Obscena #10 - Março 2008

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número 10 _ Março 2008 _


NEXT MEETINGS > Thessaloniki (Greece)

- Premio Europa / April 9-13, 2008 > Lisbon (Portugal)

- Festival Alkantara / June 6-7, 2008 > Berlin (Germany) - November 2008

PROJECTS > Editorial collaborations

- Yearbook > Workshops for young critics > Support for translation

www.team-network.eu TEAM-Network is an IETM and EFAH member

Transdisciplinary European Art Magazines www.team-network.eu

Iniciada em 2006 pela revista francesa Mouvement, a TEAM Network coloca o diálogo intercultural no centro de um projecto que reúne já dezasseis revistas de onze países europeus. Partilhando uma filosofia comum, a rede surgiu a partir de um desejo de confrontar e partilhar experiências na produção de informação cultural, de modo a propor, à escala europeia, um nível de qualidade nos media que difundisse e mediasse conhecimento entre artistas e público. E, desse modo, participando na criação de uma Europa multicultural, multilinguista, aberta ao mundo e ao diálogo entre culturas.

TEAM-Network, initiated in 2006 by the French magazine Mouvement places intercultural dialogue at the heart of a project that now regroups 16 magazines from 11 European countries. Sharing a common philosophy, the network arose from the desire to compare and exchange experiences in producing cultural information in order to propose a Europe-wide variety of “qualitative” media, to diffuse and mediate knowledge between artists and audience and thus fully participate in creating a multicultural and multilingual Europe open to the world and to intercultural dialogue.

Mehai^ef fWhW `el[di Yh j_Yei (&&. A TEAM Network organiza, em colaboração com prestigiados festivais europeus reconhecidos pelo seu comprometimento crítico, um conjunto de workshops para jovens críticos dividido por dois anos. Em sessões não-académicas, específicas e de alto nível complementar ao ensino universitário, e providenciando acesso a reuniões, partilhas e diálogo com artistas, programadores, críticos e público, os encontros intensivos decorrerão em períodos fixados entre 5 a 10 dias e para um total de dez jovens críticos. Cada workshop é coordenado por dois editores das revistas membros da TEAM Network ou colaboradores das mesmas de reconhecida experiência. Mehai^efi [c (&&. KunstenFestivaldesArts – Bruxelas (Bélgica) / 9-16 Maio Alkantara Festival – Lisboa (Portugal) / 1-8 Junho Mlada Levi – Ljubljana (Eslovénia) / 25-29 Agosto 9ece Wfh[i[djWh kcW YWdZ_ZWjkhW5 Envie, até 15 de Março 2008, CV + 2 artigos inéditos ou não + data de preferência para: workshop@team-network.eu

Alter natives théâtr ales (Belgium), Art’O (Italy), B allet- tanz (Germany), Danstidningen (Sweden), Ellenfény (Hungary), Etceter a (Belgium), Fr akcija (Croatia), Highlights (Greece), J anus (Belgium), Livr aison (France), Maska (Slovenia), Mouvement (France), Poly (France), Obieg (Poland), Obscena (Portugal), Str adda (France).


EDITORIAL

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CARTA DE LISBOA Há frases que nos ocupam os dias e com elas, ou através delas, vamos lendo esse quotidiano, às vezes inventando ficções que iludem a realidade, outras vezes projectando expectativas esperando que se tornem, um qualquer dia, reais. Frases como esta, de Homi K. Bhabha: “Quando o mundo se torna ‘sombrio’ por causa de opiniões contraditórias e ambivalentes, a estética – a ficção, a arte, a poesia, a teoria, a metáfora – vem iluminar a nossa difícil situação cultural e política. No centro da experiência estética reside a voz ‘interlocutória’ da expressão cultural em que se baseia a criatividade humana e a democracia política” (Ética e Estética do Globalismo: Uma perspectiva pós-colonial, Fundação Calouste Gulbenkian/Tinta da China, 2007). Uma frase que toma amplos sentidos num ano como este, 2008, no qual se promove o Diálogo Intercultural. Lisboa, na sua história e vivência, deve ocupar papel relevante nas celebrações de uma ideia que, mais do que retórica deve ser programa de intervenção acelerado e contínuo. Foi (também) por essa razão que decidimos abrir este número com um dossier sobre Lisboa, mais concretamente sobre as políticas culturais para uma cidade que deverá saber gerir expectativas cosmopolitas e desejos mais cercanos. Se tomarmos como exemplo a iniciativa do São Luiz - Teatro Municipal que desde o mês de Fevereiro, e prolongando-se por Março dentro, apresenta um ciclo sobre as várias comunidades de emigrantes (para já

africana, de leste e brasileira), compreendemos melhor de que forma esse diálogo não pode ser de simples exigência, mas antes de efectiva partilha. O inteligente convite que Jorge Salavisa dirigiu a três companhias de teatro – Meridional, Praga e O Bando –, naquele que também é um lúcido mapa para os discursos artísticos geracionais no teatro português, desafia-nos ao exigir o pouco óbvio, o desconfortável, o que nos é desconhecido. E, na aceitação do outro como um igual, revelamo-nos mais humanos. Estenda-se o programa Outras Lisboas à peça Masurca Fogo, de Pina Bausch que, numa colaboração entre o S. Luiz e o CCB, vamos poder voltar a ver em Maio, e perceberemos melhor que a Lisboa que desejamos é uma Lisboa feita de uma multidão que não se deseja massificada; é uma Lisboa plural, onde cada um sabe que pode (e deve) encontrar a sua própria cidade; é uma Lisboa que não é só branca, nem de luz nem de pele. Uma Lisboa que, tal como a Palermo que Emma Dante emocionadamente nos mostrou, também este mês, no CCB (num ciclo que foi uma prenda - também de Giacomo Scalisi, programador de teatro do CCB - para quem o quis tragar sofregamente e devia servir de exemplo para um modelo de programação de um espaço como o CCB), vive das pessoas que nela habita. E que com ela fazem o programa revolucionário de Bhabha. Assim saibamos todos dialogar. TBC

#10 - MARÇO 2008 Design Pixel Reply | www. pixe lr eply.com Participam neste número Adolfo Mesquita Nunes, André Dourado, António Pinto Ribeiro, António Quadros Ferro, Bandeira, Elisabete França, Eugénia Vasques, Francisco Valente, Isabel Alves Costa, Jaime Conde-Salazar, Jean-Marc Adolphe, Jérôme Provençal, João Paulo Serafim, João Paulo Sousa, José Luís Neves, Katja Praznick, Luís Alberto Rodrigues, Mariella Greil, Medie Megas, Melanie Christou, Michael Seaver, Miguel Magalhães, Mónica Guerreiro, Pedro Manuel e Pedro Relógio Fernandes Agradecimentos Arnd Wessemann, Orestis Lambrou, Re.Al Em colaboração com o Clube Português de Artes e Ideias

Logotipo MERC Publicidade | publicidade@ re vistaobsc ena. com Assinaturas e informações | obsc ena@ re vistaobsc ena. com As informações devem ser enviadas até dia 8 de cada mês A OBSCENA - revista de artes performativas é uma revista de periodicidade mensal com distribuição electrónica gratuita através de assinatura. A OBSCENA aceita propostas de colaboração dos leitores. Os materiais publicados são da responsabilidade dos respectivos autores, estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial. www. re vistaobsc ena. com A OBSCENA - revista de artes performativas é membro da TEAM Network (Transdisciplinary European Art Magazines) | www. team-network.e u

Imagem da capa: Trisha Brown’s feet (1974) © Trisha Brown

A OBSCENA - revista de artes performativas é uma co-edição OBSCENA-Associação e Pixel Reply Lda.

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ENTREVISTA

EGEAC: MIGUEL HONRADO André Dourado e Tiago Bartolomeu Costa

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EGEAC ou O DIA EM QUE A CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA "FUGIU" PARA O DIREITO PRIVADO

CARTA DE LISBOA

Tiago Bartolomeu Costa

Adolfo Mesquita Nunes

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DEZ ANOS DE INDÚSTRIAS CRIATIVAS: AS CIDADES PORTUGUESAS

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APOSTA

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OPINIÃO

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EDITORIAL

Miguel Magalhães

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COXIA Bandeira

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A NECESSIDADE E A UTOPIA OS EFEITOS SONOROS Jean-Marc Adolphe DE UM MOTIM PODEM PÁG.30 PROVOCAR UM MOTIM IMPROVISAÇÕES E ESTRUTURAS VERDADEIRO Trisha Brown

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Mónica Guerreiro

CAMAROTE PAR André Dourado

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TRISHA BROWN EM PORTUGAL Pedro Relógio Fernandes

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PONTO CRÍTICO Eugénia Vasques

ACCUMULATION WITH TALKING Trisha Brown

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A FACE OCULTA António Pinto Ribeiro

CARTA A TRISHA Steve Paxton PÁG.42

DUAS NOITES SINGULARES TRISHA BROWN EM SERRALVES PARA CINCO PEÇAS ESPECIAIS

STA APO

BLACK KIDS Francisco Valente


SURROGATE CITIES - MATHILDE MONNIER E HEINER GOEBBELS Jérôme Provençal

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ESPECTÁCULOS

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QUANDO A CIDADE DANÇA

VER VISÕES

Jaime Conde-Salazar

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HEC EST CARTA

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IN NOMINE DEI - DE JOSÉ SARAMAGO,

AÚSTRIA

ENCENAÇÃO DE JOSÉ CARLOS PLAZA Eugénia Vasques

Mariella Greil PÁG.52

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CHIPRE

COMPLICITATS 08

Melanie Christou

Jaime Conde-Salazar, Katja Praznick e Medie Megas

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A METÁFORA DA CONDIÇÃO HUMANA

FRANÇA

VARIAÇÕES À BEIRA DE UM LAGO

Jean-Marc Adolphe

DE DAVID MAMET ENCENAÇÃO DE CARLOS PIMENTA Luís Alberto Rodrigues

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IRLANDA

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A DANÇA DO CAFÉ

Michael Seaver

O CAFÉ - DE CARLO GOLDONI,

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ENSAIO

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DIAS DO JUÍZO

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PERSPECTIVA

ENCENAÇÃO DE GIORGIO BARBERIO CORSETTI João Paulo Sousa

João Paulo Serafim

FILMES / DVD

CARTA BRANCA

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CURSO DE SILÊNCIO,

DE VERA MANTERO E MIGUEL GONÇALVES MENDES Elisabete França PÁG.88

DOCUMENTO BOXE E A INVISIBILIDADE DAS PEQUENAS PERCEPÇÕES (MAKING OF), Francisco Valente

LIVROS

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O ESPAÇO VAZIO DE PETER BROOK Pedro Manuel PÁG.92

EU, ANTONIN ARTAUD António Quadros Ferro PÁG.94

PATRICE CHÉREAU – UN TRAJECT

DE COLLETTE GODARD COMENTADO POR PATRICE CHÉREAU Isabel Alves Costa


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OPINIテグ

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COXIA

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OPINIÃO

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MOTIM

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OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO Por

Mónica Guerreiro

Prosa do instantâneo, DIY Em Junho de 2002, visitei em Londres uma exposição de Robert Rauschenberg cuja memória permaneceu em mim francamente vívida. Para tanto, ajudou ter trazido comigo o catálogo. Mas não só. A dimensão das obras, a sua textura, e principalmente aquilo que evocavam, tudo isso gerou em mim uma afinidade que me deixou inquieta. Pensei: ainda hei-de fazer qualquer coisa que tenha a ver com este trabalho, quero muito dá-lo a conhecer, dar a sentir a outros as sensações que produziu um mim. Até agora isso não se propiciou, por isso está na altura – no mês em que termina outra exposição do artista norte-americano na Fundação de Serralves – de divulgar a minha atracção por estes trabalhos. A exposição, nas Waddington Galleries, chamava-se Short Stories. Os “contos” eram isso mesmo: fugazes evocações literárias, compostas por vários pedaços de imagens primárias, justapostos e arranjados para criar sentido. Ou “narratividade”. Mas que apenas nos fornecem as coordenadas para essa operação, como explica David Batchelor na introdução ao catálogo. O título de cada obra (desta série de dez peças) é uma indicação, com o número da página e do parágrafo, “como se de um trecho de um texto mais longo se tratasse. O visitante é convidado a completar a história”. Rauschenberg escreveu, sobre estes trabalhos produzidos em 2000 e 2001: “You are the author. Provocative to arouse, without edit, the stories can change as time does”. Assim, olhar para Page 10, Paragraph 3 (Short Stories) (na imagem) ou para Page 97, Paragraph 5 (Short Stories) pode ser ler um parágrafo ao acaso de uma qualquer página de um livro escolhido aleatoriamente. Estas hipóteses de relações do pictórico e fotográfico com o literário – de leitura conduzida de um texto já produzido ou de escrita de um texto (quem sabe até um conto) a partir daquilo que a imagem provoca – estão sempre, é verdade, em potência em qualquer obra, desde que o olhar que sobre ela produzamos o ambicione. Mas é verdade que Rauschenberg, nestas obras, fez mais de metade do trabalho por nós. Afinal, pelo menos um parágrafo já está escrito. Oito meses mais tarde, em Fevereiro de 2003, em Lisboa, visitei outra exposição e de novo aquela sensação de arrebatamento. Nada de estranho, pois Collected Short Stories, de Daniel Blaufuks, patente na Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, consistia em 31 dípticos de imagens fotográ-

ficas, “histórias curtas, escritas em nove países entre 2000 e 2002”. Insisto: “escritas”. Na introdução ao pequeno livro então publicado, com título homónimo, Sérgio Mah concretiza: “a escrita (fotográfica) de Blaufuks é um sinal claro da sua tendência para uma espécie de snapshot prose, um discurso assente em fragmentos visuais que indiciam histórias privadas a caminho de se tornarem livremente públicas – num certo sentido, este tipo de fotografia assinala uma das faces da íntima relação que a fotografia estabeleceu com a literatura no contexto da cultura moderna, sendo que a outra se refere ao desenvolvimento, por parte de certos escritores, de uma lógica ficcional que incorpora a amplitude e especificidade da imaginação fotográfica”. Os títulos, esses, não nos encaminham para um parágrafo concreto, mas instalam a ambiência suficiente para desencadear a vontade de escrever: os exemplos preferidos de Mah são Scientific and Literary Friendship, An Unfi-

nished Story, Banal Story, A Sense of Reality, Dream of a Strange Land e A Distant Episode. Mas estas obras e o

seu conceito, tendo tanto em comum com a proposta de Rauschenberg (coincidindo inclusivamente no tempo a sua criação), têm uma característica que as singulariza: ao passo que as composições de Rauschenberg se oferecem para ser organizadas, postas em texto, narradas pelo observador – portanto, convertidas em prosa –, os dípticos de Blaufuks não aspiram a ser contos, porque já são diálogos de uma narratividade intensa. Tão pouco desejam ser traduzidos em palavras, porque toda a relação que importa é a que for gerada pela sequência de uma fotografia na outra. A interpretação a que se dispõem é, portanto, de outra ordem: aspiram a ser cinema.

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A VEZ DE LISBOA?

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A Vez de Lisboa? fotografias Martim Ramos

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Lisboa enquanto capital deverá saber propor um modelo de programação e gestão cultural que vá ao encontro do que se espera de uma cidade europeia. Mas deverá também ser atenta à sua população e aos restantes habitantes do país que querem ver nela um exemplo de cosmopolitismo adequado à dimensão nacional. Quando passam cem dias sobre a entrada em funções do novo presidente da EGEAC, Miguel Honrado, a OBSCENA traça o perfil de uma cidade que quer ser mais do que luz branca. Oportunidade, por isso, de compreender que relações se podem estabelecer entre a gestão cultural municipal e central de uma Lisboa que vive a diferentes velocidades e a braços com uma profunda crise financeira.

Textos de Adolfo Mesquita Nunes, André Dourado, Miguel Magalhães e Tiago Bartolomeu Costa. Fotografias de José Luís Neves e Martim Ramos


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Miguel Honrado entrevista André Dourado e Tiago Bartolomeu Costa fotografias José Luís Neves

Miguel Honrado está há cem dias à frente dos destinos da EGEAC, a empresa municipal responsável pela gestão e programação cultural da cidade de Lisboa. Na primeira entrevista que dá sobre as suas novas funções, este experimentado gestor e programador cultural fala de uma empresa sobre-endividada e a braços com o incumprimento orçamental estipulado pela Câmara Municipal de Lisboa. O plano que traçou vai para lá de 2009, ano em que ocorrerão eleições municipais, e pressupõe uma acção concertada entre a EGEAC, a Vereação de Cultura e a Direcção Municipal de Cultura de modo a encontrar para a cidade uma estratégia que alie tradição e contemporaneidade.

“Tem faltado uma capacidade de reflexão para pensar uma política cultural da cidade.”


Que relação existe com a CML e a Direcção Municipal de Cultura (DGC) e com o resto da cidade? Mais concretamente, não é confuso olharmos para a Direcção Municipal de Cultura e a EGEAC e percebermos que as suas áreas de actuação e serviços se confundem? Museus dependentes de uma e de outra, o mesmo até nos teatro ou espaços a ele dedicados. Para que precisa a empresa de Palácios? E esse lado de gestão pura e dura não esmaga o lado da programação? Comecemos pelo que lhe foi prometido e o que encontrou ao entrar na EGEAC? Uma empresa municipal com um grave problema orçamental. A EGEAC é financiada por transferências financeiras da Câmara, ao abrigo de um contrato-programa, e por receitas próprias. A empresa tem um mandato, presta um serviço público e é esse conceito que justifica a dotação da CML. Ora, nos últimos dois anos e meio a Câmara não transferiu cerca de 23,5 milhões de euros. O anterior Conselho de Administração presumiu sempre que o dinheiro viria, (aliás nunca houve nenhuma informação por parte da câmara que provasse o contrário), recorreu, portanto, ao endividamento bancário para manter a empresa a funcionar. Por outro lado deixou de pagar a vários fornecedores, agravando significativamente a dívida bancária. Estas empresas existem para possibilitar e agilizar a intervenção municipal ou pública fora do espartilho das normas que regem a administração pública e que são desadequadas para a gestão de muitas realidades inclusivamente a cultural. Se não fosse isso, a EGEAC não tinha problemas financeiros. As empresas públicas municipais são vistas como bolsas de colocações políticas, o que quer dizer que a entrada nelas não é feita necessariamente pela competência ou adequação funcional. Sobre os meios financeiros já falámos, que meios humanos encontrou na EGEAC? Há competências e elas são suficientes para aquilo que pretende fazer? Ou há funcionários a mais? Penso que a empresa tem as competências necessárias para o seu funcionamento. Claro que nestes casos há sempre colocações políticas, todos temos consciência disso, mas o emprego político não é a situação maioritária na empresa. Houve pessoas que saíram entendendo que os seus lugares eram de confiança política, algumas foram dispensadas e voltaram aos seus lugares de origem.

Bem, essa divisão existe e é verdade que nem sempre é clara. Por exemplo, os palácios são o resultado da integração da EBAHL [Equipamentos dos Bairros Históricos de Lisboa] na EGEAC. A ideia era que as rendas dos edifícios daquela fossem recebidas na EGEAC que por sua vez as passava à Câmara. Eles estavam ocupados por entidades ou serviços e tinham receitas. Nós já assinalámos à Câmara que gostávamos que eles voltassem à sua gestão plena. Ficávamos apenas com o Palácio dos Marqueses de Tancos [ao Castelo], onde temos a nossa sede, e o Palácio Pombal [Rua de O Século], pela sua simbólica. Mas se não precisam de Palácio Pombal, isso não é um encargo desnecessário? Sobretudo para uma empresa tão endividada? As obras e manutenção não são feitas por nós. Em tempos pensou-se fazer dele uma espécie de sala de visitas da Câmara, função que tem sido desempenhada pelo palácio da Mitra, que está fora do centro. Mas nós pensamos que se podem organizar lá programas que tenham a ver com ele e com a sua simbólica, a sua importância na história da cidade. Qual é então o espaço de intervenção da EGEAC, qual é por exemplo a sua participação na renovação da Baixa Chiado? Essa é uma questão em que deveríamos ser chamados a participar e a pensar. Aliás, tem que haver uma definição daquilo que é o chamado centro histórico, o que são os seus limites, como se articulam com o resto da cidade. Nós podemos participar nesse trabalho. Por exemplo as festas da cidade de Lisboa, que são uma tradição importante, podem criar uma programação para a cidade de Lisboa e não apenas para os seus bairros históricos centrais. Devem envolver a cidade no seu todo. O que nos separa das outras cidades da Europa é a existência de uma programa que se plasme no conceito de cidade. Não fazer coisas desgarradas mas pensar a dimensão do espaço público, esta é uma questão central.

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Quais são as prioridades imediatas desta nova administração? Sanear a situação financeira, sem a qual não podemos fazer nada, e refazer a ligação à Câmara Municipal de Lisboa, de quem dependemos e com quem nos articulamos. Isso é um pouco estranho, ter de se refazer a ligação à Câmara. Tendo o anterior presidente da EGEAC [José Amaral Lopes] acumulado o cargo de Vereador da Cultura, não era suposto ela estar naturalmente feita? A EGEAC exige uma atenção plena. Tem faltado uma capacidade de reflexão para pensar uma política cultural da cidade e ela só se pode fazer com a Câmara, com a Vereação da Cultura e a Direcção Municipal ao mesmo tempo. De qualquer forma, e pelos dados que nos foi possível obter, o orçamento da EGEAC não é claro nas verbas a atribuir para a programação. Com que valores está a trabalhar e como é que imagina conseguir estabelecer essa estratégia atendendo, também, ao buraco financeiro que existe?

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Conto entregar um documento estratégico à Vereação da Cultura, que terá que ser debatido e visto no que é e não é exequível fazer, tentando que haja da parte da própria Câmara, articulada connosco, um posicionamento relativamente àquelas prioridades, aquelas ideias, aquelas linhas de desenvolvimento que vão estar presentes nesse documento. Obviamente, na maneira como essas linhas se encaixam, também, nas prioridades da Câmara Municipal de Lisboa em termos da acção que deve ser a da Vereação da Cultura. No fundo, há aqui vários encaixes que tem que ser realizados antes de propriamente nos lançarmos no desenvolvimento deste tipo de estratégia. E obviamente que se me perguntam se o financiamento que eu tenho agora será suficiente para este salto qualitativo, claro que não. Mas eu prefiro apresentar ideias e apresentar uma estrutura que considero interessante e que pode, de alguma forma, fazer a diferença na cidade de Lisboa e depois ver, em termos financeiros, o que é que isso pode constituir em termos de investimento da Câmara. E pode adiantar que linhas são essas? Eu acho que a programação de uma cidade como Lisboa tem que ser feita a vários níveis, a pensar em vários públicos que tenham a ver, sobretudo, com a fruição da cidade tal como ela é em termos da sua configuração,

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dos espaços que apresenta, dos equipamentos que tem. Uma das preocupações é não limitar a relação apenas à Câmara, mas tentar relações de parceria com outras instituições da cidade, com benefícios a nível comunicacional, mas também na repartição de custos e de optimização dos recursos. Se nós, apesar de tudo, em 2009 e 2010, já conseguirmos planificar uma programação para as festas da cidade com grande antecipação, uma que nos permita comunicar o que vão ser as Festas da Cidade com antecedência, nomeadamente em termos internacionais, mesmo não acrescentando projectos de grande vulto, ou grandes festivais ou grandes novos eventos, acho que pode ser já muito interessante. Tendo uma imagem comunicacional interessante, pensada e negociada com todos os parceiros, talvez seja preferível a criarmos mais um festival ou um novo evento que pretensamente seja a marca da cidade em termos internacionais. Estando há tão pouco tempo na empresa e tendo certamente herdado muitos compromissos, foi possível introduzir mudanças, até num prisma de contenção? De resto, vendo o site da EGEAC, contenção é coisa que parecia não haver, apesar da falha de dotação da Câmara não ocorreu a ninguém reduzir o que quer que fosse. Só os gastos com comunicação, vendo o sítio, parecem superar os de toda a CML. Como calculam, encontrei uma programação feita e decisões tomadas. Como ela é anual, os compromissos estavam assumidos e os contratos assinados para 2008, e não podemos mudar grande coisa, mesmo que quiséssemos. Claro que tentámos renegociar algumas coisas, e ver se podíamos fazer alguns cortes em apoios a projectos que não nos pareciam fundamentais, caso por exemplo da cessação do apoio ao Lisbon Village. Então quando é que a programação da EGEAC vai ter a marca “Miguel Honrado”? Em 2009. Estes momentos em que há menos dinheiro podem servir para reflectir, para pensar no que se deve fazer. A EGEAC ainda hoje não configura uma rede de equipamentos e vou ter de trabalhar nisso. Gostava muito de lançar um projecto pedagógico que envolvesse os nossos equipamentos na cidade. Há muitas coisas que se podem fazer, mesmo com estruturas tão diversas. Mesmo no Castelo de S. Jorge, será possível projectar uma Lisboa que não apenas a histórica, aproveitar aquele espaço para outro tipo de oferta cultural e transmitir uma imagem da cidade contemporânea aos seus muitos visitantes, que provavelmente não visitarão os teatros municipais. Aliás, esta relação entre passado >


BILHETE DE IDENTIDADE Miguel Honrado

EGEAC A EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural) foi fundada em finais de 2003 e resulta da dissolução da EBAHL. E.M. (Empresa dos Bairros Históricos de Lisboa) cuja actividade principal estava sobretudo centrada na gestão urbanística ao invés da Gestão Cultural, como agora acontece com esta empresa municipal. Com a criação deste novo organismo o enfoque deixou de ser apenas a animação cultural dos bairros históricos, mas também a gestão de equipamentos culturais espalhados pela cidade, como o Padrão dos Descobrimentos, em Belém, o Maria Matos – Teatro Municipal, na Avenida de Roma, ou o Museu do Fado, no bairro de Alfama. Foi assim alargado o raio de intervenção na cidade, procurando a Câmara Municipal de Lisboa responder a um conjunto de solicitações ao mesmo tempo que procurava a dinamização de novos pólos culturais. É nessa linha que a EGEAC tanto gere as Festas da Cidade de Lisboa, onde se incluem as marchas populares, como tutela teatros como o São Luiz, o Taborda, por ora entregue ao Teatro da Garagem, ou a Sala-estúdio do São Luiz, onde reside a Companhia Teatral do Chiado. Para além disso tem ainda a seu cargo a gestão de dois museus, o já referido do Fado e da Guitarra Portuguesa, e ainda o da Marioneta, na zona de Santos, e um cinema, o São Jorge, na Avenida da Liberdade. Com custos operacionais globais em 2007 a rondar os 15 mil e 300 euros, a EGEAC gere o seu orçamento a partir de dotações da CML e receitas próprias, a maior parte das quais provenientes do Castelo de S. Jorge. De acordo com as contas do ano transacto, a EGEAC deveria ter tido como proveito global cerca de mil euros a menos que os custos, mas a transferência da dotação da CML prevista em contrato-programa, até à data, não foi efectuada. A nova administração da EGEAC entrou em funções a 14 de Dezembro tendo Lucinda Santos Lopes e Paulo Braga como vogais e Miguel Honrado como Presidente do Conselho de Administração, depois de José Amaral Lopes, vereador da Cultura do PSD, ter acumulado funções.

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Miguel Honrado tem um vasto currículo na área da gestão e produção cultural. Foi adjunto da Direcção de Produção do Teatro Nacional D. Maria II, Coordenador do Pavilhão da Utopia e chefe de projecto (área de programação) na Expo’98. Integrou e depois coordenou o Departamento de Dança do Instituto Português das Artes do Espectáculo (actual Direcção-geral das Artes), tendo sido sido responsável da programação dos jardins, o Fórum Cultural O Estado do Mundo, último evento de celebração do cinquentenário da Fundação Calouste Gulbenkian. Mas a sua experiência não se centra apenas na cidade de Lisboa. Exemplo disso foi a direcção artística do Teatro Viriato / CRAE das Beiras, durante o período em que Paulo Ribeiro esteve à frente do Ballet Gulbenkian, ou ainda o cargo de programador e coordenador de produção na Associação Belgais, na região de Castelo Branco. Actualmente, e para além de leccionar na Escola Superior de Teatro e Cinema, integra a Comissão Artística da Associação Comédias do Minho, com sede em Paredes de Coura e preside à IRIS - Associação Sul Europeia para a Criação Contemporânea, que congrega estruturas de produção e criação de Portugal, Espanha, França e Itália.

e presente deve ser revista em termos do discurso que a cidade faz de si própria. Não basta um diálogo entre património e contemporaneidade é necessário que a contemporaneidade seja assumida como componente fundamental para renovação desse discurso, para reinvenção da História. Mas há outros projectos que poderão servir de âncora, para além das Festas de Lisboa, como a Lisboa Photo, a ExperimentaDesign, a Moda Lisboa e mesmo o Alkantara Festival. Como imagina que possam ajudar a essa programação e que, em alguns casos, se perderam nos últimos anos por razões várias? Penso que a única vez que houve um esforço de concertação para as Festas da Cidade de Lisboa, com uma reflexão para além deste puzzle de actividades que a compõem, foi no ano da Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura, onde houve um grupo de pessoas que se juntou para pensarem uma programação. Nessa altura surgiram vários projectos, por exemplo de arte pública, o que não voltou a acontecer. Acho que é necessário voltar a um bocadinho a esse espírito para a reflexão do que podem ser as Festas da Cidade de Lisboa, com um calendário de programação que não se deve resumir ao mês de Junho, começando muito mais atrás, em Maio, entre a Primavera e o Verão e a poder ir até Setembro conseguindo, obviamente, dar um salto qualitativo relativamente à tal relação que se deve estabelecer com as instituições da cidade numa planificação maior da programação. Haverá que falar com várias pessoas, responsáveis por outros equipamentos culturais, para de alguma forma começarmos a construir uma dimensão diferente… Isso para 2009? A partir de 2009 porque é algo que se tem que perspectivar a médio prazo. >

Fontes: EGEAC e Escola Superior de Teatro e Cinema

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Quando Lisboa, sendo a capital, está também sujeita a outro tipo de pressões, nomeadamente vindas do Estado central com estes grandes eventos, como foi o Lisboa94 e como foi a Expo 98 e o Euro 2004, que ocupam e transformam a cidade limitando a capacidade de acção da CML e da EGEAC na programação cultural, como é que se pode desenvolver uma estratégia concertada para a cidade?

