EDITORIAL
Talvez nenhuma altura seja boa para começar um projecto editorial independente; e esta em que vivemos a menos indicada de todas. Potenciais conflitos éticos não são questionados, ouvem-se notícias sobre mudanças e despedimentos nas redacções, eventuais suspensões de periódicos, abrandamento do
ÚLTIMA HORA
seguinte, e na primeira pessoa, o nosso colega João Carneiro. O que nos é contado merece o mais violento repúdio da OBSCENA, que se solidariza com o crítico do Expresso. O responsável por tão cobarde acto envergonha todos aqueles – artistas e críticos – que se pautam por princípios de independência, justiça e rigor.
COMEÇAR investimento publicitário e explosões no espaço virtual que levam a uma falsa democratização do papel do comentador e do valor da opinião. Talvez se devesse esperar; mas, como diz o coreógrafo Angelin Preljocaj citando Nietzsche (ver p. 18), esperar por uma boa oportunidade é deixá-la passar. Muitos queixam-se da falta de debate público mas contribuem para esse marasmo com inércia e silêncio. O trabalho de muitos criadores acusa falta de memória e muitos críticos demitem-se de o denunciar. Alguns criadores reclamam, em conversas meio circunstanciais, uma crítica mais exigente, mas esperam que esta não “se vire” contra eles. E quando, naquilo que se julgava ser o exercício livre do seu ofício, um crítico questiona o trabalho de alguém pode correr sérios riscos físicos, como relata, na página
Este jogo de intimidação, típico dos “maus da fita”, envergonha o contribuinte e os organismos estatais que apoiam a sua, sabemos agora, “inatacável” arte de fazer teatro. Uma revista mensal dedicada às artes performativas é um projecto arriscado porque nunca se sabe quanto tempo de vida tem essa aventura. É por isso – e assume-se já neste primeiro editorial – que a OBSCENA surge sem promessas. Mas querendo contribuir para a revitalização do debate, da reflexão exigente, da indispensável intervenção pública. Surge em formato pdf por estratégia. Lançá-la em papel ou esperar que apoios financeiros a possam sustentar adiaria a sua concretização e este não é um tempo para cruzar os braços. Até que possa ser possível a transição para um suporte físico, a OBSCENA vai aproveitar as 4
potencialidades do pdf, numa liberdade que não a obrigue a um número fixo de páginas, a manter as mesmas secções ou o mesmo design. Quer existir enquanto fórum participado, em vez de observatório isolado, combinando crítica, opinião, reportagem, análise, ensaio, fotografia, actualidade e entrevista num conjunto de textos e imagens que possa abrir uma janela para o ar do tempo que se respira. Duas notas finais: a OBSCENA estabelecerá laços cúmplices com parceiros e orgulha-se em poder contar com o site brasileiro www.idanca.net numa partilha de materiais, e com a Clap Filmes, distribuidora do filme Body Rice; e dá-nos imensa confiança a aposta de alguns criadores e instituições na publicitação do seu trabalho. A OBSCENA chega ao seu monitor para que a possa ler, criticar e ajudar a melhorar. Boas leituras.
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OBSCENA #1 Fevereiro 2007
TEATRO E CRÍTICA João Carneiro
Editor Tiago Bartolomeu Costa
Há algum tempo, a pedido de uma amiga minha, escrevi um texto sobre actores. Dizia nele que achava que os actores tinham a capacidade de nos revelar coisas que não sabíamos antes; coisas que nos podiam até meter medo, mas com a vantagem de ninguém ter de morrer por isso. O que dizia dos actores posso, ainda hoje, dizer do teatro. É por isso que faço crítica. É uma maneira de falar daquilo de que gosto. Há enganos e contrariedades. Há pessoas mal educadas, ou que nos insultam. Paciência. Há também limites para todas estas coisas. Há dias, uma pessoa ligada ao teatro encontrou-me na rua, disse que queria falar comigo; encostou-me a uma parede, agarrou-me na gola do casaco, apertou-me o pescoço e começou a dizer “andas a pisar o risco”; continuou com injúrias várias e terminou com “e para a próxima vez, eu vou ter contigo”. Eram três da tarde, no centro de Lisboa, e aquele homem estava descontente com uma crítica minha, que lhe dizia respeito (não só a ele, aliás), crítica essa publicada no semanário Expresso, como habitualmente de há quinze anos para cá. Quando falei, no texto sobre os actores, em “meter medo”, não era a coisas destas que me referia.
tiago.bartolomeu@revistaobscena.com
Editores Associados Jorge Louraço Figueira Miguel-Pedro Quadrio Mónica Guerreiro Colaboradores Bandeira José Luís Neves Pedro Manuel Rui Monteiro
Participam neste número Abílio Leitão, Cláudia Oliveira, Francisco Frazão, Kalina Stefanova, Katayoun Hosseinzadeh Salmasi, Regina Guimarães, Margarida Santos Lopes, Paulo Guerreiro, Nelson Guerreiro Design MERC tiago.rodrigues@revistaobscena.com
Publicidade publicidade@revistaobscena.com
Assinaturas e informações obscena@revistaobscena.com
A OBSCENA é uma revista de periodicidade mensal com distribuição electrónica gratuita através de assinatura. A OBSCENA aceita propostas de colaboração dos leitores. Os materiais publicados são da responsabilidade dos respectivos autores, estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial.
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ÍNDICE
COXIA (8) Bandeira
OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO (9) Mónica Guerreiro
FOMOS EM 2006
APOSTA / Body Rice (42)
AgitPop (48)
Um filme de Hugo Vieira da Silva que regista, num Alentejo irreconhecível, corpos por onde passam experiências de vida.
DEPOIS DA POESIA DAS ARMAS, A ARMA DA POESIA
Rui Monteiro
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VISTO DOS BASTIDORES (40)
ARRITMIA (10)
TRÁFICO / IRÃO (22)
O que é notícia: Rabih Mroué e a body art; o novo espaço de trabalho do coreógrafo Angelin Preljocaj; o trabalho do antropólogo André Lepecki reunido no site belga Sarma; a reestruturação da Re.Al; o espólio do dramaturgo Fernando Augusto reunido no Funchal; a estreia de Felizmente Há Luar!, de Sttau Monteiro, em Londres…
Um olhar sobre a realidade cultural do Irão com paragens no multiculturalismo e nas relações ocidente/oriente, mas também na censura. Os exemplos da coreógrafa alemã Helena Waldmann, que nos fala da sua experiência no país, e de Amir Reza Koohestani, jovem autor e encenador que representa uma renovação da dramaturgia iraniana. Textos de Katayoun Hoseeinzadeh Salmasi, Margarida Santos Lopes e Paulo Guerreiro
DIAS DO JUÍZO (50)
PERSPECTIVA (64)
ENSAIO (90)
A dança-teatro de Olga Roriz e a transdisciplinaridade da Circolando; o filme-documentário de Fernando Lopes sobre a Lisboa de Pina Bausch; o mapa que Rosita Boisseau propõe para a dança contemporânea; o olhar de Rui Simões sobre o processo de trabalho d’O Bando e uma antologia sobre a autobiografia. Espectáculos, dvds e livros para (re)ver. Textos de Cláudia Oliveira, Francisco Frazão, Mónica Guerreiro, Nelson Guerreiro, Pedro Manuel e Tiago Bartolomeu Costa
Carta branca para textos sem regras: a dramaturgia universal feita teatro dos nossos dias em Berlim, pela mão de Thomas Ostermeier, e as razões pelas quais ainda se pode falar de uma resistência no teatro que se faz no Porto. Ainda, um travelling pelo recém-inaugurado Hotel des Artistes, em Lisboa.
Pode a crítica ser pós-dramática?, pergunta a crítica búlgara Kalina Stefanova num ensaio que aborda os problemas criados pelas definições, que dividiu o 50º Congresso da Associação Internacional de Críticos, em Seul. Provocador, como convém.
Miguel-Pedro Quadrio
LIBERDADE CÍVICA
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COXIA
OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO / Mónica Guerreiro
FOMOS EM 2006 Passou um ano em que as efemérides “culturais” e os “eventos” fizeram da celebração das artes algo de autenticamente festivo, e em que se pressentiu, nessa vontade de comemorar – que atravessou os jardins, os fóruns de discussão e as instituições da noite – o orgulho de ser a língua portuguesa aquela que fala da contemporaneidade, da miscigenação, do cruzamento de manifestações culturais populares com outras supostamente eruditas e do abandono de juízos “nacionalistas” em prol de uma expressividade transfronteiriça. A música: o fenómeno Humanos, que a EMI enterrou (definitivamente?) em 2006, renovou o prazer, se necessário fosse, de trautear de cor o legado de Variações. Reinventar parece ser igualmente a palavra de ordem de Sam The Kid, que assinou uma das mais estimulantes obras de 2006, Pratica(mente), um brilhante exercício de meta-referencialidade & virulento criticismo que deu origem, também, ao mais badalado teledisco do ano. Tomando de assalto uma estação de rádio, apontou o dedo à massificação e escarafunchou a ferida que outros apenas afloraram. A importância que, este ano, assumiram as diversas iniciativas em torno da mestiçagem – o portentoso Buraka Som Sistema, o Festival Lisboa Mistura, o Fórum Gulbenkian Imigração – é, ao meu ver, fundamental para se entender todo um movimento, não organizado mas com uma multiplicidade de eixos, de celebração da diversidade 8
cultural. Ainda a música: também este ano, outros espectáculos, como H2 2005 (Bruno Beltrão), Orquéstica (Tânia Carvalho), Subwoofer (Sónia Baptista), VSPRS (Alain Platel / Les Ballets C. de la B.), DiscoTheater (Teatro Praga) – todos no âmbito do Alkantara Festival, que é si todo um manifesto do multiculturalismo – ou Mozart/Concert Arias, un moto di gioia (Anne Teresa de Keersmaeker / Rosas), intuíram diferentes pensamentos sobre a música, traduzidos no hip-hop que se pratica hoje nas ruas do Brasil ou em Vespro della Beata Vergine que Monteverdi escreveu em 1610 (mesmo se mesclado com música cigana ou barroca). E a reveladora exposição de obras seleccionadas (1989-1994) de João Paulo Feliciano, reunidas na Culturgest sob a designação The Possibility of Everything, permitiu reconhecer os fundamentos de um percurso de contaminação do rock com o trabalho plástico, numa intersecção abordada pelo artista com uma eficácia polissémica singular. O grande evento do ano: passar pela Fundação Gulbenkian nos últimos dias de Amadeo de Souza-Cardoso. Diálogo de Vanguardas implicava admitir que se estava na exposição mais visitada de sempre em Portugal. Não chegou a ser, mas, rankings e estatísticas à parte, permitiu solidificar uma prática curatorial crescentemente urdida: o estabelecimento de dialécticas entre a obra de artistas distintos, sejam ou não contemporâneos, partilhem ou não horizontes estéticos, assumam ou não as afinidades 9
que se deseja focar. A colocação de um enquadramento específico recoloca a produção artística num contexto sempre aberto à interpretação e apropriação futuras, e estimula o alargamento da sua recepção, o que as antologias monográficas podem limitar. O não evento do ano: o anunciado regresso de Ricardo Pais ao Ballet Gulbenkian, previsto para 2006, depois das experiências de co-criação com Vasco Wellemkamp e Olga Roriz, Só Longe Daqui e Presley ao Piano, respectivamente, nos idos anos 80. Perdemos todos. O título desta “coluna”: trata-se de um verso da canção Motim, incluída no álbum Comum (1998), dos Três Tristes Tigres (a autora é Regina Guimarães). Quando quero recordar um concerto tocante, em português, recuo sempre àquela “reunião” da banda portuense, a todos os títulos memorável, proporcionada pelo primeiro Serralves em Festa, em Junho de 2004. Felizmente, 2006 trouxe outra ocasião venturosa, que simultaneamente, para mim, representa também a hibridação que vem caracterizando Lisboa: o concerto que juntou os Da Weasel e a Orquestra Clássica da Madeira (mais de sessenta instrumentistas, dirigidos por Rui Massena), junto à Torre de Belém, numa fantástica noite de Setembro. Assim grandes fossem todas as músicas. motim@revistaobscena.com
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ARRITMIA
Neste contexto, a individualidade está ausente, a ideia de cidadania desaparece. Para fazer body art tens de ter um estado, tens de ser um cidadão, para que as pessoas aceitem esta acção como um acto de individualismo.
CIDADÃO DE BEIRUTE: RABIH MROUÉ Em Who’s afraid of representation? o encenador e intérprete libânes Rabih Mroué (Beirute, 1967), articula uma memória pessoal da guerra no Líbano com a história da body art. É nas páginas de uma antologia que Mroué busca as imagens para evocar esta relação inusitada, criada em 2005 e apresentada em Junho passado no festival Alkantara 2006. Mas o seu discurso vai mais longe, na necessidade de reagir a determinadas impossibilidades cénicas, artísticas e sociais. Entrevista de Pedro Manuel Em Who’s afraid of representation? a representação por imagens é substituída pela descrição de eventos de body art. Esta surge como ruptura extrema num contexto de ordem, enquanto no contexto da guerra esse é o impulso quotidiano? Quando comecei a trabalhar nessa peça perguntei-me porque não existia este tipo de trabalhos em Beirute. Posso fazê-lo? Se o fizer, será que o público o aceita como um trabalho artístico? A resposta é não. Não posso fazê-lo por causa da forma como a sociedade está constituída. No nosso país, a problemática do indivíduo é a de viver em vários grupos. Isto acontece porque temos uma falta de noção de cidadania, de individualismo. Vivemos num país que é multicultural, multilinguístico e religioso. Há tensões entre uns e outros mas temos de viver juntos. É o conflito do indivíduo na sua relação com a comunidade.
No caso deste espectáculo é o próprio título que estabelece uma relação com as restrições à produção de imagens pela religião islâmica, como no caso da representação de Maomé. Eu não faço essa relação de forma directa. Faço antes uma relação com o momento presente, há um problema sobre como fazer teatro. Como pode um actor representar uma personagem como Hamlet? Para mim, neste momento, o teatro está ausente. Pode estar aqui, mas não está no palco. Quando sou bombardeado com milhares de imagens por dia pelos media, pergunto-me: nesta parte do mundo, posso produzir mais imagens? É-me permitido produzir imagens? Parece-me que há uma espécie de impossibilidade, até porque estamos numa região onde já temos a nossa imagem feita, nós não estamos a produzir as nossas imagens, elas são produzidas por outros. A descrença que tem com a interpretação de personagens tem a ver com a impossibilidade de representação por imagens? Depois do fim da guerra comecei a fazer peças sobre a guerra civil e sobre o corpo marcado pela guerra. As minhas questões tinham a ver com o visual e o movimento físico. Mas descobri que o corpo em palco imitava, num mau sentido, o que realmente experimentávamos em vida. A violência da vida diária não podia ser representada desta maneira. Então, reflecti sobre a
© Dina Dabbous
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impossibilidade de representar a guerra em teatro. Penso que não devemos falar da guerra, devemos reflectir sobre ela. Para escapar à representação. Um dos tópicos constantes do meu trabalho é sobre onde começa e acaba a ficção, onde começa e acaba a realidade. A forma como se misturam. Vivemos num tempo onde a ficção e a realidade estão misturadas. Não vale a pena tentar distinguir a verdade da mentira. Chego a um ponto em que pergunto: o que é real? a minha presença ou a minha imagem?
Rabih Mroué participará, de 23 a 25 de Fevereiro em Berlim, na plataforma internacional Dictionary of War (www.dictionaryofwar.org) e encontra-se a desenvolver um projecto com o actor e encenador português Tiago Rodrigues, ao longo de 2007, a convite do Alkantara e integrado no projecto Lugares Imaginários.
JOÃO FIADEIRO REESTRUTURA A RE.AL Se há algo que há 16 anos caracteriza a Re.Al, a estrutura de dança dirigida por João Fiadeiro, é uma certa “atitude camaleónica” onde a constante vontade em se questionar, adaptando-se aos contextos e alargando os campos de acção, visa o fortalecimento de laços com o público, e as comunidades artística e institucional. As mudanças que se preparam para 2007 não fogem a esta vontade de estar abertas “às dinâmicas e forças exteriores e interiores” que a rodeiam. Quem o
afirma é o coreógrafo, quando fala da necessidade de “readaptação às condições actuais”, nas quais a Re.Al arriscava tornar-se uma casa de produção de coreógrafos, descurando aquilo que tem sido o pilar do trabalho do seu mentor e principal criador: o desenvolvimento da Composição em Tempo Real (CTR), um método que encontrou em I am here, de 2003, um modelo próprio semelhante à notação coreográfica, passível de ser aplicado enquanto linguagem autónoma. Porque “a Re.AL tem que optar”, a conjugação de “condições práticas” e “princípios teóricos” levou à suspensão do formato LAB, que completou doze edições e funcionava como espaço laboratorial para o questionamento dos processos de trabalho de diversos criadores, da mesma forma que foram repensados os posicionamentos dos, até agora, coreógrafos associados Cláudia Dias e Tiago Guedes, fruto de um crescimento específico. Se a primeira se assumiu como cúmplice no desenvolvimento da CTR, com Guedes não só foi expressa uma distância em relação à CTR como se confirmou o desenvolvimento de uma dinâmica de produção própria, com implantação nos circuitos internacionais de programação. O coreógrafo será acompanhado pela Re.Al no processo de transição para a sua própria estrutura, que decorrerá durante 2008. Esta “definição do centro de gravidade” quer “acabar com o espírito missionário” e dar reais “condições de trabalho” às pessoas, defende João Fiadeiro. Um primeiro passo para a constituição de um ideal de companhia, ou um “centro de investigação” da CTR, traduz-se naquilo a que futuramente se chamará Atelier Re.Al. O desenvolvimento de novas dinâmicas e a criação de um “ritmo de trabalho e investigação assente em três vectores, produção, 11
© José Luís Neves
ARRITMIA
de trabalho e investigação assente em três vectores, produção, acompanhamento crítico e inserção dos trabalhos a nível internacional” querem levar a Re.Al a uma “velocidade de cruzeiro” que explore “com cuidado e atenção” as diversas possibilidades de intervenção pública. Por isso a Re.Al vai apostar em novos nomes como Márcia Lança, uma das seleccionadas do projecto Jovens Artistas Jovens, organizado pelo Centro Cultural de Belém em colaboração com 14 instituições nacionais, ou António Pedro Lopes, outro jovem criador. Sabendo no entanto que não pode ser taxativo, “porque são muitas as variáveis”, uma coisa é certa: Fiadeiro não voltará a ser intérprete, assumindo a partir de agora aquilo que já se suspeitava com o trabalho de coaching que vinha desenvolvendo nos LAB: “não produzir conteúdos e deixar que os outros existam”, porque está cada vez mais interessado “no ponto de vista do espectador”.Mudanças que Fiadeiro não esconde irem ser postas à prova com a apresentação da nova peça Para onde vai a luz quando se apaga?, com estreia absoluta na Culturgest, em Lisboa, a 3 de Maio, antes de se apresentar nos festivais KunstenFESTIVALdesArt (Bélgica) e Montpellier (França).
TEATRO EXPERIMENTAL DO FUNCHAL ACOLHE ESPÓLIO DE FERNANDO AUGUSTO “Há pessoas que dizem (mentindo com os dentes todos, creio eu) que não têm memória. Agem como se ela se pudesse apagar com uma borracha, como se fosse uma leitosa pedra de gelo, derretendo, sem defesa”. Quem assim escreve é Fernando Augusto, na introdução à peça O Solário, Prémio Eça de
Queiroz 1992. Mas a memória do encenador e dramaturgo falecido em 2003 é há mais de um ano recordada na Teatroteca à qual empresta o nome, sedeada no Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal. A iniciativa, que partiu do empenho do actor e encenador Élvio Camacho em colaboração com a família, reúne em cerca de 1500 documentos material policopiado, objectos pessoais, edições raras, arquivos sobre o teatro de revista nos anos 30, registos dos cortes que a censura fez às suas peças, traduções que realizou e uma colecção de dramaturgia e romances franceses, paixão antiga do homenageado. Paixão tinha ainda pelo teatro de revista, para o qual escreveu e encenou várias peças, e pelo espírito de dedicação dos grupos amadores, que dirigiu em vários pontos do país. Dele disse o encenador e professor de expressão dramática Mário Primo, nos textos do catálogo da exposição que o Museu Municipal de Vila Franca de Xira/Museu do Neo-Realismo lhe dedicou em 2005, serem valores fundamentais a “frontalidade das suas opiniões, a crítica mordaz, a recusa da hipocrisia, do oportunismo e da mediocridade”. Isso mesmo se pode ler na peça A Última Batalha, vencedora do Grande Prémio do Teatro Sociedade Portuguesa de Autores/Novo Grupo 1999 e levada à cena no Teatro Aberto em Junho de 2000, com encenação de Fernando Heitor. Um relato impiedoso da decadência de um reino dirigido pelo Marquês de Pombal, contado numa escrita cínica e crítica, e que serve bem para compreender o que interessou a este homem que se dedicou a fazer um teatro sobre o lado humano dos outros. A peça segue um percurso de observação da história nacional marcado pela experiência colonial, e que já em 1992 lhe tinha feito escrever O Solário, nas palavras do teatrólogo Luís Francisco Rebello um “retrato impiedoso e feroz do país sistematicamente adiado 12
(e traído) que somos”, e em 1995 Príncipe Bão, Prémio Baltazar Dias da Câmara Municipal do Funchal, uma longa reflexão sobre a vida de D. Sebastião, antes e depois da trágica batalha de Alcácer-Quibir. Peças que dão bem conta de uma deriva pelos actos dos outros, apontando o dedo, questionando, registando, tanto no drama histórico como na reflexão social. É o caso, por exemplo, de Pastéis de Nata para a Avó, de 1994, onde abordou o conflito de gerações, a incapacidade de diálogo e o esquecimento, com os lares de idosos a serem apelidados de “depósitos para velhos”. Uma posição que não era alheia ao contacto diário que mantinha com diversas camadas sociais através das várias iniciativas programadas enquanto chefe de divisão do teatro do INATEL. Élvio Camacho reconhece no teatro e no legado de Fernando Augusto um franco interesse pela vida enquanto oportunidade para marcar a diferença. E foi essa diferença que quis registar, naquilo a que chama de “descontinuidade territorial”. Ao criar na Madeira este pólo de pesquisa e investigação, ao qual se junta o seu próprio arquivo, o actor, presença regular nas produções da companhia lisboeta Primeiros Sintomas e encenador do Teatro Experimental do Funchal (TEF), responde ao que aprendeu de Fernando Augusto: “um actor não actua, reage”.E a reacção prova-se nos bons resultados obtidos pela Teatroteca, permanentemente requisitada pelos estudantes do Curso Profissional de Artes da Madeira, pelos próprios membros do TEF, e outro público interessado num conhecimento mais a fundo da prática teatral. Apesar da sub-orçamentação do TEF, da discrição inerente à insularidade e do muito que ainda há por fazer, a Teatroteca Fernando Augusto serve bem de suporte legitimador de uma companhia que a 22 de Abril apresentará uma das várias peças infantis que escreveu, no caso Verdes Aventuras de D. Quixote, de 1997.
