Obscena #8 - Dezembro 2007/ Janeiro 2008

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EDITORIAL

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O QUINTO IMPÉRIO Fechamos as portas a 2007 fazendo coincidir o fim da Presidência Portuguesa da União Europeia com uma reflexão sobre os caminhos pelos quais se fizeram as políticas culturais nacionais. Uma abordagem natural e esperada, à semelhança da que lançámos sobre as políticas e as identidades culturais europeias (ideia que terminará, nesta fase de identificação, no número de Março – que o próximo é de celebração). Mas falamos de Portugal e das suas políticas, imaginando que as houve, naturalmente. Porque as houve, malgré elles mêmes. É mais ou menos isso, com maior ou menor resignação, o que se retira da mesa-redonda à volta da qual juntámos alguns nomes que, directa ou indirectamente, assumiram responsabilidades na condução dessas políticas. Se desse encontro saiu uma frase unânime – e uma explicação plausível –, Não há porque nunca houve continuidade, pode também aferir-se que essa inexistência é talvez a maior característica nacional. E, por si mesma, uma política. Vinte e um anos depois da entrada na União Europeia (na altura Comunidade Económica), sobra-nos em retórica e ambição aquilo que serão os pontos fortes dos novos países, ávidos de integração e atentos aos erros, ou laxismo, ou ineficácia, ou simples ingenuidade

dos irmãos mais velhos. Sendo que, e para continuar a metáfora familiar, Portugal será sempre filho do meio, dele se espera a errância costumeira, a falhada comparação com o mais velho e a condescendência para com os mais novos. Sobra-lhe pouco, tal como pouco se espera, de quem à beira mar plantado perdeu praias, encheu o peito de ar e se deixou ficar, feito de memórias gloriosas, espalhando por toda a parte, com engenho e arte, esse grande mundo que há-de vir. Amén! Sim, pessimismo, mesmo que seja já eu filho da Europa de maioria qualificada e, por isso mesmo, sabedor de que não são essas as razões da (r)evolução. E, por isso mesmo, melhor filho europeu que filho português. Mas, por isso mesmo, pessimista, por sentir que o tempo passa, e não se cansa a gaivota grasnante de prometer que se faz história de semana para semana. Primeiro com o Brasil, a América Latina, África, depois com a Europa ratificada, em Bali… história, história, história… Porreiro, pá, talvez seja, não sei, não sinto e não quero. Queria mais, pois queria, sempre mais. Porque vi os outros a terem e a fazerem (a errarem também), mas a serem. Coisa que raramente voltámos a poder dizer. Fica o balanço feito. Para o ano há mais. Auguri! TBC

OBSCENA #8 - DEZ 07 / JAN 08 Fotografia de capa Martim Ramos Adolfo Mesquita Nunes, André Dourado, António Pinto Ribeiro, Bandeira, Bruno Vasconcelos, Carlos Pimenta, Catarina Botelho, Elisabete França, Emmanuel Veloso, Eugénia Vasques, Florent Derval, Francisco Frazão, Francisco Valente, Gerard Mayen, Gustavo Sugahara, Jaime Conde-Salazar, Jean-Louis Perrier, João Carneiro, João Paulo Sousa, José Mário Silva, Martim Ramos, Miguel Magalhães, Mónica Guerreiro, Nuno Grande, Pascal Bély, Pedro Costa, Pedro Manuel e Thomas Hahn Colaboração: Catarina Vaz Pinto, Cristina Peres Jorge Salavisa, Maria José Stock, Miguel Abreu, Teresa Caeiro Agradecimentos: Alexandre Melo, Augusto M. Seabra, Begum Erciyas, Centro de Documentação do Museu Nacional do Teatro, Cristina Grande, Estudo Base, Jeroeen Peteers, Marcelo Costa, Maria José Fazenda, Pedro Faro, Raimund Hoghe, Time Out Lisboa (João Cepeda) Com a colaboração do Ar.Co – Centro de Artes e Comunicação Visual e Galeria Zé dos Bois

Design Pixel Reply| www.pixelreply.com Logotipo MERC Publicidade | publicidade@revistaobscena.com Assinaturas e informações | obscena@revistaobscena.com As informações devem ser enviadas até dia 8 de cada mês A OBSCENA é uma revista de periodicidade mensal com distribuição electrónica gratuita através de assinatura. A OBSCENA aceita propostas de colaboração dos leitores. Os materiais publicados são da responsabilidade dos respectivos autores, estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial. www.revistaobscena.com A OBSCENA é membro da TEAM Network (Transdisciplinary European Art Magazines) | www.team-network.eu


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NÓS POR CÁ TODOS BEM? Elisabete França PÁG.18

OS PORTUGUESES NÃO TÊM CORPO Alexandre Melo PÁG.20

FALAR SOBRA A SIDA! Thomas Hahn PÁG.24

O QUE A SIDA FAZ À DANÇA O QUE A DANÇA FAZ À SIDA PÁG.03

Gérard Mayen PÁG.26

O QUINTO IMPÉRIO

UMA DANÇA CONTRA A MORTE

Tiago Bartolomeu Costa

PÁG.32

REZA ABDOH PÁG.34

RAIMUND HOGHE PÁG.38

ARIANNE MNOUSCHKINE João Carneiro PÁG.40

KRZYSZTOF WARLIKOWSKI

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APOSTA

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OPINIÃO

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EDITORIAL

Jean-François Perrier

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COXIA

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OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO

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Mónica Guerreiro

Jeroen Peteers

PÁG.52

PONTO CRÍTICO

PÁG.90

CAMAROTE PAR

PÁG.122

Bandeira

A FACE OCULTA

Eugénia Vasques

André Dourado

António Pinto Ribeiro

PÁG.48

(NOT) A LOVE SONG

CONVERSA COM ALAIN BUFFARD, CLAÚDIA TRIOZZI E VERA MANTERO Tiago Bartolomeu Costa

COMO É QUE QUER TRABALHAR HOJE? (PRÉ-PUBLICAÇÃO)

STA AP O

CARTOGRAFAR

A ARTE DA PERFORMANCE, DO FUTURISMO AO PRESENT ROSELEE GOLDBERG Pedro Manuel


OS CORPOS DAS PALAVRAS

FAZ FALTA UMA POLÍTICA DE CONTINUIDADE

PÁG.102

QUANDO A ACÇÃO SE PASSA À MESA

MESA REDONDA Tiago Bartolomeu Costa

BANQUET DE PATRICIA PORTELA

PÁG.74 PÁG.80

Adolfo Mesquita Nunes

PÁG.106

PÁG.86

Florent Delval

POLÍTICAS CULTURAIS EUROPEIAS CURTO-CIRCUITO: POTENCIAR A ENERGIA CULTURAL

Florent Delval

PÁG.104

Tiago Bartolomeu Costa

O CASTIGO DE UM CORPO CRIME ET CHÂTIMENT DE GINTARAS VARNAS Francisco Valente

ISTO NÃO É PÚBLICIDADE I AM A MISTAKE DE JAN FABRE

PÁG.108

A FESTA DOS SIGNOS

Nuno Grande

O AVARENTO OU A ÚLTIMA FESTA

PORTUGAL SURREALISTA ARQUITECTURA DE PESO

PELO TEATRO PRAGA João Paulo Sousa PÁG.110

DE EDGAR PÊRA

OH AS CASAS AS CASAS MANEIRA DE LER ALGUMAS PEÇAS

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ENSAIO

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DE JOSÉ MARIA VIEIRA MENDES Francisco Frazão

PÁG.62

PERSPECTIVA

Tiago Bartolomeu Costa

DIAS DO JUÍZO

PÁG.88

UMA ABORDAGEM COMPARATIVA PARTE 2 Bruno Vasconcelos, Gustavo Sugahara, Miguel Magalhães e Pedro Costa

ENCENAÇÃO RICARDO PAIS João Paulo Sousa

TEATRO EUROPA/PORTOGOFONE

PÁG.114

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MODELOS DE GOVERNANÇA DE "CIDADES CRIATIVAS":

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PÁG.100

TURISMO INFINITO DE ANTÓNIO M. FEIJÓ

PORTUGAL AO ESPELHO

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ESPECTÁCULOS

FILMES / DVD PÁG.114

FUTEBOL: EUFORIA E ABSTRACÇÃO José Mário Silva

PÁG.116

BERENICE RASCUNHOS DE SON APPARTEMENT DE JEAN-CLAUDE ROSSEAU Carlos Pimenta

TE,

PÁG.118 PÁG.68

CARTA BRANCA 00:42/00:54

CINCO POSSIBILIDADES THE FIVE OBSTRUCTIONS DE LARS VON TRIER E JORGEN LETH Emmanuel Veloso

CATARINA BOTELHO

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UNFINISHED, IMAGEM ABERTA UNFINISHED DE SOPHIE CALLE Francisco Valente


OPINIテグ

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COXIA

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OPINIÃO

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MOTIM

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OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO Por