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Se calhar o que eu vou aqui dizer é um bocadinho idealista: a década de 90 foi aquela em que, sem dúvida, a cultura portuguesa se internacionalizou. Há muito a fazer sobre isso, mas foi a primeira grande cartada, mas internacionalizou-se à custa desses grandes eventos. Portanto, no fundo, houve um direccionamento do investimento para isso, esquecendo um bocadinho todo o equilíbrio que deveria ser desenvolvido por esses acontecimentos. Em vez de se fomentar a ligação desses acontecimentos a uma realidade cultural portuguesa, houve uma espécie de sobreposição. Isso correspondeu a um determinado tipo de conjuntura especial que com o final do próprio evento desapareceu e, portanto, deixou muito poucas marcas na própria estruturação cultural, neste caso, da cidade. Obviamente que não se pode dizer que a Lisboa 94 não tenha deixado algumas marcas mas, talvez pudesse ter deixado muitas mais, se tivesse sido pensada nesta óptica. O desafio a partir de agora será precisamente o contrário, tentar pensar a cidade do interior para o exterior tentando avaliar a cidade naquilo que ela tem de potencial para depois se construir algo com base nesse potencial. Em vez de haver essa sobreposição, haver esse trabalho de levantamento, de reflexão e de potencialização do que a cidade tem de singular, de particular, de forças vivas, para que depois se possa, então, construir algo mais duradouro e estruturante. E que vá ao encontro de…? Um dos aspectos que tem de ser reequacionado em Lisboa é o do movimento associativo. Noutras cidades funciona como uma espécie de almofada para um determinado tipo de solicitações que partem dos cidadãos e que, em Lisboa, são dirigidas à Câmara. O movimento associativo ainda não foi repensado na sua totalidade, e há muito a fazer em termos de reflexão sobre ele e sobre a forma como pode funcionar dentro da cidade e na sua relação com a CML. Como se sabe, a CML financia uma boa parte desse movimento associativo e, portanto, repensar essa relação quer dizer também repensá-lo em termos estratégicos e de contrapartidas que são devidas à Câmara relativamente a esses apoios. Até agora,

não tem havido uma visão de conjunto relativamente a esse aspecto e eu acho que é urgente uma intervenção que possa dotar a Câmara Municipal de instrumentos de decisão e de renovação desse tecido. É a partir dele que, muitas vezes, se desenvolvem acções da sociedade civil e, portanto, a partir dele que se deve progressivamente abandonar o paradigma do clientelismo político, instaurando uma outra relação de maior criatividade, de maior rigor e também exigência com esse tal movimento associativo. Nomeadamente porque há associações que estão a aparecer, com outro tipo de paradigma que não a associação que nós conhecemos, a colectividade da bisca e do loto. Mas, enquanto isso não acontece, como vos digo, há, tem que haver, outro tipo de válvulas de escape que possam permitir à Câmara corresponder a solicitações que são também legítimas, relativamente à utilização de espaços de apresentação na cidade de Lisboa. Tendo essa estratégia se não concretizada, pelo menos perspectivada, o que é que o pode fazer estabelecer um limite? O limite é eu próprio não sentir que há um salto qualitativo relativamente à realidade que existe neste momento. Se ele não existir, obviamente que eu próprio deverei ponderar as razões porque é que ele não existe, já que pode não existir por diversas razões. Às vezes não é a vontade, são as limitações financeiras, são prioridades que em termos políticos são dadas a outras coisas em detrimento de outras... Não quer dizer que não haja muitas vezes visão, mas depois há o trágico confronto com o quotidiano, o comezinho e o particular. Penso que entrei para a EGEAC para fazer um trabalho dentro de uma base negocial paciente, construtiva, progressiva … mas tem que ser construtiva e progressiva para que, de facto, eu veja que há um avanço qualitativo, que pode ser mais lento, pode ser mais rápido. Mas se o avanço não existir, eu terei naturalmente que ponderar, terei que tomar as minhas decisões.


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Cerâmica Cinema/Imagem em Movimento Desenho Design Gráfico Escultura Fotografia Ilustração/Banda Desenhada Joalharia Pintura Tipografia História e Teoria da Arte

2º Semestre

Inscrições Abertas

Cursos Completos Horários Diurnos e Pós-Laborais Workshops Cursos Teóricos Sábados para Jovens Programa “Ar.Co no St.Julian’s”

Informações Rua de Santiago, 18 | 1100-494 Lisboa | T 218 801 010 | F 218 870 261 | secretaria@arco.pt | www.arco.pt O Ar.Co é apoiado por Ministério da Educação | Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior | Ministério da Cultura | Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social /Instituto do Emprego e Formação Profissional | Câmara Municipal de Almada | Fundação Calouste Gulbenkian Fundação Millennium bcp | REN - Redes Energéticas Nacionais | Fundação Luso-Americana | BES - Banco Espírito Santo | BPI - Banco Português de Investimento | BES Investimento S.A. | Câmara Municipal de Lisboa | Cinemateca Portuguesa | Culturgest | EPSON Portugal S.A. | HP Portugal Le Meridien, Park Atlantic Lisboa | Livros Cotovia | Assírio & Alvim | Relógio d’Água Editores | Público | Mary Salgado | João Esteves de Oliveira Leonor e António Parreira | Caixa Geral de Depósitos | MC Arquitectos | Fundação Carmona e Costa | Hovione | José de Guimarães | Madalena Lobo Antunes | Victoria Reis


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LISBOA

CASO A CASO

“Devemos pensar no que é essencial à actividade da EGEAC e à sua participação na definição da política cultural da cidade.”

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Faz sentido manter na EGEAC os dois museus [do Fado e da Marioneta]? Não deveriam ser transferidos para a DMC, que já gere as outras estruturas museológicas da CML? Eu acho que devemos pensar no que é essencial à actividade da EGEAC e à sua participação na definição da política cultural da cidade a esse nível estou aberto à discussão sobre o que faz sentido estar num lado ou noutro. Mas neste caso acho que se justifica a permanência pela ligação existente à performatividade no caso dos museus das Marionetas e do Fado. Falando do Museu da Marioneta, confirma-se o depósito ou a dação em comodato da colecção de máscaras de Francisco Capelo ao museu? As condições que ele coloca são aceitáveis? Esse processo está a andar, mas essa questão está incluída numa negociação mais vasta com a CML, que tem outros aspectos, não é apenas um problema de condições. O Cinema S. Jorge constitui um problema ou uma oportunidade, o que pensa fazer dele, o que é possível fazer nele? O Cinema S. Jorge tem funcionado claramente como uma estrutura de acolhimento, mais do que de programação directa. De resto, foi comprado não tanto

por haver um programa para ele mas para evitar que tivesse o destino do Monumental ou se transformasse numa qualquer sede da IURD ou da Maná. O S. Jorge é um cinema com uma simbólica muito importante na cidade, todos nós fomos às matinés do S. Jorge. De facto tem havido um esforço – nós estamos a fazer um esforço – para que haja um recentramento do São Jorge na área do cinema propriamente dito. Estou a tentar que todas as parcerias e apoios que a EGEAC tem na área do cinema transitem para ali e façam dele, de facto, a sua casa: o Indie, o DOCLisboa, Monstra, Panoramas, etc. Ou seja, uma das coisas a fazer é tentar recentrar aí os festivais de cinema; por outro lado, o SJ tem neste momento três salas e há coisas que só se podem mudar na cidade progressivamente. Podem imaginar o número de solicitações diárias à CML para fazer todo o tipo de eventos em espaços municipais e por isso tem de existir, do lado da Câmara, um espaço que funcione como válvula de escape para isso. O S. Jorge pode cumprir, ainda que interinamente, ou nos tempos mais próximos, essa função. Agora o que nós temos é que ter um outro cuidado na comunicação do que se passa naquele espaço. Eu pelo menos, antes de entrar para a EGEAC, tinha uma noção um bocadinho nebulosa daquele equipamento em que se passa tudo e não se passa nada, em que é tudo muito casuístico e muito pouco coerente, de alguma forma. Assim, acho que o S. Jorge também tem que ser pensado de uma forma nova em termos comunicacionais e tentar, não o destituindo dessa função de válvula de escape, fazer coexistir essa situação com o


tal recentramento na oferta cinematográfica, sobretudo no que toca àquela que foge das lógicas comerciais, e que tem sobretudo a sua expressão mais importante no apoio da Câmara aos festivais de cinema importantes da cidade.

É possível uma articulação entre o S. Jorge e a Cinemateca e, dada a sua localização, com o Parque Mayer? Não creio que haja estratégia relativamente à Cinemateca. Acho que é interessante estabelecê-la, mas neste momento não existe. Relativamente à questão do Parque Mayer, acho que qualquer que seja a decisão relativamente a ele, ela deve também estabelecer uma relação com o Cinema S. Jorge, embora este não esteja no Parque Mayer. Tem uma fachada para a Av. da Liberdade que lhe confere, se quisermos, alguma autonomia relativamente ao Parque. Daí eu achar que a EGEAC deverá, a determinada altura, também ser chamada a integrar um grupo de reflexão, um grupo de definição de estratégias que, por maioria de razões, actue e aja sobre aquela área da cidade. A EGEAC possui três teatros municipais [Taborda, São Luiz e Maria Matos] que existem com três perfis diferentes. Há uma filosofia comum que os articule? … Pessoalmente acho que deverá ser desenvolvida uma filosofia para os Teatros. Quando o Jorge Salavisa [director artístico do São Luiz] e Diogo Infante [director artístico do Maria Matos] foram convidados, não lhes foi pedido um documento estratégico para o desenvolvimento dos teatros, pelo que eles desenvolveram as suas estratégias um pouco no dia a dia, durante a própria gestão dos seus equipamentos ou dos equipamentos. Obviamente que em termos de perfis dos teatros a médio-longo prazo, essa é uma reflexão que, sinceramente, ainda não consegui fazer. Obviamente o que me preocupa a mim é que haverá, com certeza, uma época pós-Jorge Salavisa e uma época pós-Diogo Infante e será, obviamente, nessa dimensão temporal que se deve trabalhar em termos da definição de um perfil

para os Teatros. Neste momento os teatros estão muito associados à figura dos seus directores artísticos. Apesar de tudo eu penso que se foi desenhando um perfil e uma filosofia diversos, em termos das programações. O teatro Maria Matos está muito mais ligado à produção teatral, e tem-se, de alguma forma, dedicado ao desenvolvimento de projectos com encenadores que não tinham espaço para desenvolver as suas obras. Nomeadamente um grupo de encenadores que tinha dificuldades, por uma maioria de razões, em encenar em espaços ou, quando encenava, fazia-o em espaços que estavam um bocadinho fora do circuito “mais oficial” da cidade de Lisboa. É um espaço que através deste perfil, conseguiu um fluxo de públicos interessante para um teatro que esteve fechado ou a meio gás durante muitos anos. Houve uma renovação de públicos que é importante e que, obviamente, está muito ligada à figura do Diogo Infante. Isso é ainda mais importante quando está localizado numa área da cidade muito distante da área de intervenção da própria empresa [na zona da Baixa]. O que permite justificar que o teatro esteja dedicado a uma única produção, Cabaré [com estreia marcada para o Outono], durante mais de oito meses, e com possibilidade de prolongamento? Quando eu cheguei [o programa] já estava definido. É um projecto com uma carga mediática [inclui um programa de televisão na RTP 1para escolha da protagonista] que, sinceramente, se estivesse na EGEAC na altura em que o foi lançado, teria tentado facetá-lo de maneira diferente. Sem obviamente instalar um obstáculo relativamente à apresentação do Cabaré. Portanto, isso não encaixa naquilo que entende que seja a promoção em Portugal do teatro, nomeadamente naquele que tem sido o papel do Maria Matos na criação de espaço para encenadores, ou mesmo num programa muito mais abrangente, concertado e pensado em articulação com um conjunto de outras valências. Necessariamente. Bom, de qualquer forma o objecto ainda não está feito e eu também estou na expectativa da sua tangibilidade, pois penso que o Diogo Infante terá ali uma intervenção muito directa em todas as vertentes de desenvolvimento do espectáculo, como director artístico e com a função que lhe cabe. Volto a dizer, se tivesse estado na génese do projecto, tentaria debatê-lo com o Diogo de outra maneira e encará-lo noutra perspectiva de maior abrangência e não com este monolitismo que o caracteriza.

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EGEAC ou

O DIA EM QUE A CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA “FUGIU” PARA O DIREITO PRIVADO texto Adolfo Mesquita Nunes

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Um dos mais interessantes fenómenos da actualidade, sobretudo para quem, como eu, gosta de observar as coisas do Estado, consiste naquilo a que a doutrina alemã que se dedica ao Direito Administrativo chama de “fuga para o direito privado”. Trata-se, em linhas gerais, de um movimento, legislativamente fundado, que auto-riza a Administração Pública a recorrer a instrumentos e procedimentos típicos de direito privado na conformação da sua actuação. Esse movimento não se designa por “fuga” apenas porque a Administração opta por actuar de acordo com regras que não têm directamente em conta, porque não especialmente preparadas para o efeito, a especial envergadura da Administração no que à vinculação ao interesse público diz respeito. Na verdade, a “fuga” para o direito privado revela, isso sim, que essa opção pressupõe uma tentativa da Administração de contornar os principais constrangimentos que as regras públicas de actuação lhe causam, por motivos que invariavelmente encontram fundamento na necessidade de agilização e racionalização, abandonando assim aquele que seria o seu campo natural de actuação.

A criação de empresas locais como “fuga” para o direito privado Um dos mais paradigmáticos exemplos desta “fuga” para o direito privado é, precisamente, a criação e a proliferação de empresas de iniciativa e âmbito local. Basta uma rápida análise da esmagadora maioria das deliberações de criação das empresas locais para perceber que as principais motivações que vêm presidindo à sua criação residem na necessidade de agilizar, simplificar e racionalizar a actuação administrativa nas diversas áreas em que se actuam as empresas, abandonando, para o efeito, as tradicionais regras da Administração autoritária e unilateral. E bem se percebe que os nossos decisores tenham sentido necessidade de criar formas alternativas de actuação administrativa, quando se conhece a desesperante burocratização das formas de gestão pública e os constrangimentos provocados pelo direito público e pelas apertadas regras da contabilidade pública. Acontece que, como se compreenderá, este movimento coloca problemas específicos. Se a Administração detém o monopólio da titularidade e gestão dos interesses gerais e se, igualmente, se encontra vinculada à prossecução do que se convencionou chamar de interesse público, não é de todo irrelevante que a Adminstração opte, afinal, por actuar de acordo com regras


insistentemente têm promovido a fuga para o direito privado, porquanto esta parece ser a única forma de conciliar o estadual monopólio da titularidade e gestão dos interesses gerais com as exigências de eficiência e velocidade dos tempos modernos. Esta “fuga” é assim um desespero de causa. Uma tentativa de salvar a intervenção estadual e de a dotar, se for preciso em contradição com as regras públicas, de meios de prover às necessidades gerais. É por isso que os partidos socialistas do nosso espectro partidário, que deveriam ser parcos na empresarialização da Administração, se têm mostrado tão amigos da adopção do figurino empresarial no âmbito autárquico. Os fracos resultados da “fuga”

pensadas para as relações entre os privados. Daí que a proliferação, muitas vezes desenfreada e em jeito de facto consumado, de empresas de iniciativa e âmbito local, obriga a uma permanente ponderação acerca da oportunidade da sua criação. Tanto mais que, como aliás se já constata por essa Europa fora, as próprias empresas locais estão em constante mutação, assu-mindo novos contornos e extravasando, de certa forma, os primeiros limites que lhe foram impostos. Basta pensar, por exemplo, na entrada de parceiros privados nestas empresas, inclusivamente com capital maioritário, assim como na possibilidade de as empresas municipais poderem, elas próprias, subscrever o capital social de outras empresas, algumas até privadas. A “fuga” em desespero de causa A questão está, pois, em saber, se é ou não legítimo que a Administração Pública se aparte das regras que lhe são próprias em busca da eficiência perdida e, seguindo esse caminho, se o figurino empresarial permite, ou não, alcançar tais propósitos. Este movimento de “fuga” é aparentemente bem aceite, mesmo entre os mais acérrimos adeptos do Estado Social. Aliás, são estes adeptos do Estado Social que mais

Mas ainda que se dê de barato a legitimidade desta “fuga”, algo que aliás merece melhor análise, sempre terá que provar-se, no caso em análise, se estas empresas locais, porque alegadamente mais próximas das sociedades comerciais, permitem à Administração Pública beneficiar das vantagens intuitivamente atribuídas, por comparação, à gestão privada. A resposta a essa questão está, penso eu, à vista de todos e pode servir-se precisamente da EGEAC como exemplo. Não pode negar-se que a empresarialização da Administração Pública permite contornar as apertadas regras da contabilidade pública e, num sector como o cultural, que convive mal com programações meramente anuais e com os problemas orçamentais dos exercícios e cabimentos anuais, assim como permite oferecer mecanismos mais adequados para promover a captação de investimentos e mecenato. O que não me parece é que possa, no entanto, considerar-se que essas melhorias, que são importantes, sejam suficientes para mascarar a indesmentível realidade de as empresas locais continuarem a funcionar como prolongamentos das Autarquias e, em consequência, dos vícios das tradicionais formas de actuação administrativa. Mesmo no caso da EGEAC a composição dos quadros de pessoal das empresas locais, surge maioritariamente transferido directamente das Autarquias para exercerem exactamente as mesmas funções. Ou para a composição dos órgãos sociais das empresas, tantas vezes preenchidos, como se sabe, através de critérios políticos. Ou até para a autêntica sobreposição (ou desastrosa distribuição) de competências e atribuições. Quando parte dos órgãos e quadros da EGEAC transita da Câmara para a empresa, quando parte das atribuições da EGEAC se confundem, sobrepondo-se, com as da Câmara e quando a Câmara mantém atribuições que in-

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coerente e teimosamente não transfere para a EGEAC, não pode deixar de perguntar-se, afinal, para que serve a EGEAC? Este fenómeno de prolongamento dos vícios das tradicionais formas de actuação administrativa não se fica apenas por esta autêntica confusão entre Câmara e Autarquia mas vai mais longe e nega, inclusivamente, um dos mais seguros pressupostos da gestão privada. Pois que aquilo que acontece nestas empresas, e a EGEAC é disso exemplo paradigmático, é a constante mutação de políticas, ao sabor dos elencos camarários, de tal forma que cada direcção perde parte do tempo a livrar-se dos compromissos deixados pela anterior e a começar políticas que a direcção seguinte se encarregará de desfazer assim que chegar. Daí que, sem prejuízo do aliviar das amarras das regras da contratação e contabilidade públicas, a verdade é que as empresas municipais tendem a não alcançar os propósitos a que se comprometeram alcançar. Tanto assim é que, como aliás tive já oportunidade de o referir no Conselho Geral da EGEAC, de que já fiz parte, a empresa tem manifestado sérias dificuldades em apresentar uma política coerente e sustentada, não sujeita às mutações políticas ou aos gostos dos órgãos decisores e não orientada para o imediato e para a confusão com a própria Câmara. A arte da “fuga” E tal não se deve, por muito que seja politicamente tentador pensar o contrário, às pessoas que ocupam os lugares em causa, tantas vezes eivadas das melhores intenções, mas ao funcionamento do sector público, que nem a empresarialização, sempre mitigada e vinculada aos desígnios políticos, consegue afastar. É que, não esqueçamos, enquanto se insistir na vocação prestadora das Autarquias em matéria cultural, sempre teremos que amarrar as empresas locais ao sector público, por mais engenharias que arranjemos para contornar tal realidade. Ou seja, as empresas locais serão sempre empresas públicas, de influência municipal dominante, sujeitas e vinculadas aos desígnios políticos do momento e, por isso mesmo, vulneráveis à manipulação e desnorte por parte dos elencos camarários. Por isso mesmo, vejo com mui-

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tas reservas as considerações que tendem a considerar liberais as políticas de “fuga” para o direito privado. Pois que, na maior parte das vezes, essa “fuga” não traz consigo, nem de perto nem de longe, uma redução do Estado mas tão somente um transvestimento do mesmo. É que, recorde-se, a criação de uma empresa pública, dominada por uma Autarquia, com poderes monopolistas e sujeita a critérios políticos não é, para nenhum efeito, uma medida liberal. Bem se vê, aliás, no regime jurídico do sector empresarial local que entrou em vigor no passado ano, essa enorme dificuldade de conjugar os esforços de empresarialização com a necessidade de subjugar estas empresas aos domínios do sector público. Nele se constatam, precisamente, essas duas tendências em difícil equilíbrio. De um lado, a tentativa de aproximar estas empresas das sociedades comerciais. De outro, a persistência em mantê-las como empresas públicas, que efectivamente são, sujeitas às flutuações dos executivos municipais. Se assim é, temo bem que estejamos, no sector cultural certamente, mas também nas restantes áreas de intervenção das empresas municipais, num problema sem grandes perspectivas de solução definitiva. Claro que uma conjugação inteligente e proveitosa entre elencos dirigentes e elencos governativos poderá atenuar temporariamente os problemas identificados, mas essa nunca será uma situação de certeza e de permanência. Na maior parte das vezes teremos, como temos vindo a ter, uma política cultural centralizada numa empresa que se confunde com os órgãos políticos, a quem cabe seleccionar e escolher uma importante fatia da programação cultural da cidade, oficializando a cultura, algo que não me parece de todo aceitável. O que me traz, de novo, como tive oportunidade de defender no meu artigo Pode o proteccionismo e a promoção estadual gerar maior diversidade cultural?, publicado na edição nº8 desta OBSCENA, à liberal questão de saber se deve, e se é ou não proveitosa, a intervenção estadual ou autárquica no campo da prestação cultural. Como aí disse, e aqui repito, seria preferível que se retirassem todas as consequências da incapacidade do sector público em oferecer uma resposta aos problemas concretos que o sector cultural levanta, assumindo que, embora possam considerar-se públicas as políticas de cultura (o que, aliás, contesto), não tenham estas de ser exercidas pelo sector público.


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número 7 _ novembro 2007 _

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Robert Rauschenberg Claude Régy

Pré-publicação: Fundação Calouste Gulbenkian 50 anos 1956-2006

DocLisboa 2007 8VgiV WgVcXV V ?d d AZdcVgYd

Rodrigo García DBM – Danse Basin Mediterrannée Yvonne Rainer e Trisha Brown em diálogo

Eszter Salamon Indústrias Criativas

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texto Miguel Magalhães

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As Indústrias Criativas, tal como as reconhecemos actualmente, celebraram o seu décimo aniversário em 2007. O conceito, que começou a ser explorado politicamente com a chegada do governo Trabalhista inglês ao poder em 1997, já vinha a ser mencionado desde os anos 80 em organizações como a UNESCO ou a OCDE e alguns países vinham prestando atenção à emergência das actividades culturais nas suas economias. O que o governo do Primeiro Ministro Tony Blair fez, foi atribuir uma dimensão política e económica a um conjunto de actividades que passava “abaixo dos radares” não só da classe política, da classe financeira e económica mas, muitas vezes, da própria população. Aquelas actividades e profissões ocupavam agora um lugar crescente na economia das cidades e dos países e esse peso era de forma contínua subavaliado, tanto pelas estatísticas oficiais, como pela percepção das pessoas em geral. Como se sabe, um dos primeiros passos desse governo foi encomendar um documento mapeador das actividades culturais e criativas e avaliar o seu impacto económico-financeiro e ocupacional. Essa tarefa, hercúlea, acarretava desde logo dificuldades complexas relacionadas com o elenco de actividades que deveria compor “oficialmente” o sector (elenco esse que nunca estabilizou, nem tem que estabilizar), assim como com a metodologia de análise a adoptar. Como aferir o peso de um sector em que muitas das actividades que o compõem não têm sequer a correspondente classificação industrial, em que as profissões não existem para o Ministério do Trabalho ou das Finanças e que muitas vezes são actividades paralelas de profissionais que mantêm um “emprego sério”, por questões de sobrevivência? Em Novembro de 2006, a Comissão Europeia apresentou um estudo, anunciando ao mundo que o sector das Indústrias Criativas correspondia a 2,6% do PIB da União Europeia, o correspondente a 654 mil milhões de euros, e empregando quase 5 milhões de profissionais directamente. Neste momento, o sector cultural e criativo tem um peso mais elevado na economia europeia do que muitos sectores tradicionais. Muitas são as vozes que se levantam apontando o dedo a estes documentos, acusando-os de serem meros exercício de cosmética de uma realidade factual, sendo que entre essas vozes se encontra uma parcela da classe artística que acusa os governos de se deixarem deslumbrar por questões circunstanciais em detrimento das verdadeiras artes e dos criadores. Muitas destas preocupações são legítimas e reais.

DEZ ANOS DE INDÚSTRIAS CRIATIVAS 22

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As cidades portuguesas


Dez anos passados, o conceito de Indústrias Criativas viajou o mundo, novos conceitos como Cidades Criativas ou Classe Criativa nasceram para caracterizar aquelas cidades que reuniam em si elementos tão diversos como equipamentos culturais e empresas criativas em número suficiente que as defina como tal, ou que sejam suficientemente atractivas para a dita Classe Criativa, que seria composta por aqueles profissionais que trabalham com criatividade e ideias. A generosidade de abrangência conceptual destes termos continua a colocar inúmeras reservas ao mesmo tempo que, paradoxalmente, a classe política, com especial destaque para os políticos locais os adopta como receita miraculosa para colocar as suas cidades ou regiões na linha da frente da inovação ou do turismo cultural. Portugal não é excepção e apesar do conceito se ter massificado, tudo indica estarmos a iniciar uma época em que essa expressão se tornará recorrente entre a nossa classe política. Entre os avisos que vão nesse sentido está, por exemplo, o Quadro de Referência Estratégico Nacional, enquadramento dos últimos fundos de apoio comunitário, prevendo alguns programas na área das Indústrias Criativas (nomeadamente no Programa Operacional Regional Norte). Há também sinais que várias autarquias estarão a preparar diversos tipos de iniciativas no sentido de adicionar a “criatividade” às valências dos seus centros urbanos. Este epifenómeno, que se esperava, chega coberto de equívocos e é fundamental que não sejam cometidos um conjunto de erros que daí podem resultar. Um dos erros mais comuns, juntamente com o do investimento exacerbado em infra-estruturas, está relacionado com leituras voluntaristas e excessivamente optimistas de uma aparente cosmopolitização das principais cidades portuguesas – nomeadamente Lisboa e Porto. Recentemente têm sido publicados inúmeros artigos e análises na imprensa – por exemplo, “O futuro de Portugal visto de NYC”, análise publicada no Público no passado dia 14 de Janeiro, em colaboração com o think tank INTELI sobre os diversos artigos publicados sobre Portugal no New York Times ao longo de 2007 -, sobre a oferta cultural que pode ser encontrada no Porto e em Lisboa, a qualidade e sofisticação dos seus equipamentos, tais como a Casa da Música, o Museu de Serralves ou a Colecção Berardo. Este tipo de artigos, bálsamos para o impressionável ego luso, dá azo a considerações erróneas sobre a realidade criativa portuguesa. Será que o Porto de Serralves, dos quarteirões de Miguel Bombarda e da Casa da Música é uma cidade criativa? Será que a Lisboa do >

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A VEZ DE LISBOA?

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Santos Design District, do Lux e do Bairro Alto é uma cidade criativa? O que é que dezenas de lojas de “novas tendências”, de música, moda ou de design nos dizem sobre uma cidade e sobre o vigor das suas indústrias criativas? A questão do peso na economia das actividades criativas nas nossas cidades continua por avaliar. Não sabemos quantos arquitectos, encenadores e actores, designers de moda e fotógrafos, programadores de software para videojogos trabalham nem qual é o seu real contributo para a economia portuguesa, quantas pessoas o sector emprega ou qual o valor das suas exportações. Não obstante, não é difícil constatar que, com excepção de Lisboa, o peso e relevo destas actividades e seus agentes é pouco significativo. As indústrias criativas e os seus profissionais têm uma visibilidade mediática superior aos demais sectores da economia, mas isso não chega para disfarçar a sua insignificância na economia portuguesa ou a sua marca no mercado internacional. Apesar disso, Lisboa destaca-se das demais cidades portuguesas. O que caracteriza o sector das Indústrias Criativas na Grande Lisboa, em traços gerais, são as actividades que prestam serviços essencialmente às empresas, ou seja, a arquitectura, o design e o webdesign ou a publicidade e os audiovisuais (mais televisão do que o cinema). Estas são actividades que naturalmente resultam de uma concentração elevada de empresas de serviços, dos principais grupos de comunicação social, incluindo os quatro principais canais de televisão, e das necessidades naturais de uma população que atinge quase 2 milhões de pessoas. Aonde estão, por isso, os seus traços distintivos? Poderemos argumentar que Lisboa está recheada de casos de sucesso em inúmeras áreas criativas, da Mariza aos Buraka Som Sistema, mas na verdade são apenas excepções que confirmam a regra. Lisboa está cheia de maravilhosas excepções que confirmam a regra. Muitas excepções é bom, mas não chega para fazer uma cidade criativa. Se olharmos para as restantes cidades portuguesas o panorama é ainda mais constrangedor. Sem uma indústria de média, sem mercado audiovisual e publicitário, o cenário reduz-se aos arquitectos, designers e webdesigners e eventualmente um núcleo de músicos e de artistas plásticos que circulam à volta da escola de artes e que se dispersam após a conclusão das respectivas obrigações académicas. Os equipamentos culturais do Porto, por exemplo, são fundamentais para a promoção de muitas disciplinas artísticas, para a promoção das vanguardas artísticas e há sinais claros que têm servido (juntamente com a chegada das companhias aéreas low cost) para fomentar o turismo na região. Estas instituições e eventos sazonais não chegam, no entanto, para

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promover um sector incipiente, sem ambições internacionais e sem massa crítica. Se há ambições para promover o sector das indústrias em Portugal, esse esforço tem de passar essencialmente pela promoção da criação, dos criadores portugueses e acima de tudo das suas qualificações. É na criação que reside o calcanhar de Aquiles do sector das Indústrias Culturais e Criativas portuguesas. Esta constatação lapalissinana resulta, no entanto, na urgência em promover o desenvolvimento de uma linguagem própria, técnica e/ou artisticamente actual e avançada, capaz de fazer face ao nosso periferismo e atraso crónico, que contribua para a constituição de massa crítica criativa, para uma criação continuada e sólida que consiga ven-cer o combate da internacionalização e que tire partido da “cauda longa” que o mercado globalizado contemporâneo permite. Porto ou Lisboa não são Londres nem Nova Iorque, cidades cujos clusters dos media servem de motor para a maior parte das actividades criativas. A questão será então, como promover essa criação? Sugerem-se alguns passos: Promoção da formação avançada artística e técnica, incluindo a dimensão autoral; Promoção da inovação dos modelos de governação das organizações criativas: empresas, instituições culturais, associações, fundações, entre outras; Promover a internacionalização das empresas, produtos e criadores incluindo a promoção da circulação de obras e participação em redes; Nada disto poderá ser feito sem que em simultâneo se criem as condições, materiais e imateriais, para as pessoas habitarem as cidades. São necessárias, mais do que infra-estruturas físicas, infra-estruturas intangíveis que promovam a qualidade de vida das pessoas, dos seus centros, dos seus bairros, que promovam o seu turismo, que permitam o acolhimento dos fluxos migratórios contemporâneos, que assegurem a limpeza das ruas e criem espaços verdes, entre tantas outras questões urgentes. É fundamental retirar da experiência internacional destes dez anos de políticas de Indústrias Culturais e Criativas lições para o contexto português. Depois da poeira provocada pelo arranque destas politicas públicas nas principais cidades do mundo, estamos em condições para aproveitar os melhores exemplos de boas práticas, aprender com os erros e aproveitar o facto de muitos conceitos estarem finalmente estabilizados. 2007 terá sido o ano de todos os despertares no âmbito da indústrias criativas em Portugal. Há, por isso, que não perder tempo.