CRÍTICA DE DANÇA: “TODOS DEVIAM FAZÊ-LA” Não é sem ponta de orgulho, nem sem razoável distância, que André Lepecki introduz os leitores à antologia de textos, agora disponível no arquivo belga Sarma, publicados pelo então semanário Blitz, entre 1990 e 1993, altura em que era crítico de dança residente. Falamos de um corpus de cerca de 30 textos, perdidos na memória do tempo, que o projecto Sarma recolheu e disponibilizará de forma bilingue (o acesso é através da morada http://www.sarma.be/nieuw/critics/lepecki.htm) para todos os interessados em revisitar o tempo em que, precisamente, a nova dança portuguesa tacteava o seu lugar num contexto pós-revolucionário, que se organiza em torno de duas entidades (o Ballet Gulbenkian e a Companhia Nacional de Bailado) e que contou com o explosivo impulsionamento das primeiras iniciativas do Serviço Acarte e da ocorrência da Europália em 1991. A sua presença privilegiada no seio desse “movimento” permitiu-lhe ser, em alguns casos, o primeiro “legitimador” das carreiras de Vera Mantero, João Fiadeiro, Clara Andermatt, Paulo Ribeiro, Francisco Camacho, Miguel Pereira, Joana Providência, José Laginha, Rui Nunes ou Paula Massano (mas não sozinho: não nos esqueçamos que a crítica de dança, então, mantinha presença regular em diversos periódicos, com maior assertividade do que hoje). E o contexto favoreceu, também, que a sua colaboração com o Blitz coincidisse com o momento em que Lisboa conheceu, como relata Lepecki, os trabalhos de “Cunningham, Trisha, Rosas, Wim, Meg, La La La, Pina, Monk, DV8, Nadj, Saporta, Valenciano, Linke, Marin, Sankai Juku
Louca Louca a Sensação de Viver, Clara Andermatt, 1991. © Nuno Ribeiro
e outros”. Nada mau como ponto de partida. Lepecki, então um jovem antropólogo curioso pelas experiências artísticas protagonizadas pelas pessoas de quem se tornaria amigo – Mantero, Fiadeiro, Camacho, Carlota Lagido e Paulo Abreu (“eu gostava mais deles do que gostava de dança”) – começou a fazer crítica, conforme conta, porque da colaboração regular com estes artistas, enquanto “investigador”, surgiu a convicção de que “a antropologia não percebia nada de arte, e muito menos do corpo”. Essa associação ao meio passou, numa primeira fase, pela carolice do costume: “deixei-me envolver, esfregava o chão, redigia os comunicados de imprensa, filmava horas intermináveis de ensaios... Fui vendo como se faziam as coreografias e as performances e os espectáculos e os filmes. Dava as minhas opiniões. Às vezes, eles aceitavam-nas”. A escrita foi, assim, a sua forma de solidificar esse pensamento; e o convite do Blitz, à época um jornal “vibrante”, para se assumir enquanto crítico de dança, teve aceitação imediata. “Não sabia nada de dança”, explica, “mas acho que sabia escrever, e tinha as minhas opiniões opiniosas [sic] sobre aquilo que via. Também sabia que, se a cena experimental e 13
vanguardista tinha algumas hipóteses de sobrevivência, teria de passar pelo crivo de uma avaliação formal, na forma impressa. A minha crítica de dança sempre foi comprometida e nada neutral, nem objectiva, nem documental. Eu tinha, e ainda tenho, um programa”. Essa postura, aliás, ressalta claramente da sua abordagem: temperamental, arrojada, questionadora, por vezes violenta, outras vezes excessivamente carregada por critérios de gosto que vemos hoje com alguma estranheza. Mas Lepecki é o primeiro a afirmar que, ao voltar a estes escritos, se surpreende com a “bravura” que neles encontra. E não só: “apercebo-me, penosamente, de como era evidente que camuflava a minha ignorância com uma fingida apetência para polemizar”. Mas não é possível reduzir esta experiência a uma missão episódica, sendo hoje André Lepecki um reconhecido crítico, ensaísta e dramaturgo, além de leccionar Performance Studies na Universidade de Nova Iorque. “O facto de ter escrito estas críticas de dança deram-me as bases para começar a articular um pensamento que foi fundamental para o meu trabalho posterior. A crítica de dança é uma tarefa cínica. Todos deviam fazê-la”.
ARRITMIA
STTAU MONTEIRO ENCENADO EM LONDRES The Crime of Father Amaro, Cousin Basilio (Eça), The Pilgrim (Garrett), The Crime of the Old Village (Bernardo Santareno), The Heiress of the Cane Fields (Júlio Dinis) são exemplos de espectáculos apresentados na cidade de Londres graças ao dinamismo de Alice de Sousa, directora artística da Galleon Theatre Company, companhia cuja notoriedade – junto dos críticos da Time Out, Evening Standard ou The Guardian – advém principalmente pela predominância da dramaturgia portuguesa nas suas temporadas. A 13 de Fevereiro a companhia estreia a sua nova produção: Thankfully There is Moonlight!, a versão inglesa adaptação da peça de Luís de Sttau Monteiro, com encenação de Bruce Jamieson (escocês, co-fundou com Alice de Sousa a Galleon, cuja sede é na pequeníssima Greenwich Playhouse, uma black box que ocupa o segundo piso de um hotel-bar, com capacidade para menos de cem pessoas). A tradução de Alice de Sousa – formada, em Inglaterra, em Estudos Portugueses – não deverá destoar daquilo que lhe tem sido reconhecido: uma notável sobriedade na divulgação de textos clássicos da dramaturgia e na sua adaptação aos dias de hoje, num outro país, com tradições teatrais locais tão marcantes. Mas não são só textos portugueses que têm lotado a Greenwich Playhouse: elogiadas produções de A Casa da Boneca, de Ibsen ou A Gaivota, de Tchekov, em traduções de Sousa – também actriz, por vezes, como em Hedda Gabler, há uns anos – têm ajudado a colocar no mapa o trabalho desta modesta companhia, no sudeste de Londres (www.galleontheatre.co.uk).
RUI HORTA APRESENTA TEMPORADAS DE DANÇA EM ÉVORA E MONTEMOR-O-NOVO Recusando “o discurso redutor de lamento” e acreditando que “os grandes desafios do futuro estarão cada vez mais na invisibilidade das intervenções e não nos projectos de fachada”, o coreógrafo Rui Horta desenhou a programação da sétima temporada do Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, à qual se junta a quarta de dança para o Teatro Garcia de Resende, em Évora. O coreógrafo e programador acredita que os espectáculos são “o espaço de mediação entre o público e o criador”, além de constituírem espaços de resistência num “tempo de consolidação”. Por isso, as escolhas (no que diz respeito aos espectáculos, já que o Espaço do Tempo acolherá residências, workshops, conferências e concertos) incluem os nomes de João Garcia Miguel, Teatro Praga e Patrícia Portela e Tiago Rodrigues. No caso da dança, propõem-se os olhares da Cie. Lanabel (França), Karine Ponties e Heine Røsdal Avdal (ambos belgas), e Cristina Moura (Brasil). Há ainda apostas em jovens coreógrafos nacionais, como Vitor Roriz e Mónica Coteriano. A maior parte do que se apresenta terá estreia nacional e/ou mundial, já que muitos dos espectáculos são resultantes de residências que decorrerão no Convento da Saudação, que recentemente viu garantida a continuação da necessária recuperação arquitectónica. Em Évora mostram-se os mais recentes trabalhos de Rui Horta para a Companhia Instável, Pure, e de Olga Roriz para a sua companhia, Daqui em Diante, estreados em 2006 no Festival de
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Sintra, Petit Psaume du Matin, a colaboração entre o coreógrafo e artista plástico Josef Nadj e o bailarino-fétiche de Pina Bausch, Dominique Mercy, apresentada no Festival de Avignon 2001, e Confi-Dance dos eslovenos Fico Balet.
ENCONTROS DE INVESTIGAÇÃO EM PERFORMANCE O musicólogo e teórico inglês Nicholas Cook é o convidado principal dos PERFORMA – Encontros de Investigação em Performance, que o Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro (DCA / UA) está a preparar. Trata-se de uma conferência internacional sobre o estudo e interpretação das artes performativas, que decorrerá entre 10 e 12 de Maio na Universidade. Alargando o conceito de performance a áreas como a musicologia, etnomusicologia, pedagogia e reflexão filosófica sobre interpretação, a DCA / UA pretende contribuir para a divulgação da investigação desta área de estudos, que considera emergente. Por isso, abriu inscrições para a apresentação de comunicações em português ou inglês, divididas nos formatos artigo detalhado, estudo de caso e conferência-recital. As propostas devem ser entregues até 28 de Fevereiro para o e-mail performa@ca.ua.pt. O mesmo e-mail serve para a solicitação de informações.
ARRITMIA
N E G R O PROVENÇAL
Projectado em 1999 e sucessivamente adiado até à inauguração em Novembro de 2006, com a presença do Ministro da Cultura Renaud Donnedieu de Vabres e toda a corte burguesa de Aix-enProvence, o edifício destaca-se na bucólica vila do sul de França pelo corte radical que imprime à paisagem (“um meteorito que caiu em pleno coração de Aix-en-Provence”, diz o coreógrafo), pela mensagem que faz passar à comunidade artística local e nacional e por simbolizar o reconhecimento de um empenho pessoal para a valorização e acessibilidade da dança contemporânea francesa por todo o mundo. Na verdade, é forçoso afirmar-se que o Pavillion Noir constitui o primeiro espaço para a dança, que acumula estúdio de ensaios e auditório, no conjunto dos 19 centros coreográficos espalhados pelas 22 regiões francesas. A concessão do espaço de trabalho é uma declaração de reconhecimento político do contributo de um artista que trabalha em permanência, com três elencos ao mesmo tempo, se apresenta em Paris, Nova Iorque, Japão e México no mesmo mês e, portanto, justifica as contestações (algumas razoáveis, outras fruto da inveja) em torno dos financiamentos públicos que suportam integralmente o funcionamento do edifício. Até agora vivendo, tal como os seus colegas directores de CCN na dependência de co-produções e colaborações, sendo forçado a circular – condições que, face às “provas do trabalho
DE UM “NEGRO PROVENÇAL”, DIZ O ARQUITECTO ITALIANO RUDY RICCIOTTI ACERCA DA COR ESCOLHIDA PARA COMPOR O PAVILLION NOIR, O NOVO CENTRE CHORÉGRAFIQUE NATIONAL (CCN) DE AIX-EN-PROVENCE, FEITO À MEDIDA E IMAGEM DO SEU IMPULSIONADOR, O COREÓGRAFO ANGELIN PRELJOCAJ, “SECO, OSSUOSO, TENSO, MAGRO COMO A FIGURA, ESSE FÍSICO QUALIFICADO PELA PELE E PELOS OSSOS”. texto Tiago Bartolomeu Costa fotografia Philipe Coulibeuf
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feito”, considerava apenas possíveis por “inércia”, citando Nietzsche: “esperar pelo alvo é deixá-lo passar ao lado” –, Preljocaj dá por terminada a busca incessante de um espaço de apresentação, que se destaca, pelo seu simbolismo e ideal, do contexto francês. “Senti sempre que faltava à dança as ferramentas e os lugares identificáveis. Foi por essa razão que nos batemos para conquistar este espaço. É muito política [essa luta]”, diz Preljocaj. Uma opção que custou caro à vila de Aix, onde paira o fantasma de ser culpado pela suspensão em 2005 do festival Danse à Aix, por decisão municipal de concentração de fundos num só projecto em detrimento de vários outros, como aquele festival com 18 anos de história, que tinham um passado e uma identidade. Dizem os restantes criadores, diz a crítica – a revista Mouvement, por exemplo, publicou violentos comentários à suspensão do festival – e diz alguma da população que teme a imposição de um gosto em detrimento da pluralidade. François-Xavier de Peretti, deputado municipal da UDF, partido de direita, vai mais longe apontando o dedo à presidente da Mairie Maryse Joissains, do também partido de direita, ainda no governo, UMP: “Não há qualquer estratégia nem unidade na política cultural. Decepou-se a delegação e asfixiou a direcção cultural” (Le Ravi nº. 35, Nov. 2006). O coreógrafo refuta as críticas, legitimado pela presidente do município e pela convicção na importância da aquisição
simbólica daquele espaço. Pelo menos é esta a ideia que se quer passar, fazendo pouco caso dos protestos em torno dos quase € 6.400.000 que custaram os 3.000 metros quadrados do Pavillion Noir, com os seus quatro estúdios de dança, uma sala de espectáculos com 386 lugares, escritórios, armazém e espaço para residências. O edifício, em si mesmo, é uma metáfora da dança contemporânea: exposta e ainda assim secreta. Se a sala de espectáculos está escondida e meio-enterrada no solo (“é o ventre do edifício, é visceral o que lá se vai passar, é qualquer coisa que se tem que fazer por merecer”, diz Preljocaj), as paredes de vidro do restante edifício deixam espreitar para o seu interior, mostrando as salas de ensaio, os escritórios, as zonas de descanso, os estúdios onde se processa a criação. “Por um lado, uma certa forma de exibicionismo naïf, por outro um apelo ao voyeurismo”, desvenda o coreógrafo. Aquilo que, à partida, deveria estar recolhido, pelo seu carácter de experimentação e insegurança, devedor de uma intimidade necessária à criação, é aqui exposto, aberto com vista para o campo. Os bailarinos sentem-se confortáveis com este convite à partilha despudorada de um saber e uma prática, que não deixa de causar alguma estranheza. O coreógrafo queria que as pessoas soubessem o que se passa lá dentro: “não se trata de uma companhia de seguros ou um banco, mas de um local de criação”. Criação feita no limite, 18
porque “no esgotamento, o intérprete não pode mentir, nem a si mesmo, nem ao olhar do outro. Nesse momento projecta-se uma estética do absoluto que me apaixona”. Essa noção, que pode ser só um choque inicial para quem observa de fora, esteve na base do projecto de Ricciotti, que considera “violento” o trabalho de Preljocaj. E fala da rigidez das formas e da sua estrutura matemática para descrever o edifício: “Quando disse [aos engenheiros] que ia conceber o espaço sobre a ditadura das matemáticas, o que acabámos por coreografar foi a questão dos esforços em situações de crise, com hipóteses sísmicas e deformações plausíveis. Colocámos em questão o sistema estrutural do edifício da mesma forma que o coreógrafo coloca em questão o corpo dos bailarinos no momento em que lhes exige o máximo [de esforço]. Isto resulta num processo de questionamento sobre o prazer, a estética, um valor imperioso, uma ideia de absoluto”. As escadas que percorrem as laterais do edifício, as várias salas que se atravessam em cada andar para se encontrar salas de ensaio, estúdios de gravação ou materiais arrumados, a inexistência de paredes na zona dos escritórios, democratizando o que na dança clássica seria impossível e a contemporânea tomou como lei – a reflexão sobre a hierarquia – são ideias que vão ao encontro do perfil de Ricciotti. Marie Ange Brayer, num texto publicado no catálogo da exposição ArchiLab 2000, define-o como alguém 19
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“praticante de uma arquitectura hedonista, envolvendo o prazer da forma e do espaço” que se afastou, a partir dos anos 90, dos “becos sem saída do neomodernismo”. Ricciotti gosta de dizer que assina trabalhos “neo-brutais”. E é por isso que, tal como o seu impacto político, também a própria concepção do edifício não está ausente de polémica. Num irónico texto publicado no Le Ravi, Jean-Claude Dingo, descreve-o como o resultado de um arquitecto “pseudo-radical, negro como um blusão de rocker que conduz um Jaguar e fuma havanos”. E continua dizendo que o edifício é uma “concessão à vulgaridade do sado-masoquismo, num espaço que celebra o corpo, submetendo-o a um verdadeiro exercício de rigor. Esta estética SM é reivindicada por Ricciotti, que assume uma postura onanista: ‘este edifício resgata um prazer solitário... Há aqui uma sexualidade particular; um lado um pouco sado-maso, um pouco de latex, um pouco de cabedal, um pouco moldado, muito perto do corpo’. Narcisismo masturbatório que encontra eco nas palavras do seu destinatário para quem nada é suficientemente grande, nem forte”. Talvez não seja exactamente assim, já que, como escreveu o crítico Philippe Noisette (Les Inrockuptibles, 7 Nov. 2006), o investimento no Pavillion não foi suficiente, apesar dos candelabros recuperados do Palácio do Povo de Berlim (ao abrigo da lei francesa que exige a presença de pelo menos 1% de arte
contemporânea nos edifícios públicos), para “a colocação de verdadeiras cadeiras” (são bancos corridos sem marcação de lugares) e “uma sala melhor equipada em termos técnicos” (a primeira fila entra dentro da cena dificultando a utilização de cenários complexos). E se esses são pontos negativos num espaço virado para o futuro da dança, a programação anunciada procura acalmar alguns dos receios existentes. Em 2007 Preljocaj acolherá, para além dos seus próprios trabalhos, vários coreógrafos do CCN, como Maguy Marin ou Fréderic Flamand, e ainda JeanClaude Gallotta, Olivier Dubois, Josette Baïz ou Philippe Saire, em remontagens, reposições, criações originais e mesmo encomendas. Angelin Preljocaj costuma dizer que “se passaram vinte anos até à criação de um espaço de partilha”. Ele agora existe, encravado no bucolismo de Aix-en-Provence. Resta saber se este pavilhão do século XXI estará à altura de enfrentar todos os conflitos que por ele, ou a partir dele, se criaram. Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian e resultante de uma parceria com o site brasileiro www.idanca.net, onde também se encontra publicado.
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PAVILLION NOIR, O LIVRO DE ÉRIC REINHART “Que livro para esse espaço recente, sem história, sem memória, onde ainda não se apresentou uma obra coreográfica?” A pergunta-desafio abre o negro e modular livro dedicado ao Pavillion Noir. Organizado por Éric Reinhart e publicado pelas Éditions Xavier Barral, a obra homónima, sem indicação de páginas, índice ou capítulos, divide-se entre imagens retiradas do filme de Pierre Coulibeuf e entrevistas a Preljocaj, onde se fala de corpo, movimento e espaço, e ao arquitecto Rudy Ricciotti, que recusa a utopia porque esta renuncia o futuro e prefere “transformar o real”. Conta ainda com contributos do astrofísico Michel Cassé, que reflecte sobre o vazio e a relação espaço-tempo, e da filósofa Jehanne Dautrey, que contextualiza a obra do coreógrafo a partir de palavras-chave como representação ou o diálogo com outras disciplinas. O volume não oferece a possibilidade de uma leitura contínua e formal, já que apresenta os excertos dos discursos de cada um dos intervenientes em terços de páginas independentes. Mas pensado enquanto objecto que dialoga com o potencial de uma obra em aberto, amplia uma das questões maiores do trabalho de Preljocaj: a sincronização. “Com a sincronização o espaço ganha uma textura particular (...), uma dinâmica particular, com certas velocidades e certas trajectórias”, diz. Tal como este livro, aberto na sua organização e labiríntico na sua forma, que permite ao leitor construir a sua própria viagem ao interior do edifício matemático de Ricciotti e à linguagem de Preljocaj (€35).
PAVILLION NOIR, O VÍDEO-DANÇA DE PIERRE COULIBEUF Os planos fixos captados por Pierre Coulibeuf no filme Pavillion Noir, criado especialmente para mostrar o edifício antes de ser usado pelas equipas de Preljocaj, mostram corpos em processo de ocupação de um espaço geometricamente desenhado para conter movimentos amplos, orgânicos e síncronos. As imagens revelam a procura de um lugar para a coreografia, tal como para todo o processo de criação, escondendo-a dentro dos cacifos, alongando-a pelas oblíquas escadas, inscrevendo-a nos diálogos quotidianos e banais de um local de trabalho. A câmara observa-os distanciando-se dessa organicidade, fundindo-os nas frias linhas desenhadas por Rudy Ricciotti. O negro das paredes e das longas colunas, que se prolonga em cada um dos módulos que compõem a decoração do espaço, contrasta com a luminosidade provençal que entra através 21
dos vidros das janelas, da altura de andares. E, a partir destas sequências emotivamente ambíguas, Coulibeuf organiza a coreografia de Preljocaj, delicada a querer ser violenta, liberta a querer ser fixada. E é também por isso que o breve filme, em vez de se passar no palco, usa várias dependências até acabar no terraço, com os corpos em ascensão e em plena busca de um lugar ao qual pertencer (2006, Regard Productions).
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IRÃO ATÉ QUE PONTO CONHECEMOS REALMENTE UM PAÍS E A SUA CULTURA? O QUE NOS CHEGA PELA TELEVISÃO E OS JORNAIS SERÁ SUFICIENTE PARA SE CONHECER A REALIDADE DE UM PAÍS? UMA VIAGEM A UM PAÍS PRATICAMENTE DESCONHECIDO PARA TENTAR PERCEBER COMO SE VIVE E TRABALHA NUM CONTEXTO CULTURAL ONDE A DANÇA E O TEATRO SOBREVIVEM NUMA VIDA QUOTIDIANA ONDE A POLÍTICA FALA MAIS ALTO. ROSTOS DE UM POVO EM OLHARES PESSOAIS QUE VÃO DE BERLIM A TEERÃO E DE LISBOA A SHIRAZ.
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Para compreender
o Irão,
uma vida inteira: Helena Waldmann entrevista
Paulo Guerreiro
Em 2005, a coreógrafa alemã Helena Waldmann concebeu e coreografou Letters from Tentland, uma peça a partir de um workshop que um ano antes dera em Teerão, tornando-se a primeira coreógrafa ocidental a fazê-lo na capital do Irão. A peça circulou por 17 países até ao momento em que o governo Iraniano emitiu uma proibição que impediu a saída das intérpretes para uma apresentação no Festival de Montpellier, em França. A três semanas desta apresentação, Helena Waldmann transformou uma reflexão no feminino sobre diferenças culturais, a liberdade num país em permanente conflito, as suas dúvidas e desejos, numa peça sobre corpos em exílio. Substituindo algumas das mais importantes intérpretes iranianas por jovens actrizes que residem na Alemanha, algumas delas nunca tendo vivido no Irão, criou Return to Sender, uma peça de resposta à censura iraniana. Mantendo o mesmo elemento de ligação, as tendas,
e construindo uma dramaturgia a partir das cartas que ia enviando às actrizes da primeira peça, a coreógrafa concebeu um díptico sobre impacto dos espectáculos, a sua (eventual) dimensão política e as estratégias de discurso utilizadas para ajudar a compreender um país mais complexo e rico do que se imagina. Em entrevista, a coreógrafa conta como foi o processo de construção de duas peças polémicas, reflectindo sobre as imagens feitas que existem sobre o Irão. E lança pistas para uma discussão em torno da recepção de Return to Sender que será apresentado em Lisboa, entre 21 e 23 de Junho, no âmbito do programa O Estado do Mundo, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian.
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Em que momento percebeu que fazia sentido, ou era necessário, fazer um segundo espectáculo? No momento em que recebi a informação de que os Serviços Governamentais do Irão não me deixavam continuar a fazer Letters from Tentland. Eu não quis acreditar que alguém no Irão achasse que me podia dizer o que fazer. Teve a ver também com o facto de ser europeia? Acho que seria igual se fosse um criador iraniano.
