescentes que buscam algo no passado. Mas o impressionante era ver pais com filhos pequenos. Crianças de 5 ou 6 anos sobre ombros roqueiros. E seus filhos, Clemente? “Os gêmeos estão morando comigo para fazer faculdade. Nenhum é músico profissional, mas tocam bem. Outro dia, um deles estava tocando um Eric Clapton, eu logo disse, ‘pô, ensina isso aí pro papai’”. Nesse caminho, entre bandas, projetos, gravadoras Clemente teve três filhos de quem ele tem o maior gosto de falar. Por meio da música, ele conquistou a liberdade que poucos têm e, talvez por isso, seja um cara tão bem humorado, cada história, cada resposta sempre vem acompanhada de muitas risadas. A menos que você pergunte para ele coisas como “o que é ser punk?”, “como é ser punk?”, “punk ainda existe?”, “você ainda é punk?”... Aí ele diz que respira fundo e tenta responder educadamente, “eu sou músico, eu faço música.”

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