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“Trisha é o acordar da percepção”. Desde que entrou na companhia de Trisha Brown, uma bailarina confia-nos ter aprendido a olhar a pintura de maneira diferente: “Agora posso discernir muito mais coisas num quadro do que antes. Tornei-me mais sensível.” O espectador, acredite-se, participa neste “acordar da percepção”. Antes de Trisha Brown, raramente tinhamos tido uma sensação directa do movimento tão grande. Um prazer imediato, uma plenitude, o sentido de uma liberdade física que não é da ordem da virtuosidade. As coreografias de Trisha Brown têm a força jubilatória de um momento de liberdade. A sua obra nunca se resumaria a uma técnica ou a um vocabulário. A sua dança, de uma musicalidade louca, é um fluir insaciável de caminhos suspensos, de quedas inesperadas, de balanços enganadores, de golpes esquivados. O movimento é, aí, de uma actividade constante, uma fluidez extrema e móvel de todas as partes do corpo. Uma onda de vida atravessa a dança de Trisha Brown em todos os seus sentidos.

Contrastando com esta pura aplicação de energia, Trisha Brown é uma coreógrafa de um rigor raro no jogo das formas, na construção e na mise en abîme das estruturas de composição; um pouco como uma matemática libertária que procura o número de ouro por vários procedimentos alquímicos. “Para ela, o corpo do bailarino é o desconhecido, X, pronto a se submeter a todas as combinações: adição, subtracção, multiplicação, repetição, acumulação, equações, projecção em três dimensões, o todo acabando numa verdadeira geometria do espaço”.1 O “movimento browniano” não é linear (segundo a fórmula usada por Guy Scarpetta na Art-Press em 1979). É um encontro de rupturas, por vezes mesmo “uma colagem belicista onde os seus elementos se afrontam”: “interessa-me muito o paradoxo de uma acção que trabalha na busca de um encontro com uma outra” , diz Trisha Brown. Entre as duas primeiras representações de Accumulation, a duração do espectáculo tinha passado de 4 minutos e meio para... 55 minutos: “no princí-


pio, a adição de movimentos fazia-se de forma numérica, mas mais tarde, os movimentos intercalaram-se e o espectáculo progrediu em várias direcções”. As estruturas existem para ser ultrapassadas, libertadas: “a dança parte sempre de onde não esperamos que o faça”; “a minha dança é imprevisível, improvável, contínua”. Nada é supreendente quando, na obrigação de usar a palavra, Trisha Brown procure exprimir-se “como um pedreiro cheio de humor”. É que, no grande prejudício da arquitecta-coreógrafa, “diriamos, no fim, que uma dança decorreu nas fissuras de uma outra”. A história de Trisha Brown tem, em grande parte, a sua origem nos ateliers de improvisação que Ann Halprin tinha algures na Califórnia; e depois na aventura colectiva e lendária do Judson Dance Theater nos anos 60. Aí se encontravam um conjunto de bailarinos, pintores e performers prontos a todas as audácias, a todas as investigações. “Os meus auditórios eram pequenos, mas estávamos todos em harmonia, conheciamo-nos, de certa forma”, diz Trisha Brown. Coreógrafa intrépida, põe os seus bailarinos a vaguear por cima de jangadas num lago; fá-los andar na vertical de um muro e dissemina assim uma coreografia por cima dos telhados de Nova Iorque! Era a época das experimentações, um campo de aventuras onde não havia nem uma companhia a gerir, nem um “grande público” a satisfazer. Vindos deste mesmo viveiro, Steve Paxton, Trisha Brown e Lucinda Childs tomaram, em seguida, vias separadas. É claro que, em Trisha Brown, a essência da liberdade que então prevalecia não se esfumou em peças recentes concebidas para teatros. “O paradoxo de Trisha Brown é que a reciclagem de elementos clássicos na sua arte não provocou uma “serenidade”, mas ao contrário, um abandono do ascetismo, uma insolência acrescida, um crescimento da exuberância.” 2 Com Opal loop em 1980, a coreógrafa inicia um “novo ciclo”. Ela, que sempre tinha escolhido dançar em silêncio, introduz a música (de Bob Ashley) em Son of gone fishin’ (1981). Dois anos mais tarde, uma composição original de Laurie Anderson acompanha a criação de Set and reset, um puzzle de energias esparsas que se desdobram na aceleração de um traço vivo ou na lentidão de uma pose surda, enquanto que desfila uma série de imagens, vindas de Robert Rauschenberg, sobre as faces de um prisma suspenso por cima dos bailarinos.

Em 1985, o templo da criação “uptown” consagra, por fim, Trisha Brown: o público do City Center aclama Lateral Pass (cenografia de Nancy Graves, música de Peter Zummo); um jogo de espírito malicioso onde as figuras se juntam e se deslocam em cascadas.

Newark é, até hoje [1987], a última peça de Trisha Brown. Os bailarinos, em fatos juntos cinzentos, desfilam em telas de cores monocromáticas que cobrem todo o enquadramento da cena e caem sucessivamente dos seus cabides. Este décor minimalista mas fortemente sugestivo (a psicologia, são as cores, diriamos) deve-se ao pintor Donald Judd. Newark é um condensado fascinante da arte de Trisha Brown. A liberdade irredutível de movimento que está na origem dos seus gestos trabalha sobre as linhas de uma escrita extremamente precisa e rigorosa. Newark é a dualidade em si numa obra. A coreografia, aliás, constrói-se a partir de duos que deslizam, que se cruzam, que se partilham num incessante relançamento da felicidade. Um jacto de escrita que ignora, por certo, o branco da dúvida, mas que procura não ignorar nada mais: o que é o relevo de um dança, qual poderá ser a sua profundidade de campo, a sua tonalidade? Tais são algumas das questões que Trisha Brown propõe resolver com o décor de Don Judd, mas sem trazer uma resposta única e totalitária: deixando-as, assim, em suspenso. Nela, o movimento é uma invenção permanente que parece estar sempre em curso de se constituir. Newark – obra de maturidade – exprime perfeitamente o que é, para ela, o alfabeto de uma “linguagem coreográfica”: ao mesmo tempo, uma necessidade e uma utopia. Entrar no “atelier do coreógrafo”, é, com Trisha Brown, seguir os caminhos apaixonantes de um pensamento em movimento. Como dirá ela algures: “sem o pensamento, ficam apenas os êxitos físicos”. Paris, Agosto de 1987

1 Marcelle MICHEL, “Trisha Brown, le calcul et la grâce”, in “Festival d’Automne 1972-1982” 2 Guy SCARPETTA, “L’impureté”.

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IMPROVISAÇÕES E ESTRUTURAS texto Trisha Brown

Trisha Brown, um perfil (1959-1975) Se acham que começo a exprimir-me como um pedreiro cheio de humor, é sinal que conseguem compreender o meu trabalho.


Comecei a aprender a dançar em Aberdeen, no Estado de Washington, através de umas aulas com o professor Marion Hageage, que utilizava sobretudo a música como base do seu trabalho. Estudei acrobacia, sapateado, ballet, e dancei música de jazz. Tinha menos de 15 anos na altura, e com as minhas aulas a terem lugar ao fim do dia, o meu professor cansava-se; estando só nós, dançávamos devagarinho, num estilo muito jazz, pontuado por silêncios carregados de significado e grandes golpes de pernas. Tentava acompanhar tudo e gravar mentalmente todo o encadeamento. Apresentávamos estas danças – que deveríamos classificar como danças típicas do estilo hollywoodiano – em recitais locais ou sessões recreativas em hospitais. Mais tarde, segui os meus estudos na Universidade de Mills e acabei o “major” no final do primeiro ano. Estes estudos assimilavam a técnica de Martha Graham e a composição de Louis Horst, devendo-se terminar com um recital de “seniores”. Passei também dois Verões na Universidade de Connecticut a estudar Louis Horst, José Limon e Merce Cunningham. Também lá estava Doris Humphrey, mas ainda não estava num nível suficientemente avançado para assistir às suas aulas. Depois de receber os meus diplomas em Mills, estive no Reed College para ensinar e fundar o departamento de coreografia. Fiquei lá dois anos, mas passados alguns meses, já tinha ultrapassado os métodos tradicionais de ensino na dança e lancei-me em métodos de improvisação. Foi aí que criei o meu vocabulário pessoal na dança. Durante o verão de 1959 juntei-me a Simone Forti, Yvonne Rainer e outros bailarinos no estágio de seis semanas dirigido por Ann Halprin em Marin County, na Califórnia. Ann tinha a ideia de trabalhos como base da sua coreografia, como uma limpeza com uma vassoura, uma acção banal vinda de uma actividade qualquer, feita não como se se tivesse com um público à frente mas, ao contrário, como se tivéssemos sós, em qualquer parte, a varrer qualquer coisa, por exemplo. Experimentávamos também com o som, a expressão verbal e o canto enquanto matérias de base, e ainda improvisações, tanto muito definidas como muito livres, dia e noite, com pessoas de grande talento. Sempre me interessei pela improvisação. Se pararmos um pouco e pensarmos no que vamos fazer antes de o fazermos, há muitas hipóteses que a ideia que temos de nós próprios petrifique a nossa acção. Por outro lado, se nos deixarmos guiar pela improvisação, somos obrigados a encontrar soluções imediatas, e aprenderemos a agir assim. Todavia, se apagarmos simplesmente as luzes e andarmos idioticamente às voltas, será apenas uma terapia, uma catarse ou um momento divertido até; mas se tivermos uma estrutura desde o princípio e decidirmos utilizar X, Y ou Z como uma matéria, e de

certo modo, se formos ainda mais longe e decidirmos que apenas iremos em frente, que não utilizaremos a nossa voz, ou que faremos 195 gestos antes de tocar no muro que está do outro lado da sala, isso acaba por ser improvisação dentro de um contexto de limites muito precisos. É o princípio que se encontra por detrás do jazz, por exemplo. É o que eu chamo de improvisação estruturada porque nos situa dentro de um espaço e de um tempo de acordo com o seu volume. Este estágio foi de um interesse imenso porque Ann Halprin tinha uma imaginação prodigiosa e dava prioridade à originalidade e à revelação em cada um. Ao fim de seis meses, ou um ano, já tinha experimentado tudo o que havia para fazer na Costa Oeste, e a Simone Forti pedia-me constantemente para ir a Nova Iorque. Uma vez chegada lá, continuei a fazer improvisações com Simone e Dick Levine, tive aulas com Robert Dunn no estúdio de Merce Cunningham. Robert Dunn aplicava os conceitos de Cage sobre o acaso e a indeterminação na dança. Uma das contribuições mais importantes de Bob era o método de análise do trabalho que se mostrava. Depois de se apresentar uma coreografia, perguntávamos a cada bailarino: “como é que fizeste esta dança?”. Os alunos inventavam formas em vez de utilizar temas, desenvolvimentos ou narrativas tradicionais; e a discussão que se seguia garantia uma crítica sem julgamentos de valor sobre o movimento em si, sobre a estrutura coreográfica, ainda que examinando a disparidade entre as duas experiências simultâneas no detalhe: o que o artista fazia e o que o público via. >>

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>> Este procedimento dava luz à interacção das danças e minimizava os julgamentos de valor do coreógrafo, o que, para mim, era uma “permissão”: para ir em frente e fazer o que eu queria ou devia fazer, permissão para experimentar uma ideia no limite do aceitável. Lembro-me que ele dava a tarefa de dançar durante três minutos, apenas isso. Esta indicação estava totalmente desprovida de qualquer especificidade, excepto no que tocava ao tempo, e esta ambiguidade desencadeava um trabalho que durava vários dias, até se encontrar o que significava o tempo, se 60 segundos constituiam a única diferença entre três e quatro minutos, como se parava qualquer coisa, porquê, que relação havia entre o tempo e o movimento, etc... Dick Levine aprendeu a chorar sozinho, o que fazia sem parar enquanto que eu segurava no cronómetro e ele me pedia para gritar “pára, pára” até ao último momento antes do tempo se acabar, de modo a que parássemos os dois exactamente antes do fim dos três minutos. Esta dança é um bom exemplo da aplicação e da substituição do medium, neste caso: agir/chorar, de modo a resolver um problema coreográfico.

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Faço absolutamente questão que o meu público perceba o meu trabalho, mesmo sabendo que tenha feito danças difíceis para o grande público. Nos anos sessenta, os meus auditórios eram pequenos, mas estávamos em harmonia, conheciamo-nos de certa forma. Crescemos juntos. Hoje, o meu público é mais vasto, informa-se pela literatura, tem consciência que a dança não si-gnifica necessariamente divertimento. Houve improvisação em 1969 quando pedi ao público para berrar “yellowbelly”, o que significa “cobarde” em Aberdeen, no Estado de Washington; apresentei o espectáculo duas vezes. Da primeira vez, o público fê-lo de tal maneira suave que parei e pedi para que berrassem o nome de uma forma muito desagradável, o que fizeram. Improvisava e estava gelada, não fazia ideia do que estava a fazer, mesmo que tivesse guardado algumas hipóteses latentes em reserva. Quando parei, o público apupava-me mesmo; recomecei e parámos ao mesmo tempo. Era terrível, estava confrontada com o medo que um actor tem ao apresentar-se perante um público e se esquece do que acabou de fazer. Era necessário, portanto, ser preciso nesta situação, o que pôs à prova o meu público e a mim própria. Da segunda vez, mostrei esse espectáculo em Roma e era preciso berrar essa palavra em italiano. O público era mais sofisticado e recusava-se a fazê-lo. Quando se recusavam, eu recusava-me mexer. Depois, cada vez que alguém berrava, mexia-me e parava ao mesmo

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tempo que eles. Foi uma relação excepcional, até que o público inteiro ficou furioso e começou aos gritos. Executava a minha improvisação, pois desta vez nada estava preparado. Comecei a dar voltas e continuava até ganhar vertigens, depois parava e tentava fazer uma bela dança articulada, mas sem sucesso. Esta relação com o público foi, de facto, violenta e simbiótica. A primeira representação de Accumulation (1971) durava quatro minutos e meio e era acompanhada pelo Uncle john’s band dos Grateful Dead. O primeiro movimento: uma rotação do dedo indicativo estendido, que deveria ocorrer sete ou oito vezes. O segundo movimento juntava-se a este e ambos surgiam oito vezes. O terceiro movimento acrescentava-se e um, dois e três repetiam-se, desencadeando um movimento de corpo inteiro. No princípio, a junção de movimentos fazia-se de forma numérica, mas mais tarde, os movimentos intercalavam-se e o espectáculo progredia em diferentes direcções, tomando uma dimensão mais ampla do que comprida. A segunda representação foi feita em silêncio e durou cinquenta e cinco minutos. Trabalhava no palco e tentava conservar a clareza e a independência de cada movimento, lutando contra o efeito de atenuação que era provocado pela implacável repetição. O que me vinha à cabeça era: “isto é tudo”. O tempo era essencialmente constante, mas as suas flutuações dependiam de mudanças de temperatura e do cansaço. Como não havia música, estas mudanças não tinham importância. A dança e a sua estrutura eram visíveis e ultra-simples. Nenhum movimento tinha um sentido para além de ele mesmo. E nunca me tinha sentido tão viva, tão expressiva e tão revelada em cena. O resultado desta coreografia, que ultrapassa o que o público está habituado a ver, é o que descobrimos que podemos fazer e o que são os nossos limites pessoais. É aqui que surge a possibilidade de fazer o que não é interessante para o nosso público, o que ainda não considerámos até agora como aceitável para um auditório. Há também o problema da tensão na relação entre os espectadores e o actor. Em coreografias deste tipo, temos a impressão de estender, de puxar ou de elevar o nível da tensão de maneira considerável. Em Primary accumulation (1972), uma figura só estendida sobre as costas, acumula trinta movimentos em dezoito minutos. Este caso implica uma rotação de 45º em cada um dos dois últimos movimentos, levando, portanto, a rotação total a 90º uma vez que a frase coreográfica se cumpre. Cada frase repete-se até que uma rotação de 360º seja feita, o que revela todos os lados da dança e do bailarino durante esses dois últimos minutos.


Esta dança, ligada ao objecto, torna-se em material de base para outras danças. Em Group primary accumulation, quatro bailarinos, posicionados a igual distância uns dos outros e seguindo uma linha que vai da frente do palco até ao seu fundo, executam a peça em conjunto. Depois da rotação de 360º, dois maquinistas entram e transportam os bailarinos com novas posições em relação ao espaço físico e cada um deles. O movimento transforma-se num tema e, inevitavelmente, em variações inconscientes durante o transporte dos bailarinos, enquanto que estes se posam, se levantam e se separam. Dois bailarinos executam Split solo estendidos lado a lado a cinquenta centímetros de distância. Todos os movimentos de Primary Accumulation executados sobre a direita do corpo eram cumpridos pela pessoa da direita, e todos aqueles da esquerda pela pessoa da esquerda. Esta coreografia é um vai-e-vem entre a imagem de um personagem enorme, ou então entre duas personagens que partilham a mesma dança, mudando assim de papéis: entre acção e espera. A versão definitiva de Group primary accumulation destinava-se a quatro bailarinos em quatro jangadas sobre um lago. A dança/os bailarinos eram livres de se mexerem e de dar voltas numa relação espacial em permanente mudança, inserida num contexto não especificado. O meu compromisso com o Judson Memorial Church foi a consequência que resultou das minhas aulas com Dunn e das composições que executávamos. Judson era então o único sítio onde poderíamos dar representações. Foi como tudo começou. A primeira peça que dei no Judson chamava-se Trillium, tratava-se de uma improvisação estruturada em movimentos que requeriam imensa energia, com um ritmo estranho e por silêncios totais, como se nos puséssemos em ponto morto a meio de uma viagem. Era uma dança cinestésica, uma composição em série onde cumpria um movimento depois de outro, acompanhada por uma cassete de Simone Forti. Se voltar a pensar no princípio de Trillium, lembro-me de trabalhar num estúdio e explorar um movimento para passar por três outros transversalmente: sentada, levantada e deitada. Decompunha essas acções na sua estrutura de base e encontrava pontos de repouso, de poder, de balanço e também outras particularidades. Trabalhava imensamente essa matéria, acelerava-a e misturava-a ao ponto de fazer com que a posição deitada fosse

alcançada no ar. Em Rulegame 5 (1964), havia várias filas de fitas coladas ao chão numa área de cerca de 7 m por 7 m. Cinco bailarinos seguiam o caminho indicado, modificando também a sua altura, desde o mais alto (levantado) em cima da linha, ao mais baixo (deitado no chão) sobre a linha 7. Os bailarinos podiam passar por outros, mas apenas se a relação entre o alto-meio-baixo fosse correcta, caso contrário, falavam-se entre eles para corrigirem a situação. Este esquema serviu de estrutura para a improvisação do movimento e da linguagem, mas poderíamos tê-lo alcançado enquanto obrigação se o elemento-tempo tivesse sido introduzido. Existe uma qualidade particular na improvisação que não havia na dança até agora. Se improvisarmos a partir de uma estrutura, os sentidos elevam-se; usamos a cabeça, pensamos, o corpo inteiro funciona ao mesmo tempo para se encontrar rapidamente a melhor solução ao problema que se dá sobre a pressão que é exercida pelo olhar dos espectadores. Na mesma época, ao contrário, os bailarinos modernos olhavam-se de forma glacial e brilhante, escondendo-se por detrás desse olhar para se concentrarem e darem o melhor deles mesmos, um hábito compreensível, mas que infelizmente nos dá a impressão de lidarmos com robots. >>

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>> Em Judson, os bailarinos respiram alto, esforçamse, suam, falam do que se está a passar. Começam a comportar-se como seres humanos, revelam o que podemos considerar como fraquezas, assim como o seu talento.

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Na mesma altura, compunha A string em três partes. Para a terceira parte, chamada Inside (1966), punha-me de pé virada para a esquerda, decifrava o muro como uma partitura, enquanto que me deslocava pelo espaço na direcção da direita. Tudo o que se colocava com a velocidade, a forma, a duração ou a qualidade de um movimento, encontrava a sua resposta na informação visual que me dava o muro. Uma estranha distribuição das acções e dos gestos era consequência do conjunto arquitectural da alcova, da porta, da pintura descolada, dos canos. Depois de ter acabado com o primeiro muro, retomei a minha posição em relação ao segundo e assim de seguida, com o terceiro e o quarto. Assim, deslocava-me durante o espectáculo ao longo do limite da peça, à frente dos espectadores que se sentavam numa forma rectangular, reproduzindo o interior do meu estúdio. Marcava os limites do espaço, deixava vazio o centro da peça, o movimento pertencia-me de uma maneira específica e concreta, mas parecia como que abstracto para o auditório. E olhava para eles. Acrescentava o problema de olhar o auditório não “com intenção”, mas com os olhos abertos, vendo. Nestas obras antigas, empregava profissionais e alguns outros que não eram. O meu estilo pessoal de movimento em Trillium, por exemplo, é demasiadamente particular e difícil para se ensinar a outros, ficava assim matéria para se fazer um solo. Em danças de grupos centradas em acções, empregava bailarinos principiantes ou pessoas comuns, vivas e fisicamente alertas. Alguns profissionais, fazendo um esforço para parecerem melhores do que à primeira vista e para serem bem compreendidos, enchiam-se de uma tal tensão dramática que estilizavam o movimento e tornava-se difícil cumprirem uma acção tão simples como andar. Hoje em dia, emprego profissionais porque o meu trabalho comporta tais exigências técnicas que um amador nunca as poderia cumprir. O movimento comum consiste em trepar, cair, dobrar-se, balançar. Em Planes (1968), primeira dança de uma série a que chamaremos de “danças de equipamento”, construí um muro de 4 m por 5,5 m com buracos feitos a intervalos iguais sobre toda a superfície, e que funcionam como pegas de pés e de mãos, fazendo com que três bailarinos possam girar, descer e subir sempre de maneira muito lenta e em todas as direcções,

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dando uma impressão de queda livre. A perspectiva dos espectadores mudava. O muro do fundo da cena parecia-se agora com o chão do auditório. Continuava a construir, ao mesmo tempo, o ambiente e a dança. Man walking down the side of a building era exactamente como o seu título: sete andares. Uma actividade natural debaixo da pressão de um contexto não natural. A gravidade renegada. Uma vasta escadaria. Uma ordem clara. Começamos no topo, descendo tudo a direito, paramos em baixo. Todas as questões confusas que surgem quando seleccionamos o movimento abstracto segundo a tradição da dança moderna, o quê, quando, onde e como, resolvem-se pela ligação entre o coreógrafo e o local. Se eliminarmos todas essas possibilidades exteriores que a imaginação coreográfica pode afastar, se nos agarrarmos a uma pessoa que caminha de lado, significa que vemos o movimento enquanto actividade. Interessa-me muito o paradoxo de uma acção que trabalha na busca de um encontro com uma outra, e isso está ilustrado em Walking down the side of a building, onde a gravidade exerce-se de uma certa maneira sobre o corpo, enquanto que a minha intenção é mostrar que alguém anda naturalmente ao agir de uma outra maneira.

Floor of the forest (1969) foi apresentado numa estru-

tura em tubo de 3,5 m por 4,2 m, através da qual se estendia uma rede de cordas muito densa, ligadas por roupas: as mangas agarravam-se às pernas das calças e formavam uma superfície rectangular sólida. A estrutura estava suspensa na horizontal à altura do olhar, no centro do espaço vazio. Duas pessoas vestiam-se e despiam-se, abrindo uma passagem. Tudo se passava da maneira mais natural possível. Uma actividade normal, cumprida horizontalmente e refeita pela atracção da gravidade. Tinha poder. Era necessária uma grande tensão e um esforço enorme para suster o peso do corpo enquanto que mexíamos em botões e fechos-eclair. Descansávamos algumas vezes, e quando o fazíamos ainda pendurados, uma peça de roupa tornava-se numa cama de rede. Os espectadores tinham que se esticar para ver os actores suspensos ou a escalar por cima da estrutura, ou então espreitavam o que se passava por cima. Tinham que escolher a parte da dança que queriam ver. A segunda vez que Floor of the forest foi representado (1969), a estrutura estava suspensa a um nível mais alto do que as cabeças e havia uma verdadeira desarrumação cá em baixo. Os espectadores experimentavam as roupas, para além dos bailarinos, que faziam o mesmo lá em cima. Era preciso que o auditório escolhesse entre levantar a cabeça para ver a dança ou encontrar roupa que amigos me tinham dado. A peça ainda continua para mim, porque ainda as vejo e me


falam de “bons negócios”. Um movimento puro é um movimento sem qualquer outra conotação. Não é nem funcional nem pantomímico. Acções corporais mecânicas, como dobrar-se, ficar rígido ou fazer rotações, podem ser movimento puros, desde que o contexto seja neutro. Utilizo movimentos puros como certas paragens súbitas das capacidades corporais. Utilizo gestos pessoais e familiares que têm um significado particular para mim, mas que parecem seguramente abstractos para o público. Posso muito bem cumprir um gesto todos os dias para que o público não saiba se parei de dançar ou não, e ao puxar o mais possível pela ironia, procuro desviar a sua atenção quando me preparo para atravessar o espaço na direcção da esquerda e virar subitamente à direita ao último minuto, a menos que pense que tenha percebido, ficando nesse caso de pé e imóvel. Brinco com o movimento, faço-o rimar ou faço eco com um movimento precedente ao utilizar mais tarde uma outra parte do corpo, e talvez assim modificar o movimento. Ponho as frases sem entre-linhas, viro-as ao contrário ou sugiro uma acção que depois não cumpro, ou então exagero. Faço mudanças radicais de forma mundana. Utilizo o peso, o equilíbrio, o balanço e as acções físicas tais como cair, empurrar, etc. Digo coisas ao meu grupo como: “atirem os vossos joelhos para ali”, ou “comecem a frase, depois a dois, recomecem”, ou “façam isso e parem”. Ligo todos os movimentos sem transição, por isso não construo nada. Se o fizer, termino com uma outra construção. Volto sempre à posição em pé, que é neutra, entre dois movimentos; ajuda-me a ver até onde fui e para onde vou. Os batimentos (sem acompanhamento musical) também produzem o mesmo efeito. Um batimento enquadra uma unidade de tempo que podemos medir, dividir, encher completamente ou parcialmente. Se acham que começo a exprimir-me como um pedreiro cheio de humor, é sinal que conseguem compreender o meu trabalho. Pensava em Locus (1975) quando falava sobre movimento. Locus organiza-se à volta de 27 pontos situados num cubo de espaço imaginário ligeiramente maior do que a silhueta de alguém de pé com os pés afastados. Os pontos ligavam-se ao alfabeto e a inscrições: 1 era A; 2 era B. Fiz quatro secções de três minutos que se moviam, tocavam e olhavam, saltavam por cima, ou faziam qualquer coisa em relação a cada ponto da série, seja individualmente ou em grupo. Havia uma repetição espacial mas não gestual. A dança girava. A base do cubo multiplicava-se para formar uma rede de cinco unidades em largura e quatro em profundidade. Tínhamos

várias possibilidades para nos mover de uma base do cubo para outra, sem deformar o movimento. Ao aplicar estas opções, acabávamos por viajar. A escolha de se afrontar, de se mover e a selecção de cada secção eram feitas durante o espectáculo pelos quatro bailarinos. Esta é a estrutura da dança. Preencham-na com o tipo de movimento mencionado mais acima. A acumulação mais recente, intitulada Pyramide (1975) contém igualmente uma conta. Está baseada em nove unidades de tempo ascendentes e descendentes, nove pontos em cinco medidas: 1.2.3.2.1. As quinze primeiras medidas acumulam-se. Quando se acrescenta a décima sexta, deixamos cair 1; acrescentamos 17, deixamos cair 2...; continuamos neste processo até 30, e aí, deixamos de acumular e fazemos cair 16, voltando a 30, tirando 17, voltando a 30, etc., até ao desaparecimento do todo. Os quatro bailarinos cumprem os seus próprios movimentos. Neste momento, trabalho em Solo olos, no qual cumpro uma progressão natural de movimento não-funcional. Por progressão natural, quero dizer que o movimento B será o movimento mais simples e o mais evidente depois de A; C depois de B. Quando a sequência passa para uma posição neutra, teremos mais do que um movimento a dar vida a B1, B2, e mais – uma intersecção de várias direcções. A progressão e as suas alternativas irão para a frente e para trás, e na medida do possível, para a direita e para a esquerda. Os bailarinos trabalharão lado a lado, virando-se, por vezes, de costas, juntando-se, esperando, separando-se, galopando, agrupando-se, de novo esperando, atrasando-se ou andando, muito simplesmente, durante o espectáculo. Trisha Brown, Nova Iorque, 1975

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O SONHO DO SONO ABrown Company em Portugal Trisha

texto Pedro Relógio

Fernandes

Os treze anos que separam a primeira presença em Portugal da Trisha Brown Dance Company, em 1987, da última, em 2000, mostram uma gradativa abertura na recepção crítica ao ecletismo criativo desta lendária coreógrafa, fulcral na configuração de um rumo para a dança contemporânea. Nos dias 20 e 21 de Junho de 1987, a companhia apresentou-se no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito dos Encontros Acarte. O Diário de Notícias, através das palavras de Manuela de Azevedo (25 de Junho de 1987 – ver crítica na página 36) dividiuse entre a qualidade técnica das coreografias apre-sentadas e a dificuldade de absorção das mesmas por parte do público português. “O espectáculo valeu pelo bailado Newark, coreografia de Trisha Brown e concepção sonora (muito parcimoniosa) de Donald Judd”. É precisamente essa parcimónia que parece ter causado um certo desconforto entre os espectadores e que a crítica não deixa de acusar, lendo Newark, um “bailado sem música (aqui ou além apontam breves compassos sonoros) ” como um passo aquém do que se esperava. “É pena que […] o coreógrafo [sic] não tenha uma medida de tempo que satisfaça a apetência de plateias europeias mais vastas”, justifica Manuela de Azevedo. A Set and reset (1983), com cenário de Robert Rauschenberg e música de Laurie Anderson, e Opal Loop (1980), também apresentadas nessas datas, a crítica do Diário de Notícias diz ter faltado “invenção e poder de síntese”. Para além destas três peças, fizeram ainda parte do programa Glacial Decoy (1979) e Lateral Pass (1985). A recepção às peças de Brown faz ressaltar um manifesto declive entre a “linha estética em ebulição” pela qual passava a companhia norte-americana e as expectativas do público e da crítica, habituados que estavam a criações de índole mais convencional, e que o Serviço ACARTE se esforçava por contrariar. A companhia regressaria a Lisboa em 1995 para actuar no Grande Auditório da Culturgest, 2 e 3 de Março, com expectativas elevadas. As peças apresentadas foram M.O. (1995) e If you couldn’t see me (1994). Esta última um solo dançado de costas para o público pela própria Trisha Brown, como que a desafiar a relação modelar entre os dois elementos essenciais ao espectáculo. M.O., adaptação de Musikalisches Opfer (Oferenda Musical) de Bach (1747), com figurinos de Irié e iluminação de Jennifer Tipton, corresponde ao momento em que Trisha Brown resolveu, segundo a própria, “os problemas que tinha com os travelling steps em dança moder-

na” (Diário de Notícias, 1 de Junho de 1995). A presença da companhia na Culturgest teve contornos totalmente diferentes daqueles que envolveram as actuações de 1987, tanto no que se refere à natureza das peças apresentadas como à recepção crítica, muito mais esclarecida e afirmativa. No dia 24 de Maio de 1995, Maria Leonor Nunes escrevia no Jornal de Letras: “É o inalcançável, os movimentos aparentemente impossíveis, que Trisha Brown pede aos seus bailarinos. O fascínio do seu trabalho deve-se em parte a essa fulguração dos momentos de respiração suspensa perante a beleza dos inacreditáveis movimentos. Mas também ao rigor estrutural dos seus espectáculos”. Cinco anos depois a companhia regressou a Portugal com um programa composto por três peças, que Ricardo Nabais (Jornal de Letras, 8 de Março) classificou como “bastante heterogéneas”, salientando “o inegável contributo de Trisha Brown para a diversificação da dança contemporânea”. Num programa partilhado pelo Centro Cultural de Belém (21 e 22 de Março), em Lisboa, e pelo Rivoli - Teatro Municipal (25 e 26 de Março), no Porto, a companhia voltou a trazer Set and reset, juntamente com Canto/Pianto (1998) – versão coreográfica da ópera Orfeo de Monteverdi, criada na Ópera de la Monnaie, Bruxelas, em 1998 –, e Five Part Weather Invention (1999), envolto pelo jazz inovador de Dave Douglas e Terry Winters. Na crítica aos espectáculos, Maria José Fazenda (Público, 24 de Março) falava, a propósito de Set and reset, de “movimentos, leves, [que] fluem ininterruptamente, explodindo, aqui e ali, em saltos ou projecções de um corpo contra o outro”; e se em Canto/Pianto se reencontrava “a dimensão abstracta da dança de Trisha Brown”, “o movimento de Five Part Weather Invention é de permanente regozijo: entre os intérpretes, […] os bailarinos e a música.” Evolução ou reconhecimento, certo é que, no que respeita à recepção crítica da obra de Trisha Brown, muita coisa mudou entre 1987, ano em que “não faltou quem considerasse o espectáculo fatigante” (Manuela de Azevedo) e 2000, quando as peças se construíam por “movimentos das belas galáxias brownianas” (Maria José Fazenda). Brown, coreógrafa que sempre tratou o espaço como agente reactivo ao corpo do intérprete, regressa agora a Portugal, oito anos depois, com um programa que coloca em perspectiva esta recepção tão emocional quanto surpreendida.