Mas essa não é a questão. Eu senti-me inferiorizada e quis reagir. Se essa foi a primeira reacção, eu também sentia vontade em continuar o trabalho porque me dei conta da necessidade do público em obter informações sobre o Irão. Depois “acalmei” e percebi que, se tinha feito sentido falar do Irão com pessoas que vivem no país, seria igualmente interessante contar o lado dos que saem do país. Como seria viver um país não estando fisicamente nele? E como seria o confronto dessas duas visões, entre uns que têm que sobreviver para continuarem naquele país, e outros que saíram e vivem em liberdade?
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No caso de Return to Sender optando por actrizes mais novas. Mas só porque não é fácil encontrar mais velhas. Eu tinha três semanas, havia já compromissos com festivais e programadores... É verdade que agora, que Letters... já não circula, Return... é visto como uma peça independente. Mas havia uma intenção prévia de continuar o trabalho que foi acelerada pela decisão do governo iraniano. E essa continuação existe agora, por exemplo, na imagem das raparigas a abrirem uma carta, praticamente ao início de Return..., e que é a
última imagem de Letters.... Também as cartas que são citadas ao longo da peça são cartas verdadeiras que eu escrevi às actrizes de Letters... Ou seja, eu quis que as pessoas soubessem que o início de uma está no fim da outra. De qual se sente mais próxima? Não sei dizer. Sei apenas que foi mais difícil perceber as questões colocadas pelas intérpretes que vivem aqui [na Alemanha] porque, de alguma forma, vivem em liberdade. Impressionou-me terem um receio muito maior de falar do que as que as que vivem lá [no Irão]. Diziam que tinham receio do que pudesse acontecer aos seus
familiares, mas a verdade é que elas próprias não sabem responder à tomada de riscos, não sabem porque é que não podem, ou não devem, fazê-lo. E portanto, ao contrário das outras, não me deixaram entrar dentro das suas cabeças. Eu mostrei-lhes o trabalho anterior, quis saber o que achavam, como se reviam, e se se reviam, na peça. Quis perceber se havia justificação para uma atitude como aquela que o governo Iraniano teve. Houve um trabalho de cedências de parte a parte. Enquanto artista expõe, ou expôs, os seus pontos de vista acerca de um determinado assunto que, atendendo ao contexto do qual partem, poderão ter efeitos, alguns deles não programados, na vida e no trabalho das intérpretes. De alguma forma, tratou-se de aproveitar o facto de serem intérpretes iranianas para explorar determinadas contradições e forçar um registo político. Que papel cabe às intérpretes num jogo maior do que elas? Depende. No caso de Letters..., as próprias me diziam que comigo podiam experimentar coisas às quais não tinham acesso. Mas mais do que isso elas tinham noção de quão longe poderiam ir. E fizeram-no de forma muito inteligente, pesando e medindo as consequências dos seus actos. Mas se essas intérpretes sabiam como contornar eventuais questões, as intérpretes de Return..., porque vivem no exílio, e muitas delas desconhecem a verdadeira realidade iraniana porque nunca viveram lá, criaram muito mais problemas ao nível dos limites porque projectaram medos que desconhecem. Algumas delas, como disse, não têm exactamente problemas em relação a si, mas em relação aos seus familiares. Se é uma situação que eu posso compreender, não deixo de sentir que é um medo por vezes irracional, mais de projecção que outra coisa.
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Para mim a pergunta é sempre: porque é que as pessoas não mudam o estado das coisas? Mas reconheço que possa ser uma posição demasiado “ocidentalizada”. No contexto político em que nos encontramos, a apresentação de uma peça como esta pode ser usada e manipulada para servir argumentos que não colhem na coreografia. Como evitar isso? Não se pode evitar a partir do momento em que se decide trabalhar com iranianos. Mas é um erro pensar-se, e só se falar, das coisas más.
A hospitalidade é, para os iranianos, como de uma maneira geral para os povos do sul, uma noção importante. Outros povos pensá-la-ão de outro modo. Para mais, não existem outras soluções. Eles não têm espaços públicos onde se reunir e falar.
É preciso lá ir, ver, estar com as pessoas e perceber que no Irão também existem coisas muito boas. A noção de hospitalidade, por exemplo.
fortíssimo. Para além dessa forma de conceber a hospitalidade, que efeitos pessoais sentiu? Aquilo que se aprende é a viver de acordo com os seus próprios mecanismos de defesa. Por exemplo, ao falar com as pessoas, se sabemos que não se podem dizer as coisas directamente, dizem-se indirectamente. Todos vão perceber. O facto de ser mulher é claro que é difícil.
A sua noção de hospitalidade mudou porque conheceu a hospitalidade de um país como o Irão? Não é chocante, de maneira nenhuma. 28
Acredito que ter estado lá tenha modificado a sua forma de olhar para aquele povo, sobretudo sendo mulher, criadora, e vinda de um país com um peso histórico-político
IRÃO: A ÂNSIA DE RESPIRAR Margarida Santos Lopes
Cansado de ver a sua pátria citada nos media internacionais sempre como “mau da fita”, Ali Mostafi decidiu “reformatar” no seu blogue (http://irannewsblog.blogspot.com/) algumas das notícias mais importantes, publicadas de Nova Iorque a Islamabad. Exemplo: Olmert praises China for coming out strongly on Iran, como titulou o diário anglófono The Daily News, do Paquistão, passou a ser no ciberespaço de Mostafi Israel forcing China to go against Islamist fascists in Iran. Do mesmo modo, quando The Conservative View editou o artigo Iran is the center of this war, o consultor Mostafi transformou-o em No war, but bring down the Islamist fascists in Iran, deixando claro que os iranianos não querem uma guerra mas apenas que os ajudem a derrubar o regime teocrático. “Os fascistas islamistas têm de ser dissociados do povo do Irão”, justificou-se num recente comentário. O blogue de Mostafi e de outros iranianos, dentro e fora do país, é um sinal de desafio às autoridades conservadoras que, desde a revolução do ayatollah Khomeini, em 1979, tudo têm feito para restringir as liberdades na antiga Pérsia de Dário e Ciro. A Internet e a televisão por satélite (as antenas parabólicas foram interditadas mas não há telhado que não as ostente) têm sido, de facto, ferramentas importantes para quebrar o isolamento imposto pelos mullahs. Abrem-se assim as portas do mundo aos iranianos e, simultaneamente, muda-se, ainda que muito lentmente, a imagem dos iranianos no mundo. Esqueçam os extremistas que negam o Holocausto e querem a bomba nuclear para “apagar Israel do mapa”, como o Presidente Mahmoud Ahmadinejad. A blogosfera está cheia de iranianos exigindo universidades livres de reitores fanáticos que silenciam o
debate central (“deve o poder terreno ser separado do religioso?”) e que abafam as vozes dos “Martinho Lutero do Islão”, como Abdel Karim Sorush. A web está repleta de iranianos que exigem o fim da censura repressora de escritores, académicos, jornalistas, criadores, actores – todos ávidos por romper barreiras e alargar horizontes. Khomeini, o fundador da República Islâmica, proibiu a música, os teatros e os cinemas, como “corrupção importada do Ocidente” e, com excepção dos mandatos presidenciais do “pragmático” Hashemi Rafsanjani e do “reformador” Mohammed Khatami, quando surgiram sinais de uma certa abertura, a vida cultural no Irão tem sido, invariavelmente, asfixiada por teólogos tiranos. É certo que cineastas como Abbas Kiarostami tiveram projecção internacional e são “tolerados” internamente. Mas, de um modo geral, a maioria dos habitantes do Irão que nunca conheceu o libertino período de modernidade do Xá Reza Pahlavi sente-se frustrada com as proibições há demasiado tempo em vigor. Recentes manifestações estudantis em Teerão contra o “ditador Ahmadinejad” são o reflexo desse descontentamento. Não que os iranianos, xiitas profundamente religiosos, aceitem todas as excentricidades. Um episódio que muito contribuiu para o divórcio entre o povo e o imperador Pahlavi ocorreu durante o Festival Shiraz das Artes, projecto pessoal de Farah Diba, a mulher do deposto e já defunto “rei dos reis”. Em 1978, conta Sandra Mackey, em The Iranians – Persia, Islam and the Soul of a Nation, o festival que era apresentado como uma “mistura de música tradicional e teatro do Oriente com mutações avant-garde da Europa e América” deixou os espectadores em choque quando um grupo de dança brasileira fez uma performance sexual em palco. A sociedade não estava preparada
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para “saltar da era da bicicleta para a do avião a jacto sem ter passado pela do automóvel”, comentou um pintor, B. Golzari, que eu conheci em Teerão. O que os iranianos reclamam agora é “uma atmosfera para respirar”, como prometeu o ex-Presidente Khatami. Um país onde não seja crime ouvir os sons alternativos dos Strokes ou ver os filmes subversivos de Quentin Tarantino. Onde repórteres não sejam presos ou jornais encerrados por sugerir reformas, e os artistas possam conceber e exibir as suas obras sem arriscarem o exílio forçado ou a morte. Um país onde se recupere o melhor que o reinado do Xá oferecia, apesar das perseguições e torturas da Savak, a sua cruel polícia secreta: “as preces em casa e o divertimento na rua”, como ironizava a minha amiga Victoria Essavi, empresária da minoria cristã assíria. Num país de 70 milhões de habitantes, metade dos quais com menos de 30 anos, os jovens iranianos puseram em marcha o que o USA Today qualificou de “contra-revolução” contra a “contra-cultura” que os extremistas representam. Sinais dessa mudança, constatou o jornal americano, são visíveis no crescente número de namorados de mão dada, gravatas e rostos barbeados (“impuros”, segundo a polícia da virtude), e também nos chador coloridos que circulam pelas ruas da capital. “Há dois anos todas nos vestíamos de vermelho. Este ano, adoptámos o cor-de-rosa e, no próximo, quem sabe?”, observou uma rapariga identificada como Farzaneh Samadian, engenheira informática, coberta dos pés à cabeça mas com o lenço a escorregar e a deixar ver o cabelo – “um pecado”, para os senhores de turbante. “Nós amamos a liberdade!”
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Há constrangimentos, por exemplo em termos de vestuário. Mas, para dizer a verdade, nem é importante. Só se transpira [risos]. Habituamonos. E depois é o que eles próprios dizem: “se fosse este o nosso maior problema...”. Agora as coisas mudaram com este presidente [Mahmoud Ahmadinejad], mas quando lá estive [2005] havia uma outra liberdade, não havia muitas condições de trabalho mas as pessoas podiam participar em festivais internacionais, organizavam-se alguns no próprio país, os criadores podiam escolher os temas com os quais trabalhar. Eu senti que as pessoas estavam “bem”. É claro que diziam que era uma pena que não pudessem estudar dança porque não podem mostrar o corpo, menos ainda em frente aos homens. O que é realmente lamentável para pessoas que são tão boas no canto e na dança. Contudo há pessoas que o fazem. Uma das intérpretes de Letters from Tentland dá um curso de dança. Ninguém sabe, mas toda a gente sabe. Oficialmente é proibido, mas o curso dela é frequentado por oitenta pessoas, muitas delas jovens. É difícil imaginar que uma geração que está agora com vinte anos possa ser proibida de dançar quando tem acesso à Internet, quando podem comparar-se com outros jovens de todos os cantos do mundo, quando não encontram trabalho... O que é que estas pessoas vão fazer? E a ideia de que o governo pode controlá-los acaba por ser retórica. Não conseguem. Foi isso que as raparigas me disseram... Se és apanhado a fazer algo ilegal, levam-te para interrogatório, podem prender-te por dois dias e depois voltas para casa... E há jovens que vivem assim, inclusive embebedando-se regularmente. Alguma vez teve a sensação de que poderia não corresponder ao nível de confiança que elas depositavam em si, e no trabalho, uma vez que esta podia ser uma qualquer janela oportuna para dizerem o que lá não podem dizer? Ou, colocada de outra forma, alguma vez sentiu que o seu olhar poderia estar 30
demasiado preso a uma convenção e um pré-conceito ocidental que seriam impeditivos para uma compreensão do que elas falavam? Há um ponto que me parece evidente e que é o facto de eu nunca ir perceber tudo. Como é que alguma vez poderei compreender tudo? Quanto tempo precisaria de passar no Irão para compreender tudo? Talvez uma vida inteira. Mas eu estava muito consciente de que não ia aprender tudo. E que continuei a aprender, no caso de Letters..., depois do espectáculo estar feito, quando circulou durante cerca de um ano, nos laços que se foram estabelecendo... Mas é impossível para um europeu compreender realmente o que é aquela realidade. E, por isso, é uma questão que eu nem coloco. De que modo pode esse olhar estrangeiro, e por isso distante, abarcar possibilidades de relação e deslocação para outro contexto que não o iraniano? Não sei dizer, mas creio que seja difícil. Relações estabelecem-se sempre, mas estas peças são sobre aquelas pessoas naquelas ruas, sobre o modo de estarem e sentirem e pensarem. São sobre aquelas cidades e aquele país. Estas peças são totalmente iranianas. E não podiam ser feitas sem lá ter ido. Por isso vejo com dificuldade essa deslocação. Sobretudo se falarmos de uma metaforização. Não se fala de nada, ou não se deve falar de nada, sem se conhecer. Da mesma forma que eu nunca faria as peças se só quisesse falar do lado político. Contudo será compreensível que alguém vindo da Alemanha possa estabelecer relações e supor alguma compreensão. Eu sou alemã e não consigo. Mesmo que pudesse, ou quisesse, estabelecer algum paralelo, e mesmo assim muito distante, com a realidade alemã antes da queda do muro, não consigo. Mas eu venho da Alemanha Ocidental. Talvez para alguém da Alemanha de Leste isso seja possível. Houve quem me perguntasse
UM OLHAR BREVE SOBRE O TEATRO IRANIANO: DAS ORIGENS À CONTEMPORANEIDADE Katayoun Hosseinzadeh Salmasi
A história do teatro iraniano remonta à antiguidade, quando podem ser traçados indícios de teatro e fenómenos de representação em cerimoniais que glorificavam lendas e heróis nacionais e humilhavam inimigos (Soug Sivash, Mogh Koshi), mas também danças e narrações, musicais históricos e mitológicos,
no exílio em países vizinhos. Por isso, aquilo que se considera ser a primeira peça iraniana foi escrita por um intelectual chamado Mirza fat-Ali Akhoundzadeh que escrevia as peças em turco e que depois eram traduzidas para Farsi [a língua local] por Mirza Jaffar Garachehdagi (1871). Depois da Revolução Constitucional (1905-1911) o estilo tornou-se popular, e formaram-se grupos de teatro e artistas, entre os quais, Morteza Goli Khan Movayed Al-Molk Fekri Ershad, Kamal al-Wozara Mahmoudi, Ali Khan Zahir al-Doleh
Symphony Of Pain © Reza Mo'attarian
histórias de amor e marionetas (6411000 a.C.). Durante o reinado de Safavide (século XVI) o teatro sofreu algumas alterações e a corte dedicou-lhe particular atenção, o que levou ao aparecimento de Shabih Khani, Takt Hozi (imitação), “Marionetas” e Naghl Nemayeshi, que são as quatro definições originais do teatro tradicional Iraniano. Embora possamos encontrar descrições de encenações dos séculos XV e XVI, as primeiras críticas datam da apresentação de teatro europeu no Irão, no final do reinado de Nasser al-Din Shah (18311896) que assistiu a teatro durante as suas viagens pela Europa. Desde essa altura que os intelectuais sentiam necessidade de um meio de expressão da sua liberdade e sentimento de justiça, estando alguns
e Ali Nassr particularmente activos em Teerão mas também em cidades como Rasht, Tabriz, Mashad e Isfahan. Em 1938, o governo de Reza Pahlavi, o Grande (1878-1944), criou uma comissão para o desenvolvimento da primeira escola de teatro, chamada Honarestan Honarpishegi. Durante esse tempo, as operetas, musicais e comédias ligeiras moralizadoras, nacionalistas e históricas eram bastante comuns. Mas o teatro foi bastante influenciado por países vizinhos, em particular pela Rússia, já que muitos dos artistas de teatro eram refugiados daquele país. Com a chegada das forças aliadas ao Irão (1941), a liberdade política permitiu que novos grupos e partidos se organizassem, de que é exemplo Abd-al-Hosseyn Noushine, na linha
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do Realismo. Mas o golpe militar de Junho de 1952, ao mesmo tempo que provocou alguma estagnação, determinou o lançamento da primeira publicação teatral, Namayesh (espectáculo). Os primeiros cursos foram dados por especialistas americanos na Universidade de Teerão. A partir de 1957, e sob supervisão do Gabinete de Arte Dramática, os grupos de teatro da Escola de Interpretação, constituídos por alunos graduados, tornaram-se bastante activos e nasceu uma nova era do teatro Iraniano. Criaram-se grupos na Faculdade de Arte da Universidade de Teerão, a mais antiga instituição escolar do Irão, criada em 1934, e foram construídos vários espaços para o teatro na capital e noutras províncias do país. Dramaturgos como Gholam Hosseyn Saedi, Bahram Beyzaie, Akbar Radi, Bijan Mofid, Abbas Nalbandian, Ismail Khalaj, Bahman Forosi; e actores como Ali Nassiryan, Abbas Javanmard, Ezatollay Entezami, Parviz Fanizadeh, Fakhri Khourosh, Mahin Shahabi, Shohreh Aghdashlou, fizeram a idade de ouro do teatro iraniano (1960-1970). Neste período, o governo organizou festivais internacionais que contaram com a participação de grandes nomes como Peter Brook, Yorji Grotefsky ou Sharji Trayama. Depois da Revolução Islâmica de 1978, foi criada uma organização chamada Centro Artístico de Espectáculos, suportada pelo governo para efeitos de planeamento, produção e festivais, entre os quais International Fajr Festival, International Puppet Shows of Tehran, Regional Traditional Festival e Childrens’ Festival.
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Este texto é uma adaptação de um outro, em versão mais alargada, que pode ser consultado no site Iran Theater (http://en.theater.ir/article.aspx?id=674 2), que contém informações em inglês sobre a actualidade teatral no Irão.
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porque é que eu me surpreendia com determinadas situações que elas me contavam, confrontando-me com uma realidade alemã semelhante. Um colega polaco também o referiu. Diziam que não seria tão violento e tão duro, mas conseguiam estabelecer relações. Na estreia de Return..., em Weimar, apercebi-me que as pessoas tinham receio de falar, talvez porque se sentissem identificadas com algumas coisas. E houve reacções bastaste acesas, nomeadamente acerca de liberdade, questionando por que haveriam elas de falar de liberdade se é algo que não têm.
Essa posição, da parte do público, existe por preconceito? Tem sobretudo a ver com a falta de informação. As pessoas não procuram saber mais. Lêem o que vem nos jornais, o que as televisões mostram, eventualmente leram um livro. Mas ninguém se aproxima de um iraniano para perguntar como é a sua vida lá. Ou seja, há uma adequação do seu discurso ao discurso delas porque há a percepção da importância do que se está a fazer. Há muitas pessoas que me perguntam porque é que o fiz, se há raízes familiares e eu só posso responder que o fiz porque, de facto, eu diria antes que há a noção de partilha. Que daí surja um espectáculo é uma consequência natural enquanto artistas e criadores. Foi uma oportunidade enorme ser convidada a fazer um workshop e depois ver esse trabalho desenvolvido. De que outra forma se conhecem mulheres iranianas que estejam a viver no país? E para mais profissionais? E agora que olho para o que foi feito, para o modo como se desenvolveu e o impacto que teve, sou levada a admitir que provavelmente este é um dos trabalhos mais importantes que fiz na vida. O que fiz, o que faço, como sou, como interajo, como penso o trabalho com os intérpretes... Tudo isso foi questionado através de um processo de descoberta, como são todos, mas aqui com uma dimensão humana muito mais presente. E contudo uma peça destas levanta questões à vaga multicultural que percorre muita da dança contemporânea. Vaga essa que se tornou um problema, até ao nível da recepção. No caso destas duas peças, e tendo Letters from Tentland sido censurado, o impacto que poderia ter é sujeito a uma ampliação extrema, correndo-se inclusive o risco de não se ver a peça, para só se ver o lado político. Uma imposição externa não depende da peça, mas de quem vê. Não digo que não esteja lá, mas não é só isso que está.
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AMIR REZA KOOHESTANI, O LIVRE Falar em igualdade de género, abandono da religião, e entrega ao mundo ocidental sem nunca querer deixar de ser iraniano, pode parecer um conjunto de paradoxos. Mas Amir Reza Koohestani não é um iraniano qualquer. “Tento apenas mostrar o que penso”, diz este actor, encenador e dramaturgo cuja carreira começou pelo cinema, de onde saiu sem completar os dois filmes que tinha planeado, e com os solavancos censórios já esperados. Mas aos 28 anos é um fenómeno internacional, dirige a Meth Theatrical Group, uma companhia em Shiraz, no sul do Irão, e conta com cinco peças no activo, algumas escritas em residência no Royal Court House, em Londres, que circulam aclamadas em vários países do mundo. Dance on Glasses, peça de 2002 que se apresentou em Lisboa, no CCB, em Novembro de 2005, foi descrita pela crítica francesa Gwénola David como uma combinação das tradições teatrais sagradas do Oriente com o melhor da dramaturgia iraniana. “Este duelo de uma sobriedade de alta tensão (...) envolve a atmosfera de uma poesia magnética. Ele perturba, enfeitiça e fica suspenso na memória”. Para Koohestani a resposta a esta capacidade de estabelecimento de relações e paralelos encontra-se naquilo a que os pós-modernistas apelidaram de “pensar localmente, agir globalmente”. Numa entrevista conjunta com um outro jovem autor iraniano, Vahid Rahbani, Perspectives on Iranian Theatre (ver caixa), explica: “Talvez as nossas roupas, a nossa língua e até o modo como cozinhamos seja diferente – mas, no fundo, os problemas mentais nas nossas sociedades parecem assemelharse. As pessoas podem estabelecer
contacto umas com as outras. Não devíamos permitir que os nossos governos ou os media construíssem muros entre nós”. Ingenuidade ou estratégia dramatúrgica? “Não desenho uma estratégia nem reflicto sobre o lugar onde me apresento. Tento apenas trabalhar. È apenas isso que tento fazer”. E fá-lo de tal forma que a insuspeita revista francesa Les Inrockuptibles escreveu, a propósito de Amid in the Clouds, peça de 2004, estarmos perante “uma aridez cénica e lúdica que exclui todo o psicologismo e todo o realismo, retendo apenas a força das palavras e das vozes, dotadas e destruidoras, almas fortes secas num dilúvio de desastre”. Um teatro onde a palavra tem preponderância porque permite a criação de imagens que sugerem movimento – e esse é livre. Uma encenação que aplica dinâmicas do teatro ocidental para explorar a complexa realidade social iraniana. E um olhar que, se se distancia do contexto político-cultural para o pensar, depressa regressa a ele com vontade de contribuir para um novo discurso sobre o lugar do Irão e dos iranianos no mundo. “Eu não fujo às minhas responsabilidades”, garante. Mas nota, para o ocidental mais receoso, que “o Islão é apenas uma parte [da nossa realidade] e não é a mais importante. Há coisas bem mais importantes para nós. Mas quando o público decide ver apenas o que quer ver, eu não luto mais. Mesmo que perca o que é mais interessante”. As citações utilizadas, excepto quando indicado, são retiradas do dossier de imprensa do encenador.