Mónica Guerreiro

PICHAGEM INFINITA 1. Não parece coisa comum que uma rua – ainda para mais uma epitetada avenida – esteja desprovida de construções, de um dos lados, ao longo de todo o seu comprimento. Do outro lado, um hotel cinquestrelado mede forças com prédios de escritórios, alguns com 19 pisos. Falamos, pois, de uma avenida no centro de uma cidade rica e moderna. Mas quis o ordenamento que, do outro lado (onde se situava o antigo quartel da Artilharia Um), não existisse, por ora, nada: nenhum edifício, nenhuma paisagem, nenhuma urbanização a não ser a calçada e umas árvores – parece que amoreiras – que teimam em ficar de pé. Mas está o muro, tão comprido como a avenida e, por isso, uma gigante tela que seria criminoso não pichar. Durante quatro anos, todos os dias, passava por lá e procurava sinais de mais uma intervenção nocturna. Como nunca vi ninguém em acção, imagino que seja de noite que os writers transfiguram ad aeternum a paisagem extraordinariamente larga da Conselheiro Fernando de Sousa, em sobreposições sucessivas, de crescente ambição e rasgo. Com dimensões impressivas, as pichagens do muro são uma curiosa metáfora para a renovação das imagens no nosso tempo (nenhum graffiti permanece muito tempo) e também uma interrupção saudável ao modismo da arquitectura circundante. Nesses quatro anos – dizia – convivi de forma próxima com aquelas intervenções, procurei acompanhar a sua evolução. Agora, já raramente dou por mim a fazer essa passagem e temo, assim, perder alguns capítulos da história. 2. Alexandre Farto é um dos nomes a registar no elenco de novos valores da arte urbana nacional. O jovem writer de graffiti pertence ao colectivo Visual Street Performance (VSP) que, até dia 15 de Dezembro, ocupou durante duas semanas – por dentro e por fora – a Fábrica de Braço de Prata, com o seu evento anual (esta foi a terceira edição). Ou seja, foi possível ver projectos de criação individual e colectiva em vários suportes (pintura mural, fotografia, instalações, personalização de objectos e expressão gráfica), com o graffiti e o meio urbano como matrizes. Propósitos? Reinventar o graffiti como actividade artística para espaços interiores. E, claro, divulgar o trabalho dos sete writers – HBSR81, Hium, Klit, Mar, Ram, Time e Vhils – junto de um público mais

alargado e, até, preconceituoso. Para isso, VSP organizou não apenas a exposição, mas concertos, debates, sessões de pintura e graffiti com convidados e projecção de filmes. E o lançamento de um livro documental, com testemunhos, fotos e estórias destes três anos. Conhecidos por terem afirmado, no contexto português, uma nova forma de pensar o fenómeno da pichagem e da arte de rua, os eventos VSP instituem-se como reunião privilegiada de novas tendências de arte urbana, já que os writers investem na exploração das novas possibilidades técnicas pensadas para a intervenção em ambientes interiores. O muro, sim, mas dentro de casa, ou nas t-shirts e mochilas “costumizadas”. Em www.bracodeprata.org/ há uma pequena reportagem fotográfica do VSP 2007 e em www.visualstreetperformance.com/ é possível conhecer melhor o movimento e os artistas. Quanto ao muro da Avenida Conselheiro Fernando de Sousa, bom, é só apanhar o 58 da Carris. E revisitar periodicamente.


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Em epígrafe, a frase que a norte-americana Susan Sontag, escreveu em 1988 em A Sida e as Suas Metáforas (Edições Quetzal, 1998), título que recuperamos para um dossier sobre as relações entre as artes performativas e o vírus HIV em Portugal e, em jeito de contextualização e modelo, quase sempre, na Europa. Amostra, conscientemente não exaustiva, que procura entender se efectivamente, e como escreveu a ensaísta, “a epidemia da sida constitui uma projecção ideal para as paranóias políticas do Primeiro Mundo”. Começamos pelo Portugal democrático, apressado na afirmação do fim dos tabus e na liberdade discursiva, para tentar perceber se há escola, se há corrente ou ausência. E se sim, ou porque não, porquê? Abrimos depois para a dança de Dominique Bagouet, Raimund Hoghe e Bill T. Jones, e para o teatro de Arianne Mnouchkine, Krzystof Warlikowsky e Reza Abdoh, alguns vítimas do vírus, entretanto desaparecidos, outros resistentes, outros solidários. Olhares cruzados sobre uma epidemia que definiu as relações humanas de há mais de duas décadas para cá, num ano que fecha marcado pela discriminação de um cozinheiro seropositivo e pelos alarmantes números que nos dão o quarto lugar, nos países da OCDE, de casos diários de infecção.

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10 Terminal Bar (Grupo Teatro Hoje)

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texto Elisabete França

A SIDA E AS SUAS METÁFORAS

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NÓS POR CÁ… TODOS BEM? VI I


A expressão do VIH/sida em Portugal – nas artes cénicas, no cinema e audiovisual –, diversificada mas quase insignificante e mais importada do que produção autóctone, configurará uma “não inscrição”? Esse quadro sinaliza-nos, implicitamente, “o medo de existir”? ‘Nós por cá, todos bem’, ao somar seis novas infecções por dia e figurar, assim, em quarta posição no quadro europeu ocidental? São questões suscitadas a propósito dum levantamento da situação, apoiado também em memórias, às vezes desfiadas na surdina da voz a pender para o silêncio, a cair no anonimato

Tão só o fim do mundo. foto: Jorge Gonçalves

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cortesia: Rosa Filmes

“A sida não é apenas um ‘tema’ ou algo ‘sobre’ que há filmes, mas uma matéria do real (porque a sida existe), com a qual as artes figurativas e ‘performativas’ defrontam uma nova conjuntura ética e estética”. Adopta-se esta citação dum texto publicado por Augusto M. Seabra em 1994(1) e generaliza-se do cinema para a TV, para a criação cénica ou ainda, sendo pertinente, para textos, ensaísticos ou dramáticos ou outros, que alimentem criações cinematográficas, teatrais, coreográficas – produzidas ou apresentadas no país. E procede-se segundo associações de ideias, de motivos, tópicos, circunstâncias, para que o texto a seguir flua com a coloquialidade possível, tentando evitar uma esquemática estopada. Ainda a título de introdução, dê-se ao texto algum contexto, genéricas coordenadas traçadas com exemplos concretos, a figurar na “paisagem”. Não foi de sida que morreu António Variações, declarou publicamente um homem de leis, irmão do cantor. Um desastre de automóvel levou à morte António Cruz: sotto voce, falou-se de suicídio, sendo o carro conduzido pelo próprio protagonista de What Happened to Madalena Iglésias?. Foi a tuberculose que matou o actor e encenador Mário Viegas, fundador da Companhia Teatral do Chiado. Entendido? Adiante. A própria natureza da sida (síndroma de imunodeficiência adquirida, recorde-se), com a vulnerabilidade orgânica que produz, expondo as pessoas infectadas a subsequentes infecções oportunistas, amplia o quadro de diagnóstico, a facilitar versões das causas de óbito que “cobrem a realidade com o manto diáfano da fantasia”, como já preconizava o Eça e se tem cumprido na matéria em questão, por pudor ou denegação. Diga-se, já agora: aqui e algures. E na arte como na vida: nem um Bernard-Marie Koltès nem um Jean-Luc Lagarce, grandes dramaturgos da segunda metade do século XX, precocemente levados >>

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>> pela sida numa França de costumes mais permissivos, transpuseram a vida em directo para a arte. Mesmo um protagonista como o de Tão só o Fim do Mundo (1990), filho pródigo atingido por doença mortal, em visita de despedida à família, não chega a nomear o seu mal, na peça de Lagarce que o cineasta Alberto Seixas Santos encenou no Teatro Taborda, Lisboa, em 2005, a convite dos Artistas Unidos(2), no ciclo que o grupo dedicou ao autor, desde 2004 até ao último Festival de Almada. Muito menos se revelou o filósofo Michel Foucault, que investiu inteligência e saber(es) na construção de uma monumental História da Sexualidade (editada em Portugal pela Relógio d’Água) mas, da sua, e da sida que não declarou publicamente, o que sabemos passa muito pela exposição de Hervé Guibert, no roman à clé que é À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie. Entre nós, no entanto, parece adensar-se o véu de “nevoeiro branco” em que envolvemos situações traumáticas, no processo de “não inscrição” descrito por José Gil em Portugal Hoje – o medo de existir (Relógio d’Água, 2004, Prémio Pen Club de Ensaio). A tal hipótese voltaremos (apesar de o prestigiado universitário nos ter recusado um depoimento já agendado); entretanto, registamos omissão da temática VIH/sida nos ensaios do seu livro Movimento Total – o corpo e a dança (Relógio d’Água, 2001) embora trate questões como “comunicação 12 dos corpos” ou “consciência do corpo” que “se abre ao mundo”, a “escutar a sua própria época (…) - e devir, e criar”. Enfim, lamentamos a impossibilidade de confrontar o filósofo com tudo isto. Mas nem só José Gil recuou: também o fez o actor e encenador Juvenal Garcês, cada qual com os seus motivos. O sucessor de Mário Viegas na direcção da Companhia Teatral do Chiado negou-nos o depoimento acordado, entre declarações de “não ter vindo para