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N O I T A L U M U C C G A N I K L A T H WIT por Trisha Brown

Por uma leitura-demonstração no Centro Americano em Paris, rue du Dragon, para apresentar o seu trabalho sobre a acumulação, esta experiência de Trisha Brown dava origem à estreia de Accumulation with talking. Ao solo Accumulation que a coreógrafa interpretava acrescentava-se o seu próprio comentário, traduzido directamente em cena por Béatrice Clive, assistente de Don Foresta no Centro Americano. Na sala e do seu lugar, Lise Brunel gravava com um simples gravador as explicações de Trisha Brown que acabava de descobrir do Museu Galliéra. Nenhuma das duas poderia pensar que esta gravação do dia 12 de Outubro de 1973 se tornaria num documento excepcional.

“Eu costumava pedir aos meus bailarinos para se mexerem constantemente e falar ao mesmo tempo. A razão porque o fazia era porque quando nos mexemos não somos capazes de pensar, e quando pensamos não somos capazes de nos mexer. Conheço esta dança muito bem. Estava interessada em ver o que dizia enquanto a fazia. [18 segundos] Tento fazer cada movimento da maneira mais completa do que (inteligível)... quando não falo. Às vezes a minha mente perde-se e eu também nos meus movimentos. Quando isso acontece, volto atrás e começo tudo de novo. A primeira vez que interpretei esta dança, fi-lo em quatro minutos e meio. A segunda vez, demorei uma hora. Na primeira vez, usei música rock’n roll muito pesada. Oh, um minuto! Da segunda vez que o fiz, durante uma hora, estava muito assustada e os meus polegares começaram a tremer. Parecem estar a tremer neste momento (risos). Não é apenas isso que treme agora. [8 segundos]


Só um minuto, eu... (ininteligível). [9 segundos] Quando danço e não estou a falar, penso a toda a hora. E também olho para o público. Da segunda vez que dançava, estive a olhar para um homem que tinha o dedo no nariz durante vinte minutos. Ele não fazia ideia que estava a olhar para ele. Nesse mesmo programa, vi um homem a adormecer. Depois disse-lhe: “Vi-o a adormecer”. Ele disse: “Eu não adormeci”. Seis meses depois, admitiu que o tinha feito. [12 segundos] Esta dança tem um sistema muito óbvio. Faço um movimento durante algum tempo e depois acrescento outro. Quando fazia a dança, cada movimento que acrescentava tinha que mexer com o do início. Também tive que escolher movimentos que eram confortáveis de fazer porque repetia-os mil vezes. Se eu não tivesse o (inteligível) de o fazer, teria que abandoná-lo. Por isso, estes movimentos eram escolhidos para o meu conforto. Não, não é verdade, eram escolhidos por... (inteligível). [18 segundos] Enquanto fazia esta dança, o meu pai morrera entre estes dois movimentos. [24 segundos] A sua mãe era francesa. Chamava-se Alvina Martell. O nome dele era Martell Brown. [25 segundos] Os meus polegares já não tremem tanto. Mas os meus joelhos começam a tremer... Sobretudo quando faço relevés. É muito importante respirar enquanto dançamos. [23 segundos] Às vezes, quando as coisas ficam difíceis e pesadas, digo-me a mim mesma – um passo de cada vez. [26 segundos] Será esta dança linear ou circular? Neste momento, penso que seja linear. Um pouco mais à frente penso que o princípio perde-se e torna-se circular. [17 segundos] Os meus joelhos já não tremem. [17 segundos] Quando comecei a fazer esta dança, repetia um movimento até se tornar confortável e totalmente assimilado pelo meu sistema cinético. E isso levava entre sete a nove vezes. Era muito difícil fazê-lo. Agora reduzi para cinco. Ou então sou incapaz de fazer esta dança, falar e contar. [12 segundos]

Mas não sei. [10 segundos] Aquela senhora com o cabelo comprido, à frente... [27 segundos] Quando fiz esta dança pela primeira vez, costumava dizer na minha cabeça, uma e outra vez, é isto, isto é tudo. Isto é – é isto – é isto – é isto – isto é tudo. É difícil, para mim, dizer-me isso e também falar para vós em voz alta. [12 segundos] Acho que poderia ter havido uma versão melhor. Mas não vou voltar atrás e recomeçar. [28 segundos] Esta peça foi gravada. É incassável (uma outra voz e a tradutora dizem: é infindável). [9 segundos] Tal como um oceano, não pára. [11 segundos] Também pensei que seria... Há alguns apaixonados por esta peça... que sorriem cada vez que introduzo este movimento (indicador da mão direita na mão esquerda). É difícil não sorrir de volta. [16 segundos] Quando acabar, vou vos dar um exame sobre o que viram e terão que fazê-lo. Tiveram muito tempo para ver. Será possível fazer exactamente a mesma coisa duas vezes? Tentem fazer isso duas vezes... (inteligível). Só tenho mais uma coisa a fazer. Na verdade, há mais três mas já não as utilizo. Estiveram tão calmos, assim farei-as. [20 segundos] (Um barulho forte de alguém a assoar-se) Uma mulher está a assoar-se. [15 segundos] Aquilo é o passo de cigano. Gostariam de saber as alcunhas de todos estes passos?” [12 segundos] (inteligível) (aplausos)

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A H S I R T A A CART xton De Steve Pa

Escrevi esta carta a Trisha Brown depois de ter visto o seu solo If you couldn’t see me em Durham (Carolina do Norte), em Junho de 1994, no American Dance Festival. Nesta carta, existem alusões que são claras para ela mas que provavelmente não o são tanto para vós: - Betsy Frederick é uma amiga comum que vem de Albuquerque; - O “fato” consiste num maillot com um decote a decair pelas costas, collants e uma grande tira de tecido no tronco, à frente e atrás; - A “ideia” de Bob é não confrontar o público; - Bob é o artista Robert Rauschenberg, que assina a música e o vestuário; - O criador das luzes é Spencer S. Brown Na última frase, Trillium é um outro solo de Trisha Brown feito no Judson Memorial Church em 1962. S.P.

Durham, Carolina do Norte, 27 de Junho de 1994 Cara Trisha, Escrevi à Betsy Frederick ontem e falei-lhe do teu solo, entre outras coisas. Ficou-me colado. Quando acordei, os teus escapulários sobrevoavam na zona do meu cérebro, que se lembra deste género de coisas. O Spencer, o Bob, e sobretudo tu, conceberam um objecto profundamente satisfatório. O fato é tudo o que há de mais justo, é impossível separá-lo da luz, eles vestem-te ambos. Em jubilação perante a tua revelada spina erecta, os teus escapulários e o funcionamento delicado e requintado da tua zona lombar, iluminada de lado por um modelo máximo, o público suspendeu, por um momento, a sua respiração. Não podes saber (mas alguém deve ter-te dito) o que a escultura das tuas costas pode fazer. É indonésio nas suas linhas e volumes: rico nas sombras e totalmente


luminoso nas suas alturas, torna-se abstracto, oscila entre uma manifestação anatómica dos músculos de podengo, um vasto e indistinto rosto e uma máscara – estranha, assustadora ou bizarramente cómica quando, colada ao resto do corpo, aparece de novo como as suas costas. A ideia de Bob teve, por fim, três consequências. Refuta a convenção frontal – como já tinhas feito com a personagem em pé em For MG: the movie, que tanto fez pensar em Magritte. Dá ao solo uma verdadeira missão, partindo de uma ideia simples e rica em efeitos e ensinamentos: dando vida, por exemplo, à profundidade do cenário, sendo que a cortina preta não é apenas uma simples extensão do fundo negro, em contraste com a tua silhueta iluminada que te traz visualmente perto de nós. A tua orientação abre uma perspectiva no escuro, ganha, assim, uma profundidade incomensurável. Por fim, fazer face ao longínquo permite-te não fazê-lo a nós. No meu ponto de vista, és alguém de essencialmente secreto, e na maneira quase perversa de um pirilampo, sentes-te atirada pelas luzes da rampa. As tuas danças são sempre brilhantes nas suas construções e execuções (bendita seja a tua excelente companheira). No entanto, elas não cedem facilmente perante o olhar. Exaltam em actividade, agitando-se para a frente, caindo, têm movimentos rápidos, arrancadas súbitas, saltos repentinos, mergulhos, subidas, descidas inesperadas, convulsões. Não se instalam confortavelmente em cena. Convulsionam-se também metaforicamente, tendo a ironia e a subtileza como pontos comuns. Por vezes, a interpretação evoca os animais apanhados pelas luzes de faróis, ou um insecto agulhado, qualquer que seja a sua beleza exótica. Quem era esta mulher mascarada? Face ao longínquo, não tens que fechar os teus olhos, como que incomodada pela luz dos nossos, ávidos. Sabes que não podes nem saber, nem te preocupar sobre o direito que tens em nos olhar, não tens que desviar o teu olhar. Com isso resolvido e a tua intimidade preservada, pareces relaxar-te e ocupar-te por inteiro. Santo Deus, como danças! Pura, segura, intensa, selvagem e totalmente consciente de ti própria. Não somos observadores, somos convidados a olhar. Não és exactamente o nosso ponto de observação mas um meio que existe entre nós e outras coisas, como uma visão impensável ou impossível de se conhecer no volume do longínquo, e por vezes ainda mais, até ao mar de veludo que serve de ecrã para as nossas projecções. Esta ilusão do longínquo – passar de uma figura que dança positivamente sobre o escuro a uma figura que dança negativamente sobre um espaço vazio, impossível de adivinhar e assim em crescendo – é profunda-

mente satisfatória, mítica e totalmente teatral. Pouco a pouco, fui apreciando a música. Por um lado, coloca-te bem em cena. Debaixo dos nossos olhos, as luzes da cena começam a… derivar, apesar de nós, pois a cortina abre-se e o escuro torna-se numa cor, não em ausência. Os nossos olhos vêem-te, a ti, depois a paisagem lunar das tuas costas, o claro-obscuro que nos fascina, enquanto que tu levantas os braços, aproximando-nos de ti e tornando-te imensa, mulher cujas costas são um teatro. Como perante marionetas, devemo-nos ajustar à sua escala, enquanto que o corpo do marione-tista se move à vista. É algo comum ao equilíbrio entre a figura revelada no desenvolvimento da dança e o seu solo – em detalhe ou de pé, as costas são o busto, o busto são as costas, para os observadores convidados a olhar mais longe. Em filosofia, quando tanto é alcançado com meios tão raros, utilizamos o termo “elegante”. É exactamente isso. Para brincarmos um pouco: o fim. Ficámos habituados a estes materiais, e como tu disseste o que tinhas a dizer, está na altura de parar. A luz veste-te, de novo. Os teus braços voam alto para depois caírem e juntarem-se às suas posições assimétricas do teu corpo, as pontas dos dedos em estado de alerta na tua superfície e a figura repentinamente tranquila da tua silhueta. A luz esvaise, exactamente como é preciso. Mas a música – será que ela também se esvai? Fiquei com a impressão de uma obstrução acústica. Prolongar a música no escuro, por um momento, provocaria uma agitação suplementar – ao perder as nossas referências visuais, seríamos todos engolidos no escuro, aquele do qual foste origem; poderíamos então viver o que vimos para além de ti na tua cena, mas apenas à distância. Poderíamos ser tu própria aí mergulhada, ou ressentir o que talvez sentiste quando disso fazias parte, fazendo face. Ainda transportados pela música, estaríamos ainda mais desfasados, a tua face visível assim regressaria. Passaríamos do concreto para sensações mais oceânicas – o implante original e o escuro. Falo e falo… Deixa-me apenas te dizer que penso que Trillium estaria orgulhoso de ti. No prazer de te rever, Amor, Steve

Texto gentilmente cedido pelo Auditório de Serralves Tradução do francês: Francisco Valente

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NGULARES DUAS NOITES SISERR ALVES TRISHA BROWN EM PARA CINCO PEÇAS ESPECIAIS

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Trisha Brown não vem ao Porto mas o programa preparado para dar mostras da sua relação próxima com Robert Rauschenberg é suficiente justificação para não perder aquele que já é uma dos mais entusiasmantes ofertas do Auditório de Serralves a fechar com chave de ouro a retrospectiva Em Viagem 70-76 que, desde Novembro, o Museu dedicou ao artista norte-americano. Pela quarta vez em Portugal, o trabalho desta pioneira da dança contemporânea faz-se com um programa que reúne quatro peças da década de 70 e apenas uma de 90. Será a oportunidade para rever If you couldn´t see me now (estreada em 1979 mas a versão que veremos é de 1994), que já se apresentou na Culturgest em 1995 (ver a este propósito a crónica de António Pinto Ribeiro, A Face Oculta, página 96) e onde “a regra básica da dança neutraliza a representação da emoção quotidiana para

transformar o corpo numa forma abstracta poderosamente expressiva”. Dançando de costas, uma ideia que partiu do próprio Rauschenberg, a bailarina que agora substitui Trisha Brown “sumariza a aplicação de uma estrutura rigorosa e da contenção auto-imposta como forma de desencadear a invenção coreográfica” (leia a carta que o coreógrafo Steve Paxton escreveu a Brown, depois de ver a peça, na página 40). Mas do programa constam ainda três breves peças que exploram o modo como Trisha Brown introduziu na dança um fraseado quotidiano, sabendo traduzir para uma performatividade encantatória toda uma carga simbólica sem, no entanto, deixar de traçar evidentes fronteiras entre um e outro universo. São o caso de Sticks e Spanish Dance, ambas de 1973, e Figure Eight, do ano seguinte, peças nas quais o movimento surge


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como consequência de um diálogo mudo entre os intérpretes que, explorando a cumulação gestual, constroem partituras quase secretas e íntimas. O programa, que se repete nas duas noites, terminará com Foray Fôret, de 1990, peça “marcada por uma simplificação deliberada, que inclui um novo vocabulário de movimentos íntimos gerados pelo recurso ao inconsciente – aquilo a que Trisha Brown chama ‘aberrações delicadas’”. A peça articula o trabalho dos intérpretes com a exploração dos sentidos dos espectadores, através de uma fanfarra que actua, normalmente, for a do teatro. A presença da Trisha Brown Dance Company em Serralves completa-se com uma masterclass, destinada a bailarinos de nível médio, e a decorrer no dia 30, onde alguns dos intérpretes trabalharão aquilo a que Trisha Brown apelidou de accumulation process.

Leia na OBSCENA #7 a conversa entre Trisha Brown e Yvonne Rainer a propósito de Glacial Decoy, coreografia da primeira datada de 1979 com figurinos de Robert Rauschenberg. Excerto: “Primeiro há as fronteiras da frase, depois o coração da dança... De cada vez que falo de dança acho que estou a mentir. É muito complicado mas vou tentar simplificar. Não revemos a segunda secção. A terceira parte é um dueto que exprime o centro da dança, e na sequência final, todas as secções são mostradas individualmente. O que faço num movimento retirado da sua unidade repercute-se nas frases e na peça inteira – isto para concluir. A dança está saturada de movimentos escorregadios, de rupturas nos movimentos, o espaço, a direcção. Ela parte sempre para onde não esperamos. A minha dança é imprevisível, improvável, contínua. Neste contexto uma frase a quatro tempos torna-se um clímax. O meu trabalho fala da mudança de curso, de forma, de velocidade, de humor, de estado. A sua execução é tumultuosa, mas se a dinâmica do movimento é a certa, há um conforto.”


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BLACK KIDS

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APOSTA

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TA S O AP

O FUTURO NÃO É NEGRO texto Francisco Valente

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O novo futuro da música pop não vem de Nova Iorque nem tem um nome necessariamente consensual (quem disse que era preciso?). Cinco amigos juntaram-se há dois anos para formar o grupo de quem se espera um grande disco para muito em breve. O E.P., intitulado Wizard of ahhhs, foi lançado em Agosto passado e recebeu críticas entusiasmantes. Em Abril sai o primeiro single, esperando-se um álbum para poucos meses depois. São os Black Kids.


Se tentássemos adivinhar, teríamos algumas dificuldades. Mas um dos grupos a gerar mais entusiasmo na música independente norte-americana nos últimos tempos vem de Jacksonville, na Florida. E chamam-se Black Kids, apesar da maioria dos elementos do grupo não ser de propriamente de origem afro-americana. Quem são eles, então? Dois irmãos filipinos: o cantor e guitarrista Reggie Youngblood (uma mistura de Prince com Phil Lynott dos Thin Lizzy - afro incluída - e voz Robert Smith), a charmosa teclista Ali Youngblood; assim como o baixista Owen Holmes, o baterista Kevin Snow, e a segunda teclista Dawn Watley, amigos de amigos de infância. Uma banda multicultural a condizer com a reapropriação estética indie de várias épocas. Porque entre os adjectivos habituais que poderíamos empregar para a música que tocam (épica, energética, dançável, pop, positiva), ou os grupos onde parecem buscar influências (Arcade Fire, Go! Team, The Cure), vamos arriscar e dizer que também há muito de Beach Boys, muito de Motown, e, quem sabe, de Michael Jackson. Será este o grupo pop perfeito do momento? Depois de se formarem em 2006, o grupo teve de esperar até ao ano seguinte para um primeiro momento de consagração: o festival Athens Popfest em Athens (Geórgia, E.U.A.). Uma meia-hora de concerto que pôs todos os bloggers a escrever sobre o que tinham acabado de ouvir, para além de desencadear uma série de artigos na imprensa especializada (e não só), culminando em referências no New York Times e numa presença na listagem de grupos a ouvir este ano pela Rolling Stone. Sem experiência, sem disco, sem contrato, os Black Kids viam-se no centro de todas as atenções, sem terem exactamente pedido por isso. O que se pode ouvir deles, por agora, são quatro músicas, todas disponíveis para download no seu sitio do Myspace. I’m not gonna teach your boyfriend how to dance with you é o mais referenciado e já guardado para um lançamento comercial a 7 de Abril, uma música que vem, segundo Reggie Youngblood, da experiência de dançar (incrivelmente bem) com raparigas de Jacksonville, sem no entanto conseguir levá-las até casa. I’ve underestimated my charm again e Hit the heartbrakes são outras músicas de destaque – a primeira também merecedora de um futuro lançamento (está lá a energia e a mudança de ritmo à Arcade Fire que já garante o seu público), a segunda a lembrar (sacrilégio) melodias do

Pet Sounds, ambas tão entusiasmantes como os seus deliciosos títulos. Hurricane Jane é puro anos oitenta, com sintetizadores e batida suave à altura. As letras são irónicas, divertidas, sinceras, inseguras. Porque apesar da força toda que parecem ter, os Black Kids são ainda inseguros na sua forma de tocar, no som que nos dão, nos sentimentos que transparecem. Trazem-nos de volta o sentimento que se tem ao dançar sozinho na pista de dança, como quem pede por alguém ou por uma atenção (a carência smithiana), a euforia de uma noite bem passada, a doçura preguiçosa de abrir os olhos e acordar depois dessa noite numa bela manhã (ou tarde). O New Musical Express, umas das publicações encarregues de espalhar o fenómeno, descreveu-os como “quando se acorda depois de uma maravilhosa noite de sexo, ao mesmo tempo que se olha para o lado e vimos que o nosso parceiro é um travesti”. Forma trapalhona, ainda que engraçada, de se marcar o exotismo de uma banda. 45

Por isso, onde estará a novidade dos Black Kids? Talvez seja sempre a mesma: a de parecerem representar um momento, os sons e as cores que vivemos numa dada altura. Uma mistura de origens e de influências que atravessa géneros e gerações. A ingenuidade de se escrever uma música pop sobre um beijo ou uma noite, e fazer dela uma banda-sonora que ainda nos anima. Vozes de miúdos que parecem viver através da música. E do movimento: pôr um público inteiro a mexer-se a cada nota que tocam, a berrar com eles cada vez se grita “one, two, three”, ou a fundirem-se na atmosfera da guitarra spectoriana e do seu “muro de som”, com palco e público a mexer as ancas. “Dance, dance, dance!”, berram os miúdos. Fórmula de sucesso? Este ano assim o dirá. http://www.blackkidsmusic.com/ http://www.myspace.com/blackkidsrock


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CAMAROTE PAR

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OPINIÃO

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CAMAROTE PAR Por

André Dourado

UM ANO É MUITO TEMPO. Passado que é já algum tempo sobre a saída de uma equipa ministerial da Cultura que foi amplamente criticada nesta coluna – presumindo-se que a sua demissão é um reconhecimento público da razão das críticas generalizadas que lhe eram dirigidas – parece-nos não valer a pena comentá-la, nem sequer fazer uma lista dos erros cometidos e das mudanças expectáveis. As más nomeações são sempre reversíveis quando há competência técnica e coragem política dos decisores e, atendendo ao factor tempo, do inexplicável programa político aplicado, só a OPART exigiria uma decisão radical, sendo uma aberração funcional e um contra-senso cultural. É precisamente falando em tempo, e sobretudo do tempo que falta até às próximas eleições legislativas, o único que o novo Ministro pode ter por garantido (partindo do princípio de que não é remodelado) que devemos pensar a acção possível - a “desejável” levarnos-ia mais longe - de José António Pinto Ribeiro. Ao contrário do que se possa daí inferir, esta limitação temporal não faz dele, necessariamente, um ministro de passagem, com a tarefa de levar discretamente e sem dramas um Ministério até uma refrega eleitoral problemática. Pode ser, isso sim, uma oportunidade para deixar uma marca se conseguir ou quiser concentrar-se em duas questões fundamentais para a cultura que relevam da sua formação profissional: o mecenato e o estatuto legal das profissões artísticas. Mais do que um grande domínio de técnica jurídica, que notoriamente não falta ao Ministro, ou ampla experiência negocial, que no caso dele até é internacional, estas duas questões exigem uma boa percepção das realidades económicas mas também humanas (que o seu trabalho em prol dos Direitos Cívicos certamente garante) da cultura, e ainda peso político pessoal, que lhe é atribuído numa dimensão como provavelmente desde Manuel Maria Carrilho nenhum Ministro teve. A Lei do Mecenato pode ser melhorada em termos de contrapartidas e desburocratizada, devendo ser dirigida não só aos grandes mecenas mas pensada para as empresas de média dimensão à escala nacional, ligando-as a projectos mais pequenos e locais. A outra questão, mais complexa, é a criação e implementação de um Estatuto dos Profissionais das Artes, abrangendo todo o sector cultural e não só as artes performativas (as profissões do Cinema, os produtores culturais, etc), resolvendo os problemas ligados à irregularidade de ac-

tividade e rendimentos, quer a nível fiscal, quer a nível de obrigações e direitos na Segurança Social. Estas são questões que exigem negociações eficazes com o Ministério das Finanças, e simultaneamente, uma grande competência técnica e capacidade política e negocial com aquele. E explicar claramente – o que talvez o Ministério da Economia possa ajudar a fazer, agora que aposta na promoção cultural – que os gastos com a cultura são um investimento e não pura despesa, que constituem um capital nacional para o futuro, assumindo que o que se gasta de um lado se recupera por outro. Depois, ainda nas minudências jurídicas, há questões de fácil resolução como a revisão da Lei do Depósito Legal: a que está em vigor, de 1982, poder-se-ia chamar “da extorsão legal” que não faltaria muito à verdade. Não discutindo sequer se cabe aos editores encherem as bibliotecas públicas – podemos até aceitar que de cada edição se devam entregar um ou dois livros ao Estado, como participação na construção identitária, garantia de conservação de património, acesso público, etc – é justa a entrega de 14 exemplares? E ainda para Macau? Como está, a lei é lesiva e injusta, sobretudo para as pequenas editoras, que em Portugal são paradoxalmente responsáveis por muita da melhor publicação em termos de mais valia cultural. Ora tendo Rui Mateus Pereira, antigo Director do IPLB, deixado preparada uma nova lei, mais equilibrada, que não foi aplicada, porque não recuperá-la? E o novo Ministro pode ainda ajudar a criar bom senso na questão das alterações no ensino artístico (que no Ministério da Educação persistem em confundir com a educação artística), que também lhe diz respeito porque é esse sector que forma muitos dos futuros profissionais da área que tutela. Desde a sua criação em 1996, o Ministério da Cultura teve sete Ministros, e não é propriamente um motivo de regozijo o facto de os mesmo sete se terem sucedido quase vertiginosamente nos últimos oito anos, gerando uma situação de impossível estabilidade no sector, de resto agravada pela eterna mania de reinvenção da roda por cada nova equipa. O Ministro Pinto Ribeiro pode ficar na história do Ministério e tem tudo para isso. Se souber evitar o escolho que representa, para muitos, a sua anterior ligação à Fundação Museu Berardo – o que só seria dramático se esquecesse que a sua nova relação com o Comendador tem tanto de parceria como de oposição, atendendo a que os interesses do Estado não são, claramente, os do fundador privado – e se decidir dedicar-se àquilo que provou saber fazer bem, o tempo de governação que tem chega e sobra para tal…

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PERSPECTIVA

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Prosseguimos neste número o dossier sobre as políticas culturais europeias, com mais quatro países, Áustria, Chipre, França e Irlanda, que se juntam aos onze que apresentámos no número 7, em Novembro passado. Os casos que os autores convidados nos apresentam, todos eles coincidentes na retórica do discurso sobre a existência de uma identidade cultural nacional – e por consequência de uma identidade europeia – prolongam uma reflexão sobre o que nos une nesta Europa que se quer a 27.

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AÚSTRIA texto Mariella Greil

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PIRATA SEM BASES

UM PROFISSIONAL DA ESPERANÇA DIZ ELA, CONTINUANDO A RESPIRAR

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Com essas primeiras palavras, desviei-me levemente do tópico “A Europa e as identidades nacionais” para aterrar em Chiapas(1), México, abrindo instantaneamente uma rede complexa de referências ligada a uma revolução pós-moderna, ela mesma inserida num movimento anti-globalização, um movimento social e uma armada de sonhadores. “Se a esperança está separada de conceitos como o optimismo e o pessimismo, de uma projecção desejosa de sucesso ou mesmo de alguma forma de cálculo racional dos resultados, então penso que se começa a tornar interessante – por tomar lugar no presente.” (Brian Massumi) Não vivo, actualmente, na Áustria, e para ser sincera, tive que ir ao Google à procura da letra do hino nacional austríaco. Vivo no Reino Unido. Os Britânicos consideram-se não-europeus, o que acho surpreendente. Eu sou uma “austríaca europeia” que vive com “britânicos não-europeus” numa coabitação multicultural que anseia por um intercâmbio generoso para além do comodismo. Contudo, lembro-me de cantar na escola primária “corajosamente avançamos nos tempos futuros, ansiosos por trabalhar e cheios de esperança(2)”. Este fragmento vem de uma época onde a esperança era a motivação para um dia, o próximo dia, se construir um futuro no pós-guerra. Hoje, preciso da esperança, no presente, num tempo de sistemas falsos de segurança e paz assegurada.

“Não sou uma nação”, diz ela, continuando a respirar enquanto que 600 soldados austríacos chegam ao Chade. Lembro-me muito bem das discussões acesas na nossa família, se a Áustria deveria juntar-se à União Europeia em 1994, que também foi o ano em que comecei os meus estudos. Iria em breve usufruir do novo programa de intercâmbio de estudantes (fundado pela União Euro-

peia) no Centro Europeu de Desenvolvimento de Dança (CEDD) [European Dance Development Center] em Arnhem (Holanda). A minha educação abraçava a ideia de colaborações interculturais e interdisciplinares. Como performer e pirata, continuo a respirar. Os principais medos e argumentos de que me lembro nessas discussões andavam à volta da questão da “eterna neutralidade” da Áustria. O tratado de 1955 entrava em conflito com os regulamentos da OTAN – a Europa esperava uma partilha das responsabilidades por todos os países europeus num caso de crise ou intervenção, de combate ao terror ou guerra activa. Outros assuntos quentes eram os alimentos geneticamente modificados e a protecção do ambiente, que parecia estar regulado de forma mais rigorosa na Áustria do que na maior parte dos países da União Europeia. Começámos todos a gastar euros (em vez dos xelins), entrámos na União Europeia e continuámos a respirar. Respirando juntos para além das identidades. Falo de esperança. Todas as coisas existem como são: - territórios efémeros. Como uma tentativa de se escapar à centralização, qualquer agrupamento político também radia sempre pelo globo. Partilhas íntimas de território pertenças intimidade com a terra casa ou continuarei a vaguear ... a ser vago sem definição... sem território Bailarina e coreógrafa Tradução do inglês: Francisco Valente

(1) o título recupera um excerto do texto texto do Exército Zapatista (2) em alemão: mutig in die neuen Zeiten, arbeitsfroh und zukunftsreich“ retirado de http://www.nationalanthems.net retirado de http://www. theport.tv/wp/pdf/pdf1.pdf

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CHIPRE texto Melanie Christou

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Identidade Cultural em Chipre Um. Desligo o telefone e vejo-me a olhar especada para o chão durante alguns segundos antes de recuperar do choque. São nove da manhã, acordei e fui directo ao telefone para telefonar a uma organização de artes com sede em Chipre que publicitava uma vaga de emprego. Precisava do endereço e-mail da pessoa que recebia as candidaturas.