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© Mahin Sadri
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Da mesma forma que o exotismo e a coreografia “cartão-postal” não dizem nada… O que eu tentei com as duas peças foi ser a mais honesta que sabia. Eu não posso impor-me aos intérpretes. Nunca o fiz e não o faria nestas peças em particular. Nada do que ali tenha sido feito parte de outra coisa que não as questões que eu lhes coloquei e o modo como elas me foram explicando e ensinando a ver e a pensar. Disse-lhes claramente que para fazer as peças precisava de informações que só elas tinham. Isto só quer dizer que as peças não são sobre mim no Irão, mas sobre aquelas mulheres. Umas que vivem lá e outras, mais novas, que vivem no estrangeiro. Regresso à questão do contexto políticosocial porque imagino que a recepção de uma peça como esta possa ser afectada por um pânico crescente após os atentados no 11 de Setembro, ou outros, numa Europa que se achava imune a ataques depois da II Guerra Mundial. E talvez aí se consiga encontrar uma explicação para algum do mal-estar que as peças provocam. Há, como sempre, dimensões que não se controlam. Insisto que a peça não foi criada com esse propósito, ou estrategicamente desenhada com esse sentido, o de se inscrever e dialogar com um contexto sócio-político tenso. Mas é verdade que verifico ser uma peça que incomoda, que magoa, que levanta questões, problemas... Não só no Irão, mas sobretudo na Europa. Como se essa não-estratégia libertasse a peça de uma dimensão política que existindo, e estando presente na peça directa ou indirectamente, não a encerra somente nesse plano. Por isso falava de opções políticas… Mas a questão é que a orientação política das peças é algo imposto e que não depende somente das peças. Há um conjunto de factores, de referências e de diferentes contextos que ampliam ou reduzem o discurso criativo.
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ENVELOPES VAZIOS Tiago Bartolomeu Costa
Return to Sender não devia ter existido, ou não da forma como acabou por existir. Espectáculoresposta a um outro que levantava demasiadas perguntas, é também um espectáculo-pergunta porque quer ouvir as razões de um nascimento tão repentino. As seis jovens raparigas são sombras de outras seis mulheres que antes ocuparam aquelas tendas, que lembram o chador, que são as suas casas, refúgio, prisão. Os seus movimentos, livres no interior das tendas, percorrem o palco à procura de um caminho, desbravando terreno, deixando marcas. O corpo delas, se está protegido pelas tendas (escondido era mais correcto), é porque nem no exílio, onde se encontram, se sentem seguras. Têm receio do que possa acontecer-lhes, pelas suas famílias, do que não sabem. Waldmann constrói uma peça-poema, onde tenta perceber o que sucedeu àquelas primeiras mulheres impedidas de continuar. Fá-lo através da exposição das cartas de que não obtém resposta, da duplicação do movimento que já existia na peça anterior, do querer dar a estas e às outras a liberdade que reclamam, exibindo as fotografias de tendas em Teerão, no deserto iraniano, ou colocando-as no metro de Nova York, ou em Alexanderplatz (Berlim), ou junto à Torre Eiffel. E por isso convida a um olhar emocionado sobre a condição humana, mais do que sobre a 35
condição feminina. Despe-se de todos os artefactos para apresentar uma coreografia sobre o desejo de se ser livre. E estende esse convite à partilha, de forma explícita, quando prolonga o espectáculo para os bastidores, convidando os homens a falar com as raparigas (nenhum homem poderia entrar dentro das tendas por questões morais e religiosas), colocando em perspectiva as imagens feitas que existem sobre o confronto Irão-Ocidente. Uma obra tocante que faz mais pela queda de preconceitos do que qualquer metáfora multicultural.
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Return to Sender será apresentado no âmbito do programa O Estado do Mundo, na Fundação Calouste Gulbenkian, de 21 a 23 de Junho.
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Parece-me é que se tornou uma evidência fazerem-se espectáculos politicamente orientados e que isso não traz só vantagens. Antes esgota os espectáculos num modelo e numa forma que, diria, quase anulam todo um trabalho de pesquisa e observação. Talvez porque exista uma expectativa em relação à apresentação de soluções… Soluções? Para quê? Quantos espectáculos conhece que dão soluções para o que seja, ainda mais para problemas sociais e políticos? Os espectáculos não são feitos para dar soluções. Falamos de que tipo de soluções? Em relação a quê? Para chegar onde? Abrir a cabeça das pessoas e dizer-lhes o que fazer? Mas quem sou eu para agir assim? Eu nunca o faria. E uma solução não é suficiente. Há um aspecto que facilmente nos remete para os contextos europeus, e que é o uso das tendas, comum às duas peças. Há-as como habitação precária e alternativa para fluxos migratórios que chegam às grandes cidades e não encontram resposta por parte das autoridades. Mas há também o caso das tendas ocupadas pelos próprios habitantes da cidade que se vêem sem casa. À volta do Centre Pompidou em Paris, nos parques em Berlim... Mas é uma realidade existente também no Irão. As tendas que aparecem na peça são em tudo semelhantes a imensas outras que servem de abrigo para famílias inteiras que se deslocam do interior do país para as cidades como Teerão. Há-as por todo o lado. Cenicamente o seu uso torna-se tanto uma mensagem, ou a fixação de um aspecto que nos deixa ler um determinado Irão, como algo fetichista. Como assim?
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Na exploração de diversas valências. Serve tanto como metáfora para o chador como abrigo, como escudo e como denúncia, mas também porque se torna o único objecto ao qual se agarram. Uma espécie de identidade. Eu acho que a tenda simboliza o próprio Irão. Nunca se consegue ir para lá da superficialidade. Nunca se aprofunda nada, não se sabe nem se vê nada para lá das tendas, dos muros, das cortinas. E por isso é que é difícil falar sobre o Irão porque está sempre tudo escondido. É tudo muito fechado. As pessoas não deixam que se saiba o que estás a pensar. A questão é saber se aqui, onde se diz que se vive em liberdade, as coisas são diferentes. Coloco sempre o problema na possibilidade de opção. Recebemos uma carta, devemos abri-la e lê-la em vez de a devolvermos ao remetente. Entendo que as peças “funcionem” precisamente por causa do olhar distante, o que desde logo, e aqui arrisco a extrapolação, nos leva a pensar que não existiriam caso fossem feitas por iranianos. Diria que tem razão, sobretudo por causa da falta de distância. Eles nunca veriam em detalhe o que uma senhora esconde através das tendas. Não só porque não podem, no caso de serem homens, mas também porque estão demasiado perto da realidade. Demasiado perto da verdade. E deixaram de a ver. Por isso é que com um olhar estrangeiro podemos aperceber-nos de subterfúgios, ou prever códigos de linguagem que nos ajudem a ler outras coisas. Depois há outro aspecto e que tem que ver com a falta de conhecimento em relação ao corpo, à dança contemporânea, às suas “regras” e modos de funcionamento... O que eu encontrei no Irão foi sobretudo teatro de texto, onde a presença do corpo não existe. Há um lado convencional demasiado presente que impede até uma utilização alargada dos objectos cénicos, e daquilo que existe à sua volta. Eles simplesmente não sabem. 37
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Talvez seja então por isso que as actrizes de Letters… tenham achado o trabalho tão libertador. Para elas foi completamente novo o que estava a ser proposto. Seja a construção da peça seja a possibilidade de produzirem algo “provocador”. Outro aspecto revelador foi o facto de perceberem que o podiam fazer num espectáculo com duração de uma hora, já que normalmente estão em cena dez minutos. Nos meus trabalhos gosto da ideia de insistência, de não desistir de uma ideia ao fim de algum tempo. Não desistir é a palavra de ordem quando estamos perante situações destas? É verdade que houve uma das intérpretes [de Return...] que sugeriu que se devia tentar fazer uma peça juntando os dois elencos. Eu não sinto a pressão, ou já não a sinto. A questão é saber até onde se pode ir quando se quer falar de determinados assuntos. O facto de não serem os meus valores não me sujeita ao desrespeito dos valores dos outros. Há que perceber sobre e como se deve falar acerca de determinados assuntos. Recentemente um artista alemão usava o corpo nu de uma islamita para projectar excertos do Corão. Naturalmente o espectáculo foi cancelado. Creio que mais do que impor uma forma de pensar e de fazer, é importante que se fale, que se nomeiem as coisas. E isso só se pode fazer com um conhecimento. Se se pode falar de responsabilidade artística, essa existe na possibilidade de dar ao público mais do que aquilo que os media fazem. As pessoas não sabem nada do Irão, não sabem o que lá se passa, quem são aquelas pessoas, porque vivem assim. E a maior parte vai continuar a não querer saber. E aí sim, podemos falar numa resistência artística e numa via de escape à manipulação.
HELENA WALDMAN Coreógrafa alemã com um trabalho politicamente comprometido, cuja linguagem combina a dança e o teatro em temas como o exílio ou a imigração. As suas peças têm sido produzidas em vários países (Irão, Brasil, China, Alemanha, Palestina, etc.), num questionamento das fronteiras da implicação artística. Entre os seus trabalhos mais reconhecidos encontramse Right Across the Ages: China on the Catwalk (2001), Headhunters – Cutting the Edges (2003) e o filme Emotional Rescue (2005) com intérpretes da companhia palestiniana El-Funoun Troup. No site www.lettersfromtentland.com é possível, entre outras informações, visionar um excerto da peça Letters from Tentland, bem como imagens do processo de trabalho.
Para saber mais sobre o teatro iraniano: Na Internet: Centro de Artes Dramáticas do Irão - www.theater.ir Perspectives on Iranian Theatre – uma conversa entre o encenador e dramaturgo Amir Reza Koohestani e o realizador e encenador Vahid Rahbanihttp://www.opendemocracy.net/people-globalartists/article_1413.jsp Iran Heritage Foundation - www.iranheritage.org Beginnings of Persian Drama http://www.iranian.com/Iranica/Nov97/Drama/#Begin Nas livrarias: The History of Theatre in Iran, de Willem Floor, Mage Publishers, 2005 Iranian Theatre Festivalized, de Farah Yeganeh, Theatre Research International, 30: 274-283, Cambridge University Press, 2005
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Fotografias páginas 22/23, 27, 28, 32 e 34/35 Return to Sender © Gerardo Sanz Fotografias páginas 26 e 37 Letters from Tentland © Franz Kimmel
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VISTO DOS BASTIDORES / Miguel-Pedro Quadrio
LIBERDADE CÍVICA No debate “O Olhar Crítico” (Culturgest, 8-09-2006) – iniciativa integrada no programa comemorativo do terceiro aniversário do blogue O Melhor Anjo, de Tiago Bartolomeu Costa – afirmei, não sem causar alguma perplexidade incomodada no painel que integrava e na plateia, que Portugal tinha crítica a mais e não a menos. A justificação desta opinião, que mantenho, parecia-me então evidente. A crítica tornou-se rarefeita nos órgãos de comunicação social portugueses, porque os seus leitores, ouvintes e telespectadores dela prescindiram. Poder-se-ão aduzir inúmeras razões para este divórcio e para a consequente “invisibilidade” da crítica (ou mesmo, da sua morte próxima, com alguns antecipam já). Sem pretender dissecá-las neste espaço breve, adianto apenas que talvez valesse a pena repensá-las num enquadramento pós-moderno de democratização radical da criação e usufruto artísticos (foi com larguíssima reserva mental que, neste contexto, utilizei a palavra “democratização”; ainda não percebi se a morte das “autoridades” – e, portanto, de qualquer instância de “juízo” – resulta de um progresso democrático de aprofundamento expressivo de
individualidades ou de uma subtilíssima estratégia de atomização, que o capitalismo selvagem utiliza para anestesiar o indispensável “espanto do mundo”). No momento em que nasce mais um projecto crítico, cujo mérito – saliente-se – se deve ao generosíssimo empenho de Tiago Bartolomeu Costa, não me apetece falar de cadáveres adiados (se é que o são). Sendo eu próprio um crítico de teatro no activo, publicando regularmente no Diário de Notícias e não me sentindo (ainda) moribundo, interessa-me um problema de outra ordem: quem, em tempos de crise, garante a liberdade e a independência do crítico. Entendendo a crítica que resta como actividade urgente – ou seja, como uma resposta, em tempo útil, a um trabalho performativo que se desenvolve num prazo concreto e, normalmente, curto –, não creio que o tempo longo da Universidade possa suprir às sucessivas “invisibilidades” (não que lhe negue, como é óbvio, a formação dos profissionais da área). De igual modo, as estruturas de produção e programação ou os criadores também não podem – nem devem – ser fiéis de uma balança onde também se equilibram. Numa sociedade que se quer aberta, os órgãos
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do Estado, que já intervieram através de publicações e de prémios, ainda me parecem parceiros mais desajustados num processo de reflexão e validação da qualidade. Restam, pois, os suspeitos do costume. Só os media – no seu formato tradicional ou em modelos a reinventar “obscenamente” (!) – podem garantir à actividade crítica patamares saudáveis de distância e de isenção (no limite, porque financiam essa independência). No actual modelo dos media-empresa, só as respectivas direcções poderão (re)sensibilizar os accionistas à premência do jornalismo cultural. Quererão elas (re)lançar esta liberdade cívica?
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mpquadrio@revistaobscena.com
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B o d y Rice Corpo indiferente texto
Tiago Bartolomeu Costa
Um carro percorre as estradas de terra batida esculpidas na paisagem. O pó acumula-se no vidro e denuncia a aridez daquele território que é o Alentejo mas podia ser qualquer outro lugar de ninguém. Body Rice, a primeira longa-metragem do realizador português Hugo Vieira da Silva, atravessa uma planície deserta numa contemplação adormecida e desistente. Um modo de olhar aquela terra como se tudo e nada dependessem dela. No início, ainda o vidro do carro não deixou perceber onde estamos, uma voz masculina pergunta: “É como imaginaste?”. E ouve-se de uma rapariga: “Não imaginei nada”. Body Rice é sobre isso mesmo. A incapacidade de previsão, a demissão de uma responsabilidade, um deixar estar e deixar ser sem noção de futuro.A legenda inicial
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contextualiza, fugazmente, o tempo e a acção. Durante os anos 80 jovens alemães eram enviados para o Alentejo ao abrigo de um programa de reinserção social. Miúdos problemáticos, com pesadas heranças familiares, que eram deixados ao cuidado destes projectos controlados pela igreja protestante. Retirados das suas famílias e enviados para outro país – não só Portugal, aqui por se respirarem ventos pós-revolucionários, mas também América Latina e Europa de Leste –, o programa acreditava que a extracção do mal devia ser feita a partir da raiz. Logo, a deslocação tinha contornos de limpeza emocional. A maior parte dos responsáveis pelos jovens não possuíam particular formação para o fazerem e, no triângulo Aljezur-Santa MartaOdemira, encontravam-se punks, protestantes,
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ex-prisioneiros e terroristas do exército da República Federal da Alemanha. Um ambiente pesado e quase paralelo à realidade nacional, cujo contacto com a população local vivia mais de uma ocupação que de uma partilha de espaço. O programa, que ainda hoje existe, sustentava-se em teorias obscuras devedoras de um pensamento neo-reaccionário muito em voga nos anos 70. E com o passar dos anos foram-lhe sendo a pontados casos de abuso de menores, fugas e mortes. É este universo, particularmente ambíguo, que se capta num filme quase mudo, ou onde as palavras são conscientes de uma finita inutilidade.Se as palavras são parcas, os olhares vagos e os movimentos tensos, passa pelo filme, e é isso que importa registar, um trabalho em torno do corpo, com a inscrição no espaço, o confronto com o outro, e o abandono e superação da consciência a darem o mote para uma reflexão sobre possibilidades de suspensão. O filme, se suspende o olhar nos corpos, fá-lo porque estes trabalham a partir de mecanismos, dinâmicas e pressupostos coreográficos bastante evidentes. Ou evidentes para quem quiser ver na fixação de movimentos (porque ficção) uma proposta de combinação entre a bidimensionalidade do cinema e a tridimensionalidade da dança. É que o filme entra por um território onde é o corpo que comanda o destino da (eventual) personagem. Deixamos de tratar de personagens estruturadas para observar derivas. Da narrativa para a performance, desta para o espaço, deste para o plano fixo. Hugo Vieira da Silva registou o modo de actuação e comportamento destes corpos a partir do método de Composição em Tempo Real, desenvolvido pelo coreógrafo João Fiadeiro onde o corpo existe ao serviço de um processo criativo, no qual se pervertem constantemente as regras de criação. As sequências que entram pelas festas de trance, planando sobre a agitada
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e aparentemente descontrolada movimentação suada daquelas pessoas, registam a forma como as possibilidades de envolvimento e clímax são suspensas. Cada gesto esconde um outro e põe em causa a experimentação. Arrisca um movimento sem memória ao mesmo tempo que acumula “fugas para a frente”. Exprime, nesse escape, a perda de noção de racionalidade, verticalidade e de limite. E ultrapassa a mera disposição num espaço concentrado. Espaço temporal e espaço físico. Razão pela qual, se sentimos que ao filme falta uma maior contextualização histórico-políticosocial – ouvimos uma breve notícia sobre o primeiro conflito no Golfo e, pela banda sonora, percebemos que as feridas abertas pela queda do Muro de Berlim não estão completamente saradas –, também compreendemos porque se opta por uma focalização naqueles corpos, eles sim, descontextualizados. É a única hipótese de ordem. O comportamento que exibem, com provas de afecto não uns pelos outros mas em relação a um brinquedo robotizado descoberto numa lixeira, é incapaz, por exemplo, de aceitar a irracionalidade dos animais, e por isso são pontapeados ou ignorados. As figuras – todas, desde as raparigas que se arrastam nos hotéis, ao amigo português (Luís Guerra a mostrar porque é a revelação da dança dos últimos anos), e mesmo o epiléptico que opõe a transcendência provocada pela música electrónica ao descontrolo nervoso da doença –, acusam um mal estar, um sentimento de rejeição e um sentido de ausência que advém da paisagem pálida que lhes condiciona o movimento. Por isso, Body Rice (de título tão enigmático quanto frágil é a composição de uma vagem de arroz) limita-se a olhar para eles. A deixar-se estar ali. Hugo Vieira da Silva força a concentração naqueles corpos, dessacralizados, híbridos e ressacados, não lhes exigindo uma tomada
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de posição. Não querendo ler neles um discurso político de resistência nem de desistência. Nessa posição, dir-se-ia que incompreensivelmente amoral na ausência de moral dos noutros, há quem leia presunção, vazio, redundância, inabilidade, desfoque, ausência de ideias ou retórica. Mas, na verdade, se tudo isso pode ser lido no filme, também se pode tentar olhar para este filme-estado de espírito perguntando como nos podemos relacionar com a consciência. Que lugar é o do corpo numa paisagem, num contexto, face a um futuro condenado? Como agir, comportar-se, relacionar? O filme não propõe alternativas nem organiza as várias histórias que por ali se cruzam. Deixa que a câmara siga os corpos, como numa longa noite de festa. Como se não houvesse amanhã. Porque, como diz uma delas, ninguém se sente. É tudo uma espécie de ausência. É tudo masoquistamente ausente.
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Body Rice venceu a Menção Especial do Júri no Festival de Locarno 2006 e conta com o apoio da OBSCENA na estreia nacional, que decorreu a 11 de Janeiro. O filme está em exibição em Lisboa e no Porto.
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AgitPop / Rui Monteiro
DEPOIS DA POESIA DAS ARMAS, A ARMA DA POESIA Grossos colares de ouro à volta de pescoços amplos como troncos; dentaduras completas construídas de prata e pedras preciosas; anéis por tudo o que é dedo; má catadura e eventual pistola complementar; gajas mui siliconicamente boas esculpidas por todo o lado; automóveis blindados com vidros escuros e mais rodas que um camião TIR e está feito o retrato-robô do ráper contemporâneo. A descrição, embora apressada e caricatural, pode ser usada como uma alegoria pouco exemplar do estado do outrora revolucionário movimento hip-hop, mas também deve ser aplicada à generalidade da música negra norte-americana, mansão enorme e cheia de quartos onde a indústria deixa pouco espaço para a arte, menos ainda para a experimentação, e na qual os protagonistas estão mais preocupados em cultivar contas bancárias do que as suas capacidades artísticas. Enfim, mais empenhados em perpetuar um som de êxito antes garantido que procurar expandir o seu universo criativo. A música negra norte-americana, de que descende e depende grande parte da música popular urbana, porém, é um universo criativo e complexo onde interesses estéticos e comerciais convivem, e colidem, com uma míriade de pretensões sociais e políticas e com todos os tipos de oportunismo associado. Entre a sua vasta herança e descendência, o que agora vem realmente ao caso,
porque sobre gangsta-rap e outras miudezas estamos conversados, é a maneira como, associada à poesia, a música deixa por vezes de ser um produto e se torna arte. Ao
poesia arranjam sempre maneira de se irem encontrando. E o jazz e os blues, a obra de Gil Scott-Heron e, depois, o hip-hop são com certeza dos melhores exemplos de uma consciência
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longo do século passado, ou pelo menos desde a década de 20, quando músicos como Louis Armstrong, Coleman Hawkins e Duke Ellington, escritores como Langston Hughes, Claude McKay, James Weldon Johnson ou Countee Cullen, seguindo, ou sendo influenciados pelas ideias de W.E.B. DuBois e Marcus Garvey deram consistência ao movimento cultural negro nova-iorquino que ficou para a História da Cultura como Harlem Renaissance, que a melhor música e a melhor 48
que nasce na denúncia da segregação, do racismo e da pobreza; cresce e ilude-se com os ideais unitaristas do movimento dos direitos cívicos, mais as suas consequências radicais, e parece agora chegar a um patamar onde a táctica mais apropriada é a da guerrilha cultural e, menos paradoxalmente do que parece, introspectiva – o que pode ser uma conclusão abusiva, mas é um dos caminhos a que leva Good Bread Alley (2006), de Carl Hancock Rux.
Poeta, romancista e ensaísta basto publicado; actor e dramaturgo com muitas horas de palco (algumas como colaborador de Robert Wilson, Bill T. Jones e Vinicius de Cantuária); militante comunitário; Carl Hancock Rux é um compositor e um intérprete que (como Bill Withers, Scott-Heron, ou Leonard Cohen) usa a música para melhor mostrar a sua poesia, para a fazer mais actuante, ou melhor, para a tornar em mais eficaz comunicação artística, mas também social e política. Foi assim em dois álbuns, Rux Revue (1999) e Apothecary RX (2004). É assim no mais recente, pois ao contrário do tempo imediato da indústria, Rux regula o seu tempo pela disposição para a elaboração e para a experimentação. O que se encontra em Good Bread Alley é – por assim dizer – a procura desencantada de uma verdade. Carl Hancock Rux sabe como a cultura é múltipla e diversa e, embora pugne pela afirmação de uma cultura negra, recusa a segregação, criando canções que aceitam todas as influências no estabelecimento do devir da poesia. Recusando o dogma, embora aceitando a tradição, este álbum explora caminhos conhecidos com um olhar novo, procurando, mais que indicar novos trilhos, investigar e desenvolver a eficácia do discurso pela simplicidade dos meios – deixando todo o espaço para o existencialismo cruel do autor se propagar como um vírus benigno.