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o teatro abordar os problemas próprios”, “não sentir muito essa necessidade”, e alegações da condição de seropositivo, que jul-gará impeditiva de discurso sobre a matéria, “com um rigor que requer distância”. Ao contrário deste, fala-nos outro actor e encenador também seropositivo, mas sob anonimato, a prevenir eventuais consequências de falsas declarações que banca e seguradoras estão mesmo a pedir, ao discriminarem cidadãos por razões de saúde (esta entre outras), no acesso ao crédito. A um refém de poderes discricionários – além do económico, o próprio poder judicial, como ressaltou no recente caso do cozinheiro de hotel a quem foi negado o direito ao trabalho, em duas sentenças de ignorância básica e estarrecedora arrogância –, nada adianta a legislação vigente (sim, a Lei 46/2006, regulamentada pelo Decreto-Lei 34/2007, visa “prevenir e proibir as discriminações em razão da deficiência e de risco agravado de saúde”). Frontal por natureza, X. considera que a nossa produção intelectual e artística sob o signo do VIH/sida escasseia por “falta de frontalidade”, própria do “ambiente repressor”, fonte de “marginalização” e “morbidez”. “Não há enfrentamento directo”, acusa, referindo “uma carga de culpa e pecado” que obsta à “compreensão científica” desta epidemia, cujo modo de transmissão mais comum é sexual: “Os jovens encaram o problema de maneira já desempoeirada mas muito pouco informada e a desin-formação continua muito profunda na população”. X. acha “incompreensível que a Comissão [agora Coordenação] Nacional [de Luta Contra a Sida] acabe por fazer campanhas bastante estéreis” e deplora que, “para o geral das pessoas, sida ainda seja sinónimo de condenação à morte, o que contraria a informação médica mais recente”. Daí, em conclusão, “o terror de que se saiba no emprego, na família, no círculo de amigos, por ser muito provável que se fique sozinho”. Talvez por isso esteja arredado, do nosso espaço, o tipo de intervenção cívica-política traduzida em revelações públicas de infecção, por personalidades com capital simbólico, seja cultural ou outro, associado ao seu nome, como foi o caso do actor Rock Hudson. Camuflada a doença e até a condição seropositiva, na falta da sua “inscrição”, a nossa produção intelectual e artística pouco as reflecte. Seja hoje, com a leveza que dão as possibilidades abertas por novos medicamentos, controlando o vírus “pestífero” e podendo tornar crónica a doença “fatal” (nova “doença prolongada” no eufemismo mediático, a partilhar espaço com a “cancerofobia”, como notava Susan Sontag nos finais de 80(3)), ou fosse no pesadelo de há um quarto de século e durante uma porção de anos subsequentes à descoberta trágica do vírus, quando a catástrofe, declarada ou anunciada, era motor mesmo do debate e da reacção criativa. Desde o centro difusor nos Estados Unidos (origem também dos


Testemunhos e exorcismos Na nossa deriva entre presente e passado, incluindo testemunhos que remontam aos “anos da peste”, esboçamos uma amostra do que foi sendo a produção nacional e de produções estrangeiras difundidas no país. Criações mais marcadamente estéticas ou antes com tónica didáctica. Ditadas pela vontade de dar testemunho, ou de deixar rasto. De avisar ou mesmo de gritar. Quase sempre, dir-se-ia, exorcismos: contra a doença, a ignorância dela, o medo. Medo do sexo, medo do outro, medo do medo do outro – que possa extravasar, incontrolável; segregar, estigmatizar, excluir. E medo de ter medo.

cortesia: Rosa Filmes

Ainda há pouco, em Outubro, o DocLisboa trazia-nos La Pudeur et l’Impudeur (criticada na última OBSCENA), do já citado Hervé Guibert, “diário íntimo” filmado para a televisão, na fase terminal (morreu em 1991, aos 35 anos), pelo escritor, antes discreto, que a doença faria autor duma conhecida série de livros(4). Caso similar ao do também francês Cyril Collard, actor e músico da mesma geração, que deitou mão à escrita como quem exorciza a dor e depois à câmara de filmar, adaptando ao cinema o segundo romance, Les nuits fauves/Noites Bravas (5), que ainda protagonizou, quando mais nenhum actor quis implicar nisso a sua imagem. Naquela secção do DocLisboa (Diários Filmados e Auto-retratos), programada por Augusto M. Seabra, La Pudeur et l’Impudeur passou em sessão dupla, com o último filme do britânico Derek Jarman (1942-1994), cineasta de obra escassa mas fulgurante: Glitterburg, uma colagem de “restos” montada quase como álbum de recordações, trar-nos-ia à memória Blue, de 1993, despedida dum artista visual limitado pela cegueira à banda sonora, emitida a par da projecção de luz azul no ecrã – luminosa eternidade, “c’est le soleil et la mer ensemble”? Em Lisboa, no ano de 1996, organizou ainda Augusto M. Seabra, o ciclo de filmes Cinema Positivo. A expressão cinematográfica neste domínio é considerável, há uma relativa abundância de filmes e telefilmes, mais produções independentes do que mainstream, ficções e documentários, a preto e branco ou a cores, de longa e média metragem mais do que curta, em celulóide e vídeo, com temática explícita (como os já antes cita>>

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primeiros diagnósticos, em 1981 – situados na comunidade gay, vulnerabilizando-a e acentuando-lhe estigmas), até manifestações bem visíveis na Europa, sobretudo em países como a Grã-Bretanha e a França, e esta seguindo a sua tradição de intelectuais e artistas engagés e interventivos. Mesmo num pobre país do flagelado continente africano, Moçambique, é visível a intervenção, em programas de dança e teatro e música ao serviço da educação e da prevenção. Aqui, o mais que se viu e/ou leu tinha origem estrangeira. Nós por cá… todos bem? Nem tanto. Logo no nó em que se enleiam sociedade, saúde e política, tivemos sangue contaminado em transfusões, infectando hemofílicos e não só – do processo do final dos anos 80, era Leonor Beleza ministra da Saúde, até ao recente julgamento do caso –, com saldo de vidas perdidas e clamor esmorecido. Se êxito houve no tratamento da doença, é reconhecido o falhanço na prevenção: os últimos dados indicam média de seis novos casos diários, de pessoas atingidas em Portugal, o quarto país da OCDE com maior número de infectados(as) e o que regista maior incidência da doença entre consumidores(as) de drogas injectáveis, apesar de o grupo mais vitimado ser o dos heterossexuais. Nos meios artísticos, ao menos durante os primeiros anos, o vírus parece ter contaminado sobretudo o sector teatral, deixando meia dúzia de cadáveres pelo caminho.

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>> dos ou os mais conhecidos Companheiros de Sempre de Craig Lucas e Norman René, 1990 e Filadélfia de Jonathan Demme, 1993) ou implícita (títulos de Todd Haynes como Veneno, 1991 ou Safe, 1995). Em Portugal, ao contrário, foi produzido apenas um título, em 1999: Mal, de Alberto Seixas Santos. Quem melhor do que o realizador de Brandos Costumes, Gestos e Fragmentos ou Paraíso Perdido, ávido de presente como é raro no nosso cinema, para mergulhar nesta lava, a captar o ar do tempo? À procura, na contemporaneidade, de “algo equivalente ao destino na tragédia grega, uma certa forma de fatalidade”, chegou Seixas Santos à problemática da sida, tratada “como fenómeno contemporâneo que marcava as nossas vidas”. Interessou-lhe “a maldição, mais do que a doença em si”, porque “permitia introduzir a componente ética no interior de uma família, entre um homem e uma mulher”. Sem saber responder pelos seus pares, crê não existirem mais filmes “porque o tema é ingrato e as pessoas do cinema se defendem de arriscar”. Uma mão no cinema e outra no teatro, a dirigir actores fazendo-nos crer que só eles pudessem recriar aquelas personagens nos dois trabalhos referidos (impensáveis alternativas para o Rui Morrison de Mal e o José Airosa de Tão só o fim do mundo, qual deles o mais comovente na sua vulnerabilidade, nos seus defeitos, numa 14 suave selvajaria). Muito antes tinha Seixas Santos passado “o primeiro filme sobre sida na televisão portuguesa, mais exactamente um telefilme”, como nos diz. Esqueceu o título mas lembra que “passou em horário nobre, para pôr a população diante do fenómeno”, conforme competia ao responsável pela programação duma televisão pública – no caso, a RTP2. Estava-se em 1986, um ou outro enlatado iria passando, até chegar a vez da produção nacional, a uma década de distância, impulsionada já pelos canais privados: enquanto a SIC só adaptava o formato importado da série Médico de Família (1998), com um episódio Sida entre muitos outros, uma médica seropositiva entrava ao “Bom Povo Português” pela porta adentro e vinha para se demorar, embrulhada em telenovela da 4, agora TVI, Todo o Tempo do Mundo. Sabem que mais? “Teve audiências bestiais e lançou a TVI em termos de produção nacional”, segundo Margarida Marinho, que teve “o privilégio” de interpretar a médica, “uma personagem reabilitada em vez de estigmatizada”, no argumento de Tó Zé Martinho, “muito bem documentado”, com “um lado pedagógico de esclarecimento importante”; sem escamotear “os defeitos duma telenovela”, a actriz realça que essa foi invulgarmente cuidada, com direcção de actores e supervisão de texto de João Perry. A jóia da coroa electrodoméstica, porém, seria a série Angels in America, de fôlego épico e matriz política, cen-