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Lá para o fim da minha conversa com uma senhora bem relutante, lembrei-me que o meu currículo estava em inglês. Perguntei, preocupada, se isso seria um problema, mas a resposta que tive foi: “Ah, se estiver em inglês, ainda melhor.” Este é um exemplo brilhante de como as coisas são. Em poucas palavras: se é inglês, nós gostamos! Ver as comodidades ocidentais (ou europeias, se quisermos) como valores de algum modo intelectualmente superiores ou mais avançados que os “nossos” é uma das principais características da ilha. Quando conversam, as pessoas geralmente falam sobre Chipre e a Europa como “nós” e “eles”, mostrando uma relação há muito perdida pelos séculos da nossa interessante mas complexa e turbulenta história. Dois. A teoria de que o significado de “nacionalidade” e “identidade” são construções políticas não é nova, nem absolutamente válida, sendo, para além disso, algo maleável, mas ganha algum peso tendo em conta certos contextos. Identidade cultural do quê? Que cultura ou, melhor, de quantas culturas e identidades estaremos a falar? E onde? Não existe maior generalização que juntar “cultura” e “identidade” e torná-la numa só frase. Implica tantas questões e perguntas, sendo a natureza de tudo que nos rodeia de tal forma transitória que basta pormos o nosso dedo em cima de algo para isso mesmo mudar. Gostaria, contudo, de sublinhar a importância dos termos “cultura” e “identidade”. Muitas questões se levantam a partir deste último (demais, até), mas poderão os dois ligarem-se um ao outro, existir de forma legítima e


independente? E serão assim tão importantes nas artes em Chipre? Três. Em vez de falarmos sobre a identidade cultural, faria mais sentido se falássemos sobre a identidade histórica (outra construção política, talvez?), estando esta de tal forma ligada à propaganda do Estado que nos dá um sentido, de certa forma grego através do seu recurso assíduo ao sistema educativo. A ilha foi mudando de mãos através da história com tanta frequência que se torna difícil perceber o impacto cultural, hereditário e biológico que esse fenómeno foi tendo nos seus habitantes. Talvez o dialecto cipriota seja o exemplo mais flagrante em termos de identidade cultural ou histórica: uma mistura de grego antigo e moderno, algum calão turco e palavras italianas e árabes e, mais recentemente, a junção do inglês, no discurso quotidiano. Esta última língua poderá ser explicada como resultado do póscolonialismo e o complexo de inferioridade que a população sofreu por ter carregado sucessivos “mestres” aos ombros. Será isto um cronograma filtrado do imperialismo cultural pelo qual a ilha tem passado? Alguns poderão concordar; outros poderão negar tudo e defender a ilha como sendo grega, mas o debate não tem fim. Quatro. As coisas tornam-se ainda mais complicadas quando se considera a Europa; o Chipre Grego entrou na União Europeia em 2004 o que levantou ainda mais questões. Como se sentirão os cipriotas europeus e o que serão? O que é, na verdade, a Europa, e como se decidiu que uma certa parte do mundo se chamaria assim, funcionando através de políticas de fraternidade, apoio, leis comuns e forças armadas? Não é segredo que os media e os representantes da cena política local apresentam esta mudança histórica como a via para a paz, a prosperidade económica e um melhor modo de vida para as pessoas. Na verdade, a entrada na União Europeia não teve um grande impacto na identidade da ilha. A sua ocidentalização e europeização já tinha acontecido há muito, quando ela obteve a sua independência nos anos 60 e entrou num remoínho vivo de modernidade e contemporaneidade, colocando em risco a suas características populares tradicionais.

Cinco. O que se vê agora é uma nova geração de artistas com um certo esforço inconsciente, para alguns pelo menos, de juntar a contemporaneidade ocidental com a arte popular cipriota (ou o “cipriotismo”), resultando numa nova identidade que tanto aceita como condena o passado e o presente da existência cultural de Chipre. Ainda há, com certeza, um grande número de artistas cipriotas que se esforçarão activamente para enclausurar e usar todos os conceitos, estilos e técnicas existentes no Ocidente, algo que revela, para mim, não mais que pura mimética, falta de imaginação e de profundidade de análise. Por outro lado, estas acabam por ser as principais influências que se guardam quando se vive e se estuda no estrangeiro. A maneira como um artista irá usar e filtrar todo o conhecimento que reuniu nos seus círculos sociais, físicos e intelectuais é um assunto absolutamente pessoal e idiossincrático. Um exemplo de trabalho que traz uma perspectiva de esperança sobre o que pode ser considerado como arte contemporânea cipriota é a curta-metragem Urban Nomad de um jovem realizador Orestis Lambrou (e que pode ser encontrada no Youtube - http://youtube.com/ watch?v=3zi1aiJiCfQ). Um filme de sete minutos focado num dia de um dos muitos vendedores de lotaria na capital, Nicosia, mostra imagens claríssimas de uma das várias “faces” da ilha – aquela que muitos cipriotas não gostariam tanto de projectar para fora. A imagem, o som e a história deste filme captam de forma realista a vivência muitas vezes silenciosa e seca da cidade e das pessoas que aí vivem. Por fim, o que acaba por ser crucial no filme é o facto de não tentar ser nem se parecer como nada para além daquilo que realmente é, juntando de forma positiva as influências tanto de Este como Oeste que tanto caracterizam a ilha. É importante que mais jovens artistas comecem a acreditar na sua própria identidade e que procurem mais dentro de si em vez de saírem por outras direcções ou esforços de identificação consigo mesmos e com o seu trabalho. Não há nada pior do que ver uma nação a mover-se esporadicamente de nacionalismo em nacionalismo, do grego para o turco, do inglês para o árabe e assim de seguida, sem tentar descobrir aquilo de que realmente é feita. Investigadora Tradução do inglês: Francisco Valente

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FRANÇA

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Crise de identidade texto Jean-Marc Adolphe

Nunca tive um orgulho profundo em ser francês. De que maneira o facto de pertencer a uma ou outra nacionalidade me daria um sentimento de poder, de superioridade, de orgulho? Mas já que é preciso um “bilhete de identidade” para todas as espécies de formalidades administrativas, já que é preciso um “passaporte” para poder passar certas fronteiras, sou portanto francês, nascido num país chamado França. Isto não me é indiferente. Se sou o resultado biológico dos meus pais (mas a identidade deles não é a minha), sou também o produto cultural de uma dada história: aprendi a falar numa língua (porque dizemos “língua materna”?) que tem os seus próprios sabores, os seus trejeitos, os seus autores. Não será, esta mesma língua, uma mistura de mestiçagens sucessivas, não se terá imposto progres-

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sivamente como “língua nacional” entre rejeições (as “línguas regionais”, como a língua d’oc, o bretão, etc.) e colagens (o grego e o latim, mas também o árabe e o anglo-saxónico, entre outros)? Estou, com certeza, a declamar evidências… Seria também preciso dizer, em relação à língua que falo primeiramente, que se ela eventualmente “me identifica” como francês, nada diz sobre a minha “identidade” íntima, profunda, secreta. Pelo contrário. Como Octávio Paz, acredito absolutamente (e misteriosamente) que “todo o homem precisa que lhe falem numa língua estrangeira”. Enfim, a identidade é algo de infinitamente complexo. E sobretudo, algo que pertence absolutamente à esfera privada. As minhas eventuais crenças, a minha sexualidade, os meus gostos culinários ou estéticos: tudo isso que forma a “minha identidade” de forma confusa diz respeito a mim apenas, e tudo isso me diz, ao olhar dos outros, muito mais do que as minhas datas e o local de nascimento, a cor da pele, dos olhos e do cabelo, o tamanho e o peso que vão estar no meu “bilhete de identidade”. Aí está a razão por ter sempre suspeitado dos que querem confundir identidade com nação. Aí está porque tenho vergonha, hoje em dia, de ser cidadão de um país onde o actual Presidente da República quis obstinadamente um ministério como garante da “identidade nacional”, conceito obviamente colado à questão da imigração (1). Sabemos que este novo Presidente, Nicolas Sarkozy (de quem a família é, apesar de tudo, de origem húngara), ganhou a eleição presidencial ao chamar a si e ao seu programa eleitores antes atraídos pela extrema-direita. Em França, como noutros países europeus, a extrema-direita prospera num terreno onde o medo do outro, o receio do estrangeiro alimentam um retrocesso identitário baseado em invocações nacionalistas. Assim, o Front National, em França, (cujo líder, Jean-Marie Le Pen, chegou à segunda volta das eleições presidenciais de 2002) reivindicou sempre a “preferência nacional”. De uma certa maneira, é isso que o governo formado por Nicolas Sarkozy põe em prática ao autorizar os testes ADN para permitir (ou, melhor, recusar) o “agrupamento familiar” em função de uma filiação estabelecida no único critério genético; ou ainda ao defender uma “imigração escolhida”, definindo as quotas de entrada de estrangeiros no território francês por países de origem e por profissões. Em França, um antigo Presidente da República (Valéry Giscard d’Estaing) tinha falado em seu tempo (no final dos anos setenta) de um risco de “invasão” estrangeira, e não evocava na altura a invasão militar de um país conquistador, mas sim a invasão demográfica de imi-


grantes vindos de países onde o Ocidente (e particularmente a França) tinha copiosamente pilhado durante décadas os seus principais recursos. A nossa prosperidade económica deve muito a estas pilhagens, assim como toda a importação de mão-de-obra pouco qualificada (e miseravelmente paga) que serviu à reconstrução do país no final da Segunda Guerra Mundial. A imigração era então uma necessidade económica: como se importava petróleo para fazer andar os transportes (e não só), importávamos italianos, portugueses, magrebinos e africanos para construir estradas e prédios. Mas hoje, qual é a imigração de que necessitamos? De médicos, porque faltam. De especialistas em alta tecnologia, etc… O que falta denunciar aqui é uma visão da migração (e não apenas da imigração) apenas filtrada pelo utilitarismo económico. A globalização impõe hoje uma saída da competição mundial, onde cada nação, ou cada continente, tentaria “retirar a sua agulha do jogo”. Trata-se hoje em dia de ver como o mundo (e aqui ao dizer “o mundo” quero falar do Todo-Mundo: como formamos todos “o mundo”, este mundo) pode continuar a humanizar-se face a um capitalismo sem fé nem lei e que se apropriou de toda a referência do “bem-estar da humanidade” (que foi, apesar de tudo, um dos seus princípios iniciais). Enfim, como ganhar de novo o controlo das nossas economias, das nossas culturas, das nossas vidas? Essa é a única questão “identitária” que me importa verdadeiramente hoje. A identidade francesa não existe (e poderíamos enumerar isto em todos os tons: quando nos meados dos anos 80, alguns já se extasiavam face à “nova dança francesa”, eu respondia de maneira inevitavelmente provocante: “a dança francesa não existe”: para além do mais, esta mesma “nova dança”, tal como surgiu em França, não foi ela mesmo moldada por imigrantes, tais como os americanos Susan Buirge e Mark Tompkins, o japonês Hideyuki Yano, a africana Elsa Wolliaston, etc…)? A identidade nacional não existe. A forteriori, a identidade europeia não existe! Sinto-me profundamente europeu (e não só, pois ao viajar ao Japão, ao Canadá, à Argélia, ao Brasil, partilho acima de tudo a humanidade), mas seria incapaz de definir os contornos de uma “identidade europeia”. Se me é permitido, esta mesma questão da identidade europeia foi abundantemente agitada aquando da redacção do projecto de tratado constitucional, sobre pressão de certos lobbies que encontraram alguns governos (nomeadamente a Polónia) para que fosse indicada no tratado constitucional a religião católica! Será que voltamos ao tempo das cruza-

das? Enfim, esta questão de identidade europeia é uma perda de tempo, uma ilusão sabiamente alimentada por um capitalismo tornado monstruoso para continuar a dividir os povos, afim de melhor reger sobre eles (com algumas guerras civis até hoje, ontem na Ex-Jugoslávia ou no Ruanda, hoje no Darfur, para alimentar a chama…; sem falar no fantasma do “choque das civilizações”, sobre o qual a administração Bush estabeleceu o seu desastroso fundo de comércio planetário). Assim, em vez de insistirmos no que faria a identidade, seria mais que tempo de voltar a dar um sentido humano (logo político, etimologicamente falando) à cons-trução europeia. Por que sim, existe uma cultura europeia, preenchida por tantas diversidades. Esta cultura europeia é uma base comum para valores e sabores. Ela tenta formar a identidade de cada um, mas nunca será a “identidade” em si. E sobretudo, de nada serve fixar os seus contornos, porque uma identidade nunca é fixa e definitiva. É sim, por essência, um movimento em direcção do desconhecido, como sabem os Tuaregues. É um work in progress em permanência. O qual, mais uma vez, pertence à esfera privada de cada um. Neste sentido, convém levar em conta Edouard Glissant e Patrick Chamoiseau, escritores da creolização [da zona Caribenha], quando para a insígnia do Instituto do Todo-Mundo propõem colocar “a identidade fora da lei” (2) – e o que escrevem sobre a “identidade nacional” vale o mesmo para a suposta “identidade europeia”: “A identidade apenas vive e continua se preceder de uma naturalidade do corpo colectivo, livre de constrangimentos calculados. Não saberíamos conceber um ministério da Identidade Nacional dedicado à mestiçagem sistemática, ou a misturas impostas, do mesmo modo que não aceitaríamos que esse mesmo ministério se dedicasse à integridade de uma suposta natureza ou a uma pretensa transparência da cultura da nação, o que apenas os regimes ditatoriais estabeleceram de forma deliberada. Na verdade, as relações de identidade estão invariavelmente ligadas às relações com o mundo, o que torna a sua riqueza muitas vezes indecifrável. Vivemos com esse sentimento precioso: que a identidade é um mistério para vivermos, vivermos de maneira mais ampla, mais aberta, e que é de viver esse mistério que sintamos que vivemos e que sintamos existirmos”. Director da revista Mouvement Tradução do francês: Francisco Valente

(1) – O nome preciso deste ministério é “Ministério da Imigração, da Integração, da Identidade Nacional e do Co-desenvolvimento”. (2) – Edouard Glissant e Patrick Chamoiseau, Quand les murs tombent. L’identité nationale hors la loi ?, edições Galaade, Paris, Setembro 2007, www.galaade.com

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Entre Boston e Berlim texto Michael Seaver Havia em Dublin uma velha piscina ao ar livre perto da praia onde cresci. Já caída em desuso depois do apogeu da paixão dos banhos vitorianos, enchia com a maré cheia e permanecia cheia muito depois da maré vazar. Uma certa manhã, no princípio dos anos setenta, o bairro acordou e viu graffitis pintados nos seus muros de pedra: “NÃO À CEE.” Nos anos seguintes, o graffiti foi desaparecendo, assim como a resistência à integração europeia que tentava encorajar.


Um referendo sobre a entrada da Irlanda na Comunidade Económica Europeia passou, após um longo debate, com o apoio de 83,1% da população. As considerações práticas, como os suplementos agrícolas e as discussões ideológicas à volta da identidade nacional, eram temas de conflito, mas a adesão à CEE também proporcionou uma oportunidade de alinhamento da Irlanda com a Europa e de aliviar as ligações fortes, tanto económicas como ideológicas, com o Reino Unido. A dança na Irlanda tem espelhado esta auto-determinação pós-colonial: procurou implantar a sua própria identidade nacional (para além da britânica) ao afastar a dança irlandesa tradicional. Na mesma altura em que a Irlanda discutia a sua entrada na CEE, Joan Denise Moriarty estava a formar a sua Companhia Nacional de Bailado Irlandesa. O trabalho de maior sucesso do grupo foi uma versão da peça The playboy of the western world de JM Synge, e o ballet integrou os passos tradicionais no seu idioma, algo que ficou marcado como “irlandês”, juntamente com a música tradicional dos Chieftains. Ser “irlandês” foi importante para os criadores de dança que iam até aos primeiros ballets criados por Ninette de Valois (que acabou por fundar a Royal Ballet da Grã-Bretanha) e um trabalho antigo, Faun, aclamado no jornal Irish Times, em 1928, como o “primeiro ballet irlandês.” Na maior parte das áreas da vida, ser irlandês significava não ser inglês, mas a entrada na CEE – mais tarde UE – reforçou a identidade irlandesa ao permitir uma re-imaginação de si própria. A minha mesada de infância poderia ser feita de moedas irlandesas ou britânicas – tanto uma como outra eram moedas formalmente aceites na Irlanda até 1986. Mas ao juntar-se ao sistema monetário europeu nos anos setenta, a Irlanda abriu caminho para a sua posição no Euro, onde se sente mais “europeia” do que britânica com os seus teimosos sterlings. Os coreógrafos contemporâneos têm-se por vezes sentido forçados a mostrar o seu “lado irlandês” ao integrarem passos populares tradicionais. O Concelho Irlandês das Artes – o principal apoiante da dança – declarou, durante os anos oitenta e princípio de noventa, que os coreógrafos contemporâneos deveriam ter em mente o rico idioma popular nas suas criações. A maior parte deles resistiu, seguindo assim o seu caminho em vez de um estilo institucionalmente sugerido, mas foi preciso um evento essencialmente europeu para essa pressão ser finalmente levantada. Em 1994, o Riverdance foi apresentado como um acto de intervalo durante o concurso da Eurovisão e, com ele, uma nova fórmula para se moldar a forma participativa da dança tradicional num evento teatral. O Riverdance teve pouca influência na prática contemporânea mas fez com que se parasse de pedir algo de “mais irlandês.”

Em 2000, Mary Harney (actualmente Ministro da Saúde) exprimiu o desejo que a Irlanda se tornasse “mais próxima de Boston que de Berlim”. Noutras palavras, que adoptasse o mercado económico livre e as políticas sociais dos Estados Unidos em vez das políticas proteccionistas da Europa. Mas apesar da Irlanda ter uma forte dependência das multinacionais americanas em tecnologia e no sector farmacêutico, para além de grande parte da sua diáspora viver nos EUA (quase 35 milhões de americanos declaram ser descendentes de irlandeses), parece ter quebrado algumas das suas ligações Americano-Irlandesas para se aproximar de Berlim. Isto pelo facto da Irlanda se encontrar numa reinvenção histórica permanente. É hábito dizer-se que não existe um tempo passado na história irlandesa porque as etiquetas e ideias usadas para descrever os irlandeses – republicanismo, orangeismo, etc. – ainda se estão a formar e ainda têm um papel no presente. O ponto de equilíbrio na dança contemporânea também passou dos Estados Unidos para a Europa. Nos anos setenta, coreógrafos americanos como Jerry Pearson, Yoshiko Chuma, Nina Martin, e Martha Bowers colaboravam com companhias irlandesas. Hoje em dia, os coreógrafos e produtores irlandeses estão mais ligados a artistas como Thomas Leahmen, Martine Pisani, Sol Pico, Raimund Hogue ou Jérôme Bel. A diferença crucial está na maneira como estes artistas vêem os irlandeses: os coreógrafos americanos que surgiram nos anos setenta e noventa traziam influências e temas do misticismo irlandês nas suas criações – deste Yeats a Newgrande –, enquanto que os coreógrafos europeus tratavam-nos como vizinhos europeus. A dança irlandesa procurava esta paridade conceitual há muito tempo. Quando perguntados sobre como a Europa mais influenciou a Irlanda, a maior parte dos irlandeses responderão “dinheiro.” Os fundos de desenvolvimento da UE ajudaram o actual boom irlandês e a bandeira da União é mais vista ao lado de símbolos de projectos infraestruturais do que nos mastros. Esses fundos estão actualmente a diminuir, mas o seu efeito é um pouco como a piscina vitorina ao lado de minha casa. À medida que a maré de apoios se vai esvaziando, a piscina permanece cheia de novas estradas, caminhos-de-ferro e pontes. Estas mudanças significam que a Irlanda passou de um centro de recepção para ser um de oferta. Mas com o crescimento económico e a paridade política, há uma confiança cultural na maneira como se é olhada como uma nação europeia, em vez de uma reserva pós-colonial. Vivendo num dos limites da Europa, os coreógrafos irlandeses guardam uma visão semelhante. Jornalista Tradução do inglês: Francisco Valente

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JOÃO PAULO SERAFIM

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CARTA BRANCA

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JOÃO PAULO SERAFIM (PARIS, 1974) Palas Atenea /Alexandre ? – Imagens inéditas (dimensão 9x11.25 cm) retiradas do vídeo (12”) realizado no Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, durante a residência de artistas Sítio das Artes durante o Forum Cultural O Estado do Mundo 2007. Cortesia do Museu Improvável de Imagem & Arte Contemporânea (MIIAC)



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PONTO CRÍTCO

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OPINIÃO

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PONTO CRÍTICO Por

Eugénia Vasques

SENHOR MINISTRO: COITADO DO TEATRO NACIONAL!

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1. Agora que a nova equipa dirigente do Ministério da Cultura se encontra a estudar os dossiers herdados da catastrófica gestão anterior, é chegada a altura de, uma vez mais, a opinião pública que-ainda-tem opinião (antigamente, a palavra “opinião” significava, correntemente, “orgulho”, “vaidade”, “cuidado com a imagem”) voltar a pronunciar-se sobre um desses tópicos crónicos na cultura portuguesa: a questão dos teatros públicos. Pelo lado da música, Augusto Seabra, no seu blog, e Ruy Vieira Nery, em suportes e circunstâncias variados, constituem algumas das raras vozes que perseguem uma incansável missão de debate e de contundente esclarecimento. Pela dança, temos ouvido, constantemente, o crítico Tiago Bartolomeu Costa a fazer o ponto da situação institucional. O teatro, porém, vítima da sua própria transversalidade e advogado “hibridismo”, perdeu lugar e vozes de legitimação e raros são ainda os críticos, os jornalistas ou os ensaístas que enfrentam a incómoda (e pouco remuneradora) tarefa de investigar, informar e divulgar as mazelas que tingem o tecido teatral português contemporâneo. Uma pequena excepção aconteceu, porém, no sábado 1 de Março p.p. no semanário Expresso de boa memória. Com algum destaque, o Primeiro Caderno ostentou nas suas colunas um pequeno e circunspecto artigo, assinado pelos jornalistas Cristina Margato e Hugo Franco, intitulado “Directores do D. Maria em Rota de Colisão” (p. 25), onde se levanta a questão de ter o “recente aluguer do Teatro Villaret por parte do D. Maria [agudizado] o mal-estar entre os membros do conselho de administração do teatro nacional”. Interrogadas, desassombradamente, fontes muito próximas do Teatro Nacional que reivindicaram o anonimato, principalmente sobre o que teria ficado por dizer naquela notícia, as respostas foram todas na mesma direcção: A matéria em si – ou seja, o aluguer do Teatro Villaret ao empresário Vasco Morgado, Júnior pela módica quantia de 11.000 euros mensais e o assumir de obras de adequação a normas (mínimas) de segurança (cerca de 329.0000 euros) – não será, então, senão uma ponta de um gigantesco iceberg a que se pode chamar “a dívida do Teatro Nacional” (que algumas dessas fontes calcu-

lam em cerca de um milhão e meio de euros). Fácil me foi concluir que, afinal, o que os jornalistas não disseram claramente é que os motivos para a referida “rota de colisão” em que os dois membros do Conselho de Administração [Carlos Fragateiro e José Manuel Castanheira] entraram em Fevereiro de 2007 não se esgota no aluguer de um edifício patrimonial mas privado – o Teatro Villaret – mas que essa colisão se estende (e estará documentada em actas e relatórios) a toda uma gestão, artística e administrativa, que, com o conhecimento prévio da Ministra Pires de Lima e do seu Secretário de Estado, vem afundando o Teatro Nacional D. Maria II na mais profunda depressão e na mais inexplicável mediocridade e mau nome nacional e internacional. 2. Não é segredo para ninguém, realmente, que os Teatros Nacionais têm vogado nas ondas erráticas de um Estado que, historicamente, nunca teve jeito para gestão cultural, mas também não é segredo para ninguém que a actual gestão do Teatro Nacional D. Maria II vem sendo protegida, amparada e encoberta nas suas vicissitudes (dívidas a credores azedos, como foi o caso do Teatro Mundial/Almeno Gonçalves que envolveu tribunal e acordos, falta de pagamento a tempo e horas aos funcionários, falta de pagamento a artistas exteriores, incumprimento de compromissos de programação nacional – vejam-se as programações anunciadas e as realizadas - mas também internacional, etc., etc., etc.) pelo actual Governo e pela autarquia lisboeta. O grande aparato com que Isabel Pires de Lima e Mário Carvalho apresentaram, em Janeiro de 2006, a “nova linha estratégica” para o TN e a subsequente defesa da vocação deste para o “grande público” em oposição ao que o Ministério chamou então “público restrito” (faltando, no entanto, fundamentar se para atingir o“grande público”, cuja dimensão nunca foi definida, se deveria levar o Teatro Nacional D. Maria II a ser uma duplicata com mais dinheiro do Teatro da Trindade vocacionado para o entretenimento, o amadorismo e as produções artisticamente menos relevantes como é o caso, tremendo, do Memorial do Convento, mais uma das reprises no Nacional da programação do INATEL) deixavam prever a catástrofe que veio a acontecer.


3. Seja qual for a dimensão exacta da dívida do Teatro Nacional, sejam quantas forem as cenas com os credores, sejam quais forem as falhas de compromissos assumidos, uma coisa me parece certa (e concordo com o que publicamente afirmou Clara Ferreira Alves sobre a matéria), e a José António Pinto-Ribeiro só restam duas alternativas: ou faz como Pires de Lima que, por sobrevivência política, não lia – ou não reagia - aos Relatórios e outras informações que lhe chegariam ao gabinete ou, ousando enfrentar algum PS (Jorge Coelho?) e alguma Maçonaria, tem de pedir contas à administração do Nacional. O crescente derramamento do orçamento no aluguer de espaços (Teatro Villaret, Teatro da Politécnica, Pinhal Novo, Cartaxo, Amadora, Estação do Rossio/REFER, etc.) para apresentação de espectáculos sem critério artístico consistente, o recurso a endividamento com empréstimos, a terceiromundista protecção a projectos estrangeiros sem equidade de contrapartidas (França, Brasil), a manutenção de um teatro sem acolhimento condigno (restaurante, café, etc.) ou o abastardamento da sua fachada com vedetas de futebol, são alguns dos aspectos a solicitar as urgentes medidas que se esperam de um Ministro da Cultura com mundo e discurso cultural. 4. E já se fazem apostas no campo: será que o Ministro chamará Ricardo Pais, funcionário do Ministério da Cultura e precioso director do Teatro Nacional S. João, para retomar, com novos contornos, o projecto antigo de um Super-Director dos Teatros Nacionais? Para o assessorar prevejo dois Carlos: o actor-encenador Carlos Pimenta ou o autor-encenador Carlos Pessoa. Veremos quem ganha mais esta aposta entusiasmante.

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PERSPECTIVA

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DIAS DO JUÍZO

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ÍNDICE

II

VI I

PÁG.71

QUANDO A CIDADE DANÇA SURROGATE CITIES - MATHILDE MONNIER E HEINER GOEBBELS Jérôme Provençal PÁG.72

HEC EST CARTA IN NOMINE DEI - DE JOSÉ SARAMAGO, ENCENAÇÃO DE JOSÉ CARLOS PLAZA Eugénia Vasques PÁG.74

COMPLICITATS 08

Jaime Conde-Salazar, Katja Praznick e Medie Megas PÁG.82

A METÁFORA DA CONDIÇÃO HUMANA VARIAÇÕES À BEIRA DE UM LAGO DE DAVID MAMET ENCENAÇÃO DE CARLOS PIMENTA Luís Alberto Rodrigues PÁG.84

A DANÇA DO CAFÉ

O CAFÉ - DE CARLO GOLDONI, ENCENAÇÃO DE GIORGIO BARBERIO CORSETTI João Paulo Sousa

FILMES / DVD

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PÁG.86

CURSO DE SILÊNCIO,

DE VERA MANTERO E MIGUEL GONÇALVES MENDES Elisabete França PÁG.88

DOCUMENTO BOXE E A INVISIBILIDADE DAS PEQUENAS PERCEPÇÕES (MAKING OF), Francisco Valente

LIVROS

ESPECTÁCULOS

I

PÁG.90

O ESPAÇO VAZIO DE PETER BROOK Pedro Manuel PÁG.92

EU, ANTONIN ARTAUD António Quadros Ferro PÁG.94

PATRICE CHÉREAU – UN TRAJECT

DE COLLETTE GODARD COMENTADO POR PATRICE CHÉREAU Isabel Alves Costa


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QUANDO A CIDADE DANÇA

Surrogate cities, de Mathilde Monnier e Heiner Goebbels texto Jérôme Provençal Em termos claros, Surrogate cities é de uma envergadura que a dança contemporânea – há muito habituada às restrições orçamentais – raramente se permite. Fundada sobre o trabalho epónimo – uma esplêndida partitura para grande orquestra, sampler de voz e meiasoprano – composta por Heiner Goebbels em 1994, revista para a ocasião com a Orquestra Filarmónica de Berlim e apresentada pela primeira vez na sua versão de opéra, este Surrogate cities é um projecto de longoprazo que se integra numa programação pedagógica e artística que conta com profissionais e amadores vindos de várias comunidades berlinenses. No total, são 130 bailarinos de idades (dos 7 aos 77 anos...) e condições (sociais e físicas) diversas, vestidos muitas vezes com roupas comuns, movendo-se no seio de um dispositivo cénico onde a Filarmónica, tonicamente dirigida por Sir Simon Rattle, ocupa o seu coração, e o público, instalado em lugares repartidos à volta da área principal, forma o último círculo. Não poderia haver em Berlim, sem dúvida, espaço mais apropriado do que o Arena para acolher esta espécie de anfiteatro moderno e devolver tudo o que, na sua profundidade, existe de clássico no espectáculo. Particularmente marcante é a passagem que, a partir de um texto de Heiner Müller, evoca a luta fraticida entre os Horácios e os Curácios – luta na qual a simbologia ecoa de forma poderosa numa cidade como Berlim. Nesta página soberbamente dramática, Heiner Goeb-

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ESPECTÁCULOS

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bels parece fazer reviver o fervor de um Kurt Weill ou de um Hanns Eisler quando estes punham Bertolt Brecht em música. Seria necessário, com certeza, possuir a quadratura (e a carreira...) de Mathilde Monnier para fazer face a um tal desafio artístico e o levantar de maneira tão espectacular. Seria também necessário, e sobretudo, saber dar provas de tanta modéstia como de ambição para não cair na armadilha de uma ênfase megalómana. Ora, a principal virtude de Monnier é precisamente nunca forçar o tom e conseguir aguentar o equilíbrio entre o indivíduo e o colectivo, conseguindo de igual forma exprimir toda a substância da obra de Goebbels, uma meditação penetrante nas metrópoles e em todos os que as habitam. Do mesmo modo que um habitante de uma grande cidade é, ao mesmo tempo, um ser isolado e um membro de um corpo social, cada intérprete deste espectáculo – músico, cantor ou bailarino – faz, com os outros, todo um corpo, sem nunca abdicar da sua identidade própria – nunca a parte se afogando no todo. Neste sentido, Surrogate cities aparece como um modelo de criação democrática (no sentido mais exigente do termo), colocando cada participante em pé de igualdade e abrindo ipso facto o horizonte de uma cidade ideal, dentro da qual as distinções não seriam (sobretudo) suprimidas mas sublimadas. Se o espectáculo tem como força motora esta parte de utopia, quanto cinzenta que seja, não seria tão intensa sem a sua fragilidade – de tal forma persistente que se torna marcante. Preferindo a simplicidade à virtuosidade, a sugestão à ostentação, usando o vídeo com uma parcimónia prudente, Mathilde Monnier compõe uma ampla rede de figuras e gestos, fazendo eco ao tecido cerrado do qual cada cidade é constituida e cuja visão de conjunto procura um sentimento em pleno alcance. Surrogate cities de Heiner Goebbels, encenado por Mathilde Monnier, com a participação da Orquestra Filarmónica de Berlim, dirigida por Simon Rattle, foi apresentado em Berlim, no Arena, nos dias 2 e 3 de Fevereiro de 2008. A coreógrafa regressa a Portugal com Tempo 76, criação de 2007, dias Monnier, 4 e 5 de Abril, à Culturgest, em Lisboa. Leia a crítica na OBSCENA #7. Tradução do francês: Francisco Valente. Publicado em colaboração com a revista Mouvement.