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obscena@revistaobscena.com
DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS
CASA-TEATRO Pedro Manuel
Na linha de uma programação que tem vindo a divulgar e legitimar o Novo Circo como género das artes do espectáculo, o CCB acolheu o último espectáculo da Circolando, Quarto Interior. O espectáculo é a primeira parte de um ciclo denominado Poética da Casa, que terá continuidade no projecto Casa-Abrigo e no espectáculo Mansarda.
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Podemos abordar o espectáculo pelo seu título: Quarto remete para um movimento implosivo a que a companhia procede ao entrar na casa-teatro, abandonando a rua que envolvera os primeiros espectáculos. Cavaterra (2006), sobre o trabalho mineiro, foi o primeiro espectáculo a habitar o palco e aí a caixa negra tornava-se, ela própria, o espaço da profundidade negra das minas. Em Quarto Interior, pelo contrário, é o exterior que é interiorizado no teatro: a árvore despida que cresce sobre um soalho de tábuas corridas (o chão da rua que é o da casa, um palco sobre o palco); a casa feita de portadas com janelas (as portas como passagem do corpo, as janelas como passagem do olhar, entre interior e exterior); a casa que se abre para revelar o lado de dentro; a figuração do ciclo natural de uma ave, um animal selvagem. Mas não é o exterior que invade este quarto, pelo contrário, é o espaço interior que se desdobra em visões, em sonhos. Deste modo, a Circolando entra em casa, na casa-teatro, para encenar o princípio da criação, o momento visionário, obrigando a 50
própria casa a ceder, a abrir. O Quarto é o ponto de onde se vê e será preciso entrar para que se veja daí o teatro. Por outro lado, é o interior que modula o espectáculo, e é por ele que o espectáculo acaba por atravessar as fronteiras – já de si ténues – do que se identificou por Novo Circo. A Circolando tem no currículo um espectáculo notável, Giroflé, onde se conseguia o pleno de articular uma ideia de novo circo com teatro de imagens, marionetas e dança, música e cenografia, num espectáculo de rua absolutamente hipnótico. Não querendo reduzir aqui os espectáculos precedentes e consequentes a um ponto de excepção, importa situar o trabalho da companhia como uma das mais férteis abordagens transdisciplinares das artes do espectáculo em Portugal, e em continuidade. Mas essa criação diagonal começa por ter como referencial o Novo Circo. Veja-se, por exemplo, a distância referencial que dista entre Caixa Insólita (2000) e este Quarto Interior. O circo (o malabarismo, o equilibrismo, o gag) aparece a espaços, timidamente, como por obrigação, e mesmo o teatro de imagens (ou as imagens que são teatros) não se chega a instalar completamente. Em vez disso, o que o espectáculo parece explorar bem é uma instalação plástica poética e sugestiva, que estabelece contrapontos simples e eficazes entre exterior e interior e entre a distância e a altura. Por outro lado, é a dança que se impõe como movimento deste interior. Desta vez, é o movimento que importa. Mas o espectáculo fica comprometido neste impasse, acabando por nem explorar as sequências ao ponto em que a proeza se transforma em poesia, nem arriscando um passo afirmativo na dança que se adivinha e por vezes aparece liberta. O melhor de Quarto Interior fica na continuidade do trabalho de uma das melhores jovens companhias portuguesas e pode também tornar-se o espectáculo em que a Circolando entrou no teatro, ou o circo ficou na rua.
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Quarto Interior, da Circolando, estreou em Maio de 2006 no Teatro Nacional São João e foi apresentado em Janeiro no pequeno auditório do CCB. Apresentase nos dias 20 e 21 no Teatro Viriato, em Viseu
FIM, PRINCÍPIO E O QUE FICA PELO MEIO Tiago Bartolomeu Costa
Em 1986, a francesa Maguy Marin criou um dos mais fascinantes trabalhos em torno da obra do irlandês Samuel Beckett. May B., que ainda circula numa carreira internacional que dá bem conta da excelência do espectáculo, reunia o existencialismo beckettiano com o rompimento provocado pela determinação de uma geração de coreógrafos que se afastavam da dança moderna
© Rodrigo César
para abraçar a dança contemporânea. Devidamente legitimado pelo autor, continua a ser um paradigma das adaptações para dança do universo labiríntico e revelador de Beckett. O modo como se liberta de marcas autorais, bem como das características temporais e físicas que se perpetuam nas diferentes versões dos textos de Beckett, servem de referente para a relação coreografia-texto. Em ano de centenário do Prémio Nobel da Literatura, Olga Roriz ofereceu-nos Daqui em Diante (estreado em Junho de 2006 no Festival de Sintra), uma leitura pessoal do difícil texto Pioravante Marche, escrito em 1983. Uma viagem, tão angustiada quanto a proposta por Beckett que, se resume de forma clara – pela
revisitação de imaginários e referências – o que tem sido o percurso de Roriz, não deixa de abrir a porta do armário a esqueletos nem sempre desejados. É o problema da inscrição que desde sempre a isolou do panorama nacional. Nem pertença da Nova Dança Portuguesa, nem herdeira da dança moderna, entre o extinto Ballet Gulbenkian e a renovação do discurso da Companhia Nacional de Bailado, mulher que não joga no estereótipo, criadora que reclama uma força matricial por vezes avassaladora (particularmente evidente nos solos, como Jardim de Inverno, de 1989 ou Os Olhos de Gulay Cabbar, de 2000). Na ressaca de três aniversários – nascimento, companhia e carreira – Olga Roriz desviou-se da poética que caracterizou os três happenings intitulados Felicitações Madame (2005-2006), bem como de alguma organização cénica e dramatúrgica que impôs a O Amor ao Canto do Bar Vestido de Negro (2005) para criar uma obra fragmentada, dispersa e algo circular. Não faltam as marcas características do seu trabalho. E, por isso, não se questiona a beleza plástica de algumas das sequências, nem a exploração fetichista de certos adereços, nem tão pouco aquilo que faz melhor: uma anulação das diferenças entre homens e mulheres. E menos ainda o modo como integra elementos fundamentais para a compreensão do legado de Beckett – a árvore de À Espera de Godot e a areia de Dias Felizes sendo os mais evidentes –, com outros que recupera de peças anteriores – por exemplo, a escada de Felicitações Madame II, passada na ilha de Faro. Mas Daqui em Diante, na vontade que tem em tresler a obra, reivindicando por isso, e ainda bem, um olhar pessoal e liberto da reverência a Beckett, acusa o confronto com aquele que é o grande e imposto estigma da coreógrafa: Pina Bausch. Fatal e infelizmente acumulam-se as comparações, mais pela forte presença provocada pelo imaginário barroco da coreógrafa alemã, do que pela vontade em seguir o modelo. Mas como olhar para as cenas de sedução que lembram Kontakthof, para o movimento guiado por Cesária Évora que lembra Masurca Fogo, para a deambulação por entre os adereços que remete para Café Müller, para os monólogos ditos à boca de cena 51
DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS
Bausch? Exemplos de sequências que, se podem remeter para uma certa angústia e claustrofobia sugerida no texto de Beckett (o carro que se mostra no fundo do palco nunca os levará a lado nenhum), encerram o espectáculo num imaginário repisado que, em outras situações, Olga Roriz soube, e bem, contornar. Fica como uma obra menor na carreira da coreógrafa ou, se quisermos, como um trabalho carente de uma disponibilidade e dedicação que não faz jus ao papel de Roriz na dança portuguesa.
E tal como as canções pastilha-elástica, também a peça se vê sem esforço. Vânia e Rita Calçada Bastos interpretam, respectivamente, Ana e Hanna. A primeira demonstra vontade em superar as fragilidades denunciadas por uma inexperiência em cena, como alguns gestos grosseiros, uma limitação gestual e um desacerto no espaço. A segunda comprova a sua versatilidade e segurança em palco, facto que não deve ser alheio da mão da coreógrafa Olga Roriz, que desenhou o movimento, e em cujo trabalho Rita Calçada Bastos se vem profissionalizando. Seria, no entanto, de evitar em ambas uma expressividade e entoação por vezes infantil.
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Daqui em Diante, produção da Companhia Olga Roriz inspirada em Pioravante Marche, de Samuel Beckett, apresenta-se dias 6 e 7 Fevereiro no Teatro Garcia de Resende, em Évora.
Ana e Hanna, na encenação de António Feio, pode ser vista no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, até dia 27 de Março.
A VIDA NUMA CANÇÃO POP
SOBRE, PARA ALÉM, POR DETRÁS
Tiago Bartolomeu Costa
Pedro Manuel
Ana é portuguesa, tem 19 anos e mora em Tavira desde que nasceu. Trabalha num supermercado e tem um namorado que se revela ser de extrema-direita. Gosta de sair à noite e de insultar os imigrantes que há alguns anos começaram a chegar à sua cidade. Vive com a avó e o irmão, que é polícia. Hanna é do Kosovo, tem 19 anos, chegou a Tavira há poucas semanas. As únicas referências que tem de Portugal são as histórias que o pai lhe contava. Mas esse morreu antes de chegarem ao Algarve. Não tem amigos, gosta de cantar e dançar e vive com a mãe, que não sai de casa. Inevitavelmente o destino de ambas cruzar-se-á. E o encontro, para aquilo que se espera ser o resto das suas vidas, será marcante. Quando em 2001 o autor inglês John Retallack (que em 2005 encenou Romeu e Julieta no S. Luiz, em Lisboa) escreveu esta peça, o ambiente não era Tavira, mas Glasgow, no Reino Unido. A peça foi recebida enquanto exemplo de uma dramaturgia atenta aos problemas sociais, numa linguagem acessível porque destinada a um público adolescente, e pouco interessada em fazer passar doutrinas. A ideia era abordar uma certa deriva que grassa a juventude actual, reflectindo sobre o contexto político-social das cidades de média dimensão num país de primeiro mundo. Fosse ou não visto como piscar de olho a mecanismos de sedução de fácil compreensão, a
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© Margarida Dias
verdade é que o uso de canções pop para ajudar à aproximação das duas raparigas servia de ponte para estabelecer laços referenciais com o público-alvo. Não sei se no original britânico as canções usadas são as mesmas que se cantam na encenação de António Feio. Mas para o caso tanto importa, já que o uso dessas canções não se faz pela importância do seu conteúdo mas pelo imaginário que carregam. Britney Spears, Alanis Morrisette, Fatboy Slim, Cristina Aguilera, Skin, Natalie Imbruglia e Fairground Atraction com Madonna, Nina Simone, John Lennon e Mahler têm por objectivo funcionar enquanto marcas culturais reconhecíveis. E é neste caldo urbano e superficial que se desenha uma estrutura dramatúrgica simples – uma tragédia, o ataque do namorado extremista de Ana ao irmão de Hanna, aproxima as duas raparigas fazendo esquecer as diferenças culturais. Com personagens que se multiplicam nas duas intérpretes, e uma encenação em velocidade de cruzeiro, sem chama nem mácula e que se limita a gerir o texto num cenário inexplicável, uma rampa que enche o palco, a peça não vai muito para além desta exposição evidente de valores nobres que se devem sobrepor a pré-conceitos.
Depois de Para Além do Tejo (2004), dedicado ao Alentejo, Por Detrás dos Montes vem dar excelente continuidade ao Projecto Províncias que o Teatro Meridional dedica a três regiões portuguesas (Alentejo, Trás-os-Montes, Açores) e que é desenvolvido a partir da ausência de palavra e pela interpretação da música ao vivo. Ou seja, pelo silêncio e pelo som. São espectáculos de intensa expressividade visual, abrindo largos espaços de sugestão, sem deixar o espectador à deriva, conduzindo-o por uma pauta de imagens, gestos e música. Interpretada ao vivo por Fernando Mota, a música camufla, rodeia e interpenetra os espectáculos marcando o seu ritmo interior; o elenco de actores, que se mantém em parte, consolida um perfil do ciclo na sensibilidade como parece integrar cada região e na forma comum e comunitária como faz aparecer esses sentidos; a evolução do gesto e a progressiva gestão das imagens criadas circunscreve o exercício de representação, isto é, de transformação do que as regiões apresentam. Para Além do Tejo criava uma grande empatia que se devia, em parte, à região representada: um Alentejo rural, isolado, envelhecido, mas com
© Patrícia Poção
um vigoroso espírito de humor e subversão. Em Por Detrás dos Montes tudo é mais triste, mais denso, e mais telúrico. Há uma dor que atravessa o tempo do espectáculo, uma mágoa, um remorso: o espaço cénico é mais escuro e o silêncio mais pesado. De alguma forma, sente-se a distância que vai de um monte a outro, como de alguém a outro. Os velhos que matavam o tempo a jogar cartas nesse espectáculo transformam-se agora em beatas rugosas e secas. Por outro lado, se a nível plástico existe uma continuidade reconhecível, ao nível do registo de interpretação existe uma progressão. O teatro gestual, comunicativo e simples, dá lugar a uma diversidade de meio de expressão provocada pela região mas influenciada, ou desviada, pela passagem de um espectáculo a outro. Da comunicação dessa diversidade de estéticas pode nascer um novo momento no trabalho de corpo e gesto do Meridional que não abdique do fascínio manifesto pelo local. 53
DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS
Encontramos aqui recursos artísticos populares como as marionetas e as máscaras, mas também uma invulgar gestão da criação de imagens, que procede por simples preparação do acto (como as mulheres que são cobertas por lençóis, entre outros, ao início). Esta forma de criação das cenas é invulgar no contexto do trabalho do Teatro Meridional porque se aproxima mais das estratégias da performance e porque é aqui associado a um imaginário popular. Não se procura representar, não há acção ou situação mas corpos dispostos para uma imagem. É de referir que nesta abordagem pontual se joga um subtil decréscimo da intensidade do espectáculo à medida que se afasta do terreno silvestre e impulsivo dos montes para se aproximar da vida urbana. As cenas aproximam-se mais do quotidiano e essa aproximação ameaça trocar a estilização pela figuração, revelando o problema da representação como uma questão central ao Projecto Províncias.
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Por Detrás dos Montes, na direcção de Miguel Seabra para o Teatro Meridional, está em cena no Espaço da Mitra, em Lisboa, até 17 de Fevereiro.
VISITA AO CAMPO Tiago Bartolomeu Costa
Há espectáculos que não cabem no que se mostra em palco. Seja porque trabalham a partir de matérias maiores do que a cena, porque jogam com memórias, referências e lógicas que escapam ao espectador, ou porque simplesmente não traduzem para uma linguagem teatral as questões que o tema abordado levanta. O Rapaz dos Desenhos, do canadiano Michael Healey, é uma peça que fica entre o teatro e a vida. E nesse corredor ambíguo enreda-se em piscares de olho às influências teatrais e um certo naturalismo que, por não serem assumidos, deixam a peça aquém do desejável. Partindo de uma base documental, escrita em 1999 e premiada internacionalmente, recupera a
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© João Lourenço
memória e o imaginário do interior do Canadá onde, em 1972, um grupo de jovens actores criou uma peça a partir das experiências com autóctones. The Farmer Show, assim se chamava esse espectáculo, dava voz através das improvisações a uma pequena comunidade, desenhando nesse jogo de espelhos o confronto entre a cidade e o campo, a ficção e a realidade, a experiência de vida e a urgência de viver. Esta memória, à qual se tem acesso apenas através dos textos do programa, é trabalhada pelo autor num dispositivo de confronto dramatúrgico. Primeiro assistimos à chegada de Miguel (Pedro Granger) à quinta de Mário (Luís Alberto) e Ângelo (Rui Mendes), sendo explorada toda a ingenuidade do jovem rapaz na inabilidade para a lida agrícola. Esse desequilíbrio de forças e processo de re-educação servirá para que sejam desvendados segredos da vida dos dois amigos, que mais tarde servirão de inspiração para a peça na qual Miguel trabalha. Aponta-se para um existencialismo devedor de Beckett, com os ami-
© João Lourenço
gos a recordarem Estragon e Vladimir de À Espera de Godot, e o rapaz a cumprir apenas um papel de rotineira ligação entre as várias intenções. As personagens não são profundamente desenhadas, mas antes esquissos, projecções, ideias de personagens. Digamos que o modo como o texto se auto-encerra limita as potencialidades do universo com o qual trabalha. Parece ser descurada, apenas porque crente numa necessária eficácia dramatúrgica, toda uma reflexão sobre o teatro documental, sobre o falhanço de um sonho (por que não?!) americano de uma geração empurrada para a II Guerra Mundial, sobre os laços indecifráveis que unem as pessoas, e sobre um tempo de mudanças, em plena viragem de mentalidades. Acaba por se evidenciar uma certa
ligeireza no tom, na abordagem e na forma como se vai desfiando este rememorar agridoce. João Lourenço encena o texto sem impor uma marca ou justificar a razão da escolha. Organiza os actores num cenário realista – a casa onde tudo se passa, com a cozinha e o alpendre como eixo de acção –, e deixa que a peça siga até à revelação final (que aqui não se conta, mas envolve mentiras piedosas esquecidas pelo tempo). Também a interpretação falha numa outra forma de abordar aquelas figuras. Se Luís Alberto consegue dosear a ambiguidade da sua personagem, fazendo-nos lamentar cumplicemente as escolhas a que se obrigou, Rui Mendes carrega um “boneco” nem sempre convincente, alheada e emocionalmente dependente, que não sobrevive ao estereótipo. Pedro Granger, embora evidencie o esforço para colmatar a inexperiência, acusa uma falta de direcção que impedisse o carregar na voz, nos gestos e nas expressões. Pressente-se o nervosismo pela responsabilidade, na forma como mantém uma rigidez corporal ou na constante urgência em procurar um lugar na cena. Sendo um espectáculo previsível na sua estrutura dramatúrgica, surpreende que não sejam criados mecanismos de ilusão, fosse no repensar do lugar de cada personagem, e logo no espaço de cada actor, fosse na própria disposição cénica. Insiste na evidência, na total exposição e na placidez para contar uma história que, afinal, tem muito mais camadas do que aquilo que se supõe.
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O Rapaz dos Desenhos, na encenação de João Lourenço, está em cena no Teatro Aberto, em Lisboa, durante o mês de Fevereiro.
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DIAS DO JUÍZO / DVDs
O PONTO DE VISTA DA CEGUEIRA Francisco Frazão
“Partindo da adaptação teatral, pelo Teatro O Bando, da obra literária do Prémio Nobel José Saramago Ensaio sobre a Cegueira, Rui Simões realiza um longo documentário sobre todo o processo criativo, até à estreia, constituindo em si um ensaio sobre a arte de fazer teatro”. Este é o texto de apresentação que se pode ler na contracapa do dvd Ensaio sobre o Teatro. Nele se resume uma ambição: mais do que um making of, construir um discurso sobre o fazer teatral. É de uma sinédoque que se trata, onde a parte (este espectáculo) permite pensar o todo (o teatro). Sinal disso mesmo é a substituição no título, de onde desaparece “a cegueira”. Mas esta operação tem complicações inesperadas: na raiz grega de “teatro” está o verbo que significa “ver, contemplar”; onde o movimento parecia ser de generalização, uma palavra toma o lugar do seu contrário. Parece portanto haver
uma tensão entre o filme, por um lado, e o espectáculo e o romance, por outro. Dar a ver “a cegueira branca” que assola um país sem nome é o paradoxo de base da adaptação teatral, resolvido (para simplificar) com o uso de nevoeiro em cena (“Inferno molhado”, chama-lhe Ana Brandão). O espectáculo seria assim apenas entrevisto pelo espectador. A câmara de Rui Simões, no entanto, procura a máxima visibilidade, é omnipresente: está no palco, nos bastidores, nos camarins e no foyer; nos estágios em Viseu e em Palmela; nos ensaios de oralidade (os mais interessantes. Teresa Lima: “tou-te a explicar o raciocínio da cena, tá bem?”) e corporalidade; na gravação da música; com Saramago e os vários elementos da equipa; durante os muitos abraços e a única zanga (João Brites: “Paulinha, tu és uma actriz extraordinária, mas...”). Até nas modalidades da imagem há excesso: câmaras lentas, arrastamentos, texto sobreimpresso, filtros azuis e sépia... Se há momentos emblemáticos deste suplemento de visual – oferta do cinema às “limitações” do teatro? – são os planos dos enterros no manicómio: onde no teatro se veria apenas o corpo a desaparecer na “cloaca” à boca de cena, o documentário mostra o actor a descer, em slow motion, as escadas para o subpalco. O filme vai além da morte1. O substantivo que se mantém nos três títulos põe também dificuldades: se no livro e na peça o género literário “ensaio” 56
está em tensão irónica com a ficção de que afinal os dois objectos se fazem, já no filme esse jogo perde-se (um documentário é sempre “sobre”). Mas ganha-se em polissemia: é precisamente na articulação entre o tempo do espectáculo e o dos ensaios (questão de montagem) que Rui Simões pode elaborar um discurso sobre o teatro. Esta relação faz-se de dois modos. Num primeiro momento do filme, por repetição: o mesmo excerto é ensaiado uma e outra vez, depois vê-se o resultado em cena. Num segundo momento, os actores no ensaio contracenam com os do espectáculo, sem repetições. A montagem paralela é aqui sem dúvida uma nova manifestação da omnipresença cinematográfica, ao combinar num espaço unificado takes separadas por meses e quilómetros; mas é também uma forma de destabilizar a arrumação da primeira solução, onde a sujidade do meio (o ensaio) se resolvia na s uposta limpidez do fim que é o espectáculo. O filme ganharia aliás se arriscasse mais neste confronto sem hierarquia entre o produto acabado e as incertezas, risos e hesitações dos ensaios2. Mas não há tempo a perder e o filme prossegue imparável, conseguindo acompanhar habilmente o fio temporal da intriga e ao mesmo tempo integrar os vários níveis da construção do espectáculo, numa sucessão de pequenos problemas práticos a resolver: as esponjas para os sapatos
não escorregarem, as capas para os espectadores não se molharem, o timing dos efeitos sonoros, a nudez nem de mais nem de menos (preocupação recorrente nas conversas dos actores)... Até a única zanga parece fazer parte do enredo. O efeito é “heróico, épico”, como a tonalidade do final que o encenador acaba por escolher. Este lado implacável da máquina teatral (Brites: “cada espectáculo é uma batalha”) choca com os afectos e a extrema generosidade dos actores, mas parece inevitável na lógica da grande-produção (22 actores), que acumula sinais de poder: texto de Prémio Nobel, música grandiloquente gravada pela Orquestra Nacional do Porto, secretário de Estado na estreia, participação na produção de Teatro Nacional S. João, Culturgest e CCB... Nestes excessos da visibilidade há inevitáveis zonas cegas (fora de campo). Uma é o estágio de Viseu em Maio de 2003, pouco presente porque objecto de um anterior documentário de Rui Simões3. Essa falta é em parte colmatada por um dos extras do dvd, Recordações do Hospital Velho, mas já (e bem) sob o signo da memória (noutro extra, Brites chama a esse momento a construção de uma “memória sensorial”, um “património comum” para a equipa que no espectáculo estaria apenas latente, subliminar). Ao outro ponto cego responde precisamente a entrevista com o encenador: o espectador/voyeur nunca tem acesso aos momentos da concepção do espectáculo (por exemplo,
encontros entre o encenador, o cenógrafo, o compositor, os responsáveis pela oralidade e a corporalidade, que respondessem a perguntas simples como “De onde surgiu a rampa?” ou “Porque é que os actores nunca tiram os chapéus?”). Neste extra4, Brites não diz muito: fala de uma construção “não dirigista” e deste como o espectáculo “mais interactivo” (colectivo) d’O Bando. Mesmo sobre a adaptação se problematiza pouco (“fácil” porque o livro é “quase todo em diálogo”...) e se dá apenas sinal de uma abdicação: Brites queria inicialmente fazer a Jangada de Pedra e foi a equipa (Rui Simões incluído) que insistiu no Ensaio sobre a Cegueira. O encenador remete-se assim a uma zona de invisibilidade5. Mas é ele quem no filme acaba por dar a chave de interpretação do espectáculo (e do livro): é “sobre a incompreensão do mundo”, “não ver é não compreender”, o importante é “estarmos do mesmo lado da barricada” que o autor. Estas citações, que vêm do extra e são enxertadas no documentário, são apenas ouvidas pelos espectadores, finalmente cegos. O encenador, voz afinal ideológica e detentora do sentido, fala, como não podia deixar de ser, em off.