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trada nos anos mais negros da sida (meados de 80), com Ronald Reagan na presidência dos EUA. Abrilhantada por estrelas de Hollywood de primeira grandeza (Al Pacino, Meryl Streep, etc.), estreou-se em 2003 e aterrou em 2004 nos pequenos ecrãs nacionais (via RTP2), onde o público português acedeu, enfim!, ao díptico que o próprio dramaturgo, Tony Kushner, adaptara para televisão: I. Millenium Aproaches, II.Perestroika. Com estreia absoluta em Nova Iorque (1990), o espectáculo teve também produção londrina e esta é que havia integrado o programa de Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura, apresentando-se no Teatro D. Maria II, mas só pela metade. Depois, à conta da falha de Maria Manuel Pinto Barbosa, comissária para o teatro na Capital de Cultura, foram dez anos à espera da Perestroika! E então? Os soviéticos esperaram muito mais. No capítulo teatral, outra destacada produção exterior passou por aqui, à época: The Night Larry Kramer Kissed Me, que estivera em 94 no Festival de Edimburgo, veio em 95 ao fugaz Festival Monumental, direcção também de Seabra associado a Paulo Branco. Escrita e originalmente interpretada pelo actor norte-americano David Drake (substituído em Lisboa por Eric Paeper), a peça, encenada por Chuck Brown, recuperava aproximadamente ambiências de West Side Story, mas pesadas três décadas depois ao nível da violência urbana e com novos contornos, moldados pela cultura gay e a sida. O título, aliás, joga com o nome dum famoso dramaturgo norteamericano, judeu e activista gay, que desempenhou papel primordial na politização da epidemia e no combate

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cortesia: Rosa Filmes


D. João e a Máscara

contra ela, sucessivamente co-fundador e dissidente das organizações Act up e Gay Men’s Health Crisis. Excertos de peças suas, de Mark Ravenhill e Robert Patrick, entre outros, integraram a série de Leituras ao Sábado, há um ano, em Lisboa, na sede da Comuna, iniciativa dum grupo de actores. Entre eles Luís Assis, coordenador das leituras. Estreara-se dez anos antes como dramaturgo e encenador, com Enquanto o Espectáculo Decorre, que terá sido o primeiro (o único?) texto dramático português levado à cena no Teatro Villaret, abordando a problemática da sida. Para o actor-autor, “não havia intenção militante mas, sim, necessidade de retirar o estigma e ir contra o aproveitamento de um certo sensacionalismo em torno da temática da sida”. Também aí Margarida Marinho interpretou: “Disse logo que sim, era original português e um primeiro trabalho, era preciso pesquisar sobre o tema e era o que queria fazer, tive amigos infectados e continuo a ter”. Portanto, não se basearam em originais portugueses as produções nacionais mainstream, em Lisboa e no Porto: A Minha Noite com o Gil (1994), do britânico Kevin Elyot e Uma Visita Inoportuna, de Copi, pseudónimo do escritor e artista argentino radicado em França, onde morreu, em 1987, vítima de sida. A primeira, traduzida por Fernando Heitor e Henrique Feist, foi adaptada e encenada por Heitor, a convite de João Lourenço, no antigo Teatro Aberto, com Paulo Pires a estrear-se no palco, em 1996, logo um ano após a produção original, no Royal Court de Londres,

ter ganho os mais sonantes prémios. A originalidade da peça está em ser uma comédia dramática agridoce, apesar de atravessada por acontecimentos trágicos. “Ligeira e profunda, numa altura em que tanta gente tinha amigos ou familiares doentes, ou acabados de morrer”, vinca Fernando Heitor, num elogio. E foi então que ganhámos a palavra gay, que “ainda não se usava” mas ele passou a usar, por não conseguir tradução satisfatória nalguns contextos. Para a peça de Copi, feita por Jorge Castro Guedes no Porto, em 1999, foi o próprio encenador e director do Centro Dramático de Viana do Castelo que sugeriu aos colegas directores da Seiva Trupe que montassem o texto. De facto, António Reis e Júlio Cardoso encabeçariam o elenco do Teatro do Campo Alegre, mas convidaram-no para o resto (tradução, adaptação, encenação), por estar já familiarizado com a matéria. Isso proporcionou-lhe uma experiência “muito interessante, que funcionou muito bem em termos de actores e de público”, saboreada também pelo lado do texto. Era a penúltima peça do autor, moribundo, que já não a vira em cena (a estreia póstuma, em Paris, deu-se Teatro de La Colline, com encenação de Jorge Lavelli, em 1988) mas, segundo Castro Guedes, emana do texto admirável “capacidade de auto-ironia e uma ironia fina” que está também “no olhar de Copi para a sociedade francesa com os seus preconceitos” relativos aos infectados. Deste autor, que o Teatro Plástico tinha revelado já ao Porto em 1995 (com O Frigorífico, encenado por João Paulo Costa), vai a obra dramática ser editada em português no ano que entra, pelos Artistas Unidos. E Copi acaba de sair de cena em Lisboa, na Karnart, que remontou O Homossexual ou A Dificuldade em Exprimir-se, com um trio de actores a interpretar o texto, feito antes por três actrizes, para averiguar eventuais diferenças na performance, determinadas pelo género. Duas encenações de Luís Castro, co-intérprete da segunda versão. Nada a ver com sida, a peça é de 1971, só se estranha que Castro nunca o tenha feito, nas suas perfinsts de tão acentuada componente física e abertamente sexual. Porquê? “Nunca quis contaminar a minha criação com esse vírus”, resume. Explica que tem querido “abordar a temática sexual, mas num sentido libertador, nunca num sentido opressor”. E justifica com “o respeito pelo público”, o cuidado de não lhe tocar em feridas que fossem idênticas às suas, “marcas de dores, de mortes de amigos, nos anos 80 e 90”. Ousou fazê-lo num único e muito específico espectáculo, SalveSave (CCB, 2000) – o do regresso ao seu Moçambique natal –, a contrariar a resistência ao preservativo que o chocou, mas trabalhou “duma forma estatística, no contexto de informações de diversos tipos, identificando a realidade moçambicana”. Houve também espectáculos teatrais que alguns associam de memória à infecção por VIH/sida, por virem a palco na capital portuguesa muito depois de escritas (no S. >>

SalveSave

foto: Luís Castro

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Rastro. Inspirou-se na obra de Dominique Bagouet, nos

15 anos da morte, devida à sida, de um coreógrafo europeu de referência, fundador e alma mater do Festival de Montpellier, França. A outra é uma peça histórica, aquela que trouxe a Portugal, em 1995 e pela primeira vez, a Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company: Still/ Here, programada para a Culturgest por António Pinto Ribeiro (hoje na Gulbenkian). Esta foi a criação de Jones dedicada ao seu par na arte e na vida, na sequência da morte de Arnie Zane, decorrente da sida. Em Still/ Here, a performance articulava a presença dos bailarinos com a de múltiplos televisores, em cujos ecrãs figuravam desfigurados doentes terminais, de sida e de cancro, em contraste chocante – para não esquecermos quem partiu ou está em vias disso, nós e

quem dança, exibindo corpos saudáveis… ainda/ aqui. No artigo de Augusto M. Seabra, citado a abrir, o crítico problematizava a (des)figuração num filme como Blue - binómio explorado por outros criadores a partir da matéria que nos ocupa. Por exemplo, a norteamericana Meg Stuart, no Disfigured Study trazido ao Acarte/Gulbenkian (1992), com Francisco Camacho,