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HEC EST CARTA

In Nomine Dei, de José Saramago, encenação de José Carlos Plaza texto Eugénia Vasques

[N]o hemos mejorado nada., incluso al reves, hemos refinado los métodos y la tortura se ha vuelto una ciência exacta. En cambio, nosotros, seres inteligentes, capaces de reír, de llorar y sentir, estamos en una ola de irresponsabilidad total en que nadie es cupable y todos tienen la culpa, como siempre. José Saramago, Tias, no acto de apresentação da versão teatral de In Nomine Dei, Novembro de 2007

1. Num momento em que a saúde física de José Saramago conheceu alguns sobressaltos, dois dos seus textos para teatro ganharam, paradoxalmente, uma vida nova e voltaram a chamar a atenção para uma das vertentes criativas do autor que entende esta arte como uma forma de “literatura (ou um teatro, que literatura é) que não pode nem quer esquecer as suas responsabilidades políticas, ideologicamente caracterizadas ou não” (Cadernos de Lanzarote, IV, p. 244), como escreveu referindo-se à peça A Noite estreada em Granada, em 1997, no Teatro Albéniz, com encenação de Joaquín Vida.


Com efeito, na sua amada e lorquiana Andaluzia, mais precisamente em Sevilha, subiu ao palco do Teatro Central – situado na bela ilha da Cartuxa, nas margens do Guadalquivir, onde decorreu a Expo 92, pelo Centro Andaluz de Teatro, com encenação de José Carlos Plaza, a peça In Nomine Dei (1993), precedendo de pouco a estreia, desta vez em Portugal, de uma segunda leitura da peça Que Farei com Este Livro? (1980), pelo encenador Joaquim Benite, numa co-produção entre a Companhia do Teatro de Almada, o Teatro Nacional D. Maria II (onde estará em cena de 7 a 16 de Março), a ACTA — Companhia de Teatro do Algarve e o Teatro das Figuras. Aliás, por falar em co-produções, a Obscena teve o desprazer de ouvir José Carlos Plaza queixar-se do Teatro Nacional D. Maria II, apresentado, na imprensa espanhola, como co-produtor do espectáculo, entidade que “retirou” ao Centro Andaluz de Teatro parte do seu compromisso e isto apesar do cenógrafo deste magno trabalho ser… José Manuel Castanheira, justamente um dos elementos dirigentes do amaldiçoado Teatro do Rossio… 2. A passagem de In Nomine Dei por Sevilha traduziu-se num enorme sucesso de públicos que os seus criadores esperam reproduzir na cerca de meia centena de outros centros urbanos, tal como a cidade de Granada onde o espectáculo se representa este mês no afamado Teatro Alhambra. E a explicação do sucesso parece residir em várias dimensões que a peça adquiriu na sua passagem para cena, trabalhada dramaturgicamente entre o encenador e o autor (que terá, aliás, sugerido cautelas relativamente a “heresias” cénicas!). As mais importantes dessas dimensões são a “comunicabilidade” e a clareza da fábula poética que, depuradas pela encenação de Plaza, ao sublinhar uma «universalidade» que se encontrava mais opaca à leitura em virtude do peso da referencialidade histórica, transforma este espectáculo numa opus magnum sobre a condição humana que, contrariamente à perspectiva marxista da História, não muda antes parece “reproduzir-se” tragicamente… 3. O tema é tratado a partir da convocação de um momento histórico alemão dos anos 30 do século XVI (com ressonâncias óbvias nos acontecimentos europeus dos anos 30 do século XX) que foram palco para uma guerra civil religiosa entre seitas cristãs: os católicos, os luteranos e os anabaptistas. Nas próprias palavras do autor: ”In nomine Dei es un conflicto entre católicos y protestantes. . .. Los protestantes, a cuenta del gobierno de la ciudad, instalaron una especie de comunismo evangélico, eliminaron las deudas, el dinero, etc. Los jefes querían vivir al estilo de los patriarcas bíblicos y aquello acabó en una carnicería. Se mataron, se torturaron, se degollaron. Una ciudad que tenía 14.000 habitantes se consumió hasta tener sólo 2000. Ni siquiera

se trataba de dos dioses distintos, era el mismo Dios… Que no sean tomadas estas palabras como una nueva falta de respeto a las cosas de la religión que se suma a La segunda vida de Francisco de Assis y al Evangelio según Jesucristo. No es culpa mía ni de mi moderado ateísmo si en Münster, en el siglo XVI, como en tantos otros tiempos y lugares, católicos y protestantes anduvieron despedazándose los unos a los otros en nombre del mismo Dios - In nomine Dei -, para llegar a alcanzar el mismo Paraíso en la eternidad. Los acontecimientos descritos en esta pieza representan apenas un trágico capítulo de la larga y, por lo visto, irremediable historia de la intolerancia humana. Que lo lean así, y así lo entiendan, creyentes y no creyentes, y acaso se harán un favor a sí mismos. Los animales, claro está, no lo necesitan.” 4. A dimensão operática que adquire a obra cénica poderá dever-se ao treino de Plaza como encenador de ópera mas está indissoluvelmente ligada à própria génese musical deste texto que, em 1993, foi encomendado a Saramago pela cidade de Münster – cidade do norte da Alemanha com teatros magníficos, num dos quais tive o gosto de descobrir, nos finais dos anos 70, a riqueza da maquinaria e da decoração barroquizante, numa representação do D. Quixote das Marionetas de S. Lourenço e o Diabo -, onde foi estreada na sua original versão de «dramma musicalle» em 3 actos, Divara (Wasser und Blut), um ballet para octeto vocal e oboé da autoria de Azio Corghi (compositor das óperas sobre textos de Saramago, Blimunda e Il Dissoluto Assolto). Como se poderá confirmar na imagem, o palco do Teatro Central está transformado na gigantesca ruína de uma cidade em que cada pedra é, literalmente, esculpida como um despojo humano. Mercê de um entrosamento notável entre a “instalação tenebrosa” de uma memória calcinada pelo tempo – que é, em suma, a dramaturgia patente na cenografia de José Manuel Castanheira –, a luz (Francisco Leal) e a música e espaço sonoro de Mariano Diáz, a encenação de Plaza adopta uma monumentalidade e uma profundidade reforçadas por um movimento cénico que, como uma onda do mar, “varre” a cena, progressivamente, descendentemente, em (ameaçadora e didáctica) direcção do público, frente ao qual se dá o desfecho, com chave feminina, chega-se ao corolário da fábula: a virtude, ainda que ingénua e enganada, não faz concessões e é sempre decapitada! Do magnífico (e shakespeariano) elenco construído para este espectáculo, um destaque necessário é devido ao veterano e premiado Carlos Alvarez-Nóvoa no papel de Knipperdollinck (uma espécie de Galileu atormentado pelas dúvidas), ao jovem Israel Frias (em Van Leiden) e ao conjunto de mulheres do qual sobressaem Mercedes Hoyos (Divara) e Ana Malaver (Else). In Nomie Nei estreou a 12 de Dezembro de 2007. Até 15 de Março pode ser vista em Málaga no Teatro Cánovas

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COMPLICITATS 08

PARA BARCELONA E EM FORÇA! textos Jaime Conde-Salazar, Katja Praznick e Medie Megas

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Desde há um par de anos que o Complicitats se transformou num festival com autonomia e identidade próprias, fruto de um trabalho dedicado de Rui Silveira, jovem programador português radicado em Barcelona há sete anos. Este ano acolhendo a terceira reunião da DBM - Danse Basin Mediterranée, o encontro semestral da TEAM Network e promovendo intercâmbios com a Red Sudamericana de Danza, o festival, que ocupou a cidade de 15 de Fevereiro a 8 de Março, soube trazer artistas de diversas latitudes: Palestina, Brasil, Egipto, Portugal, Espanha, Bélgica, Síria, Tunísia ou Líbano. Seleccionámos da extensa programação três nomes que representam o que de mais estimulante se anda a fazer na dança contemporânea internacional, Sasa Asentic (Sérvia), Tarek Halaby (Palestina/Estados Unidos da América) e Marcela Levi (Brasil). E damos-lhe ainda conta do que pode ser o futuro da DBM.

A OBSCENA e os seus colaboradores viajaram a convite da DBM e do Complicitats.


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Karima meets Miguel meets Lisboa meets Cairo Š Rumo do Fumo


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DEMASIADO RUÍDO

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O tempo passa. Talvez continuemos com os mesmos argumentos para escrever a história da dança; talvez continuemos a olhar a dançar com olhos de ballet; pode ser também que os nossos desejos para a dança não tenham mudado nos últimos cem anos. Talvez a única coisa que mude mesmo seja o tempo que passa. E cada momento traz novos corpos para pensar, novos objectos para dar forma aos nossos desejos. Assim, depois de mais de quinze anos, estamos perante uma nova geração de artistas que tem crescido na sombra dos últimos heróis que a história nos entregou. Já nasceram os filhos de Jérôme Bel, Xavier Lerroy, Ana Teresa de Keersmaeker, Mathilde Monnier, La Ribot, etc! Poderíamos tentar inventar a última etiqueta (post-nova dança, trans-psicodança, ou mesmo neo-post-coreografia). Mas é melhor deixar esta tarefa para a crítica centrada no formalismo e que sempre é mais eficaz a classificar. De momento, talvez baste pensar brevemente sobre o ruído que, como se viu na última edição do festival Complicitats (La Mekánika, Barcelona), produzem estes últimos “artistas jovens”. Não se trata de um ruído cansativo, nem sequer daquele ruído desconcertante sistematicamente utilizado pelas chamadas “vanguardas” para cumprir os seus diferentes programas de actividade. Não. O ruído destes novos heróis é aquele que fazem quando falam. Falam, falam, falam e falam… e as suas vozes inundam o espaço, provocando um surto de paralisia que os leva a continuar a falar, falar e falar. Os temas dos seus relatos infinitos (como não poderiam deixar de ser) são os temas clássicos que nos deixaram a última expressão de culpa anglo-saxónica: “identidade”, “género”, “periferias” diversas, “exílios” vários e vitimizações múltiplas. Correcção política, finalmente. E aqui surge, inevitavelmente, a suspeita: o que noutra altura foi um veículo de acção política resulta hoje num gesto complacente e vazio que não incomoda ninguém. Parece que estes novos artistas cresceram ao abrigo de outros que colocaram perguntas incómodas e ácidas e que questionavam o sistema cultural estabelecido (não importa que estejam hoje totalmente integrados no dito sistema, pois as perguntas continuam a ser pertinentes), tendo optado por procurar a aprovação dos seus pais antes de continuarem a sua missão libertadora e subversiva. E para isso não há nada como os grandes temas que a correcção política capitalista autorizou. É como se

My Private Politics

texto Jaime Conde-Salazar

quisessem transformar o que aconteceu na dança dos anos noventa numa espécie de estilo que, de tanto estilo, carece de qualquer capacidade crítica. Desta vez, o que caracteriza este novo estilo é essa ruidosa glossalgia que nos faz infinitamente deslizar na correcção mais conservadora. Não nos podemos esquecer que os conflitos e as lutas que definiram o feminismo, a crítica ideológica, os estudos de género ou pós-coloniais não fizeram mais do que começar. E para que essa luta ganhe sentido, faz falta que todos os órgãos estejam implicados na revolução (se assim for possível pensar em semelhante fenómeno). E isto é o que parece ter escapado aos nossos jovens cachorros: não basta obedecer a consignações, embora estas pareçam profundamente políticas. O caso de Sasa Asentic e do seu trabalho My private biopolitics é um exemplo muito claro da última definição do que significa ser conservador. O artista fala sem parar. Leva-nos à sua origem periférica, à sua vida de exilado em Berlim, à sua relação com as tendências culturais hegemónicas, aos processos de colonização cultural, etc. Ou seja, a todos os lugares comuns contemporâneos das culturas ocidentais. Perante semelhante desleixo e artificialidade, é fácil suspeitar do que Sasa aspira na realidade ao abordar todos estes temas


An attempt to understand my sociopolitical disposition…

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e surgir como um “good boy”, como alguém que concebe o trabalho artístico como um assunto de excelência moral puritana. Parece ressoar na sua cabeça: “perante tudo, que tudo pareça estar dentro do estabelecido para que os últimos heróis não me repudiem”. O mais curioso é que, para realizar esta operação de castração artística, a primeira coisa que se elimina é o desejo. Por isso, a voz converte-se em ruído, numa vibração vazia que ape-nas pretende agradar. Por muito que se enumere os grandes temas contemporâneos, a aparente luta surge sem possibilidade de ferida, sem risco. Por detrás das palavras, parece apenas existir uma imensa ansiedade de desfrutar aquilo que Xavier Lerroy ou Jérôme Bel (para dar dois possíveis exemplos) reconheceriam como seu digno herdeiro e não tanto como um criador que tem algo de importante a oferecer.

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de Tarek Halaby também está cheio de ruído de grandes temas. Se Asentic explorava a sua origem periférica, Tarek Halaby abraçava a causa palestina. Mas não nos equivoquemos, não é que seja um refugiado palestino que tenha sofrido horrores pela ocupação israelita. Sim, o seu pai foi um exilado palestino mas ele cresceu e foi educado nos Estados Unidos, e tal como diz na peça, só em adulto se inteirou do conflito. Assim, o que faz é

contar a sua história. De novo, a voz invade tudo. Mas não é a voz natural que se pretende ou aquela inerente à tradição europeia, é a voz deliciosamente encantadora da televisão norte-americana. É Britney Spears quem está a falar. Apesar de falar baixinho, está vestido informalmente e insiste em falar da Palestina (dessa Palestina imaginada desde Nova Iorque, pelo menos). A narração de Tarek está cheia de brilho, luxo, espectáculo, luzes, divertimento e sarcasmo (acidental, quem sabe). E talvez será aqui onde o ruído de baixa intensidade que é a voz de Halaby se revele em algo de mais interessante do que uma mera reafirmação conservadora de discursos correctos. Se quem fala da Palestina é Barbara Walters, então é provável que não estejamos a falar da Palestina em absoluto. Se o que vemos perante nós é Oprah Winfrey a falar da Palestina, então é provável que apenas estejamos a tentarmo-nos rir da nossa própria neurose. Se é Martha Stewart quem insiste em falar sobre a Palestina, então é muito provável que não nos interesse nada do que pensam os nossos pais, heróis da última vanguarda. Assim, talvez deveríamos começar a pensar que é a televisão e o prazer mais banal que nos vai salvar desse puritanismo conservador e de vanguarda que os nossos artistas mais jovens parecem ter abraçado, sem terem qualquer outra dúvida.


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MULHERES ENCARANDO O OBJECTO Massa de Sentidos e In-Organic de Marcela Levi texto Katja Praznik 78

As duas peças de dança Massa de sentidos e In-organic da artista brasileira Marcela Levi podem ser vistas

como performances complexas pelas várias maneiras como as podemos abordar. Fá-lo-ei enquanto espectadora feminina e participante do festival, de forma a articular as performances de Levi com a coerência inerente à mente e ao corpo ou, segundo as palavras de Elizabeth Grosz, como “corpos e mentes não são duas substâncias distintas ou dois tipos de atributos de uma única substância, mas algo que existe entre essas duas alternativas”. De modo a inverter a hierarquia habitual do corpo e da mente e a longa história da fobia dos corpos, Grosz usa o modelo da banda-desenhada de Möbius para repensar a noção de corpo e de mente na subjectividade e no corpóreo, mostrando “a inflexão da mente no corpo e a do corpo na mente, as maneiras como um lado se torna no outro através de um mecanismo de inversão e reversão”, e “a transformação de um no outro, a passagem, o vector ou o fluxo incontrolável do interior para o exterior e do exterior para o interior.” Estas são também as questões que Levi aborda explicitamente tanto em Massa de sentidos como em In-organic. Em Massa de sentidos, usa uma referência muita específica – a de Object Dard do artista conceptual Marcel

Duchamp, onde Duchamp utilizava a pasta dos dentistas para fazerem dentes falsos para produzir um molde da sua mulher. Assim, Levi pega não só nessa pasta mas em massa de pão tingida de vermelho (o que abre ainda outro nível de significados no campo dos estereótipos masculinos e femininos) como um ponto de diálogo na performance onde todos os materiais, objectos e o corpo da artista são vistos como parceiros iguais na produção de imagens físicas e sensoriais. Para além desses objectos Levi utiliza também um muro de projecção que nos mostra em visão de olho-de-pássaro a sua actuação na área quadrada do palco. Com a introdução deste ele-mento, o espectador vê-se confrontado com a referida e intrigante ambivalência ou passagem do interior para o exterior, representando aqui o ecrã o exterior visível e o corpo no seu quadrado como interior corpóreo emocional. Assim, as noções de interior e exterior apresentam duas componentes cruciais que se cruzam em vários elementos da performance, produzindo imagens que vemos não apenas pelo nosso olhar, mas pela experiência física e emocional do acto em si. A torção do interior e exterior, corpo e mente, do visual e do corpóreo, está interligada de forma complexa, e em vários níveis, pela metáfora material das bonecas russas presentes na peça de Levi.

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Mesmo que, à primeira vista, Massa de sentidos pareça uma performance muito formal e visual pelo uso cuidado e estruturado dos elementos e dos objectos visuais do precioso e calmo movimento corpóreo, mostra-se uma série de elementos sociais em imagens que estão ligadas à imagética feminina. Ao combinar os campos conceptuais de interior e exterior com as noções do corpo feminino, Levi abre uma experiência física na subjectividade corpórea que não é unificada em si, mas que se encontra num processo de constante crescimento, transformação e mudança. Esta ideia também se integra na forma da peça, na medida em que vai ganhando um certo toque cíclico que se poderá retomar uma e outra vez. Uma tendência semelhante pode também ser vista em In-organic, onde objectos muito especificamente ligados à condição social brasileira são utilizados, de novo, em diálogo com o corpo. Desta vez, defrontamo-nos com colares de pérolas, a cabeça embalsamada de um boi, a luz traseira de uma bicicleta e ganchos para o cabelo, funcionando como uma nódoa ou um barulho que entra pelo corpo feminino. A nódoa/barulho das questões sociais e políticas do quotidiano produz um corpo diferente do de Massa de sentidos. Em In-organic, lidamos com um corpo fora de um processo de crescimento mas

ligado a algo já preso a constrangimentos, rituais e convenções sociais, um corpo que é contradito pelo interior e o exterior de um modo hierárquico já imposto. Já não se trata de uma formação produtiva e construtiva de relações ambíguas com corpos que produzem, mas uma questão aberta que mostra como a completude do corpo humano é poucas vezes reflectida na sua actuação e na sua relação com os objectos, questão logo bastante problemática. In-organic foi considerada a melhor coreografia de 2007 pela crítica brasileira. No You Tube pode ver uma entrevista com a coreógrafa a propósito da peça (http://www.youtube. com/watch?v=kwshw4itPeo http://www.youtube.com/ watch?v=kwshw4itPeo) e um excerto da mesma (http://www.youtube.com/watch?v=iNnCrucV_ Fs&feature=related - http://www.youtube.com/ watch?v=iNnCrucV_Fs&feature=related). Sobre Massa de sentidos encontra, também no You Tube, um excerto da peça (http://www.youtube.com/watch?v=2WvEhRd5 ahI&feature=related) Elizabeth Grozs, Volatile Bodies. Toward a Corporeal Feminism, Indiana University Press 1994, p. xii. Ibid.


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VENTO DE INTERCÂMBIO NO MEDITERRÂNEO texto Medie Megas Escolhi começar este texto sobre o presente e o futuro do DBM fazendo um paralelo arbitrário entre um dos solos apresentados no Festival Complicitats e o encontro do DBM em Barcelona. Tal como Miguel Pereira explicava em Karima meets Lisboa meets Miguel meets Cairo pela maneira como

um terceiro “elemento” surge de um encontro entre duas “coisas”, diria que o encontro do DBM com a cidade de Barcelona criou momentos que se elevaram acima da experiência de cada um deles mesmos.

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Uma das alegrias de cada um dos encontros que assisti até agora foi a observação de como todas as peças se juntavam: como a cidade anfitriã afectava o percurso das discussões e dos debates; como os residentes se relacionavam com os visitantes e como as performances da plataforma ou do festival se juntavam ao todo. A necessidade do DBM ter um papel decisivo no futuro crescia no último encontro, e ecoou de certa forma nos solos apresentados no festival Complicitats, organizado por La Mekanica. Preciso, cortando qualquer elemento superficial, hesitando mostrar qualquer forma de movimento identitário, mas confiante nas suas ideias e debates, os solos deixaram uma marca clara num encontro que foi esperado com expectativa pelos seguidores do DBM. Com o encontro de Barcelona já no passado, o DBM vira-se para uma nova fase da sua existência. Regressando à noção de uma organização por membros, o primeiro encontro da nova equipa do DBM insistiu na importância de comunicar de forma eficiente com os seus membros, envolvendo-os em actividades e gerindo-as de forma a usar a ajuda que era tão generosamente oferecida. Foi, contudo, bastante surpreendente ver que as discussões que tiveram lugar a 22 e 23 de Fevereiro não foram bem recebidas pela comunidade da dança em Espanha. Isto levantou questões que tinham a ver com o que se deveria esperar do DBM e o que ele teria para oferecer. Foi neste contexto que a sua equipa reafirmou a intenção de

incentivar e facilitar a colaboração e o diálogo cultural dentro da região do Mediterrâneo, na Europa e no resto do Mundo. A presença do Red Sudamericana de Danza (a rede sul-americana de dança) em dois encontros, até à data, prova o interesse activo do DBM em colaborar com outras redes e na troca de experiências sobre a própria ideia de rede, algo de muito novo no mundo da dança. Dentro deste contexto globalizado, o DBM deseja permanecer sensível às diferentes identidades culturais e providenciar uma oportunidade a todos os países e indivíduos para expressarem os seus desejos e assim conseguirem responder à organização. Tal como Karima Mansour se recusou a cair na imagem estereotipada de uma mulher egípcia e anunciar “não sou Nefertiti” em Karima meets Lisboa meets Miguel meets Cairo, também o DBM não tem a intenção de impor uma agenda ou ideias predefinidas em nenhuma das comunidades de dança que visita. Nesta altura, gostaria de dar um passo atrás e desenhar rapidamente as principais áreas de actividade até agora preenchidas pelo DBM. Através dos encontros anuais e das plataformas que o DBM organizou em várias cidades mediterrânicas, a rede conseguiu juntar eficientemente vários artistas, produtores, teóricos e qualquer pessoa com um interesse sério na dança contemporânea. Estes encontros têm sido extremamente estimulantes para aqueles que procuram inserir-se num mecanismo de rede, mas também têm, por outro lado, revelado alguns pontos fracos do DBM. Deve à organização o facto de se aceder a uma estrutura aberta de membros, funcionando, na verdade, de uma forma muito transparente: não esconde o processo em que vai aprendendo e ganhando maturidade. Tal como Tarek Halaby partilhou o seu espanto inicial perante a tarefa de criar uma performance em An attempt (…), também o DBM está preparado para partilhar o seu processo de regeneração com os seus membros.


A última ambiciosa actividade do DBM está no lançamento do seu Mapping Project. Como resultado deste esforço contínuo, uma extensa base de dados e de textos ligados à maior parte dos países mediterrânicos foi acrescentada ao site do DBM. Para alguns países, esta foi a primeira tentativa de definir e delinear a situação local e contemporânea da dança, um processo que esperamos poder contribuir para uma maior consciência própria do meio a um nível nacional mas também regional. O futuro compromisso do DBM é tornar o seu site numa ferramenta dinâmica e interactiva (em vez de um posto estático de informação) que forneça um retrato mutável do meio da dança contemporânea de cada país. Enquanto que tal projecto possa não ter sido uma prioridade para países cujas estruturas básicas ainda não existam, uma vez tentado, dá luz a todas essas questões de uma maneira muito gráfica, sobretudo as “ausências”. Uma das aspirações do DBM é entregar alguma autoridade às necessidades dos seus colaboradores locais, dentro dos esforços que empregam junto de muitos ministérios da cultura sem rosto, e que ficam demasiadas vezes aquém das necessidades do mundo da dança. Tal como Marcela Levi deixou um colar de pérolas cair para o apertar aos seus tornozelos em Inorganic, também precisamos de evitar que a nossa promessa de ajudar e apoiar a dança se torne numa posição de ajuda financeira institucional. Nos seus primeiros anos de existência, o DBM também actuou como co-produtor num número substancial de performances de dança. Talvez devido à falta de clareza política de nossa parte, isto criou uma certa confusão quanto à natureza dos objectivos da rede e das expectativas do seu público. Actualmente, a equipa do DBM está a trabalhar em projectos de residências artísticas que se concentrarão num ambiente de apoio a todo o processo artístico dos coreógrafos, através de um seguimento e de uma assistência permanente. Tal como no caso de Istambul e Beirute, o DBM também actuou

como co-organizador de plataformas regionais e facilitou a organização de festivais, criando assim um centro de actividades ligadas à dança e dando uma luz de visibilidade à sua forma artística. Por fim, o DBM tem continuado a contribuir para o campo da educação através da organização de seminários, workshops e think-tanks nos seus encontros. O resultado destas iniciativas irá ser seguido de forma a preencher as necessidades específicas da comunidade da dança. Poderíamos dizer que o que o bem-estar faz, tanto a um nível pessoal como nacional, permite tomar certas coisas como garantidas, providenciando assim o luxo de se pensar em matérias que antes poderiam ser vistas como superficiais. O que aconteceu em países mais ricos foi que a dança tem dado passos atrás em relação àquilo que chamaríamos de “fogo criativo”. Isso não significa que o fogo tenha sido apagado, pelo contrário, mostra apenas que existem pessoas que se encontram distanciadas dele. Enquanto que no Líbano, por exemplo, as pessoas envolvidas na dança são sobretudo bailarinos, coreógrafos e professores, em Espanha, o próprio acto de dançar pode não ter grande relevância para um grande número de pessoas que se ocupa desta forma de arte. Para levar esta metáfora ainda mais longe, há aqueles que fazem com que o combustível exista sempre, outros que fazem com que o fumo não se torne sufocante, e ainda aqueles cujo trabalho é de cortar certos troncos e acrescentar outros fogos noutros sítios. É este luxo de poder retroceder para pensar nas coisas, em vez de ficar com um mandato para as suas aspirações artísticas, que as comunidades de dança estabelecidas mais recentemente podem ganhar com os seus vizinhos. Tirando isso, os benefícios movem-se em todas as possíveis direcções neste região circular chamada Mediterrâneo.

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A METÁFORA DA CONDIÇÃO HUMANA

Variações à Beira de um Lago, de David Mamet, encenação de Carlos Pimenta texto Luís Alberto Rodrigues Patos e patos e mais patos: eis o tema à volta do qual se entabula o diálogo entre dois homens, sentados à beira de um lago. Duck Variations (1972), ou como se adoptou para português, Variações à Beira de um Lago, é peça da autoria do dramaturgo americano David Mamet, levada à cena na Sala Experimental do Teatro de Almada, numa encenação e tradução de Carlos Pimenta e com as interpretações de André Gomes e João Ricardo. George e Emil, observando os patos que nadam e voam no lago, discorrem sobre os hábitos destas aves. Curioso e irónico, porém, é o facto de estes homens não se conhecerem, nem saberem nada acerca de patos. Ainda assim a conversa flúi. Contudo, na tentativa de conduzir o pensamento a patamares mais elevados relacionados com a lei, a amizade, as relações sexuais ou

a morte, acabam por voltar ao tema dos patos. A verdade é que ambos os protagonistas têm necessidade de se libertar das mágoas e opressões que se lhes assentam sobre o dorso. Por isso, recorrem aos patos como metáfora e extensão da condição humana, expondo os seus ressentimentos e derramando as suas fragilidades mais íntimas, de um modo que revela a confusão que assola a suas mentes. É assim que Mamet constrói as suas personagens: “pessoas que tentam ligar-se umas às outras, pessoas que estão confusas” (Onstage, Março 2006.) e que usam uma linguagem opaca e cheia de elipses, obrigando o espectador à árdua tarefa de perceber o que se esconde por detrás daquelas frases e daqueles rostos. Em Duck Variations, Mamet arquitectou uma peça, em


formato de catorze breves diálogos, que não segue nenhuma sequência lógica ou narrativa. Sem prejuízo das ideias que se pretendem transmitir, poder-se-ia inverter a ordem de apresentação de algumas sequências que as interacções permaneceriam “confusas”, acentuando o perfil incógnito das personagens que nunca são nomeadas (pelo menos directamente) ao longo de toda a peça, espécies de almas penadas que vagueiam pela terra em penitência, procurando, sem saberem bem como, fazer algo proveitoso. As frases encadeiam-se, mas as conversas sobrepõem-se num diálogo de surdos dos que falam com o intuito não de partilhar pontos de vista, mas de manifestarem as suas psicoses, particularmente o medo da solidão. Numa passagem do sublime para o ridículo, um tanto hilariante, aquando de

uma feroz discussão entre os protagonistas acerca da possibilidade de um cacto sobreviver sozinho, evidencia-se o terror do isolamento no comentário de Emil: “nada do que vive pode viver sozinho.” A encenação de Carlos Pimenta prolonga a abstracção começada por Mamet mas, na tentativa de realçar o ambiente tenso que se estabelece entre as personagens, cheias de conflitos e alucinações, há algo na palavra dita que se perde. A linguagem verbal torna-se demasiado excessiva, o que acaba por submergir o sentido do texto. Aliás a tradução de determinadas partes, nomeadamente das expressões mais coloquiais, nem sempre foi feliz. Notou-se claramente alguma artificialidade em interjeições ou frases exclamativas, desajustadas da linguagem que se pretende actual e fluida, ainda que elucubrações de ordem metafísica perpassem toda a obra. Um outro aspecto desta encenação há que contribui para malograr o sentido do diálogo. Refiro-me a momentos que na sua essência teriam sido bem sucedidos, não fosse o exagero com que, não raro, foram postos em cena. Esses momentos, como por exemplo o exercício de ginástica ou o brinde final com champanhe, contribuem para a distracção do espectador que já não se foca no propósito da ordenação das frases, mas se deixa iludir pela desordenação dos movimentos praticados em cena. Idealizado por João Mendes Ribeiro, o recurso ao cenário prateado, formando rampas que terminam em cilindros, sugere a superfície do lago, que leva muitas vezes os protagonistas a olharem para o infinito, como se estivessem a consultar o espelho e a encontrarem nele medos que querem purgar. De facto, as águas do lago propiciam a reverberação da imagem de um outro que existe dentro daquelas personagens, uma espécie de pensamento em pleonasmo delas mesmas. Há que salientar que a música original de Mário Laginha acentua fortemente este lado introspectivo, conferindo à performance dos actores uma acentuada e visível cumplicidade. Mas, a despeito da companhia e da observação um do outro, a solidão permanece. E isso é que mais se vincula na encenação das Variações à Beira de um lago, num parque onde aqueles homens podem vir sempre que estão em casa, mesmo sabendo que as suas casas são os únicos sítios para onde podem ir quando abandonam o parque. E se falam sobre a morte dos patos que morrem caçados, envenenados ou por causas naturais, a ideia de que as suas vidas são tão naturais e libertadoras como a dos patos, dá-lhe (dá-nos?) um considerável conforto. Variações à beira do lago estreou a 28 de Fevereiro no Teatro Municipal de Almada e está em cena até 30 de Março.