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1 Este transbordar relativamente ao espectáculo está aliás claramente assinalado nos limiares do filme: antes do genérico inicial, mostra-se o ambiente nos camarins antes da estreia (declinações: “merda, merdinha, merdunga”); no final, depois do genérico do espectáculo e dos aplausos, transcrevem-se as últimas palavras do romance, que ficaram de fora da adaptação. Como se o documentário, embora com metade da duração do espectáculo (que tinha três horas depois de vários cortes), ambicionasse também abarcar, simbolicamente, a integralidade das trezentas páginas do livro. 2 Confronto que tem um efeito curioso, voluntário ou não: se mal se notam as costuras da continuidade sonora, já os raccords de olhares e marcações falham inevitavelmente, tal como os actores/cegos erram em cena a direcção dos seus interlocutores. 3 Se podes olhar vê, se podes ver repara (2004), que é a epígrafe do romance de Saramago, aqui também a servir de antecâmara do que vem depois. 4 Há, para além do trailer, um terceiro extra e o menos interessante, que é a entrevista com Saramago. 5 São poucas aliás as indicações que o vemos dar aos actores, quase tudo é “delegado” nos outros colaboradores; o que vemos mais são “discursos”.
DIAS DO JUÍZO / DVDs
VIAGEM AO PRINCÍPIO DAS COISAS Tiago Bartolomeu Costa
Em 2003, Blush, a peça, estreava no Théâtre de la Ville, em Paris, e as reacções, como sempre em Wim Vandekeybus, foram extremadas. Houve quem encontrasse na natureza animal daqueles corpos um sentido para uma dança a querer relacionar-se com o mais instintivo do homem, e quem lesse uma construção presa a fórmulas e gestos que se repetiam até à náusea. Para a divisão contribuíam os habituais nus, as quedas, projecções do corpo, e a raiva numa dramaturgia linear – uma princesa transformada em sapo cuja morte é recusada por um guerreiro que a tenta salvar –, a servir de contraste a um movimento mais abstracto. Mas, na peça, existia ainda uma outra dimensão trazida pelas imagens de um vídeo feito na Córsega, na qual os corpos se fundiam com a paisagem
esmagadora dos misteriosos lagos e escarpas suicidas. Se não é nova a inclusão do vídeo no trabalho do coreógrafo belga, muitas vezes usado como mero mecanismo de explosão para o movimento e criação de outros cenários e ambientes onde a coreografia se possa desenvolver, as imagens traziam à peça a tensão e ambiguidade que a apresentação em palco nem sempre permitia. Dois anos depois Vandekeybus estreou Blush, agora em filme, onde as mesmas personagens prosseguem a sua dança nervosa e violenta. Continuamos no mesmo registo tenso, com os corpos a atirarem-se a para o chão, ou contra outros corpos num diálogo ritualizado, mortífero e sacrificial. Mas o que antes se tornava redundante ganha agora uma fluidez, não só pela montagem hipnótica e a realização à flor da pele, quase colada aos intérpretes, mas também pela música de David Eugene Edwards, que ganha espaço próprio numa dramaturgia de conflitos. Os sucessivos “retratos de família” dramaticamente captados à volta da mesa onde todos os excessos se permitem, no lynchiano Eldorado, o salão de baile onde dançam um negro tango, na casa onde se reúnem, nos lagos ou nos imensos campos, ou ainda no lúgubre e putrefacto submundo de onde a resgatam, transformam Blush num filme viciante, mais do que
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a adaptação de uma coreografia. O que era uma justaposição de planos e dimensões, sem distinção entre coreografia e filme, transformase agora numa obra mais sólida, na qual a câmara, mais do que seguir o movimento, nos obriga a focar o olhar na secura e na angústia espelhada nos rostos de cada um dos intérpretes. A fórmula de Vandekeybus quase desaparece na organização das sequências, na obsessiva música e nas cores de cada sequência (negro, vermelho, verde, cru). É um filme de excessos, como excessiva é a obsessão por um movimento animal – e são vários neste filme: sapos, cabras, golfinhos –, justificado apenas por se tratar de uma história de feitiços, poderes ocultos e realidades que se desconhecem. Esta exploração da inconsciência, entre o onírico e o dramático, sustenta-se num trepidante movimento e nas constantes lutas, características do trabalho de Vandekeybus, mas que têm em Blush uma força anímica que permite a deslocação entre universos, sem que se sinta a necessidade de tudo perceber ou tudo ver. Incluído num pack com todos os trabalhos do coreógrafo (€40), este filme tem um trailer visível em www.cccp.be/gallery/blush.
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SE UMA GAIVOTA VIESSE TRAZER-ME Mónica Guerreiro
Os seus ombros, a nuca, as costas, os braços, as mãos, os dedos que seguram sempre um cigarro. O fumo que atravessa a imagem. Quase não lhe vemos o rosto, já que a câmara escolhe olhar os bailarinos pelo mesmo ângulo que a coreógrafa e, portanto, posiciona-se atrás dela. Espreguiça-se, sorri, escuta segredos, concede algumas palavras, mas é geralmente como uma criatura calada, observadora rigorosa e tolerante, portadora de uma aura de poder e reverência, que Fernando Lopes filma Pina Bausch, nas três semanas que a sua equipa passou em Lisboa a buscar materiais para trabalhar (Setembro de 1997), durante o tempo de montagem da peça em Wuppertal, e aquando da estreia de Masurca Fogo (Abril de 1998) naquela cidade alemã. Hierática, embora afável, o seu controlo apenas se pressente, no curto documentário (35 minutos) agora comercializado pela Midas (a que se junta um segundo, Tomai Lá do
O’Neill), já que a sua voz é praticamente inexistente. No estúdio da Companhia Nacional de Bailado, na Vítor Cordon, Lopes “sobrevoa” uns quantos livros e discos (guias turísticos, livros sobre a etnia cigana, álbuns de Amália, inevitavelmente, que também aparece a cumprimentar a companhia) e dá a ver a forma como os bailarinos apresentam as suas impressões (“de olhos e ouvidos bem abertos, atentíssimos aos sinais, às cintilações, aos perfumes... com as evocações das suas próprias vidas, agora entretecidas pela aragem de Lisboa, acontecerá a tal hora muito rara em que isto e tudo o resto... ganhará corpo próprio”). Tal tecido passa, como em todos os processos de criação desenvolvidos por Bausch na série de peças “nacionais”, pela apropriação do pitoresco autóctone, como a gestualidade da lida tauromáquica, a omnipresença do fado, o colorido dos alguidares que vendem o peixe, ou impressões tão mais prosaicas (que talvez por isso nos soem mais autênticas) como a invasão de pó no ar da cidade, característica da “sofreguidão construtora” pré-Expo. O realizador adopta um modo de rememoração da experiência da residência, que acompanhou atentamente, através da justaposição dessas imagens, em que Bausch observa as propostas dos intérpretes, com filmagens da ante-estreia, em que essas mesmas cenas se encontram maturadas e articuladas numa dramaturgia consequente. Contudo, esta ligação, se não é arbitrária porque é vincada, de forma subtil, pela montagem e raccord e pela parcimónia no 59
movimento da câmara, surge quase sempre como uma comparação desnecessária, que não “comenta” a passagem do processo criativo ao espectáculo terminado, nem informa a passagem do tempo como distinção entre primeiros gestos exploratórios e cenas completas que são constituintes da peça. A montagem estrutura estas imagens em secções (“propostas e movimentos”, “pausas e reflexões”, “temas e variações”) e é precisamente na pouca informação introduzida, geralmente a título de legendagem, datando ou situando as sequências, que surge a mácula deste dvd: o sofrível tratamento gráfico, indigno dos profissionais envolvidos. Lissabon Wuppertal Lisboa não pode pois ser confundido com um registo, mesmo que pessoal, da produção desta Ein neues Stück von Pina Bausch. Trata-se de um olhar autoral, completamente despreocupado com aquilo que interessaria aos voyeurs – Pina dirige? Pina exemplifica? como é que Pina selecciona? quando é que Pina dá um processo por acabado? – para se concentrar numa obra que documenta uma relação de afinidades estéticas. “Se uma gaivota viessetrazer-me o céu de Lisboa”, canta Amália a dada altura (os Kraftwerk, via Balanescu Quartet, também andam por aqui). Nem Lisboa nem Wuppertal respiram através deste filme porque aquilo que Lopes quis filmar foi a viagem, foi a distância entre o seu olhar e aquilo que vêem os olhos de Pina.(€12,5)
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DIAS DO JUÍZO / LIVROS
UM MAPA PARA A DANÇA CONTEMPORÂNEA Tiago Bartolomeu Costa
O que há de comum entre Ushio Amagatsu, Lucinda Childs, Alain Platel, Pina Bausch, Rachid Ouramdane, Meg Stuart, Josef Nadj, Sidi Larbi Cherkaoui, La Ribot ou Robyn Orlin, para além de serem coreógrafos cujo trabalho, salvaguardadas as distâncias e gostos pessoais, questiona permanentemente a dança e atravessa fronteiras artísticas, estéticas e nacionais? Para a francesa Rosita Boisseau, crítica do jornal Le Monde e da revista Télérama, são alguns dos noventa protagonistas da dança reunidos em Panorama de la danse contemporaine, um trabalho em curso, “sem conclusão”, não “um dicionário exaustivo mas a recolha de percursos escolhidos”. Por isso o livro abre com uma apresentação genérica onde fala da influência de Maurice Béjart, Anna Halprin e Merce Cunningham na definição daquilo que se entende por dança contemporânea, traçando um percurso genérico sobre o modo como evoluiu a concepção de dança do final dos anos 70 até hoje. Os nomes são
apresentados por ordem alfabética e acompanhados por extensa iconografia, muitas vezes do mesmo espectáculo, biografia seleccionada, breve perfil e questionário proustiano. Na selecção nota-se uma vontade de destacar a França e a sua realidade, “berço da dança contemporânea e o país onde os artistas são mais vigorosamente apoiados pelas instituições”, ficando claro tratar-se de uma obra dirigida ao público francês que busca “ainda e sempre os códigos de acesso a uma arte mais próxima do irracional que da lógica: não para enquadrar uma obra, mas para saborear os interstícios, lá onde a liberdade de cada um desliza e se descobre”. Razão pela qual não falta nenhum dos dezanove directores dos Centros Coreográficos Nacionais, tal como nomes que se têm destacado na/da cena francesa: Boris Charmatz, Allain Buffard ou Geisha Fontaine. Há ainda coreógrafos de Espanha, Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Japão e Itália, bem como do Burkina-Faso e Israel, com os quais a realidade cultural francesa mantém relações. Mas entre a escolha pessoal e “o impacto flagrante da marca coreográfica” de cada um dos escolhidos, se Boisseau opta por recusar movimentos ou escolas e evita convocar nomes como Matthew Bourne ou Marie Claude Pietragalla, criadores vedetas reconhecidos pelo grande público, também não arrisca na apresentação de outros que correm os circuitos de crítica e programação, alguma dela institucional, como Claudia Triozzi, Xavier Le Roy, Jérôme Bel, Vera Mantero ou Lia Rodrigues. Opções certamente legítimas numa viagem acrítica e 60
didáctica que Boisseau defende com “razões práticas e económicas” e, como sempre nestes casos, onde o que entra diz mais sobre o que fica de fora. No que respeita ao seu conteúdo, são particularmente fascinantes algumas fotografias, as anotações de Bill T. Jones ou Anne Teresa de Keersmaeker, o croqui do espectáculo Régi, de Charmatz ou o esquema coreográfico de Susan Buirge. Mas a abordagem à la Proust impede conhecer, pela sua forma limitada, o fascinante processo de criação de alguns destes nomes. Boisseau quer saber “o espectáculo marcante”, “o lugar do íntimo”, “o sentido a dar ao trabalho” de cada um, um som ou uma cor ou parte do corpo que sirva de inspiração e, entre outras mais ou menos genéricas, o calcanhar de Aquiles de cada coreógrafo. Entre os que sintetizam as respostas e os que não responderam (sobretudo nomes fora de França), existem aqueles que se expõem, como Gilles Jobin que busca uma cena que o leve à prisão e os que consideram, como Daniel Larrieu, que o último tabu é “o fim da arte”. Sendo um trabalho meritório e louvável, não deixam de ecoar como metáfora desta incompletude as palavras de Caterine Sagna: “se encontrasse o último tabu, teria tema para a obra-prima que todos esperam, autores e espectadores” (Ed. Textuel, €59).
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essas artes. Mas, precisamente por isso, torna-se fundamental olhar este guia como proposta de rede funcional e uma obra em permanente actualização. Para tanto, o livro vem acompanhado de um CDrom, ao qual se junta uma base de dados e um site (www.teatropolis.net/gave) onde se podem encontrar os contactos, as várias fichas de trabalho e outros textos que ajudam à realização de um projecto (€20).
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CONTRIBUTO ÚTIL PARA A GESTÃO DAS ARTES Tiago Bartolomeu Costa
A terceira edição do GAVE – Guia das Artes Visuais e do Espectáculo, coordenado pelo director da Cassefaz Miguel Abreu à frente de uma equipa de gestores, produtores e outros profissionais, é um utensílio indispensável para a organização, coordenação e desenvolvimento de projectos artísticos, num meio onde reina algum improviso e desconhecimento. Porque “criar arte custa sempre dinheiro”), o guia, co-produzido pelo Instituto das Artes, divide-se na apresentação dos processos de investigação, criação e produção, exemplificando a montagem de um orçamento e de um projecto através de modelos de formulários nas mais diversas áreas, os locais aos quais recorrer para a obtenção de apoios, a legislação pela qual se regem esses mesmos apoios, e os direitos e deveres de cada uma das partes envolvidas no planeamento de um projecto artístico. Com uma linguagem clara e assumidamente didáctica, o GAVE contribui para uma mais clara gestão das artes, mesmo se algumas das pistas que dê idealizem um sistema de produção incompatível com alguma precariedade com que se faz, sustenta e promovem
REFLECTIR A DANÇA EM EXPERIMENTAÇÃO Cláudia Oliveira A criação artística, sendo cultura, inquestionavelmente, espelha e configura a sociedade que a produz. Ensaio Aberto: Abordagens à Produção Artística, uma edição do Núcleo de Experimentação Coreográfica (NEC) com coordenação de Paulo Vasques, é uma obra de grande interesse, na medida em que procura reflectir o cenário da dança contemporânea, na cidade do Porto, levantando algumas interrogações que nos remetem para a capacidade de produção artística e sua reflexão na sociedade portuguesa. Porque “a escassa reflexão desenvolvida ameaça constantemente a própria existência da criação contemporânea, que, dada a sua frágil legitimação e sustentabilidade, sobrevive obscurecida e em 61
permanente desequilíbrio”. Muito embora o texto date de 2005, adquire pertinência redobrada numa altura em que a paisagem cultural do Porto se caracteriza pela fragilidade crescente do sector artístico que, apesar do Porto 2001, se tem vindo a acentuar. Neste panorama, o NEC tem-se revelado nos últimos 12 anos um dos projectos resistentes na cidade, desenvolvendo acções diversas nas áreas da produção e divulgação, assim como na área da formação. O trabalho do NEC ganha particular relevo por se apoiar numa prática construtivista e interaccionista, enquadrada pela emergência da criação coreográfica na cidade, a que se vai assistindo a partir da década de 90, sofrendo influências directas do movimento ao qual se convencionou denominar de Nova Dança Portuguesa e que teve como centro principal a cidade de Lisboa. O tom é, desde logo, expresso numa escrita que se detém nos movimentos do pensamento, na declaração pessoal da experiência, num propósito de manifesto: “abrir um espaço de discussão, encorajar os autores a analisar criticamente os seus trabalhos e os dos outros, procurando desafiar e compreender processos e metodologias”. O livro ganha particular interesse por se apoiar na prática e trajectória do projecto NEC, que lhe confere solidez bastante para aferir os diferentes testemunhos. São testemunhos informados que, no entanto, ganhariam maior relevância reflexiva se organizados numa sistematização estrutural menos fragmentária e descontínua. Compreende-se, no entanto, a estratégia seguida: é um livro atravessado por empatias e afectos que legitimam esta harmonia fragmentária. “Tem sido um projecto de convicção e de grande dedicação. Tem sido um projecto de vida. (...) Ao fim de 12 anos continuamos sem ter ainda um espaço físico, mas conseguimos virtualmente preencher muitos vazios”.. (Edição Objecto Cardíaco, €14,40).
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DIAS DO JUÍZO / LIVROS
EXERCÍCIOS DO EU EM PASODOBLE Nelson Guerreiro
Título: Autobiography. Autores: Barbara Steiner e Jun Yang. Ela: Austríaca. Curadora, escritora e professora. Vive em Leipzig. Actualmente, é directora da galeria für Zeitgenössische Kunst em Leipzig. Ele: Chinês. Cresceu em Viena e estudou em Amesterdão e em Pequim. A sua produção artística versa sobre os modos como a identidade se constrói na era da globalização, focando-se, em particular, na sua personalidade transnacional. Apresentou solos na Áustria, Alemanha, Suiça e Suécia e participou em exposições colectivas na Europa e no Japão. Vive em Leipzig. Posto isto, e tendo em conta o tema-gatilho da obra, colocam-se perguntas para levitar especulações sobre as razões da parceria (tantas vezes esclarecedoras para a apropriação de trabalhos a partir de modelos de interpretação que assentam nos elementos autobiográficos): serão vizinhos? Será que vivem na
mesma rua? Serão colegas? Amigos? Marido e mulher? Companheiros? Detive-me, por instantes, na proposta e concluí que abdico de responder já que, apesar de acreditar que a posse deste tipo de elementos pode guarnecer a interpretação, partilharei o resultado da leitura a partir da esgrima entre o conteúdo da obra e uma apropriação autobiográfica que interliga as experiências da leitura às do meu corpo – com tudo incluído, ao longo da vida –, deixando ao arbítrio do leitor a obtenção das respostas, em caso de interesse ou necessidade. Editora: Thames & Hudson. Cidade: Londres. 1ª Edição. Ano: 2004. Colecção: Art works – exploring the important questions and issues in art and life today. An exciting new series celebrating the vitality and diversity of art in the twenty-first century. Para além desta obra, estão disponíveis os títulos: Memory, Money, Perform, Place, Touch, Utopia. Abra-se a obra que nos leva por partes. Quais? Os capítulos são nomeados pelos autores, agenciando a metáfora da casa1, rooms: Entrance. Writing identity: on autobiography in art. Room 1. Alter Ego. Room 2. Disappearance. Room 3. Facts. Room 4. Authenticity. Room 5. Hybrids. Room 6. Race. Room 7. Political Systems. Room 8. Media. Room 9. Self-Reflection. Contém os seguintes anexos: uma conversa em torno da autobiografia, lista de artistas, referências bibliográficas para aprofundamento futuro, lista de ilustrações e índex de artistas. 62
A obra começa por localizar os lugares e definir as funções da autobiografia, situando-os no tempo, para depois demonstrar a sua potencialidade em se constituir chave mestra para entrar no campo artístico e no trabalho de inúmeros criadores. Estes são convocados em larga escala e dispostos nas divisões acima descritas, sendo uma das grandes virtudes da obra, assinalável pela abrangência temática, estética, geográfica e (pluri/trans)disciplinar, contribuindo para uma assimilação efectiva dos conteúdos através da apresentação, contextualização dos artistas e respectivas obras, assim como da reprodução de discursos próprios e da inserção de imagens documentais dos trabalhos, resultando numa espécie de acompanhamento assistido durante a visita, por isso guiada, à casa. O agenciamento do trabalho dos artistas é efectuado, quer ao nível da sua formalização – em que observamos: 1. uma pluralidade de atitudes: revelação de aspectos privados da sua vida, ocultação através da criação de alter egos inventados, produção de imagens self-fashioning e desdobramento de si através de exercícios de personna; 2. uma variedade de práticas: exposição de factos das rotinas diárias como um registo documental da sua existência, auto-reflexão a partir de um olhar no espelho que captura traços distintivos, a medição da influência dos media e dos sistemas políticos e sociais, assim como do impacto do seu background étnico ou racial na
construção da identidade – quer ao nível dos modos de recepção e da forma como se opera a negociação com a obra segundo os modelos de interactividade e de interpassividade. O conjunto de atitudes e modus operandi artísticos e formas de recepção assinalados ressaltam uma série de questões resultantes das práticas do eu2. A saber: 1. As noções de autobiografia: “autobiography is not the story of a life; it is the re-creation or the discovery of one. (…) Simply put, autobiography is a reckoning” (Carolyn G. Heilbrun) vs autoficção: “It has nothing at all to do with me. I work with myself, that’s my material somehow, but the finished photograph has something more to offer than reflections of my personality” (Cindy Sherman). 2. Auto-conhecimento: “If I don’t know such basic things about myself, who does?” (Phylis Rose) vs representatividade do mundo: “Whenever I watch my own videos I don’t see me personally – it feels like watching somebody else’s story” (Jun Yang) vs inclusão do colectivo a partir de si: “the really interesting autobiographies are those that speak not of the author but of every reader” (Christian Boltanski). 3. Os certificados de autenticidade: “Who wants the truth? That’s what show-business is for – to prove that it’s not what you are that counts, it’s what you think you are” (Andy Warhol) vs as suspeitas de falsidade: “pacte autobiographique” (enunciado da
autoria de Philippe LeJeune citado pelos autores no texto de entrada Writing identity: On autobiography in Art). 4. A delimitação das fronteiras entre realidade e ficção: “Autobiography is the product of various factors – real experiences, together with things heard, seen, read, narrated and invented. Fact and fiction are inextricably woven together” (Barbara Steiner e Jun Yang). 5. o espelhismo dos materiais autobiográficos: quem somos nós? – “Autobiographers observe themselves, and open themselves up to observation by their readers. The process equates with looking in a mirror” (Barbara Steiner e Jun Yang). Se depois de ler não concordar com algo ou sentir que houve uma omissão, não é grave porque este texto, tal como uma autobiografia, é electivo com base na decisão de mostrar o que quis, pois o dever protocolar não é para aqui chamado. Para rematar, apenas me resta afirmar que também poderá estar relacionado com o facto de não ter lido o livro todo. Verdadeiro ou falso? The game is not over.. (€26,69).