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>> Luiz, Marco d’Almeida encenou Caixa de Sombras, 1977, de Michael Christofer; na Comuna, foi Maria Henrique a fazer Corações de Papel, 1980, de Harvey Fierstein) e por abordarem doenças terminais ou temática gay, ou dois em um. Idêntico processo de leitura polissémica mereceriam duas coreografias que vale a pena referir aqui por isso mesmo. É que, se no cinema descobrimos um-filme-um português com lugar neste levantamento, na dança nem uma coreografia: mesmo depois de conferir reminiscências com o programador da Culturgest e co-fundador do Fórum Dança, Gil Mendo. Dois criadores explicam-se-nos, Francisco Camacho e Paulo Henrique. Camacho defende o seu direito a “um plano mais amplo de trabalho” e mostra-se distanciado duma “tradição biográfica nas artes, que não existe em Portugal como existe nos Estados Unidos”, à qual associa de certa maneira a produção artística que se foi organizando em função da epidemia de sida – o que tem razão de ser nuns casos e noutros não. Certo é que o público, ou parte dele, orienta em diferentes sentidos uma interpretação e assim aconteceu face à sua coreografia Com a Morte me Enganas, estreada na Lisboa 94 e com digressão em França, onde a apresentação era seguida por debate. Para o bailarino-coreógrafo, o propósito, à partida, “era mostrar um corpo em falha”; na livre leitura de cada qual e em função do adereço 16 cénico transportado pelo performer (um carrinho com soro e sangue), “houve quem visse a sida como motivo subjacente, mas também houve quem identificasse a imagem cénica com uma situação de guerra, de vítima de guerra”, estalara então precisamente a Guerra da Bósnia, no centro da Europa(7). Paulo Henrique conta que o mesmo se tem passado com a sua instalaçãoperformance De Agora em Diante, em cujo espaço cénico também está presente o elemento sangue. Este trabalho que o Festival Danças na Cidade 1996 estreou em Lisboa, partiu também em tournée, de Nova Iorque à Alemanha. O artista, por ora radicado em Londres e a sentir-se até gratificado pela extensão temporal do diálogo correspondente a uma criação com cerca de 10 anos, respondia-nos por e-mail que pretendeu, com a utilização feita do sangue, nesse projecto, marcar “a dicotomia do privado e do público”, o vital líquido a simbolizar também “tudo quanto há de mais íntimo, toda a verdade”. Entende que adereços como seringas e toalhas brancas, lentes, etc., podem contribuir para “dar uma imagem clínica do projecto”. Já no que se refere a espectáculos importados, há um ou dois pares de coreografias relevantes na sua relação íntima com a matéria que nos interessa. Já este ano estreada no Porto, Retransmissions foi uma criação da companhia Louma/Alain Michard, em residência em Serralves, no âmbito do ciclo Anos 80: Lastro e

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foto: José Frade

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Caixa de Sombras

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36º FESTIVAL D’AUTOMNE

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indo a coreógrafa reincidir na intervenção mais genérica em No Longer Ready Made (CCB, 93), ou XXX For Arlene Croce and her Friends (1995), em resposta à reacção da crítica norte-americana a Still/Here, que não veio a Portugal mas sobre o qual o crítico português André Lepecki discorreu (ver OBSCENA #3). O motivo da (des)figuração foi também tratado, no teatro, pelo falecido Mário Feliciano, na sua última encenação, da peça Dinis e Isabel (1919), de António Patrício. João Grosso, intérprete do espectáculo estreado no Trindade em 1992, já fora dirigido pelo encenador, no marcante e premiado Dom João e a Máscara (1924), do mesmo dramaturgo, no Teatro da Politécnica (1989). “Ao falar-se da lepra e da peste, o Mário Feliciano assumia a doença do Fernando José Oliveira [seu companheiro], (ex)posto em cena como corpo já carcomido, desfigurado”, sublinha o actor. Também revela que, em Dom João e a Máscara, “foi trabalhada, sobretudo, a metáfora da peste”. Ou seja, “o espectáculo falava metaforicamente de HIV sem o explicitar – isso era aludido na crítica de Eugénia Vasques [Expresso] –, doutra forma não chegaria aonde chegou”, opina João Grosso. Chegou a muita gente, teve sucessivas lotações esgotadas, por exemplo. Ou seja, dito ainda doutro modo, a generalizar: quanto melhor, mais complexa, for uma obra, maior leque de leituras propicia, quer a receptores-espectadores, quer a receptores-criadores. Quem lê projecta-se no que lê, sendo perfeitamente legítima a linha de trabalho de que João Grosso dá conta, com total apropriação dos textos de António Patrício, a um século de distância. Dos dois actores nomeados, João Grosso iria depois para o Teatro da Graça, no ciclo americano do Grupo Teatro Hoje, substituir o desaparecido Fernando José Oliveira, na continuação da peça de Albee Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, encenada por Fernanda Lapa. Também o director deste grupo, Carlos Fernando, estava já bastante doente. Por isso, recorda-nos Gastão Cruz, o outro director-fundador, que, sendo o drama de Albee o trabalho árduo que é para um quarteto de intérpretes, o Carlos Fernando optou por fazer de Terminal Bar [de Paul Selig] a sua última peça, que era bastante mais simples” embora muito emotiva, com mais um texto alusivo a doença mortal não identificada (como, entre ou-

tros exemplos, o de Lagarce citado antes ou, no cinema, Veneno de Todd Haynes). Ao poeta caberia substituir o defunto na direcção: em 1986, voltara de um leitorado em Inglaterra e, sem deixar o ensino, passou também a encenar, entre convidados (dar-nos-ia A Gaivota memorável do ciclo russo seguinte) e herdara ainda “todo o lado administrativo, muito dispersivo”, duma estrutura que “sempre teve mudanças”, mas cujas perdas e danos passaram, na viragem dos anos 80/90 aqui focados, por seis mortes (também Amílcar Botica, Ruy Furtado, Rui Pedro, Sara Lima), três delas motivadas pela sida. Insistindo embora Gastão no carácter “não muito referencial” da sua poesia [até então], é inegável que um livro como As Pedras Negras (Relógio d’Água, 1995), dedicado “à memória do Carlos Fernando”, reflecte tais perdas: livro de lutos, onde Sangue é “o veneno que corre”. A fechar, lembramos que o Grupo Teatro Hoje, com reportório e elencos excelentes, tendo resistido àquelas sucessivas tragédias, sucumbiria a seguir, esmagado pela política kultural de Santana Lopes/Manuel Frexes na Secretaria de Estado da Cultura de péssima memória, às vezes avivada pela presente equipa da Ajuda... Também por isto, como por tudo aquilo que antes se evocou, parece encontrada res-posta para a nossa reiterada pergunta acerca de ‘nós por cá’. Com a devida vénia a Fernando Lopes, cujo título de filme fomos buscar e citar, usar e mais ou menos glosar, sem querer abusar.

Positivamente Cinematográfico, in Quando o Mundo que nos Cai em Cima, coordenação de Alexandre Melo, edição Abraço, Lisboa, 1994

Enquanto o espectáculo decorrefoto: Luísa Gomes

(1)

Também na colecção Livrinhos de Teatro nº7, Artistas Unidos/Edições Cotovia A Doença como Metáfora e A Sida e as Suas Metáforas, Quetzal Editores, Lisboa, 1998 (4) À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie, Le protocole compassionnel e L’homme au chapeau rouge, seguidos por Cytomégalovirus, edições francesas Gallimard, as últimas duas póstumas (1992) (5) Edição Flammarion, Paris, 1989, após o romance de estreia Condamné amour, idem, 1987; seguiu-se Sauvage innocence, diários de publicação póstuma como a estreia do filme, amplamente premiado nos Césares de 1993 (os livros saíram em poche sob chancela J’ai lu) (6) Excertos do texto e outras informações sobre a peça disponíveis em http://luisassis.com.googlepages.com/1996 (7) O Fórum Dança tem, para consulta e visionamento, uma cópia da peça. (2) (3)

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OS PORTUGUESES NÃO TÊM CORPO texto Alexandre Melo

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Será que os portugueses têm corpo? A pergunta começa por parecer absurda mas corre o risco de se tornar inquietante à medida que se acumulam os indícios de que a resposta é negativa: os portugueses não têm corpo. Tópico de observação corrente – apesar da desestabilização trazida pela televisão privada – é o modo como os discursos maioritários abordam ou, para ser exacto, não abordam a sexualidade e sobretudo as questões de diferenciação, discriminação e repressão sexual que constituem a sua dimensão polémica. Pode-se defender que, em termos culturais, a suave omissão destes temas, inefável componente dos nossos brandos costumes, se traduz numa acrescida margem de manobra ou mesmo de tolerância implícita em relação às práticas e nessa medida constitui um ganho civilizacional que nos poupa ao desgaste de tomadas de posição arrebatadas e a confrontos tendencialmente histerizados. Mas uma tal peculiaridade não está isenta de riscos. O sistema de tolerância implícita por omissão corre o risco de sempre que se tornam publicamente notórios casos polémicos se verem emergir do fundo dos tempos posições fundadas no mais brutal obscurantismo e no mais convicto desprezo pela liberdade alheia. Veja-se o desplante com que responsáveis políticos ou técnicos especializados – há tempos foi o juiz da “coutada do macho lusitano”, agora foi o psiquiatra da Carris – promovem a discriminação sexual segundo a melhor tradição do humor boçal. Veja-se a extraordinária descontracção com que as autoridades oficiais dão sistematicamente a entender que em relação à SIDA “ainda” não há motivo para alarme como quem está, e estão mesmo, à espera que haja de facto ainda mais motivo para alarme para finalmente desencadearem campanhas eficazes de prevenção. Pois não foi a principal responsável oficial nesta matéria que, na televisão, como forma de prevenção da SIDA, aconselhou os jovens a começar a sua vida sexual mais tarde? Já agora