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A DANÇA DO CAFÉ

O Café, de Carlo Goldoni, encenação de Giorgio Barberio Corsetti texto João Paulo Sousa

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A ideia do café como lugar onde se cruzam personagens dos mais diversos tipos e, por acréscimo, se sobrepõem intrigas variadas torna-se clara desde o início da encenação que Giorgio Barberio Corsetti concebeu para O Café (La Bottega del Caffè, 1750), de Carlo Goldoni. É no centro do palco que se encontra o módulo cenográfico representando o estabelecimento em causa, e é exactamente para aí que se dirigem as personagens, com destaque para o próprio dono do café, Ridolfo, que surge de uma porta lateral, de acesso do público à sala. Com esta simples estratégia cénica, Corsetti, neste regresso ao São João, depois das notáveis encenações de Os Gigantes da Montanha, de Luigi Pirandello, e de Barcas, de Gil Vicente, respectivamente em 1997 e 2000, procura estabelecer uma continuidade entre o palco e a sala, criando nos espectadores a sensação de ser aquele um lugar privilegiado para assistirem ao cruzamento de dramas humanos. Esse efeito de proximidade, no entanto, não é explorado na sequência do espectáculo, sendo retomado apenas no final, quando Dom Márcio, o maldizente, se retira igualmente por uma porta lateral. Aquilo a que entretanto nos é dado assistir desenrola-se à distância, recolocando o espectador na sua posição mais tradicional, embora sem nunca deixar de lhe solicitar um forte grau de concentração, em parte pelo ritmo intenso das duas horas e meia que dura a peça, em parte devido às cenas, dispersas por diversos pontos do palco, em que várias personagens interagem, criando um complexo conjunto visual (um pouco à maneira do filme Playtime, de Jacques Tati, por exemplo).

Para o citado efeito de complexificação cénica deste espectáculo, nomeadamente na sua parte central, concorre a utilização de módulos cenográficos móveis, que representam os estabelecimentos à volta do café, em concreto, a barbearia, a casa de jogo, o apartamento da bailarina e a hospedaria. A sua mobilidade permite que estes espaços não estejam sempre expostos, que sejam empurrados para fora do palco ou que a ele regressem quando forem elementos decisivos da cena em questão. A dinâmica assim construída é o equivalente cenográfico de um texto em que nunca uma personagem é abandonada em palco, uma vez que, ao contrário de outras peças de Goldoni, o protagonista aqui não é uma pessoa, mas um lugar, conforme o título desde logo sugere. Há, em todo o caso, figuras que ganham um relevo especial, por se constituírem como nódulos centrais das acções desenvolvidas, bem como por se instituírem como pontos de contacto entre as outras personagens. Estão, neste caso, Ridolfo, o dono do café (com uma interpretação notável de Jorge Mota), e Dom Márcio, o maldizente (que Ivo Alexandre encarna com enorme desenvoltura e grande eficácia), tal como Eugénio (recriado por Paulo Freixinho com uma exuberância adequada à inconstância da personagem), na medida em que este se deixa manipular como um joguete entre tentações corruptoras, de Pandolfo (Alberto Magassela) e Flamínio (Fernando Moreira), e o propósito de ser resgatado para a sociedade burguesa, assumido por Ridolfo como uma missão.


OS 300 ANOS DE GOLDONI EM PORTUGUÊS Dividido entre o prazer do vício e a honorabilidade familiar, Eugénio consubstancia mesmo uma ideia de difícil equilíbrio que parece contaminar os movimentos de todas as personagens, cada vez mais problemáticos à medida que o espectáculo avança. A água que invade o palco é a principal sugestão de Veneza como lugar da acção, e poderia até ser considerada como demasiado óbvia, se não fosse o caso de instaurar um desequilíbrio físico que prolonga o desajuste relacional, composto por sucessivas mentiras e traições, que as personagens vão revelando. Além disso, a presença da água permite que se estabeleçam coreografias específicas, naturalmente mais arriscadas do que noutro contexto, mas que se tornam particularmente produtivas para a criação das personagens, como o jogo de Dom Márcio com os sapatos, sistematicamente colocados em cima das mesas e daí retirados por Ridolfo. Decerto em função das dinâmicas assim criadas, ter-se-á optado por uma apresentação contínua do espectáculo, sem intervalos, para que o ritmo do mesmo não decrescesse. Há dois momentos, contudo, em que a solução encontrada para, sem interrupções, se proceder a um alteração do cenário, que consiste em descer uma estrutura até que ela assente sobre os já referidos módulos cenográficos e, posteriormente, em subi-la, não me parece a mais eficaz, talvez por sugerir em demasia uma estratégia de distracção dos espectadores. São os momentos em que Vitória (Joana Manuel), mulher de Eugénio, primeiro, e Dom Márcio e a bailarina Lisaura (Lígia Roque), depois, vêm cantar à boca de cena. Ainda que o façam num registo razoavelmente paródico, não completamente desajustado, portanto, em relação ao tom do espectáculo, essas intervenções não escondem uma dimensão algo supérflua quando perspectivadas no conjunto em que se inserem. Já o mesmo não se dirá quanto aos outros momentos em que a música tem uma presença (e esta palavra é particularmente adequada) notória, em que os acordes da guitarra de Vítor Rua, actuando a partir de um camarote da sala, sublinham com eficácia o tom de determinadas cenas. Por último, é importante notar como a dinâmica da peça encontra um suporte decisivo no tratamento cuidado do texto, a começar pela tradução eficaz, de Isabel Lopes e Fernando Mora Ramos, e a prolongar-se na dicção rigorosa e nítida que caracteriza o trabalho de todos os actores. Outro resultado não seria de esperar numa encenação de Giorgio Barberio Corsetti, que, independentemente das metamorfoses que a sua actividade, de vertente multidisciplinar, tem sofrido ao longo dos anos, sabe valorizar a importância das palavras e do seu minucioso labor na construção de um espectáculo. O Café apresentou-se no Teatro Nacional São João, no Porto, entre 25 de Janeiro e 24 de Fevereiro de 2008.

texto Elisabete França Prolongaram-se entre nós por 2008 as comemorações do tricentenário de nascimento do dramaturgo Carlo Goldoni (Veneza, 25 de Fevereiro, 1707 – Paris, 6 de Fevereiro, 1793), reformador do teatro italiano na transição da tradicional commedia dell’arte (da qual foi expoente maior, com peças como o canónico Arlequim, Servidor de Dois Amos) para um novo teatro, de recorte ‘humanista’ e ‘realista’, destinado a um também novo público, de burgueses estabelecidos entre a arraia miúda dos campielli e a aristocracia. As criações do Ano Goldoni (centrado nos teatros nacionais) incidiram em Fevereiro 2007 e Fevereiro 2008, com duas co-produções do Teatro D. Maria II/ Teatro dos Aloés/Centro Dramático de Évora, das peças Criadas para todo o Serviço e A Guerra, em admiráveis traduções de José Colaço Barreiros (a primeira com chancela do Dona Maria, a segunda inédita em livro, por falta de verba ou de interesse), encenadas por José Peixoto (Teatro dos Aloés), com elencos das entidades produtoras. O Teatro São João (TNSJ) apresentou, também a fechar e apenas no Porto, uma magnífica encenação do grande criador italiano Giorgio Barberio Corsetti (co-autor da cenografia, com Cristian Taraborrelli) para O Café. Esta produção utilizou o texto traduzido por Fernando Mora Ramos e Isabel Lopes, do Teatro da Rainha, já editado na nova colecção Campo das Letras/TNSJ. Criadas para todo o Serviço, estreado no Teatro Garcia de Resende, em Évora, passou pela capital na sala da Politécnica há ano e pouco; A Guerra, após carreira no TNDMII, chega aos Recreios da Amadora neste início de Março. Ainda em Fevereiro e também à Politécnica, levou o Teatro das Beiras Molière, estreado na Covilhã, encenado por Gil Salgueiro Nave (não vi). De A Guerra digo ser excelente texto teatral e duma espantosa actualidade – talvez o melhor exemplo da aproximação entre Goldoni e Brecht, defendida por especialistas como um Giorgio Strehler. O espectáculo foi montado, porém, sem meios nem condições de produção, padecendo de amadorismos, da leitura cénica à direcção de actores, à iluminação – o que não honra currículos como os do encenador José Peixoto (estagiário com Strehler no Piccolo Teatro di Milano, já encenara Il Campiello no exCDIAG/Malaposta, que dirigiu) e do iluminador Carlos Gonçalves. Entre ambas as produções e de pior qualidade revelou-se Goldoni Terminus, antestreado em Julho no TNDM II. Espectáculo multinacional muito abaixo de padrões mínimos de qualidade, embora destinado à Bienal de Veneza, que celebrou a efeméride. Direcção do franco-italiano Toni Cafiero, textos encomendados a Edoardo Erba (italiano), Rui Zink (português) e Tena Stivicic (croata), variações sobre aventuras de personagens de Goldoni.

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RECRIAÇÃO DE CENAS FULGOR

Curso de Silêncio, de Vera Mantero e Miguel Gonçalves Mendes texto Elisabete França 86

Apetecia só estender o silencioso “xaile da mente” no espaço deste texto, à espera de ser escrito no dia amanhecido com a morte de Maria Gabriela Llansol – a mais singular, cristalina e grave voz reveladora do “canto de leitura”, na cintilação intensa das suas “cenas fulgor”, relâmpagos acesos pelo fio adiante da escrita-bordado-patchwork que é a sua narrativa poética e onírica (sonâmbula?). Cuja “energia das imagens” garantiria “a perpetuação do secreto como potência transformadora”, segundo Silvina Rodrigues Lopes (posfácio à reedição, Relógio D’Água, d’O Livro das Comunidades, de 1977). Cantemos sempre, em leitura, a prosa desta criadora dum “mundo textual” que Manuel Gusmão viu como “universo em expansão” (noutro posfácio, para reedição pela Assírio & Alvim, com pintura de Ilda David, dos Contos do Mal Errante, de 1986). Apetecia comungar aquele silêncio que Gabriela ia unir, definitivamente, ao silêncio do Nómada, ambos reunidos na ausência daqui, Amigo e Amiga. Apetecia, sim, por ter uma Parca cortando esse fio de vida-escrita, a um tempo hiperliterária e extraliterária – à margem do pequeno mundo das letras-tretas, acolhendo “a restante vida”. Apetecia, mas uma pessoa presente-vivente é também dual, impelida pela citada “energia das imagens” e pelos objectos que, a partir dela, no “universo em expansão”, o cineasta Miguel Gonçalves Mendes e a coreógrafa-bailarina Vera Mantero criaram, a convite

do Circular – Festival de Artes Performativas e do Festival Temps d’Images 2007. Curso de Silêncio, subtítulo do penúltimo livro da escritora, distinguido pela Associação Portuguesa de Escritores (Grande Prémio pela segunda vez), é título comum a um filme duplo, escrito e realizado em conjunto, com duas versões, resultantes de montagens individuais. Exibido o todo no Centro Cultural de Belém, em Novembro, foi inscrito nos próximos IndieLisboa e Festival de Curtas-metragens de Vila do Conde (deseja-se a sua selecção, para mais ampla divulgação em sala). Dá-se então a palavra ao Miguel e à Vera, ouvidos dias antes de Gabriela ter… avançado por aquele carreiro que seguiu até aos confins da cerca, à espera que alguém passasse, e a levasse – parafraseio Contos do Mal Errante (p. 52). O Temps d’Images convidou a coreógrafa a realizar um projecto com quem quisesse e Vera Mantero quis fazê-lo com Miguel Gonçalves Mendes, de quem “só conhecia Autografia, o filme sobre Mário Cesariny”. Foi este documentário que produziu a aproximação, pela “maneira como levou aquela pessoa [Mário Cesariny] a expor-se, como criou intimidade e a maior disponibilidade para a exposição”, diz ela. Juntaram-se a ver o que podiam fazer, recorda ele: “Criação performativa em palco ou trabalho filmado com textos, na ideia de contrapor universos poéticos, de Herberto Helder e Gabriela Llansol, enunciados por crianças.”


Auto-excluído Herberto, como sempre, circunscreveu-se o material de base à obra de Gabriela, com sua anuência. Não na perspectiva narrativa, que forçaria esse material, “mas na abordagem de objectos, temas, imagens, intensidades, vibrações, como costumo trabalhar, mas através do meio cinema, do suporte filme”, elucida a coreógrafa. Das imagens por ambos recolhidas nos livros, iam “pegar nas que vibrassem mais” em cada um, “cruzá-las e ver o que elas diziam juntas”. Centrou-se mais em O Livro das Comunidades (deste ouve-se até o início, Lugar I – “nesse lugar havia uma mulher que não queria ter filhos de seu ventre…”), enquanto o cineasta partiu de Amigo e Amiga, pois naquela fase lhe “interessava particularmente a questão da morte”, tendo escolhido observá-la “no universo riquíssimo dessa mulher que faz apologia da vida”, para “indagar como é que o seu discurso se adequa à perda do amigo”. Como se realizar o filme equivalesse ao seu próprio trabalho de luto. Adiante-se que Amigo e Amiga/Curso de silêncio de 2004 (Assírio & Alvim, 2006) equivale a trabalho de luto, pela morte do companheiro da escritora, Augusto Joaquim. A própria estrutura do livro se abre a tal interpretação: o primeiro e o último capítulo, dos conjuntos de fragmentos escritos, intitulam-se O Golpe e Estou Bem; a trajectória da ferida ao são, à regeneração (“ressurreição” na Adenda final), segue um processo analítico, trabalho de memória e recriação em que cada fragmento começa por retomar a última palavra ou expressão do anterior, soltos e encadeados,

sucessivamente, como numa específica figura de estilo poético medieval. Identicamente se faz a passagem deste livro, perto do fim, para o seguinte, Os Cantores de Leitura (2007). Retomando os depoimentos e sintetizando, Vera Mantero exprime uma visão prenhe do júbilo e da pujança que fecundam a escrita de Gabriela, povoada por seres e figuras que participam da metamorfose, sim, mas só naquele penúltimo livro abriu as portas à morte, impelida pelas circunstâncias do Amigo (A., o seu ‘ambo’, o Nómada) e a determinação deste, qual herança deixada: “Eu quero saber mais do mundo para onde irei.” Esta frase lê-se logo no pré-genérico do filme de Miguel Gonçalves Mendes – este quis, “no confronto constante em que estamos com a morte”, interrogar “o sentido da existência”, ao indagar “como lida, com a morte e a perda”, uma autora e uma obra que é “constante elogio à vida”. Sem resposta. Na casa onde menina(s) lê(em) junto ao espelho, à luz da vela, “Aquelesser” não revela o mistério. Desaparece. O filme de Vera (também intérprete) abre para a imagem da mulher num canapé, na claridade da casa. Ela será “legente” e escrevente, trabalhará na “mesa solar”, só ou com as crianças participantes, seus pares ainda na coreografia rente ao chão, sob/sobre a escrita derramada em folhas soltas, ou na orla do mar. Nesta sua versão, mais longa 15 minutos (45 ao todo), figuram ainda artesãs locais, rendeiras de bilros trabalhando junto ao mar, à música deste acrescentando sonoridades do seu labor, em reverberações de luz, num filme que se apaga em obscuridade nocturna. Curso de Silêncio foi rodado em Vila do Conde, numa casa também com homem presente-ausente (Miguel Gonçalves Mendes), num bosque em redor e na praia; na transparência do ar diurno e na escuridão densa; há fogo e água beijando-se ao encontro dum barquinho de papel, há cavalos de crinas ao vento, aves mortas mergulhando na água, folhas secas fermentando na terra. Há imagens de beleza convulsiva.

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INGENUIDADE TOCANTE

Documento Boxe e A invisibilidade das pequenas percepções (making of), de Miguel Clara Vasconcelos texto Francisco Valente 88

Miguel Clara Vasconcelos tem sido um dos nomes de destaque do documentário português dos últimos anos e do circuito nacional de festivais, Destacam-se nesta altura dois pontos da actualidade da sua carreira: a saída comercial em DVD do premiado Documento boxe (2005); assim como a exibição de A invisibilidade das pequenas percepções (making of), documentário apresentado a 12 de Fevereiro na programação Romulus e o Outro no Teatro Carlos Alberto no Porto, e que acompanha o espectáculo desenvolvido pelo coreógrafo Romulus Neagu juntamente com José António Correia, deficiente de paralisia cerebral (já presente no anterior O ensaio de um eros possível), Ana Isabel Gomes, uma jovem proveniente de uma instituição de solidariedade social, e ainda o músico Ulrich Mitzlaff.

Documento boxe, documentário premiado no 13º Festival de Curtas de Vila do Conde com o prémio de Melhor Curta Metragem Portuguesa e parte integrante da Competição Internacional do DocLisboa de 2005, é um retrato físico dos bastidores do boxe em Portugal e o acompanhamento diário de várias das suas personagens: Jorge Pina, jovem pugilista profissional; Casteli, o sábio presidente da associação de boxe; Vítor, o experiente treinador; e Magalhães, o manager. Vasconcelos filma-os e mostra-nos os seus discursos, parte essencial da postura e da história de cada um, assim como nos sub-

linha os seus traços físicos e imutáveis que marcaram o seu destino na carreira, tal como os seus relatos que revelam a tendência corruptiva de mentes e corpos de um desporto ambíguo, para, por fim, os colocar na linha comum da sua imagem documental - a construção dos jogos de representação em que cada um destes homens se sustenta. Jorge Pina, figura central do filme, confessa-nos a paixão tanto pela sua prática competitiva como pela sua ideia de representação, duas noções indissociáveis na estrutura do documentário. Por entre outras entrevistas, o processo mecânico e despido de escolha de lutadores, das preferências por pesos e aparências, é espelhado nos espaços ora suados, ora ampliados do filme, tanto balneários estreitos para os corpos trabalhados ou ginásios amplos cujos ecos apagam as palavras que se guardaram de confissões para a câmara. No seu final, a escolha entre um papel real no desporto e na vida cairá perante o dever da representação de um momento, num ringue como palco e por pugilistas como actores. Por outro lado, A invisibilidade das pequenas percepções (making of), ainda que centrado em movimentos, é uma abordagem mais reflectida e prolongada sobre o valor de cada gesto físico. Convidado pelo coreógrafo Romulus Neagu, cujo trabalho se tem centrado na interacção coreográfica a um nível de trabalho social, Miguel Clara


Vasconcelos filma a preparação da peça e a evolução dos seus intérpretes. Um retrato de uma aproximação de três corpos, de palavras que carregam símbolos, vidas que carregam trajectos diferentes. Os gestos de Caravaggio, abertos em imagens por Neagu no início da criação para os olhares ainda incertos dos outros intérpretes, acompanham o cuidado de cada movimento que é projectado por quem o comete, símbolos de representação de uma falha da vida real e da vontade de se libertar da inexpressão dos seus dias. A ingenuidade destes corpos é tocante, choca por vezes com as decisões que se tomam no percurso de uma criação, mas por passagens de planos e pelo testemunho de cada vontade, vemos uma confiança que se cria, um complexo que cai, dois corpos que agora se tocam e se complementam, que se procuram e cuidam um do outro, velando pela sua segurança e construindo um jogo físico e simbólico que apenas se proporciona pela coreografia de uma dança e o olhar da lente que a filma, prolongando os relatos de duas vidas reais. Um documentário que guarda, portanto, a representação do que existe para além de cada uma das condições de vida, mais do que uma fuga a essa condição que nos marca. O seu resultado final, a peça apresentada em palco perante espectadores, será talvez uma hipótese de leitura da interacção já estabelecida por corpos estranhos e únicos. Nas imagens de Vasconcelos, acedemos ao desabrochar de uma intimidade, à perca do medo e à nossa colocação na representação sincera de nós próprios, como corpos desajustados, afinal confiando nos gestos dos nossos pares para também existirmos. No fundo, pela natureza do que é o documentário, nos bastidores de uma criação. Documento Boxe (€7, Andar Filmes).

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UMA SETA TRANSPORTADA NA MÃO DA TESTEMUNHA O Espaço Vazio, de Peter Brook texto Pedro Manuel

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Voltar ao espaço vazio será regressar à linha de partida. E voltar, aqui, não será tanto regressar atrás no tempo, mas reencontrar o lugar do teatro. E, para Peter Brook será sempre um lugar partilhado, entre quem vê e quem dá a ver. À primeira vista, a edição portuguesa de O espaço vazio traz o sabor de um reencontro e apresenta-se já recoberta com o estatuto dos clássicos: é publicada quarenta anos após a edição original e inscreve-se no contexto social e teatral dos anos 60. Nesse sentido, peca por tardia e, naturalmente, nestes quarenta anos já foi lida por quantos a quiseram encontrar. No entanto, faz sentido trazer esta obra ao dia, na medida em que é determinante a acessibilidade em português a obras-base sobre artes performativas, assim como Peter Brook é um encenador activo e presente, continuando a moldar o território teatral com a sua experiência e experimentação. Mas, sobretudo, em O espaço vazio, é o discurso de uma testemunha que importa descobrir. Não só pelo olhar datável, mas pela visão pessoal, atenta, reflectida, culta. O início do texto é exemplo da forma como orienta as observações com o seu pensamento: “Posso chegar a um espaço vazio qualquer e usá-lo como espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma acção teatral.” A partir daqui o texto estrutura-se em quatro blocos temáticos (o Teatro do Abor-

recimento Mortal, o Teatro Sagrado, o Teatro Bruto e o Teatro Imediato) e, em cada um, Brook descreve e dis-

serta sobre o teatro: da Royal Shakespeare Company ao Living Theatre, dos happenings a Grotowski, passando por diversos autores, para além das histórias de vudu haitiano ou o excelente exemplo dos escravos do México - ou não tenha Peter Brook contribuído para uma certa “globalização” das artes perfomativas, presente ainda nos seus espectáculos.


A análise de cada caso tem por prumo a eficácia da comunicação teatral. O excerto citado vale como uma axioma nesse sentido e diz bem João Mota (numa entrevista sem perguntas, apresentada como posfácio, mas com valiosas passagens sobre a sua experiência como actor com Peter Brook): “O espaço vazio é mais do que um espaço cénico: é um espaço interior”. Não um regresso ao passado, um momento anterior, mas um lugar interior. Trata-se de pensar a comunicação teatral e, em última análise, a comunicação humana que, no espaço-tempo teatral, se torna um instante de partilha. Será ainda interessante inscrever O Espaço Vazio junto de outros clássicos teatrais pelo seu carácter vivencial, empírico (Stanislavski, Meyerhold, Brecht, Grotowski). Fala a “voz da experiência”, de quem esteve lá, a voz da testemunha. Como as palavras de João Mota. A literatura sobre teatro está cheia de perspectivas biográficas, de “Memórias” de inúmeros actores, e isso deverse-á, talvez, à humanidade desse acto comunitário. É por isso que o teatro pode acontecer em qualquer parte e, quando acontece, “cria memória”, como diria o encenador João Brites. A passagem do “Teatro do Aborrecimento Mortal” para os outros tipos de teatro é a passagem de um espaço cheio (de artifícios) para espaços vazios, isto é, interiores. Ainda assim, a testemunha Peter Brook coloca-se de forma ambígua, entre o encenador e o espectador e, em cada caso, observa a comunicação desse interior, o preenchimento desse espaço. Mas é a qualidade do seu testemunho que tornam O espaço vazio um clássico: ao mesmo tempo que data uma época fervilhante, recolhe ao interior, para pensar a memória e narrá-la do seu ponto de vista, montando o seu teatro. Um livro obrigatório na estante dos estudos de teatro mas, sobretudo, um convidado muito especial para receber na sala de estar. (€15, Orfeu Negro tradução de Rui Lopes)

A peça esta longe de ser apenas um exercício lúdico, na medida em que coloca uma das questões omnipresentes do espectáculo e que tem a ver com a materialização plástica das energias. Em Materiais Diversos existe uma resposta inventiva ao problema da habitabilidade do espaço cénico. Mais do que a relação entre forma e conteúdo, Tiago Guedes dança a arquitectura do espectáculo. Daniel Tércio, Público 2004

Materiais Diversos (2003) 25 a 30 de Março (de terça a domingo) 21:30

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Um Solo (2002) Por mais banais que sejam, curiosamente, estes gestos praticados na fronteira da intimidade, dão ao espaço a sua dimensão privada, com um sentido da transformação a partir do qual a escrita minimalista vai, pouco a pouco, tecer o discurso. A partir de elementos simples, brutos,que descrevem ou encenamo abandono do sujeito, a colecção de figuras ínfimas que antecipamo quotidiano, o imaginário de um corpo em estado de solidão,Tiago Guedes faz surgir uma poética. Irene Filiberti, 2005


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LER O QUE ARTAUD QUIS DEIXAR Eu, Antonin Artaud

texto António Quadros Ferro

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E abertamente votei o meu coração à terra grave e sofredora, e, muitas vezes, na noite sagrada, lhe prometi amá-la fielmente até à morte, sem receio, com o seu pesado fardo de fatalidade, e não desprezar nenhum dos seus enigmas. Assim me liguei a ela por meio de um vínculo mortal. Hölderlin

Artaud antes de Rodez, em Rodez e depois de Rodez, asilo onde, pelo seu “delírio não caracterizado” (como ficou escrito nos relatórios clínicos daquela instituição), esteve internado até 25 de Maio de 1946, dois anos antes do seu suicídio por doses excessivas de heroína e morfina. Artaud, já desde os seus 24 anos de idade, tomava láudano (medicamento cuja base é o ópio) para “aliviar as dores terríveis que tinha na cabeça” e a depressão. Já nessa altura tinha convulsões frequentes, o que o levou, desde muito cedo, a clínicas especializadas, onde ficava internado por breves períodos. A liberdade vigiada de 1946, conseguida por um grupo de intelectuais seus amigos, (Adamov, Balthus, Barrault, Dubufett, Gide, Loeb, Paulhan, Picasso, Henri Thomas), porventura os mesmos que faziam o pagamento da sua “hospedagem” em Rodez, põe fim a cerca de nove anos

de internamento ininterrupto. A contracultura de Artaud constitui-se por isso nesta verdade, a marginalidade, onde os outros, as “normalidades”, como o próprio nos diz, eram os “cúmplices de uma mesma sujidade social”. Talvez por esta razão a sua vida seja sempre o princípio do estudo da sua obra, tal como Poe, Pound, Hölderlin ou Rimbaud. Na carta que escreve a Peter Watson diz: “mas tenha de ideia, caro senhor Peter Watson, nunca fui mais do que um doente”. Com trinta e sete anos de idade, (antes de Rodez), convidado por René Allendy, dá uma conferência com o título, “O Teatro e a Peste”, naquele que viria a ser um dos episódios mais significativos da sua vida e da sua obra. O conferencista Artaud fez do púlpito um palco. Entra em cena interpretando o papel de um “empestado” em


agonia. O texto dito é uma corrente tumultuosa de consciência sem fim. O ambiente da sala, descrito por Anaïs Nin, era este: “Havia uma luz crua. Que mergulhava na escuridão os olhos cavados de Artaud. E acentuava ainda mais a intensidade dos seus gestos. Parecia atormentado. (…) Um olhar que não parecia ver o público.” No texto da conferência com o mesmo título, publicado em Outubro de 1934, Artaud refere-se a este ideal de supressão conjunta, isto é, à representação sem palco, à realidade sem espaço, no limite, à vida sem corpo. Por isso, para ele, falar sobre a peste é ter a peste no corpo. Não é dizê-la, é mostrá-la. É sentir a cabeça a ferver, a língua enorme a latejar, a “fadiga que se apodera do enfermo, a fadiga de uma aspiração magnética central, das moléculas cindidas ao meio e arrastadas ao seu aniquilamento (…) o escorrente desvario do espírito”. Entre o ser e o parecer há, todavia, um obstáculo, que resulta da própria construção da representação, do próprio sentir a representar, ou, pelo menos, da íntima noção de se estar sendo. O parecer não faz necessariamente o ser. Entrar no que não é seu, eis o esforço de Artaud, suprimir o intervalo entre si e o abismo. Escolher o inferno. Possivelmente consciente do seu acto performativo, não impedido contudo de sentir o seu delírio e de exprimir todo o horror da peste. Terá sido, no entanto, necessário perder-se, não ver o público, ir até ao fim, ao fundo, para enfim se encontrar de novo, regressar consumido, saído das profundezas da agonia da sua doença: “Tal como a peste, o teatro é pois um apelo formidável que, através do exemplo, conduzem o espírito à fonte dos seus conflitos.” Com o delírio, terá conhecido, terá, no melhor, ou no pior dos casos, experimentado, mas Artaud queria mais, queria envolver a plateia naquela incursão, fazêla sentir o terror, o que agora experimentava no corpo e acordá-los a todos para o inferno, (ou para a vida) libertá-los da cegueira em que dormiam. Ainda leu algumas linhas do seu texto mas logo começou a representar: “Tinha o rosto em convulsões de angústia e os cabelos ensupados em suor. Os olhos dilatavam-se, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a flexibilidade. Fazia-nos sentir a secura e o ardor da sua garganta, o sofrimento, a febre, o fogo das suas entranhas. Estava em tortura. Berrava. Delirava. Representava a sua própria morte, a sua própria crucificação.” Artaud morria de peste e regressava lentamente a si,

ao seu corpo caído no chão e àquela sala agora praticamente vazia, já quase sem ninguém, pois poucos foram os que ficaram até ao fim. Numa carta dirigida a Anne Manson (jornalista e amiga) diria: “Estar comigo é abandonar tudo. Quem não puder abandonar tudo o resto, não pode estar comigo (…) e terá de escolher entre estar comigo ou contra mim.” Depois de ter sido preso em 1937 e de ter passado por diversos asilos para alienados, Artaud é internado em Rodez. É no período mais longo de internamento que diz ser assaltado por “entidades provisórias e não vivas, embora animadas por imitação”. Escreve algumas cartas, denunciando as sessões de electrochoque (possivelmente mais de cinquenta) a que estava a ser submetido - por semelhantes tratamentos passaram Sylvia Plath e Hemingway. Ambos se suicidaram. Talvez só lendo Artaud seja hoje possível compreender este tipo de tratamentos. Nas sessões de electrochoque há “um estado-charco”, diz, “em todas me vi saído para fora do meu próprio corpo, e que tinha viajado nos espaços, mas não muito longe do meu próprio corpo porque nunca nos soltamos muito bem. E, na realidade, não abandonamos o nosso corpo. O corpo é um tronco, e quando damos conta de estar mortos só somos uma sua folha, e que não estamos fora mas dentro.” Depois de sair de Rodez, já fisicamente bastante debilitado, continuaria a escrever sobre a crueldade daquelas terapias, reiterando assim sua revolta, lutando uma vez mais contra a intransmissibilidade do ser, do seu, porventura a sua grande dificuldade: “Preciso de ter acesso a uma certa quantidade diária de ópio, tenho necessidade dela porque o meu corpo está ferido nos nervos das entranhas e isso é irremediável, incurável, absolutamente irremissível, e não há operação cirúrgica que possa restituir nervos a um organismo que os perdeu”. Encontrou na escrita o que porventura propunha para o Teatro, a purgação inteira. A memória viva numa linguagem sua semelhante. O sofrimento abrindo-nos a outras formas de conhecimento. A ameaça onde habitualmente nos recusamos representar, fugindo sempre a um encontro inteiro, sem saída, sem conforto, sem decência, por pudor, mas sobretudo por receio do que possamos alcançar; se a loucura se a consciência. (Assírio & Alvim, €14, tradução de Aníbal Fernandes).