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1 A metáfora parece-me muito apropriada no modo como remete para uma dimensão privada, fixando a casa como uma imagem sinónima da autobiografia, espaço identitário de quem a habita, último reduto individual, logo lugar autobiográfico por excelência. 2 Uma das várias “formas de subjectivação” que Foucault, no segundo volume subintitulado O uso dos prazeres, da sua História da Sexualidade, refere na genealogia que desenha daquelas, onde também figuram as formas: “técnicas do eu” “exercícios do eu”, “estética da existência”, “artes da existência” e ainda “arte de viver”, definidas como acções intencionais e voluntárias pelas quais os seres humanos, para além de estabelecerem regras, procuram transformar-se, intervindo na sua singularidade para tornar a sua vida numa obra que transporta alguns valores estéticos e fixa um certo padrão estilístico.
PERSPECTIVA
AINDA?
texto
Regina Guimarães
À queima-roupa me pergunto o que me perguntaram. Ainda...? As artes da cena parecem, na verdade, suscitar grandes reservas aos nossos poderes estabelecidos, mormente autárquicos. Dizem as más-línguas que se trata de uma desconfiança visceral face a tudo quanto não se caracterize pela fixidez tranquilizadora do património, mudo e quedo a não ser que lhe puxem muito pela língua e pela cauda como é consabido. O que nem sempre, quase nunca... Dizem outras línguas, ao que consta menos viperinas, que se trata de uma fractura na política do gosto a qual, tendo actualmente assimilado posturas mais próximas de uma sensibilidade anglo-saxónica (neste como noutros campos), levaria a uma clara opção em favor do patrimonializado (/ável), do classificável, do clássico, do cânone, em detrimento da instável música das esferas cénicas. Queiram os deuses que seja verdade isto de alguém reconhecer algo em algum lado. Coisa de que, lamentavelmente pessimista, duvido. Uma vez esclarecido o meu cepticismo no que diz respeito à possibilidade de enquadrar discurso pequeno e acrescentando-lhe, honestidade oblige, a consciência da inutilidade de falar para as paredes, se forem não quartas ou quartos crescentes, escrevamos pois para o boneco, dado que. Passando em revista as companhias que 64
ainda tenho como sobreviventes após a providência cautelar panmística a que se acrescentou o anual desajuste de apoios financeiros do IA – e excluindo da molhada o Seiva Trupe e a trupe de actores habitualmente contratados pelo TNSJ/TECA –, haverá pouco mais de uma dúzia de núcleos activos no tripeiro fazer teatral. E, de cabeça, enumero: Teatro da Vilarinha, Teatro de Marionetas do Porto, Teatro de Ferro, Assédio, Boas Raparigas, Ensemble, Teatro Bruto, Visões Úteis, Teatro Plástico, Panmixia, Art’Imagem, Teatro do Bolhão/ACE, Palmilha Dentada... Alguns nomes de perdidos em combate nos ocorrem desde logo: Teatro Só, Metamortemfase, Ácaro... À hora a que escrevo, perante as temperaturas negativas de que têm vindo a ser, directa ou indirectamente, vítimas, alguns destes grupos ter-se-ão porventura esboroado e estarão tão-só à espera de mergulhar noutro caldo verde, porque o caldo de cultura vou ali e não volto. Basta imaginar a situação precária que o corte de um subsídio atribuído por um trabalho – no caso, um festival com importante componente de espectáculos ao ar livre – já realizado deixará uma companhia com uns bons anitos de vida como é a Art’Imagem, para perceber a que ponto a política terrorista de desamparo e desapoio praticada pelo actual executivo camarário pode
ter, tem tido e continuará a ter uma forte incidência no depauperamento na paisagem teatral da cidade (seja lá o que isso for ao certo). Mas convém lembrar aos mais desatentos que a praxis do executivo Rio se desenvolve em exacto paralelismo dissonante com um discurso cínico, por parte do MC e do IA sob sua tutela, que pretende conferir acrescidas competências e responsabilidades ao poder local em matéria de incentivo e financiamento da actividade cénica. Ou seja: na prática, o presidente (eleito) da câmara do Porto descarta e desbarata o único instrumento de apoio e co-produção de que dispõe neste tempo de “contenção”, sendo que o Teatro do Campo Alegre, de há muito confiado a tias de ambos os sexos, apenas serve a companhia residente. Rio para não chorar, como por aí se disse a dada altura. Por fim, não resisto a deslocar a óbvia amargura destas linhas para um outro patamar de reflexão: a precarização (palavrão) não é apanágio (palavrão) deste sector de actividade. Tem sido precisa uma elevada dose de despolitização (palavrão) dos agentes (palavrão) culturais (palavrão) para chegarmos a um estádio (palavrão) em que um entendimento transversal (palavrão) do mundo do fazer – vulgo mundo do trabalho – deixou de ser possível. Em vernáculo: se não queres saber da cama em que te deitas e da cama que fazem, não te queixes da dureza do colchão, nem da sujidade dos lençóis. Atracada a este cais-tem-te-não-cais, dá-me ganas de abrir um parêntese humorístico. Há poucochinho tempo, o recém-eleito responsável pela governança do Rivoli Teatro Municipal (encabeçando uma candidatura que, pelos vistos, assenta em pés de barro) santo efe la efe, declarou, entre outras baboseiras, a um jornal diário, que tencionava abrir uma escola de teatro no pólo de actividade cultural a cujos destinos se propõe presidir. Ignora ele que o Porto é o lugar no país com mais escolas de teatro por habitante
PERSPECTIVA
e no absoluto? Decerto que sim, como demonstrou desconhecer outras “realidades” portuenses, embora me ocorra também que há muito quem chame “escola de teatro” a workshops, caros e curtos, destinados a fazer castings para papéis sub-pagos mas prenhes de promessas de estrelato. Assim vai a formação (palavrão), mas a presente conjuntura (palavrão) não é específica do Porto. A propósito desses actores recém-chegados ao “mercado de trabalho”, será oportuno recordar que não terão, salvo pernas esculturais ou palminho de cara, grandes hipóteses de dar o corpo ao manifesto. A situação de desemprego virtual aliada ao desejo de conceber e realizar projectos próprios tem levado ao surgimento de pequenos núcleos de criação e experimentação teatral cujo percurso é ainda demasiado incipiente para que seja pertinente avaliar quer a durabilidade quer a qualidade alternativa dos ditos. Se todavia nos basearmos nos dados que o passado nos fornece, uma não alteração substancial das políticas de apoio aos projectos nascentes, ao seu crescimento e à circulação das obras e a prossecução de um conjunto de atitudes indigentes na área apelidada de “formação” poderá matar, no ovo, as veleidades destes novos criadores-intérpretes. Não posso deixar de citar a intervenção mais marcante que tive o prazer de ouvir durante um encontro com Isabel Pires de Lima que “o grupo de ocupantes do pequeno auditório do Rivoli” organizou no Porto. Disse, a dada altura, o cineasta Manoel de Oliveira (cujo interesse pelo teatro e pelo diálogo entre as artes é bastante anterior à moda da transversalidade) que ali se encontrava porque se preocupava com o devir de uma casa feita para o bem de todos. E, passo a citar de cabeça, explicou também: “Segundo a minha amiga e actriz Irene Papas, os governantes gregos pagavam aos dramaturgos para escreverem 66
teatro, aos actores para o representarem e aos espectadores para irem assistir às representações. A escola é importante porque lá se aprendem coisas que não se aprendem noutros sítios. Mas o teatro é ainda mais importante porque lá se aprende a condição humana. E reflectir sobre a condição humana é importante numa sociedade em que se pretende que os cidadãos votem”. A tão sagazes considerações, apetece-me acrescentar apenas que, para o bem e para o mal, o contrato – incompleta e equivocamente verbalizado, é certo, mas contudo celebrado – entre governantes e governados foi de há muito rompido nas nossas democracias mais formais do que representativas. Em enorme parte unilateralmente. Pelos primeiros. Se nunca terá sido pertinente a crença num estado veramente interessado nas necessidades dos cidadãos e ainda menos verosímil a possibilidade de um aparelho estatal apoiar de bom grado um trabalho de criação que pode e deve questionar as raízes do funcionamento social, estas duas convicções são hoje, menos do que nunca, úteis e ou válidas. Para acontecer teatro, basta haver quem faça de conta, diga que o faz e o faça, e quem esteja por conta de quem faz de conta e o esteja inteiramente. Sem querer tecer discursos miserabilistas, parece-me que será necessário voltar a partir disto, se o desejo fundador de teatro contiver uma exigência de desvio em relação ao círculo do poder que, além de corrupto, é sobretudo corruptor. Assim sendo, à pergunta angélica “ainda é possível fazer teatro no Porto?” (ou seria antes – “que teatro é ainda possível fazer no Porto?” – a angélica pergunta?), eu responderia: MAIS DO QUE NUNCA (O OUTRO).
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Porto 2007, em dia de Reis
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O MEU AUTOR ESTÁ MORTO.
E O TEU? O CINISMO DE THOMAS OSTERMEIER COMO METÁFORA PARA O MEU DESENCANTO COM UM TEATRO NACIONAL(ISTA)
texto Tiago Bartolomeu fotografia Arno Declair
Costa
Cara de Fogo © DR
PERSPECTIVA
Deveríamos questionar-nos sobre as razões que levam países com tradições literárias fortes a terem posições tão opostas no que respeita ao texto, à relação com o autor e à influência do teatro e da dramaturgia na sociedade. Comparar os contextos artísticos da Alemanha e Portugal pode ser tarefa inglória, já que décadas de políticas culturais afastam-nos de um resultado justo. Não deixa, no entanto, de ser relevante ter em conta esse passado para pensar o modo como a ideia de teatro nacional enquanto espaço e conceito se inscreve num fazer contemporâneo. Em traços gerais, e esta é uma posição marcadamente pessoal, a reverência pelo autor aniquilou qualquer possibilidade de um projecto dramatúrgico questionador, para mais se suportado pelo Estado. Basta ver o terror que se instalou quando José Wallenstein encenou Frei Luís de Sousa para os Teatros Nacionais (Porto, 2001; Lisboa, 2002), para perceber que estamos longe de um modelo saudável como aquele praticado pela Schaubühne, em Berlim (www.schaubuehne.de). A Madalena alcoólica e fumadora inveterada que Wallenstein criou para a sua leitura do clássico português facilmente se enquadraria em qualquer das produções de Thomas Ostermeier (Munique, 1972), o encenador alemão que desde 2000 dirige aquele que, à falta de melhor exemplo, é o Teatro Nacional alemão1. E isto tem tanto de modelo facilitista (porque há uma fórmula em Ostermeier) quanto de um assumir que não há retórica maior que o respeito pelo autor, esse “respeitinho que é bonito” que grassa ainda hoje muita da nossa cultura nacional. Berlim, portanto. Cidade permanentemente reinventada, onde o público faz filas e se agride por causa de um bilhete para o teatro. Cidade onde ainda se pateia. Cidade onde criadores e críticos se enfrentam forçando permanentemente o jogo das relações de poder. Cidade onde, num mês, podemos ver Shakespeare, Henrik Ibsen, Marius von Mayenburg, David Harrower, Arthur Miller e Eugene O’Neill no mesmo espaço, 70
essa Schaubühne de edifício circular e mutável. Podemos? De facto os nomes dos autores estão lá, mas e os textos? Os manuscritos que opõem Jürgen Tessman, o marido, e Ejlert Lövborg, o seu rival, personagens de Hedda Gabler2 (Henrik Ibsen, 1890), são e-books e a frígida, manipulativa e cerebral (houve até quem ousasse afirmar que era lésbica3) Hedda morre perante a indiferença do marido e dos amigos. A família disfuncional criada por Mayenburg em Cara de Fogo4 (1997) é extremada por uma encenação que carrega na perversidade das relações entre os dois irmãos incestuosos e os pais sexualmente desencontrados. E Shakespeare cruza-se com Freud numa versão, no mínimo, surreal de Sonho de uma noite de verão5 (1590), onde a floresta é um cabaré decadente e os duendes são pornógrafos desbocados e poliglotas (cada intérprete fala na sua língua materna: inglês, francês, espanhol, alemão, grego e mandarim). Se é certo que ao título shakesperiano se acrescenta o provocatório artigo indefinido “um” e se completa o título com a desculpa “interpretação livre”, é esta ideia de um teatro para quem o vê, hoje, que transforma as encenações de Ostermeier em libelos artísticos. Que importam as intenções do autor se não é ele que está a encenar? Quem acredita realmente na fidelidade ao texto? Quase apetece citar Mayenburg nas notas para o programa de Sonho...: “e na cama são todos iguais, trabalho e dinheiro não interessam”. Thomas Ostermeier, enfant terrible da encenação europeia e figura de topo de uma nova vaga de criadores germânicos – muito semelhante à britânica in-yer-face theatre –, é o homem à frente de uma ideia de teatro nacional enquanto lugar para a iconoclastia, a irreverência e o início de todas as disfunções entre encenador e autor. Os espectadores fazem pela vida organizando-se referencialmente. Mas sobretudo procurando perceber que sociedade está ali a ser representada. A sua certamente, porque o teatro faz-se do presente e não de revisitações históricas.
Ein Sommernachtstraum © DR
PERSPECTIVA
Acredita Ostermeier, acredito eu e qualquer pessoa que saiba que o teatro “não é um posto”. Ein Sommernachtstraum, o título desta leitura do texto de Shakespeare, é talvez o melhor exemplo para compreender qual a ideia teatral por detrás do discurso cénico de Ostermeier. A peça, co-encenada pela coreógrafa argentina radicada na Alemanha, Constanza Macras, abre com a transformação da festa das fadas e elfos num show de strip-tease masculino, amplamente dinamizado pela música pop e a histeria do elenco. O público, que se vai sentando acompanhado de ponche carregado de álcool, é convidado a pagar para que o actor se dispa. Não há ainda personagens (ou então são todos personagens). O que há é uma celebração do teatro enquanto instrumento de prazer, de liberdade, de ruptura com o cinzentismo dos dias. Freud, figura dominante nesta versão assinada por Mayenburg, justifica a desconcertante orgia, em citação no programa: “Não pode haver dúvidas quanto ao facto de as ligações entre os nossos sonhos mais típicos e os contos de fadas, bem como outros tipos de escrita criativa, não serem nem raras nem acidentais”. Há macacos e coelhos, elefantes e velhas, há narradores que saem de uma banda glam-metal-punk mas que recitam estrofes como se estivessem a cantar Lieder na ópera... E há sexo, muito sexo... Homo, hetero e zoófilo... Porque os corpos querem-se livres e os jogos do rei Oberon só poderiam dar em muitas camas trocadas. Pelo meio das árvores-que-são-portas e escada acima, escada abaixo, dança-se e grita-se e repete-se um texto amputado em quase metade, mas onde o essencial existe para dizer que, e novamente Freud, “o Paraíso não é mais do que uma fantasia de grupo a partir da infância do indivíduo”. Que esse indivíduo seja o espectador imerso naquele caos visual ou o encenador que manipula um texto é irrelevante. Tratamos aqui de uma experiência cénica que testa a validade dos textos dramáticos. E Shakespeare, ele que tentava impor a sua poesia 71
acima dos urros e tomates podres de um público meio inculto, haveria de gostar de ver esta deslocação que aponta o dedo à burguesia instalada numa ideia de teatro de entretenimento, de fachada e serviço público. Claro que podemos questionar-nos se o teatro – e para mais um teatro significativamente suportado pelo Estado – deve somente apresentar uma estética e uma visão radical e cínica do corpo dramatúrgico universal. Porque, se é verdade que a Schaubühne conta com outros encenadores, como Luk Perceval ou Falk Richter, a estética dominante é a mesma. Não há nem uma resposta directa nem apolítica. É uma opção que, a meu ver, resgata o teatro de um servilismo anacrónico com a sua função principal: ser espelho de um sistema social. E é um modelo que se pode recusar num contexto cultural que explode de outras opções. Que exista uma vontade política em questionar a existência de teatros suportados pelo Estado e que, por sua vez, esses teatros sejam desenhados à imagem de uma ideia (ia escrever ideal) teatral é que me parece relevante. (Saber-se que Ostermeier se segue na direcção da Schaubühne depois de nomes como Peter Stein diz muito sobre a dimensão política deste gesto.) E de necessária discussão em países como o nosso, provinciano nas suas escolhas e amador nas suas concretizações. A recente novela em torno da transição da direcção e a programação apresentada pela nova gestão do Teatro Nacional D. Maria II é disso exemplo. O teatro de Ostermeier – que nada tem a ver com a demagogia de Pippo del Bono, o barroco vazio de Romeo Castelluci, o academismo de Emanuel Demarcy-Mota ou umbiguismo de Rodrigo Garcia –, não cede. Nem ao público, nem ao gosto, nem ao texto e muito menos ao autor. É aliás fruto de uma tradição germânica que considera o encenador dono do texto, a partir do momento em que o escolhe fazer. Se assim não fosse, como poderíamos pensar em Hedda Gabler6 e Cara de Fogo enquanto díptico sobre os laços 72
Hedda Gabler © DR
PERSPECTIVA
familiares, tanto mais estimulante porque dá conta de cíclicos estados de alma fin-de-siécle? Observamos que há em Ostermeier uma unidade que quer desenhar o mundo como um mapa onde as personagens (as pessoas) vagueiam, algo perdidas entre uma obsessão e um alheamento. É isso que une os protagonistas das duas peças – a Hedda inadaptada que manipula os desejos dos outros para enfrentar o seu enfado, o Kurt que incendeia tudo à sua volta numa desesperada marcação de território que lhe explodirá, literalmente, na cara. Noções que são metaforizadas por uma disposição cénica e estética sufocantes. O cenário de Hedda Gabler roda permanentemente e há várias combinações de portas que impedem a previsão das entradas; o espaço de Cara de Fogo é uma língua com pouco mais de dois metros de largura e oito de comprimento. Em comum, a cínica encenação que amplia a desadequação de cada personagem. Hedda parece viver em pleno século XXI e Kurt prisioneiro de um revivalismo yuppie. Podemos mesmo dizer que o encenador se diverte neste seu teatro de fantoches (e também há fantoches em Ein Sommernachtstraum, metáfora mais do que perfeita para a condição de casais enganados) dando a Hedda e Kurt razões para se rebelarem contra o mundo. Que acabem os dois sozinhos (ela morta, ele fantasma) não é mais do que dar conta de uma vontade de devolver ao teatro uma dimensão trágica que ideais de entretenimento e mensagens positivas têm negado. É certo que Ibsen e Mayenburg escreveram textos sobre figuras já condenadas, mas estas encenações de Ostermeier dão-nos a ver uma espécie de prazer masoquista nesse destino. E, por isso mesmo, descansam as almas puristas nestes travestimentos estéticos que abusam na alegada deturpação do imaginário do autor. Neste teatro de cadáveres, onde a ideia de um criador une realidades tão díspares, fazendo delas pequenos reflexos de múltiplos
microcosmos tão quotidianos, respira-se um certo sentimento de liberdade. Como se o teatro provasse, uma vez mais, que não há tempo nem espaço nem história que impeçam uma leitura encravada no seio de uma determinada cidade. Não se trata aqui de pôr ao gosto de nada, como parece continuar a ser corrente em Portugal, onde o gosto nacional e a metáfora não comprometida prosseguem no enquistamento de visões teatrais. Não é mais alemão este teatro só porque é mais aberto na sua abordagem. É porque, precisamente, há ideias e visões e conceitos que re-arranjam as referências, que as tornam próprias. Como dizia o coreógrafo pós-romântico Leónide Massine, só se faz uma peça se houver algo novo a dizer ou, pelo menos, uma nova forma de o dizer. O autor está morto. Paz à sua alma. Viva o teatro! Viva... Schiiiiiii... PUM!!!
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Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, Goethe Institut e Roberto Cimetta Fund.
1 O site da revista francesa Mouvement, www.mouvement.net, disponibiliza vários textos sobre o encenador na secção Ressources. 2 Recomenda-se a análise à peça feita por William Archer, disponível em http://etext.library.adelaide.edu.au/i/ibsen/henrik/i1h/. 3 A ensaísta Tiina Rosenberg (Universidade de Lund, Suécia) apresentou a tese “Queering Ibsen: Hedda and Nora as lesbian heroines” no congresso Global Ibsen – Performing Ibsen all over the world, que decorreu na Akademie der Künste entre 28 de Setembro e 1 de Outubro, organizado pelo Institut für Theaterwissenschaft der FU, Berlim. 4 Há uma tradução desta peça, de Vera San Payo de Lemos, nos Cadernos Dramat, Teatro Nacional S. João, 2005. 5 A peça estreou em Junho de 2006, em Atenas, no âmbito do Hellenic Festival Athen 2006. É à nova versão, para palco, que se reporta esta crítica. 6 Sobre este espectáculo, o encenador deu uma entrevista disponível em http://www.signandsight.com/features/430.html.
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PERSPECTIVA
Hotel des Artistes UMA OUTRA FORMA DE RECEBER Há quem, experimentado, diga, que os hotéis são todos iguais, em que só muda o aeroporto. Mas o Hotel des Artistes, que ocupa o último andar da Casa dos Dias da Água, em Lisboa, é diferente. Os cinco quartos, a cozinha e as casas-de-banho foram decorados pelo cenógrafo João Figueira Nogueira com a colaboração da equipa conduzida pela encenadora Lúcia Sigalho, primeiro rosto do antigo palacete na Estefânia. Entre o espaço para residências e lugar de repouso para os que chegam a Lisboa em processo de trabalho, respira-se aqui a tranquilidade necessária para a criação. Os quartos, luminosos e imaginativos, repensam um imaginário poético onde se cruzem artistas, pensadores e outros hóspedes interessados num ambiente de partilha criativa. Inaugurado em Novembro com o desejo de ser mais do que um ponto de passagem ou um local onde pernoitar, este é um espaço de acolhimento para quem o souber aproveitar. As fotografias exclusivas de Abílio Leitão mostram bem a vontade de tornar especial quem ali é acolhido.