Perhaps she could dance first and think afterwards

de Vera Mantero foto: Jorge Gonçalves


leve-se o raciocínio às últimas consequências e aconselhem-se os cidadãos a não começarem nunca a sua vida sexual ou a acabarem rapidamente com ela. Isto é, fazerem como se não tivessem corpo. As autoridades parecem querer assim secundar a criminosa campanha de boicote à prevenção da SIDA promovida pela Igreja Católica, que mais uma vez aproveita uma situação dramática para inculcar a sua propaganda repressiva – a operação atingiu o extremo mais caricatural no caso do protesto contra o cartoon de António [do Papa João Paulo II com um preservativo no nariz]. Veja-se finalmente a displicência com que, segundo se vai sabendo, os doentes são mortos nos hospitais públicos – depois dos hemofílicos é a hemodiálise – sem que nenhuma autoridade manifeste disponibilidade para assumir a culpa, a responsabilidade ou sequer o remorso. Porque é que em Portugal se matam pessoas nos hospitais, não se faz a prevenção da SIDA e se promove a discriminação sexual, sem que ninguém seja responsabilizado ou manifeste sequer uma excessiva indignação? A hipótese de resposta mais radical é talvez a de que os portugueses não têm corpo. O corpo não tem lugar nos discursos correntes e dominantes na sociedade portuguesa e por isso tudo se passa como se os portugueses não tivessem corpo. A dimensão fascinante desta pequena elipse consiste, claro está, em tudo aquilo que se passa quando tudo se passa como se não houvesse corpo. Abrem-se possibilidades muito voluptuosas mas à custa de um défice de sentido e de debate cívicos que se torna particularmente chocante quando comparado com a densidade das correspondentes discussões além-fronteiras. Excerto de Os portugueses não têm corpo, de Alexandre Melo, publicado, numa primeira versão na Revista do jornal Expresso, 22 de Maio de 1993, e numa segunda versão, da qual se transcreve este excerto com autorização do autor, em Velocidades contemporâneas, Assírio & Alvim, Lisboa, 1995.

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FALAR SOBRE A SIDA!

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texto Thomas Hahn Fotografias de espectáculos de Dominique Bagouet, © Les Carnets Bagouet

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Falar sobre a SIDA! Foi uma tentativa de acabar com um tabu, porque a dança não tem tido uma tarefa particularmente fácil ao fazê-lo. A dor era demasiado profunda quando o meio se juntou, em Julho deste ano, durante o Montpellier Dance Festival, em França para uma conversa pós-traumática. Ficou tudo sossegado à volta do maior inimigo dos artistas dos anos 80 na Europa Ocidental. A SIDA! Um debate sobre o vírus e as suas consequências já quase não acontece, nem no público, nem nas artes. Este sossego mostra sobretudo que nada mudou na nossa relação com a imunodeficiência. O silêncio na floresta poderá ter a ver com a postura comercial em relação à sexualidade. Há quarenta anos, a sexualidade foi descoberta como um meio para a realização própria. Hoje, encontra o seu sentido sobretudo como instrumento para a expressão pessoal. A abertura aparente tornou-se num terreno comercial. Durante este falhanço da libertação, a oportunidade para lançar uma controvérsia sobre a SIDA passou. O que tem em si uma lógica interna, visto que foi a SIDA que nos levou a uma repressão renovada do íntimo, que justamente se preparava para abandonar o reino sombrio do recalcado. Do mesmo modo, o reatamento com o íntimo poderá também ser uma consequência da SIDA. No jogo confuso entre causa e efei-

to, parece ainda ser demasiado cedo para encararmos o síndroma em si. Contudo, as suas consequências na arte estão a tornar-se analisáveis. As nuvens de fumo desapareceram e está-se a tornar claro que a relação explícita SIDA-Arte foi um fenómeno temporário. Bill T. Jones está de novo, desde Still/here, a fazer peças apelativas. Como foi tudo então, quando há um quarto de século a jovem vaga nos Estados Unidos da América se sentia repentinamente entusiasmada com os pioneiros de Judson Church e quando a Nouvelle Danse em França planava em sensualidade até que a morte de Dominique Bagouet acabou abruptamente com a atmosfera eufórica? Nenhum outro adeus teve este efeito simbólico e devastador, nem o de Jorge Donne, companheiro de Béjart, o de Nureiev, ou o de Hideyuki Yano, emigrado para França em 1988, que tinha de esconder a sua homossexualidade no Japão. Dominique Bagouet, fundador do Montpellier Dance Festival, é uma das vítimas da SIDA mais conhecidas na dança. Este ano, mesmo que não representasse um sinal de luto (apesar de terem caído lágrimas), foi seguramente um sinal da memória. Todos os anos, Jean-Paul Montanari desenvolve um aspecto do ambiente sócio-cultural da cena. Vinte e cinco anos depois de Bagouet, os debates do festival eram dedicados às “Consequências da SIDA na


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Dança”. É possível também traduzir este tema noutro mais amargo, como “O que a SIDA fez à Dança”. É perfeitamente aceitável que a morte de Bagouet tenha causado uma onda de choque e uma mudança estética nos palcos. Montanari mostrou todos os documentários em filme encontrados sobre Bagouet, mas não quis ver o festival como uma homenagem, confrontando também as cenas dos outros países, com as suas origens. Desta forma muito involuntária viu-se como as primeiras pequenas peças experimentais de Trisha Brown do princípio dos anos 70 tinham muito mais alegria de viver do que as suas criações actuais. Sobretudo porque estes primeiros trabalhos eram reproduzidos pelos bailarinos actuais da companhia. A morte de jovens colegas desde há muito se esgueira, e com surto da imunodeficiência a galopar, caiu como uma bomba, particularmente na dança francesa, com os seus ideais de beleza. Para muitas pessoas do meio, foi como se a dança tivesse traído os seus jovens e torná-los em órfãos. Nenhuma outra arte está tão próxima da promessa de liberdade e da alegria de viver. No entanto, a ideia de dança como espelho de uma vontade foi destruída. A confusão de sentimentos tornou-se num rodopio que levou muitos para as profundezas. Até vítimas de acidentes eram suspeitos de

morrerem de SIDA. Familiares, especialmente pais, não conseguiam admitir a homossexualidade dos seus filhos e confessavam a sua morte póstuma. Parceiros e círculos de amigos eram excluídos do luto. Muitos viam permissão recusada para levarem consigo os seus bens de casas comuns. Os coreógrafos apenas conseguiam falar sobre o assunto nos media da cena gay. Permaneceu tudo um tabu para as publicações de dança. Isabelle Ginot, autora do último trabalho relevante sobre ele em Dominique Bagouet, un labyrinthe dansé (Centre National de la Danse, 1999), fala das razões: “Foi nessa altura que um mundo que se construiu à volta do trabalho. A tarefa do artista era somente a sua criação e não a articulação de temas sociais”. O mesmo era válido para jornalistas de dança, como Ginot. “Para fazer isto, teria que me afastar da cena”. Seria isso uma solução, fechar os olhos à SIDA? Até no seu livro sobre Bagouet, Ginot exclui esse tema. Ao mesmo tempo, o fenómeno da SIDA comunicava especialmente aos artistas que a divisão entre arte e sociedade era artificial. Os trabalhos destes artistas tornavam-se agora mais radicais, não havia tempo a perder para ir directamente ao assunto, como analisa Agnes Izrine, editora da revista Danser. O coreógrafo belga Thierry Smits, ele próprio portador do vírus, lembra os seus ensaios: “Estava ob>>