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A (MINHA) HISTÓRIA É A (VOSSA) HISTÓRIA

Patrice Chéreau – Un Traject, de Collette Godard Comentado por Patrice Chéreau texto Isabel Alves Costa

Nunca estou onde exactamente me esperam

Patrice Chéreau

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Editado pelas edições du Rocher em 2007, o livro de Collette Godard, Patrice Chéreau – un trajet, é a primeira biografia consagrada ao encenador e constitui um documento fundamental para se acompanhar os mais de 40 anos de actividade deste multifacetado e ímpar criador. Até agora, os leitores apenas dispunham de fragmentos da sua vida e sobretudo da sua obra. Com esta publicação ficámos finalmente na posse de um instrumento que, como escreve Olivier Schmitt no seu prefácio, “põe as coisas no seu lugar”. E é o próprio Chéreau, que, nos seus comentários (exactamente 61), corrigindo e/ ou clarificando, vai pondo as coisas nos lugares certos. Porventura é esta “voz” de Chéreau que pontua a narração o aspecto mais interessante deste livro.

Dividido em 11 capítulos, o livro de Collette Godard segue uma linha mais ao menos cronológica que começa no Liceu Louis-le-Grand, em Paris, e acaba nos dias de hoje, poucas semanas depois da estreia de Recordações da Casa dos Mortos de Janácek que marca o reencontro, 27 anos depois, de Chéreau com Pierre Boulez. O trajecto que nos é contado, apoiado por inúmeras citações (críticas, entrevistas, comentários, extractos de programas, etc.), não é nem linear nem pacífico. Odiado ou amado, Chéreau não deixa, no entanto, ninguém indiferente. Nem artística nem politicamente. E se do ponto de vista artístico (quase) todos lhe reconhecem a genialidade – no teatro, na ópera, no cinema ou mesmo como actor – já politicamente muitos são os que o acusam de ter traído “uma causa” – a do teatro popular, de ser um “collabo” aquando da crise dos intermitentes que provocou a anulação do Festival de Avignon em 2003, ou de ter deixado enormes dívidas nos teatros por onde passou, nomeadamente em Sartrouville e em Nanterre. Serve também este livro para desconstruir muitas destas ideias-feitas que sempre envolveram a vida e a obra deste criador. Colette Godard desconstrói algumas delas (é assim, por exemplo, que ficámos a saber que a dívida deixada em Sartrouville, foi paga por Chéreau, até ao último cêntimo, durante 18 anos), mas é sobretudo Patrice Chérau que vai desfazendo muitos equívocos. São mais de 40 anos de carreira, 31 espectáculos de teatro, 12 óperas, 10 filmes e inúmeras leituras a solo, que nos são contados e analisados pela autora. No entanto, no último comentário que fecha o livro, não parece completamento satisfeito com o resultado deste Trajecto, sobretudo na forma como é desenvolvido o período mais recente do seu trabalho. E di-lo sem rodeios: “Nem sempre me reconheço naquilo que Collette Godard escreve, por vezes sim, evidentemente, por vezes absolutamente nada. Admiro o trabalho que fez sobre os meus primeiros anos (...), mas reconheço-me menos naquilo que ela conta do que teriam sido as minhas motivações principais, o que me motiva e me terá feito mover nos últimos dez anos passados, sobretudo nestes últimos. Teria sido preciso acabar o livro de outra maneira, talvez como um princípio, com aquela coisa que começou durante o meu trabalho com a segunda


Solidão [nos Campos de Algodão, de Bernard MarieKoltés], em 1995 (...), fazer ver qualquer coisa desta vida diferente que vivi depois de ter saído de Nanterre e da Rainha Margot, depois desta segunda Solidão, mais crua e mais simples, que se prolongou paradoxalmente alguns anos mais tarde na Fedra, nesse verdadeiramente ‘primeiro’ filme que terá sido Quem me amar irá de comboio que por sua vez terá engendrado os seus irmãos e irmãs, Intimidade, O seu irmão, Gabrielle, nesse Wozzeck do Châtelet que terá dado vida, anos mais tarde à Recordações da Casa dos Mortos. Será que esse senhor impertinente, angustiado e insatisfeito, sou eu? Não tenho a certeza. Não me sinto nem febril, nem angustiado (já o fui), mas estou muitas vezes feliz, feliz por não estar sozinho no meu atelier como estivera o meu pai (...). Gosto de ler, olhar, continuo a amar apaixonadamente trabalhar e não me sinto cansado. E digo a mim mesmo que um dia compreenderei para que serve este ofício que eu faço, ainda não tenho a resposta mas digo que acabarei por encontrá-la ou que alguém ma irá dar. (...) Teria sido preciso sobretudo ultrapassar esta lista de espectáculos, de filmes, ir para além deste ou daquele título de peça, deste ou daquele projecto: houve muitos, haverá muitos outros, filmes ou peças, ou outra coisa que hoje nem eu próprio imagino, ou nada. A vida de um encenador, não é empilhar projecto atrás de projecto, é construir pontes, fazer emergir pequenas ilhas que fazem parte da mesma cadeia de montanha, imersa, subterrânea. (...) E depois os espectáculos fazem-se com pessoas, em torno delas, com elas, não se faz outra coisa para além de as olhar, de as ajudar, de as apoiar, de se alimentar delas e de por sua vez as alimentar. E falar ainda e ainda das pessoas com quem trabalho e que me acompanham, me contradizem, me guiam e me fazem frente, aqueles ou aquelas que amei e que me amaram. (...) Num certo sentido eu não sou mais – e com que felicidade – do que a soma das pessoas que encontrei. Dizer também – sem concluir – o que foi fazer Recordações da Casa dos Mortos apenas há algumas semanas, o que foi voltar a trabalhar com o Pierre [Boulez], de voltar a encontrar o seu rigor, a sua humanidade e a sua profunda disponibilidade – o seu empenhamento. (...) Dizer também que o meu olhar mudou, porventura aproveito um pouco melhor o que sei fazer, dou um pouco mais de atenção às pessoas. Um espectáculo são pessoas, não são outras coisas, são seres que vos acompanham e que nós acompanhamos: finalmente, isso é muito parecido com a vida.” (€19,90 Editions do Rocher)

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A FACE OCULTA

II

OPINIÃO

I

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A FACE OCULTA Por

António Pinto Ribeiro

DIÁRIO DE VIAGENS

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TRÊS DIAS EM MANHATTAN Tudo o que Umberto Eco - e Baudrillard - escreveram sobre Nova Iorque já faz parte da arqueologia da sua representação. Depois do 11 de Setembro e, sobretudo, depois da administração Bush, a cidade está murada na sua fronteira e, no seu interior, o capital atinge, enquanto espectáculo, proporções nunca vistas. Ela explode na sua irrealidade do quotidiano e contudo, está acautelada, vigiada. É, aliás, este estado de vigilância e desconfiança sistemática que se anuncia logo à entrada. Da saída do avião à saída do aeroporto é um muro de vigias que atravessamos: os corredores brancos sem janelas, onde a lista dos interditos é extensa: não é permitido usar telemóvel; é proibido parar; é proibido fotografar; não é permitido voltar atrás; não é possível recusar ser fotografado; não é possível recusar registar as impressões digitais …. calculo que os inventores deste sistema, e os que o gerem, devam ter a noção de terem criado uma zona safe, clinicamente safe… o estado de alerta entrou para dentro da cidade, para as conversas, os símbolos, os livros, os fanzines, até os gadjets….e, contudo nas exposições em Chelsea diz-se que o mercado está forte, e nas galerias expõem-se os clássicos dos anos 80, com Damien Hirst a vender obras a um milhão de dólares, e as novas vanguardas, com nomes e apelidos maioritariamente sul-americanos, chineses e brasileiros, inundam as ruas da 16th à 27st com uma renovada energia. Olhando daqui a Miguel Bombarda, do Porto, e outras ruas de Lisboa, são séculos (de ideias e de linguagens) de distância. Será inevitável? Houve alturas em que quase parecíamos estar a chegar a “um centro”. Na quarta-feira de cinzas, nesta cidade tão hiper-moderna, são muitos os católicos que nas ruas exibem uma cruz desenhada na testa com cinza “tu és pó e ao pó voltarás”… há assim convivialidades possíveis. O New Museum of Contemporary Art é a versão americana do Palais de Tokyo [Paris] e por isso, onde neste último existem fissuras, desequilíbrios, algum cepticismo, no primeiro não existe qualquer falta de crença. Todo o museu é ele próprio um objecto de design e tudo no seu interior tem uma assinatura: o elevador, as casas de banho, o bar, o chafariz… para que não restem dúvidas, o New Museum auto-referencia-se, legitima-se e a tudo o que tem lá dentro… para que não haja dúvidas! É um facto que a dança moderna e feminista nasceu aqui e foi legitimada na Europa, e é sempre bom ver

V

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o que se dança em três dias em Nova Iorque: Deborah Hay na mítica St. Marks Church dança O, O com bailarinos europeus. Deborah, uma das pioneiras da dança pós-moderna americana, continua a investigar e a experimentar com júbilo: “como se pode ainda fazer coreografia?” parece perguntar, e no resultado reconhecemos tanto de ancestral como de novo, uma beleza arcaica. No Joyce Theatre, Trisha Brown é uma coreógrafa clássica e apresenta no seu último programa uma revistação de If you couldn´t see me (que podemos ver em Lisboa em 1995 dançado pela própria). Aqui foi uma bailarina muito jovem a dançar aquela que é uma das obras desafiadoras de todos os cânones da dança, quando a bailarina dança toda a obra de costas viradas para o público e olhando o negro fundo da cena. Todo o movimento é gerado por aquela coluna vertebral, tudo é físico e energia, toda o movimento que dela sai atravessa e ocupa o espaço vazio. Quando Trisha dançava era densa, ascensional, delicada. Esta bailarina é leve, horizontal, delicada. Na Kitchen apresenta-se Glow do coreógrafo Gideon Obarzanek. Deve ser assim L’aprèsmidi d’un faune numa idade da super tecnologia e do digital. É raro ver uma obra cuja beleza resulte da perfeita combinação entre a tecnologia do digital, a massa do corpo e o virtuosismo da bailarina. Do lado de fora de Nova Iorque fica o Mundo mas antes do Mundo fica ainda a outra América e na Super Terçafeira, a primeira da eleição dos candidatos dos partidos às eleições presidenciais, o editorial do New York Times era claro: na escolha dos democratas a questão é a seguinte: para os EUA e para o seu sistema a vitória de Hillary Clinton é importante mas o mundo e principalmente a Europa que espera da América um novo e radical protagonismo deseja Obama como vencedor. Ainda hoje, não haverá um único piloto dos aviões que levantam de Nova Iorque que não olhe com melancolia o “lugar” vazio das torres gémeas.


TRÊS DIAS EM PARIS No cinema Balzac estreou o filme em seis partes O Estado do Mundo. Depois de ter sido seleccionado para mais de vinte festivais internacionais, apresenta-se agora em Paris, antecedendo a passagem para mais catorze salas em toda a França. Na imprensa há artigos, críticas; na sessão de estreia há debate, um termo que irrita muita gente, mas que é ainda a prova da discussão no espaço público, a prova da importância do conhecimento e da criação em algumas sociedades contemporâneas. Com o que pode parecer tique geracional, ou teoria de validade excessivamente privada, nesta cidade apetece viver à volta de livros: da leitura de livros, da compra de livros, da consulta às bibliotecas (logo pela manhã), da escrita de livros (dos seus esboços, notas, hipóteses de títulos), da visita às livrarias, da troca de livros… e há profissões que apetece ter, como leitor ao domicílio (como as antigas liseuses, que até criaram a moda de um afago para os ombros nas horas de leitura), editor, crítico (sim, apesar da crise da legitimação), autor de um programa de televisão ou de rádio (pela manhã e entendível), bibliófilo, revisor de provas... é tanto o que se pode fazer com livros e muito o que os livros podem fazer por nós. E ler, principalmente. Nunca nos cafés. Não! Nos cafés lêem-se jornais e conversa-se, não se lêem livros. Os livros lêem-se em espaços de recolhimento, numa posição confortável; como diz Calvino em Se numa noite de Inverno um Viajante: “… Bem, de que é que estás à espera? Estende as pernas, estica também os pés numa almofada, em duas almofadas, nos braços do divã, nas orelhas da poltrona, na mesinha de chá, na escrivaninha, no piano, no mapa-mundo. Descalça primeiro os sapatos. Se é que queres ter os pés levantados; se não torna a calçá-los. Agora não fiques aí com os sapatos numa mão e o livro na outra.” Agora sou eu que digo: e do monte de livros que esperam ser lidos – há uns anos uns, há horas outros – comece. Leia, por exemplo, o número de Fevereiro da revista Esprit, que traz um dossier dedicado ao governo das cidades, onde escrevem politólogos, sociólogos, historiadores, urbanistas, arquitectos. Face à falência do EstadoNação, à emergência de governações supranacionais, à globalização dos mercados, à metropolização, desta vez resultante das novas tecnologias de comunicação, a cidade aparece como a entidade física, social, geográfica, administrativa mais importante do século XXI. Como geri-la a partir de um novo tipo de relação local(cidade)/ estado(governo central)? Como a desenhar e redesenhar, contemplando tanto os fluxos globais como os provenientes das periferias, dos novos aglomerados urbanos? Como conceptualizar a vida na cidade com os novos modos de vida dos seus habitantes? Com seus novos tipos de férias? Com as medidas decorrentes de

Quioto? Com as famílias multigeracionais? Todas estas questões são equacionadas neste dossier. A este propósito, será também urgente repensar as novas formas de programação cultural, a emergência dos novos lugares de culto e as novas formas de produção e de distribuição cultural…. a escrever, em breve! Foram agora traduzidos para francês dois pequenos ensaios de Amartya Sen – Democracy and its Global Roots (2003) e Democracy as a Universal Value (1999) – publicados na Rivages Poche sob o título único e explícito de La Démocratie des Autres. As três grandes questões a que Amartya Sen se propõe responder, e fá-lo com uma clareza invulgar, são: a democracia não é um obstáculo ao desenvolvimento económico e há, pelo contrário, inúmeros exemplos de países em que a pobreza foi combatida a partir do momento em que o regime passou a ser democrático; não é verdade que os países tenham de estar suficientemente “amadurecidos” para a democracia (referência óbvia a muitos casos africanos) mas, pelo contrário, eles devem atingir a maturidade através do seu exercício; a democracia é um valor universal, porque a sua negação não é universalmente convincente, mas não é um regime exclusivo do Ocidente. Amartya dá vários exemplos de situações de regimes democráticos, ou de regimes em que o consenso é prática corrente, ao longo da história da China, da Índia, de África, de muitos países árabes. Nesta linha, desconstrói as teses do relativismo cultural que pretendem justificar os limites à adopção de regimes democráticos por países não ocidentais. O Desejo de ser inútil (Édtions Robert Laffont) é uma longa entrevista realizada a Hugo Pratt por um dos maiores especialistas da sua obra Dominique Petitfaux. O livro é na forma a expressão correcta do seu protagonista, é um livro de aventuras e, contudo, é uma biografia. É caso para dizer que Corto Maltese o herói criado por Pratt é ao lado seu criador um asceta. A biografia de Hugo Pratt é a biografia do último aventureiro de finais do século XX: o escritor/soldado/vagabundo das viagens insólitas, do fascínio pela arqueologia e seus sítios recônditos, o homem dos excessos amorosos sexuais, o amigo leal, o idealista. É bom saber que estes homens não nos estão assim tão distantes. A meio da tarde pára. Depois de um dia de leitura só interrompido por uma refeição frugal, pára. Recomponha-se, sai e dirija-se à Rue Bonaparte, entra na Ladurée e escolhe um dos vários millefeuilles – os melhores de Paris - que lhe são propostos pela carta deste salão de chá e peça um chá, um chá de jasmim chinês.

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VER VISÕES

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texto Jaime Conde-Salazar

A história da arte entre o século IV e finais de XVIII construiu-se, na sua maioria, a partir de obras produzidas no interior da cultura católica. Por muito que a Igreja Católica actual se mostre sistematicamente como uma entidade ignorante e ultraconservadora incapaz de participar nas realidades contemporâneas (incluindo as artísticas), não podemos esquecer esse enorme património pois nele poderemos encontrar algumas chaves fundamentais para entender o mundo de hoje.

Anunciação, de Paula Rego

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É cada vez mais evidente a distância que separa a criação artística actual e a Igreja Católica. As (muitas vezes sinistras) interpretações dos conteúdos do Concílio Vaticano II e, sobretudo, o devastador papado de João Paulo II, ocuparam as igrejas com versões edificantes e patéticas de grandes êxitos dos Beatles; de pinturas e imagens de muito baixa qualidade, carentes de qualquer interesse visual (o melhor exemplo será, porventura, a ridícula cúpula da Catedral de Almudena de Madrid); de rituais iner-tes que, numa tentativa ingénua de renovação, pegam em recursos dignos de um apresentador televisivo que tenta vender uma escova “que tudo varre”; ou de arquitecturas que lembram mais centros comerciais do que contextos para “o espiritual” (seja qual for o significado que dermos a essa expressão). Todavia, e apesar desta recente (e ao que parece definitiva) incapacidade da Igreja Católica de participar nos discursos artísticos actuais, é muito difícil entender ideias contemporâneas como a performance, o corpo vivo, a representação, a visão, a presença, a incorporação, etc., sem prescindirmos das referências produzidas por dentro do que chamaremos de “cultura católica”. É certo que, no papel, a doutrina oficial católica, apostólica e romana, fez que com se tornasse difícil imaginar a possibilidade de uma criação artística interessante e plena de significado nos nossos dias. No entanto, e apesar do paradoxo, também é certo que desde o séc. XIV a produção artística vinculada à Igreja Católica se converteu num grande laboratório, onde se produz alguns dos principais discursos estéticos que ainda hoje definem a cena artística. No segundo volume da sua contra-história da filosofia, El cristianismo hedonista (Anagrama Ensayo, 2007), o pensador francês Michel Onfray tenta encontrar, em alguns filósofos cristãos e católicos, ligações geneológicas sobre as quais se poderia suster um projecto hedonista (totalmente contemporâneo, apesar de recheado de referências clássicas). E o resultado não é descabido: de repente, as propostas de Lorenzo Valla (1406-1457) ou, inclusivamente, de Marsilio Ficino (1433-1499), não parecem tão longínquas mas como que referindo-se a assuntos pertinentes na nossa vida quotidiana. Quem sabe se, seguindo o exemplo de Onfray, tenha também chegado o momento de, por uma parte, nos libertarmo dos percalços da actual Igreja Católica e das suas mostras de ignorância acerca do seu próprio património cultural, e, de outra parte, estabelecermos ligações com os projectos artísticos clássicos criados dentro da “cultura católica” que expliquem e enriqueçam as preocupações artísticas dos nossos dias. Mas, como é óbvio, tal projecto excede os limites de um artigo como este, e tentar sequer estabelecer limites provisórios para o assunto seria numa tarefa impossível e absurda. Só nos atreveremos aqui a colocar questões

que, usando as referências artísticas mais óbvias e imediatas, nos poderiam permitir adivinhar os saborosos debates que o tema promete. A saber: como o corpo humano chega a conceber-se como objecto material independente e definido; e a invenção de estruturas de representação dentro das quais o corpo “objectualizado” se pode mostrar. O arco cronológico sobre o qual se torna mais evidente abordar estes assuntos está, sem dúvida, marcado pela formação de uma chamada “subjectividade moderna” a partir do século XIV. Como será que concebemos, nas culturas ocidentais, essa tal coisa de “o corpo”? Como é que a parte mais material, mais carnal do nosso ser, se veio a parecer como algo de longínquo da nossa consciência, como um organismo mecânico que existe independentemente da nossa capacidade de conhecer? Como chegamos a imaginar o corpo como um objecto que pode ser observado, dissecado, transformado e representado? Poderíamos, sem dúvida, encontrar a origem de tal possibilidade na formação da mentalidade científica materialista e no surgimento da anatomia como disciplina de conhecimento. O divórcio platónico do corpo e da alma não permitia apenas imaginar o corpo como um objecto separado do lugar onde se produzia o conhecimento. O corpo construia-se como algo de sólido, concreto, que ocupava um espaço natural e que realizava uma série de funções de forma autónoma. Assim, o cientista encontrava um substrato material sobre o qual exercia o seu desejo e a partir do qual se construía o seu conhecimento. E a Igreja Católica encontrava o lugar em que voltaria a fazer decorrer todo o relato religioso. Esse corpo impuro separado da lama convertia-se, paradoxalmente, no veículo para se conceber e distribuir as narrativas doutrinais católicas. Masaccio (1401-1428) pinta Adão e Eva a serem expulsos do paraíso na capela Brancacci da Igreja de Carmine de Florença (1424). A cena mostra dois corpos despidos, dois corpos feitos de carne que pesam sobre a terra. Nada que ver com as abstrações ou estilizações simbólicas do passado. Adão e Eva têm ossos, músculos e pele. Adão e Eva são dois corpos. Ou melhor ainda: dois corpos (como os que os novos cientistas dissecavam) levam o nome de Adão e Eva. Já não houve volta a dar. Depois disto, a cultura católica encheu-se de corpos de carne sobre os quais se escreveram os relatos da cristandade. Todas aquelas imagens de corpos-organismos que hoje enchem museus e vão enchendo igrejas manifestam-se como a ressurreição de Cristo, a morte de Maria, o martírio de Santo André, a sabedoria de São Jerónimo, o sonho de Jacob, o abandono de Maria Madalena, etc. Para fazermos uma ideia de até que ponto esse corpo totalmente material se converte num veículo da doutrina católica, basta recorrermos a dois dos mais alucinantes (e também mais óbvios) repertórios de carne jamais imaginados: os frescos do tecto (1508-1512) e da

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A Paixão de Cristo, de Mel Gibson

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parede do altar (1535-1541) da Capela Sistina, no Vaticano, de Michelangelo Buonarott (1475-1564); e os frescos do tecto da galeria do Palácio Farnese (1597-1605) de Roma de Annibale Carracci (1560-1609). No caso da Capela Sistina, é óbvio como todo o projecto ideológico da capela depende dos corpos representados. O caso do Palácio Farnese é distinto pelo seu projecto estar dedicado, na sua totalidade, à representação de cenas de amor da mitologia clássica. Naquele glorioso tecto, os corpos entregam-se ao amor mais carnal. E isto talvez pareça despistar e distanciar a ligação com a doutrina católica. Mas não nos devemos esquecer que o comitente da obra foi o cardeal Odoardo Farnese (que encomenda estas imagens para decorar um dos principais espaços públicos do seu palácio romano). Uma enorme alegoria ao tema “omnia vicit amor”, recuperado para a cultura católica? Não sabemos com toda a certeza. A verdade é que aqueles corpos e seus orgãos aí permanecem, exibindo as suas generosas carnes, entregues ao amor a partir do tecto da casa do cardeal.

Chegando a este ponto, é difícil evitar a perguntar incómoda: que corpo é esse corpo que a Igreja persegue junto da ciência? Onde vive? Onde se manifesta? Entre os frescos de Bracacci e do Concílio de Trento (a última sessão termina em 1563) vai quase um século e meio. Nesse tempo, muitos corpos marcaram a sua presença. No princípio, tratavam-se de corpos pesados que conquistavam o espaço através da sua solidez (Donatello, Castagno, Lippi, etc.). Mas, de seguida, começaram a aparecer figuras raras, carnes que se convertiam em fantasias intelectuais refinadas (Botticelli, Rafael, Pontormo, Bronzino, Correggio etc.). Estes corpos extremamente amaneirados, quase convertidos em fenómenos de luz, produzem um pequeno curto-circuito ao se esquivarem do relato religioso e desviarem a atenção para uma quimera mais ou menos oculta. Os temas convertem-se em meras desculpas para uma exploração da cor, tornando-se difícil saber do que essas imagens falam exactamente. A Igreja Católica reage de uma forma singular: aproveita a grande onda de


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Virgem Maria, de Damien Hirst

contestação da reforma protestante e, na conclusões do Concílio de Trento, estabelece a função e o carácter das imagens religiosas (sessão XXV, 3 de Dezembro de 1563). Dito de outra forma, apropria-se oficialmente desse recém-descoberto corpo anatómico e exige que este se pareça como um objecto quotidiano facilmente reconhecível. As histórias teriam que se ler com facilidade sobre as peles pintadas. Ou seja, os espectadores teriam que identificar os corpos representados como semelhantes ou equivalentes aos seus. Do outro lado da janela imaginada por Leon Battista Alberti (14041472), teria que aparecer um espaço familiar em que qualquer sucedimento (independentemente da sua natureza) seria possível. A perspectiva linear tinha construído um espaço que se apresentava como uma prolongação daquele que o espectador ocupava. Ali dentro, nesse espaço projectado, o corpo-objecto era idêntico àquele de quem olhava: o ponto de fuga não era senão a confirmação que, para que todo o aparato funcionasse, requer-se-ia a presença de um outro real a seu lado. Assim, ainda que o corpo fosse representado como um objecto separado, longínquo e exterior, o sistema geométrico fazia com que a imagem acabasse por ser um reflexo simétrico de quem olhava de fora. Por outro lado, a janela albertiana separava dois mundos (sujeitoobjecto, fora-dentro, eu-outro, etc.); mas por outro, criava as condições possíveis para uma equivalência entre os dois lugares separados. E as condições trentinas vieram confirmar a dita equivalência: as imagens teriam que fazer com que o evento religioso ocorresse perante o fiel. Seguramente, isto deverá ter sido o que Caravaggio (1571-1610) entendeu: o corpo-objecto-equivalente ao do espectador e a perspectiva linear constituiram um sofisticado aparado de representação que permitia transformar as cenas dos próprios eventos. As imagens serviam para criar simulacros da presença viva do outro perante o fiel. Não se tratava de relacionar o nome de Saúl a um corpo de carne: tratava-se de fazer com que esse corpo de carne se deitasse perante os nossos narizes cada vez que nos aproximássemos da capela Cerasi (1603-1605) na romana Santa María del Popolo. Por isso mesmo Caravaggio não pinta, nem é um pintor. Nada tem que ver com os venezianos, com os Carracci, ou com pintores posteriores como Velázquez. Elimina da superfície qualquer evidência da sua acção (por isso tivemos que esperar que Mina Gregori, com os seus aparatos, estabelecesse o catálogo do pintor) porque se dedica a conceber cenas vivas. Cenas que questio-nam os limites das janelas, que estendam a incerteza própria à equivalência e verosimilhança a todos os corpos implicados no resultado


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A Conversão de São Paulo, de Caravaggio

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artístico. Como propõe Peggy Phelan (Whole Wounds in Mourning Sex, Routledge, 1997) ao falar da cópia conservada nos Uffizi (o original, ca. 1600, encontra-se no palácio de Sans Souci, Potsdam), os dedos de Tomás na ferida de Cristo fazem duvidar tanto Cristo como Tomás da sua identidade, do lugar que ocupa no mundo. Desde então, a obra de arte existe não só para expôr ou explicar a doutrina mas para que o acto religioso se suceda perante o espectador e se converta numa experiência viva. Como Víctor Stoichita explicou (El ojo místico, Alianza Forma, 1995), a visão do corpo em acção converte-se na possibilidade mesma de revelação do divino. É nos corpos representados onde se podem manifestar, de forma viva, Cristo, a Virgem, os Santos... os outros corpos, por fim. Chegando depois a este ponto, em que os corpos pintados podem ser substituídos por corpos vivos por uma mera operação tecnológica. Tivemos que esperar o primeiro terço do século XIX para que a máquina estivesse preparada: até Wagner não idealizar os seus dramas musicais; até que a luz do gaz não tivesse permitido apagar as luzes do teatro para ballet, não foi possível, nas culturas ocidentais, termos uma experiência da presença viva do outro sem recorrer a tecnologias de reprodução. Não só foi possível repartir o espaço como também o tempo. Obviamente, quando se inventou o ballet, as histórias para contar já tinham mudado e a doutrina católica tinha-se tornado irrelevante. Mas o dispositivo tecnológico respondia ao mesmo desejo: fazer com que, do outro lado da janela, aparecesse vivo o corpo que confirmava a existência do eu e permitiria a formação da subjectividade. A cultura católica levou-nos, durante séculos, a esperar por uma revelação das imagens. Fez com que toda a pintura guardasse a promessa de uma epifania prometida. Talvez não esteja tão claro o projecto melancólico (a modernidade tal como a descreveu recentemente André Lepecki em Exahusting Dance (Routledge, 2007)?) resultante da aparição viva do outro: o que fazer uma vez que o corpo desejado desaparece, uma vez que a sua função termina? Quem sabe se não reside aí o sentido da eucaristia: comer o corpo e beber o sangue do amado antes que este tenha a oportunidade de abandonar a cena.


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Data Limite de Inscri o: 12.05.08 INFORMA ÆES E REGULAMENTO

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