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BLACKland, Arpad Schilling © DR
ENSAIO
Pode a crítica teatral ser
“pós-dramática”? UM PONTO DE VISTA DELIBERADAMENTE PROVOCATIVO SOBRE O PAPEL DAS DEFINIÇÕES NUMA PESSOALÍSSIMA – E SUBVERSIVA – VISÃO SOBRE O EXERCÍCIO CRÍTICO, AFIRMA-SE QUE AS DEFINIÇÕES, CATEGORIAS E CATALOGAÇÕES SUBTRAEM AOS ESPECTÁCULOS A SUA ESPECIFICIDADE, RASURAM A SUA SINGULARIDADE E ENCAMINHAM A CRÍTICA PARA UM FACILITISMO VULGAR. texto
Kalina Stefanova
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Em defesa dos fazedores de teatro Entendo perfeitamente que a grande maioria dos fazedores de teatro se queira libertar das definições críticas porque são geralmente restritivas e simplesmente “sufocantes”. Se as definições podem funcionar como fardas, como podemos esperar que um grande encenador se contente em ser apenas “um pós-modernista”, quando existem tantos outros que são rotulados dessa mesma forma? As definições, especialmente quando são constituídas apenas por uma ou duas palavras, tendem a ser bastante planas, ou seja, incongruentes em relação à natureza tridimensional do teatro. Os espectáculos sem sucesso, os que são medianos e especialmente os que estão temporariamente na moda e apresentam um apelo limitado, são provavelmente mais susceptíveis de definição pois podem facilmente ser sujeitos a uma análise racional. De certa forma, permanecem no palco e deixam que olhemos para eles e os observemos de forma fria, como se estivéssemos perante um showcase. Podemos julgá-los apenas com o nosso cérebro. Pode então o bom teatro, o de “primeira classe”, ser tratado desta mesma maneira? Essa criatura misteriosa que se move no território do irracional e desdenha cada tentativa teórica para se explicar e pôr ordem no plano da beleza e magia? Claro que não! Pois o teatro verdadeiramente bom nunca permanece apenas no palco. Esse teatro utiliza o palco como uma rampa de lançamento para ultrapassar a ribalta e beijar o público, tornar-se uno com este, e depois, quando o espectáculo terminar, partir com o público pela noite fora. E o que este bom Teatro, e os seus Criadores (quantos fazedores de teatro não gostariam de fazer parte deste grupo?!) quer de nós, críticos, é cristalizar estes momentos de felicidade e conservar a tridimensionalidade desses mesmos momentos num pedaço de papel bidimensional. O que certamente não pode apenas ser feito através de meras definições. Por outras palavras, visto o teatro no seu todo
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depender e se auto-realizar através da relação entre o palco e a plateia, este acaba por ser como o amor: quando as coisas não funcionam, é muito mais fácil ser definitivo sobre esse mesmo amor. Ao passo que é quase impossível definir totalmente a razão pela qual amamos alguém. (Não admira que a teoria contemporânea esteja mais interessada no tipo de arte onde a harmonia não reina de forma suprema: a desarmonia propicia a dissecação e desconstrução. É muito mais fácil analisar a desarmonia.) O mistério do milagre, tanto do amor como do teatro, pode ser descrito mas não fixado através de definições. Estou não só do lado dos fazedores de teatro na sua resistência em serem rotulados, mas iria ainda mais longe dizendo que a fascinação por parte dos críticos em relação à teoria chegou a tal extremo que esta acabou por criar todo um fenómeno: a teoria versus o teatro. Teoria versus Teatro O dramaturgo norte-americano Arthur Miller tinha um ponto de vista bastante interessante e sobejamente conhecido sobre o que significava a critica académica para o desenvolvimento do teatro nos anos 60 do século XX. Nomeadamente que a crítica académica retirou a qualidade fulgurante da crítica, introduziu a pretensão, e tudo isto acabou por se reflectir no teatro. Além disso, afirmou que “os críticos académicos suspeitavam do teatro popular ao mesmo tempo que queriam fazer parte dele. Era bastante irónico. Alguns queriam ser encenadores, até mesmo actores e escritores. Dessa forma, os críticos encontravam-se em competição com artistas no que diz respeito ao reconhecimento público. Tudo isto era mau para o teatro”1. Howard Kissel, crítico de longa data do New York Daily, partilha esta mesma linha de pensamento: “Durante os anos 60, quando existia muito lixo experimental, o público era encorajado a ver isto ou aquilo devido ao facto de tais espectáculos lhes abrirem os horizontes ou serem educativos... Essas peças eram basicamente chatas e as
pessoas deixaram de ir ao teatro”2. Para Kissel, “ainda estamos a viver o legado dessa crítica”3. Acrescentaria que esse legado foi consideravelmente “enriquecido” ao longo das décadas seguintes até aos nossos dias, precisamente devido ao desdém característico da crítica académica em relação ao teatro popular e, ao mesmo tempo, o seu apoio incondicional ao teatro com um apelo limitado. Tudo isto acabou por contribuir para o afastamento global de muitas pessoas em relação ao teatro. O impacto do fenómeno Teoria versus Teatro é demonstrado de forma muito claro na educação. Um bom exemplo é a Bulgária, onde os estudantes que frequentam Estudos Teatrais e Crítica são geralmente ensinados a pensar que não é uma responsabilidade da profissão de crítico apresentar uma escrita com linguagem clara e acessível; essa acessibilidade é um atributo dos jornalistas, uma profissão “plebeia” e mal vista. Os críticos aprendem todo o tipo possível de teorias sobre análise do desempenho em vez de técnicas que lhes permitam comunicar a experiência teatral aos leitores. Como resultado muitos deles acabam por falar e escrever sobre teatro numa espécie de língua “estrangeira”, pejada de terminologias e apropriada apenas a algumas edições especializadas. Não é de espantar portanto que os jornais diários tenham praticamente expulso a crítica das suas páginas e que nenhuma publicação tenha um crítico teatral no seio dos seus colaboradores exercendo em exclusividade essa função. Claro que existem outros factores inerentes a toda esta situação absurda, mas isto acaba por fazer com que o teatro não seja criticado com regularidade como sucede no restante mundo civilizado. De qualquer modo, esta situação tem consequências terríveis no próprio teatro. Sem crítica o teatro é como uma pessoa que vive num apartamento sem um espelho; este pode apenas julgar a sua aparência através daquilo que os que o amam lhe dizem; e todos sabemos como os olhos do amor podem ser muitas vezes cegos!
Michael Fiengold, um dos principais críticos do Village Voice, dizia que “o mais triste são os jovens que foram envenenados pelas universidades no sentido de pensarem que a arte é um exercício teórico para a elite intelectual. (…) O pedantismo nas nossas universidades arruinou imensos jovens artistas e críticos (...). Nesse sentido tenho vindo a considerar a teoria, qualquer uma, como sendo essencialmente totalitária e inimiga da arte”4. Nunca me passaria pela cabeça negar que a teoria tem tido também um papel positivo. Existem grandes teóricos e a contribuição destes para o desenvolvimento dos estudos teatrais tem sido imensa. Sem Stanislavsky, Grotowsky e Peter Brook, por exemplo, o teatro não teria sido aquele que conhecemos hoje. E sem críticos-teóricos, como Eric Bentley [galardoado em 2006 com o primeiro Prémio Thalia, atribuído pela Associação Internacional de Críticos de Teatro] a nossa percepção do teatro teria sido diferente, certamente mais pobre. No entanto, existe uma grande diferença entre eles e os demais, existindo por um lado, os que apenas fabricam sucessivamente novas fórmulas ao mesmo tempo que dissecam e rotulam o teatro, e os que apenas transmitem e parafraseiam teorias de outras pessoas, ficando-se por isso mesmo. Essa é a diferença entre a teoria verdadeiramente boa e o seu substituto pseudo-científico frequentemente utilizado como uma “camuflagem” que esconde a falta de talento e não apresenta uma faceta artística própria. Esta teoria “falsa” nada tem a ver com originalidade e criatividade, está apenas relacionada com a memorização. O melhor encapsulamento sobre este tipo de abordagem em relação à cultura pertence a Antoine St.-Exupery. “Existe uma noção deplorável sobre o que é cultura”, afirma, “sendo que esta noção tem como base a memorização de fórmulas. Todo o mau estudante de matemática sabe as fórmulas na ponta da língua, mais do que
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BLACKland, Arpad Schilling © DR
Descartes e Pascal. Será que este é capaz de atingir a mesma elevação espiritual? A vida faz sempre com que as fórmulas desmoronem”5. Da mesma forma que existe teoria, e existe teoria – sendo uma um grande ponto de partida e grande equipamento para a viagem teatral, e a outra um factor que causa rigidez, nada tendo a ver com a vida – existem também: Definições e Definições Isto significa que posso alinhar com os fazedores de teatro na oposição geral que estes sentem em relação às definições. Penso no entanto que é nosso dever enquanto críticos identificar e nomear os novos desenvolvimentos na vida teatral. A questão é saber como o fazer. Se o fizermos, por assim dizer, através de uma “linguagem fechada”, perceptível e interessante apenas para algumas pessoas, não estaremos certamente a fazer um grande favor ao teatro, pois estaria a assumir uma posição de elite, de “alguns iluminados”, oposta à natureza inata do teatro: a forma de arte mais democrática. Então quais são os “outros” tipos de definições? “As descrições são mais precisas do que as 94
definições”6, afirma o crítico finlandês Matti Linnavuori. Quando utilizamos a descrição convidamos a vida, utilizamos a sua linguagem e construímos pontes entre o que se passa no palco e o que se encontra para além das paredes do teatro. O que significa que criamos condições de comunicação, não de oposição – comunicação entre vida e teatro. Através da utilização da descrição também criamos imagens. E sem imagens não existe memória. A memória, por outro lado, também faz parte da comunicação – entre passado, presente e futuro. E a critica é a memória do teatro. Pode mesmo tornar-se nisso quando fala a linguagem da vida e define o teatro ao descrevê-lo. Tal como disse o critico britânico Irving Wardle de forma bastante precisa: “Se a crítica sobrevive, tal deve-se acima de tudo ao seu conteúdo descritivo. Tal não significa abandonar o argumento”. Wardle continua: “A descrição apenas surge quando está a ser utilizada para marcar uma posição. Quando facto e comentário coincidem, as palavras adquirem poder. Estas tornam-se mais espessas do que a tinta presente na página”7.
Aqui estão dois exemplos brilhantes desse tipo de “definições descritivas”: William Hazlit sobre actores e representação: “Os actores são ‘as crónicas abstractas e breves do nosso tempo’; os representantes heterogéneos da natureza humana. Estes são os únicos hipócritas honestos. A sua vida é um sonho voluntário; uma loucura estudada. A altura da sua ambição é serem para além deles mesmos. Hoje reis, amanhã pedintes. É apenas quando são eles próprios que são nada. Feitos de riso e lágrimas simuladas, passando de extremos de alegria para angústia assim que lhes é pedido, vivem as fortunas de outros homens; os seus pensamentos não lhes pertencem. Eles são, desse modo, caudatários no cortejo da vida; e fazem um brinde à humanidade; mais frágeis do que eles próprios. Revemo-nos neles: mostram-nos tudo o que somos, tudo o que desejamos ser, e tudo o que tememos ser. O palco é um epíteto, uma semelhança melhorada do mundo, sem a parte aborrecida. O que faz com que a semelhança seja maior é o facto de eles nos imitarem a nós, e nós, por nossa vez, os imitarmos a eles. Quantos senhores de fino trato devemos aos palcos?
Quantos amantes românticos são meros Romeus mascarados? Quantos regaços suaves palpitaram com os suspiros de Julieta? Eles ensinaram-nos quando devíamos rir e quando chorar, quando amar e quando odiar, por princípio e graciosamente! Enquanto existir um teatro, o mundo não irá correr mal”8. Kenneth Tynan sobre À Espera de Godot: “[Esta peça] muito francamente liberta-se de tudo aquilo que reconhecemos como sendo teatro. Chega à alfândega, tal como está, sem bagagem, sem passaporte, e com nada a declarar. No entanto consegue passar, como conseguiria um peregrino de Meca. Faz isto, acredito, ao apelar a uma definição de drama muito mais fundamental do que em qualquer livro. Uma peça, tal como esta afirma e prova, é basicamente uma forma de gastar duas horas no escuro sem ficarmos aborrecidos”9. É dificilmente discutível, penso eu, que as duas definições acima, e outras semelhantes, são não só precisas mas também excitantes. Inspiram e provocam a imaginação conseguindo comunicar tanto com os fazedores de teatro como com o público. Existe nas mesmas beleza em conjunto 95
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com precisão. Existe criatividade. Estas são uma prova brilhante de que a crítica pode ser por si só uma forma de arte, pois a escrita sobre teatro não é apenas um esforço intelectual, mas um esforço da alma e do espírito. Ao não permitir a entrada das emoções, os outros tipos de definições – as estritamente teóricas – consomem o conhecimento do teatro, separam o teatro da vida. Ao passo que as definições descritivas, no seu melhor, captam a vida do espírito humano e comunicam a mesma ao público. Não é esse o grande teatro?! As novas formas de teatro precisam de um novo tipo de crítica? Recentemente li “o novo teatro precisa de uma nova crítica – precisamos de nos libertar da crítica que observa e avalia as produções e criar um novo tipo de críticos – participantes, intérpretes e organizadores, que criem a peça em conjunto com os actores”10. Este excerto da autora Ana Vujanovic está relacionado com a tendência no teatro contemporâneo sérvio e a recepção das produções nesse país. No entanto, as afirmações de Vujanovic lembram-me as campanhas que exigiam que o teatro gay fosse apenas criticado por críticos gay, as peças feministas apenas por críticas feministas, e o teatro africano por críticos africanos, etc. Penso que a melhor resposta a estas exigências sempre sensíveis pertence precisamente a um dramaturgo afro-americano já falecido, August Wilson: “visto ser um dramaturgo negro, os críticos negros sentem que, ‘independentemente de ser bom ou mau, vou escrever uma crítica positiva’. Tal acaba por não ser positivo para ninguém. Podemos ler nos jornais africanos sempre a mesma coisa sobre todas as peças africanas: ‘É melhor peça de sempre em todo o mundo!’. Mas isso não vai ajudar o dramaturgo. Alguém precisa dizer: ‘Você não desenvolveu as personagens. Volte ao início e tente novamente!’. A não ser que tenha feito isso, o dramaturgo nunca irá crescer como autor pois este pensa que já chegou onde queria… [Tal] 96
diminui o denominador comum”11. Em primeiro lugar, o que o novo teatro necessita é de uma crítica honesta que diga aos seus criadores, de forma frontal, se aquilo que estes fizeram tem substância e mérito, se é relevante para o mundo em que vivemos, ou apenas para uma fracção do público, qual essa fracção, e por que razão o resto do público pode ou não mostrar interesse. Acredito que parte da honestidade e perícia deste tipo de crítica é efectuar uma distinção entre o novo, ou seja, o que enriquece profundamente o teatro e expande as suas fronteiras, e o que está na moda. E ser-se suficientemente ousado para dizer quando “o rei vai nu” e estamos perante mera ambição ou pretensão. Temo cada vez mais que exista uma propensão para diluir a nossa apreciação crítica, de sermos bastante vagos na avaliação do que vemos, ou de afirmarmos de forma fácil que alguém ou algo é genial. Isto quando não existe muita substância por detrás da fachada desse algo ou alguém. Penso que tudo isto é resultado de dois fenómenos. Primeiro, o facto de que o nosso mundo é largamente guiado pelo mito da juventude e a exigência constante em estarmos sempre “actualizados”, o que acaba por encorajar o lado descartável de tudo, incluindo seres humanos e códigos base da humanidade. Depois, existe um impacto devastador do politicamente correcto nas nossas vidas no todo, e particularmente sobre os críticos. O crítico britânico Alastair Macaulay resume de forma bastante precisa este problema da crítica e a sua relação com a sociedade: “Por vezes suspeito que estamos a ir em direcção à próxima idade das trevas. Os nossos critérios culturais estão a ficar turvados sob todas as formas. O classicismo, que floresceu com Stravinsky e Balanchine, tornou-se uma espécie em vias de extinção. Novas formas de estalinismo cultural, nomeadamente, o politicamente correcto, prevalecem. O nosso sentido de humanidade e o nosso sentido de ritmo estão a ficar vulgares (...). Penso
que a cultura está em perigo. Se não defendermos aquilo que acreditamos ser parte da civilização, abrimos caminho, sob uma forma ou outra, para o surgimento do barbarismo. Quando olho para algumas produções pós-modernas, sinto que a próxima idade das trevas já teve início”12. Para além da honestidade e integridade totais, existe uma segunda questão que o novo teatro necessita totalmente da nossa parte: críticas. Penso que não se trata tanto de uma nova linguagem crítica, como é geralmente implícito, mas sim que nós dominemos as novas linguagens que este novo teatro fala e consigamos transmitir as mesmas ao público na linguagem do mesmo. O nosso trabalho é de certa forma o de tradução. O crítico traduz as diferentes linguagens do teatro para a linguagem da vida. Temos de aprender a ser fluentes nas novas linguagens que o teatro inventa constantemente. Mas a nossa “língua mãe” é a linguagem dos nossos leitores. É nessa língua que temos de reanimar as novas formas de teatro, tornando-as não apenas reconhecíveis e perceptíveis, mas também apelativas ao público. O teatro tem imensas formas de expressão e emprega constantemente novas formas. A palavra permanece a única forma de expressão da crítica. Esta nunca pode ser pós-textual, isso é um dado adquirido. Acredito que não se trata apenas de uma questão de velho ou novo, mas sim de falar através de palavras tecidas de uma forma talentosa e artística, em oposição a um modelo aborrecido e pouco inspirador. Isto para que a crítica possa acompanhar a invenção infinita do teatro. Será que as palavras de Kenneth Tynan no texto acima soam antigas? Ou as de Hazlit que foram escritas no início do século XIX? Não para mim! É esse tipo de crítica que os criadores dos vários tipos de novo teatro merecem. No início do século XX, George J. Nathan, o conceituado crítico norte-americano, escreveu: “A crítica teatral é uma tentativa de formular as regras do comportamento desse amado, caprichoso e encantador vagabundo que é o
teatro. Visto o teatro ser uma forma de arte com uma pena no seu chapéu e com um sorriso irónico estampado na face, uma forma de arte que passeia sem cerimónias por campos e becos proibidos, para que assim possa entrar nos corações daqueles de nós, crianças do mundo, que nunca cresceram”13. Acredito que se conseguirmos definir as novas formas do teatro actual nesse tipo de prosa artística extraordinária, que podemos até afirmar como estando fora de moda, apenas nesse momento iremos ser indispensáveis para o Teatro, o nosso grande amor14. 1 Apud Kalina Stefanova-Peteva, Who Calls the Shots on the
New York Stages?, Harwood Academic Publishers, 1993. 2 Ibid. 3 Ibid. 4 Ibid. 5 Antoine De Saint-Exupery, Œuvres, Gallimard, 1953. 6 Matti Linnavouri, Arrogance Abroad, Simpósio National Theatres and the Nationalistic Theatre, Sterijno Pozorje Festival, Sérvia, 2006. 7 Irving Wardle, Theatre Criticism, Routledge, 1992. 8 Apud Drama Criticism: Developments since Ibsen, ed. Arnold P. Hinchliffe, Macmillan, 1979. 9 Kenneth Tynan, View of the English Stage, Paladin, 1976. 10 Ana Vujanovic, Stageless Drama, in Scena n.º 19 (edição inglesa), 2006. 11 Kalina Stefanova-Peteva, Who Calls the Shots on the
New York Stages?, Harwood Academic Publishers, 1993. 12 Kalina Stefanova, Who Keeps the Score of the London Stages?, Harwood Academic Publishers, 2000. 13 George J.Nathan, The Critic and the Drama, A. A. Knopf, 1922. 14 Comunicação apresentada ao 50º Congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro, que decorreu em Seul, na Coreia do Sul, de 21 a 35 Outubro 2006, de que este texto é uma adaptação (a versão original pode ser lida em http://www.aict-iatc.org/documents/congress/seoulsymposiumjan.08.pdf). Tradução do inglês de José Luís Neves
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PUBLICAM NESTE NÚMERO
Abílio Leitão | Fotógrafo, colaborador de diversas publicações, faz fotografia de cena para várias companhias e criadores. Bandeira | Cartunista para o Diário de Notícias e Jornal de Notícias, entre outros periódicos. Também faz BD, área em que conquistou diversos prémios, e ilustração para livros. Publicou Cravo & Ferradura na Gradiva. Autor do blogue Bandeira ao Vento. Cláudia Oliveira | Licenciada em Sociologia e Teatro, frequenta o Mestrado em Sociologia do Espectáculo na Faculdade de Motricidade Humana. Professora na ESMAE, encenadora, dramaturgista, tem artigos publicados sobre Análise de Espectáculo e Dramaturgia. Francisco Frazão | Programador de teatro da Culturgest. Está a preparar um doutoramento em Literatura Comparada sobre o teatro no cinema. Jorge Louraço Figueira | Tem o mestrado em Antropologia, sobre Patrimónios e Identidades, do ISCTE. Escreveu as peças O Espantalho Teso (Edições Cotovia) e Xmas qd Kiseres* (Campo das Letras), é crítico de teatro no jornal Público e docente em várias escolas de teatro do Porto. José Luís Neves | Licenciado em Tradução, variante Inglês/Alemão, pelo ISLA Lisboa. É fotógrafo freelancer e colabora regularmente com artistas, críticos e instituições culturais nas vertentes da fotografia de cena e documental. Kalina Stefanova | Ph.D. Professora Associada da National Academy of Theatre and Film de Sofia (Bulgária). Crítica e investigadora, foi vice-presidente da Associação Internacional de Críticos de Teatro e é responsável pelos simpósios da Associação. Os seus livros sobre teatro, nas áreas da dramaturgia e políticas culturais, estão editados em quinze países.
Miguel-Pedro Quadrio | Crítico de teatro do Diário de Notícias e docente no curso de Comunicação Social e Cultural, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Integrou diversos júris na área do teatro. Publicou sobre Estudos Literários e Teatrais, em revistas nacionais e internacionais. Mónica Guerreiro | Jornalista e crítica, tem trabalhado também como consultora para diversas instituições, entre as quais o Instituto das Artes (Ministério da Cultura), a Fundação Calouste Gulbenkian ou a Câmara Municipal de Lisboa. Nelson Guerreiro | Trabalhou em marketing e comunicação nas artes performativas e visuais e em consultoria a projectos culturais. É docente na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha e no Fórum Dança. Criou o projecto de experiências-situações eu e tu, tu e eu (2002), as conferências/performance guerrero notebook (2003) e guerrero notebook: holiday inn (2004), o projecto schrëibstuck de Thomas Lehmen (2003), e os espectáculos vaivém – a história verdadeira de um projecto transdisciplinar (2005) e copyright (2006). Paulo Guerreiro | Performer e intérprete, tem colaborado com vários coreógrafos e encenadores, entre os quais a Companhia de Dança de Aveiro, Edith Depaule, Pippo Delbono e Félix Ruckert. Criou Addicted Man (2005) e peeping me (2006). Pedro Manuel | Actor, encenador e formador. Licenciado em Filosofia e Mestre em Estudos de Teatro com a tese “Do teatro da morte à teatralidade”. Membro do colectivo Vigilâmbulo Caolho. Regina Guimarães | Escritora, a par de uma actividade tão constante quanto confidencial no campo da poesia, tem desenvolvido trabalho na área da escrita e da tradução dramática, do cinema e da canção.
Katayoun Hosseinzadeh Salmasi | M.A. em Estudos de Teatro pela Universidade Internacional do Tadjiquistão. Frequenta o Ph.D. em Filologia. Vive e trabalha no Irão onde é professora, crítica e editora do www.theatrema.com e de dois programas radiofónicos Margarida Santos Lopes | Jornalista, editora da secção Mundo do Jornal Público. Visitou o Irão por duas vezes, em 1989 e em 2006.
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Rui Monteiro | Jornalista. Tiago Bartolomeu Costa | Especialista em Estudos de Teatro. Crítico de dança no jornal Público e colaborador, entre outros, das revistas Sinais de Cena, Mouvement e Ballet-tanz e autor do blogue O Melhor Anjo. Membro do Conselho Consultivo Internacional do Festival Divadelná Nitra (Eslováquia).