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>> cecado com o tempo que passava, tinha o cronómetro na minha mão e berrava: “demoraste três segundos a mais!”. Izrine também aponta outras consequências. Os coreógrafos começaram a filmar e arquivar as suas criações para se escaparem ao efémero. Esse olhar foi ainda mais atrás, em vez de olhar em frente, e as novas interpretações de clássicos acumulavam-se. Na revista Nouvelle Danse a morte ainda era reprimida, assim como na Revue. O crítico descrevia o estilo de Bagouet como “barroco contemporâneo”. Poderíamos encontrar melhor metáfora para o profundo desleixo e simultânea alegria de viver? Com a implementação repentina da doença sempre presente veio uma imagem totalmente diferente do corpo. Chegou a uma recusa da Dança-Ritmo e toda uma elegância, como ainda se poderia encontrar em Bouvier/Obadia, Cunningham, Forsythe, etc. De repente, tínhamos imagens paradas! Será que nomes como Xavier Le Roy, até Raimund Hoghe, teriam sido aceites no meio e no público sem o aparecimento da SIDA? As suas peças nunca teriam existido sem uma relevância. Primeiro, tínhamos a Arte Vítima, toda a representação do sofrimento que pedia compaixão. Em seguida, a invenção do corpo nu sem o Eros. Não eram nus, mas sim exposição, como diz Izrine, mostrando assim a diferença. Por outro lado, diz ela, um debate sobre o tema sexo tornou-se possível em 22 palco desta mesma maneira, já que as práticas sexuais sem penetração, precisamente, espalhavam-se devido à SIDA. Ninguém se teria atrevido sequer a apontar na direcção de um acto completo sem o orgasmo. A dança fez tudo para não parecer erótica. Hoje em dia, ninguém teria a ideia de responsabilizar unicamente o vírus HIV pela transformação da imagem do corpo nos nossos palcos. Nos anos 80, alguns coreógrafos, como Jean-Claude Gallota, estavam interessados no corpo como um objecto do dia-a-dia, libertando, a seu tempo, a imagem do bailarino de qualquer risco, como a pressão do belo ou o medo da música. E mesmo com razões suficientes para nos afastarmos do período de stress e tempestade (o círculo político e a dificuldade em ocupar o seu espaço na paisagem da dança davam outras tantas), o aspecto íntimo da ruptura estética tem provavelmente a ver com a SIDA. A relação com a SIDA na dança é mais próxima que nas outras artes. Ambos os fenómenos tomam possessão do corpo num campo de tensão, precisamente por querem reforçar os seus avanços no corpo. A performance provoca um reforço, o de esconder a realidade íntima (erótica) do corpo. O surto da imunodeficiência eleva a pressão a níveis insustentáveis. Não é de espantar que a iniciativa SIDA Solidarité Spectacle tenha sido fundada, de todas as pessoas, por bailarinos e coreógrafos. Monnier também fundou uma organização de ajuda logo

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após ter tomado o lugar de Bagouet em Montpellier. Preljocaj, Gallotta, Patrick Dupond e outros recolheram dinheiro para galas de beneficência. A Tritherapie veio mais tarde, muito mais tarde, mas mesmo antes disso, a SIDA caiu no seu tempo, onde as tradições modernas anglo-saxónicas se elevavam às normas internacionais, em particular o ritual de admissão pública, como aponta Daniel Defert. O fundador da iniciativa de solidariedade Aides queria levar em conta a globalização, mas intensificou, inconscientemente, o lado sem relevo deste debate, para o qual Gerard Mayen, um dos pensadores mais brilhantes da dança, que também vive em Montpellier, tinha juntado tantas mentes brilhantes. À medida que a discussão avançava, parecia cada vez mais, tirando o efeito de olhar para trás, que se estabelecia um consenso não-verbal segundo o qual a SIDA ainda era um problema de homossexuais. Foi Robyn Orlin que indicou que a SIDA é hoje o grande problema dos países mais pobres e que as mulheres já compõem, e desde há muito tempo, a maioria das vítimas. “O Nelson Mandela é o único político que fala sobre a SIDA na África do Sul porque a sua nora e o seu filho morreram de SIDA. A SIDA não é um problema moral, é um problema mortal!”. Mas também sublinhou quanto a homofobia em África, que pode realmente ser descrita como histérica, leva com que a SIDA se torne numa questão tabu. Tal como no tempo de Bagouet na Europa. “Há dois anos descobri que tinha um cancro. Era impossível falar com alguém sobre isso. Até o meu marido não queria. Agora percebo aquilo pelo que os pacientes da SIDA passaram.” Não admira que tenha sido convidada pelo Montpellier Danse com a sua peça sobre SIDA We must eat our suckers with the wrappers on. Nem sempre é fácil envelhecer, mas na altura tratava-se de um assunto bem menor comparando com o aumento apocalíptico do surto da imunodeficiência. O mesmo era válido para os bailarinos que, devido à sua ocupação, envelhecem mais rapidamente que um carteiro ou um investidor

bancário. Nos anos 80, ser diagnosticado HIV-positivo quase significava morrer dentro de seis meses, como lembra Alain Buffard, também ele seropositivo. Precisamente por isso era tão difícil admitir uma infecção. Bagouet resistiu. Sabia, contudo, que era seropositivo desde 1986. Os bailarinos de Robyn Orlin também se recusavam a admitir: “três têm SIDA, mas não sei quais são. Estou proibida de lhes perguntar. Esperava que se abrissem comigo”. No mesmo assunto, autores importantes como Bernard-Marie Koltès ou Jean-Luc Lagarce recusaram exprimir a sua infecção. Porque é que a admissão pública era um acto tão difícil? Primeiro, porque punha a morte extraordinariamente reprimida debaixo de luzes, e depois porque havia uma grande incompreensão do lado das vítimas. “Estavam a assegurar, até recentemente, em não fazer nada subordinadamente”, lembra-se Emmanuel Serafini do Solidarité Spectacle. Do mesmo modo, uma confissão por parte de Bagouet e dos seus colegas teria confirmado aos olhos dos “cidadãos normais” o cliché do bailarino homossexual. As chances de uma maior tolerância são ainda hoje terríveis. A solidariedade social está a diminuir. Em nome do liberalismo, toda a gente deve cuidar-se de si próprio. Um Nureiev maduro e aclamado no alto do Ballet de l’Opéra de Paris ousou confessar-se publicamente. Esperou, no entanto, que a sua condição não pudesse mais ser escondida. Depois, montou um acontecimento político, como lembra a jornalista Anne Dollfus, autora do novo e chamativo estudo sobre Nureiev Noureev, l’insoumis (Flammarion, 2007). “Ele apareceu depois da estreia de La Bayadere para os aplausos, juntamente com Elisabeth Platel. Para ele, mostrar-se doente era um acto político, mantendo-se sempre leal à sua imagem. Nureiev é uma figura simbólica da revolução sexual e dos anos da SIDA, assim como da segunda metade do século XX. O seu trabalho enquanto bailarino foi mais significativo que enquanto coreógrafo. Reclamou o desejo de poder dançar até à última gota de sangue e invocou o direito do bailarino morrer em palco.” Dalida, que se juntou a pacientes da SIDA, falava também disso numa das suas músicas. Nureiev descobriu que estava infectado já em 1984 e morreu pouco depois de Bagouet. Os papéis em que actuou nos seus últimos anos tinham uma ligação forte com a morte. A morte de Dominique Bagouet toca-nos pela 25ª vez a 9 de Dezembro.

Texto publicado em colaboração com a revista Ballettanz Tradução: Begüm Ercydias e Francisco Valente

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O QUE A SIDA FAZ À DANÇA O QUE A DANÇA FAZ À SIDA

texto Gérard Mayen 24

Um quarto de século após o seu aparecimento, vemos com dificuldade as reacções que surgiram, na altura, devido à SIDA. Pudemos falar de uma “epidemia de significados” para evocar o grupo das “metáforas” que participaram então na sua construção cultural. Expandiuse uma gigantesca estupidez à volta da SIDA e perante um novo mal reputado como fatal, que quisemos acreditar que apenas tocava em alguns grupos minoritários, contaminados através das mesmas práticas desviantes que os caracterizavam. A doença como castigo, a sua exposição como estigmatização, o seu tratamento como exclusão: acordando assim o vocábulo de “peste”, a SIDA é uma catástrofe das representações no final do século XX rebaixadas ao arcaísmo. Do sexo, da morte. Por outro lado, no Hexágono [a França] particularmente, a nova e jovem dança parece viver nesse momento as suas horas mais ricas. Não vemos na sua liberdade e audácia os últimos frutos do sonho da libertação dos corpos dos anos 68? Seria isto assim tão simples? No final de 1992, o coreógrafo Dominique Bagouet apagava-se. Dominava, nesse período, a paisagem coreográfica. Uma página parece ter-se definitivamente virado. Este desaparecimento dá lugar a um discurso da geração de ouro perdida. Mas isto sobre um não-dito, tendo o coreógrafo decidido não revelar publicamente a sua doença (aparentemente porque levaria a outros anúncios, numa linguagem sem o mut-

ismo dos seus corpos encantados). Podemos ousar uma analogia entre este silêncio obstinado, aqui muito pessoal, e o facto que, comparando com as artes plásticas, por exemplo, os textos que tocam nas ligações entre a dança e a SIDA permanecem estranhamente raros? E enquanto que a literatura da SIDA se caracteriza muitas vezes por um ultra-realismo clínico, a dança cultivava voluntariamente os desvios eufemistas da metaforização. O que pode um corpo, em cena? As ligações que articulam as evoluções das representações do corpo ligadas à epidemia parecem difíceis de desatar, assim como aquelas, poéticas, que a disciplina artística trabalha de maneira mais directamente investida – e perigosamente? – na apresentação dos corpos. Na era da SIDA, a maneira como a dança se fez ver, viver, e mais discretamente, produzir, modificou-se substancialmente. Já desde um século – através, por exemplo, de Isadora Duncan e da dança livre –, o projecto de modernidade na dança cultivou o mito fundador de um corpo, supostamente, como abrigo de liberdade, opondo-se aos assaltos coercivos de regimes disciplinares de emanação social, cultural, com tendência a persuadi-los. Não será este mesmo esquema, moldado por um arcaísmo ingénuo – rousseauista diríamos –, que a epidemia da SIDA vem quebrar, investindo o corpo como um lugar em si, eminentemente contraditório, da produção cul-


tural (e não apenas da sua subsequente inscrição)? Paradoxalmente, a SIDA abriria o acesso, mesmo que tardio, do pensamento coreográfico a um tempo verdadeiramente contemporâneo de uma perspectiva biopolítica – foucaultiana, diremos. Em poucos anos, o VIH atinge um número proporcionalmente impressionante de artistas coreográficos. Por tardarmos, damos lugar aos estereótipos assassinos, que encadeiam as categorias da dança, da homossexualidade e da nova peste. Contudo, e por bem, a dança fabrica as figuras do masculino e do feminino. Por bem, as forças que a animam, como as que habitam os olhares de quem a apreciam, estão carregadas de pulsões. A fábrica do desejo de dança e do desejo na dança resta a ser abordada, fosse nos dias obscuros da SIDA, assim como sobre o aspecto da impregnação gay que marca o universo da dança ocidental a partir do século XIX. Alguns raros artistas criam as suas próprias representações da crise e do combate, em vez de se deixarem fechar nas categorias que lhes preparamos. Assim, o belga Thierry Smits (Eros délétère), os britânicos DV8 (Dead dreams of monochrome men), o afro-americano Bill T. Jones, com grande repercussão. Souberam, portanto, e com estas posturas investir numa crise da escrita coreográfica, aptas a projectarem-se para lá do esgotamento das primeiras enunciações. Dentro do modo comemorativo, Maurice Béjart dá-nos de sua parte o tema do espectáculo que continua (Le presbytère n’a rien perdu de son éclat…); enquanto que Daniel Larrieu medita sobre Gravures. Nos estúdios, nas companhias, a doença vive-se de maneira violenta e concreta. Num meio apesar de tudo reputado como aberto e tolerante, a dissimulação dos seropositivos acaba por ser o preço para se manterem em actividade. Dos círculos da dança nasce a associação Solidarité Spectacle (falamos aqui do isolado Hexágono). Tanto discreta como profundamente implicada, a sua acção irá inventar toda uma diferença de atitude em relação aos artistas que vivem com o VIH. Os dramas são sociais, materiais, sanitários. A SIDA afecta a imagem dos corpos, os que a dança até então apenas tinha decidido mostrar magnificamente jovens, de bom porte, atraentes. Ora, a dança não é uma arte da imagem unívoca. É na falha em si que a dança investe o corpo, a partir das camadas da sua projecção espacio-temporal. Entre interioridade e exterioridade, o afastamento de si a si mesmo e ao mundo traz à linguagem fundamentos sensíveis e complexos. Paradoxalmente, terá a hipoteca em si da SIDA atingido algumas das potencialidades radicais do corpo cénico? Terá cavado a falha? Não estamos na altura de saltar como cabritos. Vários artistas escolheram a performance, densificando as suas presenças, disponibilizando-se a uma leitura bio-política cáustica. Estas estratégias não ignoram em

nada as artes plásticas, reatam-se à experimentação dos espaços. Exploram os novos conhecimentos da percepção, cultivam um movimento interior introspectivo. Tudo isso converge numa desconstrução do que se esperaria da representação espectacular. As várias técnicas de release respondem às esperas de precaução destes corpos críticos, que deixam a conquista impetuosa do palco como território e do seu preço virtuoso. De tudo isso, os olhares superficiais terão retido, antes de mais, as aparências de um abrandamento do movimento, como que estupidificado; tal como a conceitualização dos procedimentos, ou a generalização do nu. Sim, mas despido de erotismo e de toda ligeireza libertária. As transacções entre fenómenos da sociedade e expressões artísticas nunca são literais e unívocas. Convém sim concebê-las em termos de deslizes e ressonâncias. Deste modo, poderemos então encontrar articulações inéditas entre, de uma parte, a recomposição das posturas gay no activismo anti-SIDA e as suas produções estéticas (as performances de intervenção), e de outra o sucesso da teoria queer que vê os papéis sexuais como performances não limitadas, interpretando partições de género; e por fim, a performance como opção cénica que chama a um sentido interpretativo de todos os aspectos da presença, desde que conscientemente investida? Mais discretamente, procura a SIDA a dança no terreno da temporalidade, quando os corpos envelhecem subitamente e a toda a velocidade, quando a morte que caduca está por demais estabelecida num ponteiro aleatório que controla um vírus incorporado? E o que vale a noção de transmissão, de um vírus certamente, mas tão usual no campo da produção coreográfica e da partilha do gesto (dos corpos)? E o que faz o reenvio dos actos sexuais ao pensamento do gesto, à complexidade do seu desenvolvimento, na emissão dos imperativos de protecção? Não podemos contestar, seguramente, a concomitância, eventualmente a convergência da epidemia de SIDA e de uma perda activa na dança. Resta então encarar de que maneira a perda se poderia gerar em estimulante, assim como deprimente.

Uma primeira versão deste texto foi apresentada durante o Festival Montpellier Dance 2005

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A peça Still/Here, de 1994, é um marco na história recente da dança contemporânea. Principalmente, pelas reacções extremadas que causou. Em particular, a da crítica norteamericana Arlene Croce que, recusando-se a ver a peça, acusou Bill T. Jones de promover uma arte vitimizadora. No estudo que fez à obra do coreógrafo, publicado recentemente no livro Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções, a antropóloga Maria José Fazenda contextualiza a peça no percurso de Jones, recordando ainda os efeitos da sua apresentação e recepção. >>

Fotografias © Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company

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Em 1994 é estreada Still/Here, uma obra em que Jones confronta o pro-blema da sobrevivência das pessoas em perigo de vida [1]. Still/Here não é uma peça sobre a morte, mas antes sobre uma questão existencial fulcral: como viver? A resposta é dada num espectáculo atravessado por fortes sentimentos de esperança e solidariedade entre os indivíduos e em que as experiências das pessoas directamente implicadas são verbalmente expressas. Estas experiências são, num segundo nível de representação, o do discurso coreográfico, simbolizadas pelo movimento dos dez bailarinos. Para coligir material para a peça, o coreógrafo promoveu, ao longo de cerca de dois anos (entre Novembro de 1992 e Abril de 1994), a realização de diversos “workshops de sobrevivência” (Survival Workshops: Talking and Moving about Life and Death, assim foram designados) em que participaram cerca de 80 doentes (crianças, jovens e adultos) com cancro e SIDA, em tratamento em hospitais de várias cidades dos Estados Unidos da América. A questão colocada como ponto de partida para os workshops foi: o que é que significa para alguém saber que tem uma doença mortal? Pouco interessa a natureza da doença, pois a questão coloca-se a todos os sobreviventes. Durante os workshops, Bill T. Jones perguntava aos participantes se podiam exprimir através de gestos os seus sentimentos perante a doença. As sessões foram registadas em vídeo e, posteriormente, os bailarinos aprenderam os movimentos registados, fixaram os nomes de cada doente, as palavras pronunciadas e as histórias pessoais narradas. Foram depois integrados no espectáculo elementos de realidade e elementos de representação que ora exprimem dor e nostalgia, ora esperança, a saber: fragmentos de experiências e emoções corporizadas e verbalizadas pelos participantes nos workshops (imagens em vídeo dos rostos dos participantes e som das suas vozes gravadas); secções coreográficas que ora traduzem, simbolicamente, os elementos de realidade incorporados pelos bailarinos, ora criam atmosferas mais abstractas. A peça dura cerca de duas horas e divide-se em duas partes [2]. A primeira parte, Still, é uma dança meditativa, calma, sobre música original do compositor Kenneth Frazelle, interpretada pelo The Lark Quartet, com Bill Finizio (percussão), e as letras, constituídas por textos recolhidos nos “workshops de sobrevivência”, são interpretadas pela cantora Odetta. O espectáculo começa com todos os bailarinos da Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company em cena: deslocam-se lentamente, com movimentos suaves e controlados, estabelecendo ainda uma “tímida” comunicação entre si, quer através do olhar quer do contacto físico. Mais adiante, começa a ouvir-se o canto de Odetta: “Os olhos dela / Os olhos dela / Lembro-me dos olhos dela / Ela chamou-me para dentro da sala / Percebi nos olhos dela. / O desapontamento

/ O encontro marcado. / Vamos lá saber a verdade... Sim ou Não. / Fiquei ali sentado [...]”. [3] Sobre este cântico pungente, há duetos em que os corpos, rápidos e agitados, rebolam uns sobre os outros ou se agarram com tensão; movimentos de sustentação, como quando um dos bailarinos é segurado e projectado no espaço pelos restantes; movimentos que exprimem sentimentos contraditórios como num trio em que dois dos bailarinos puxam o terceiro em direcções opostas; solos ensimesmados em que os corpos revelam hesitação, como se não soubessem para onde ir ou o que fazer. Três bailarinas, com movimentos ondulantes, colocam uma das mãos num dos peitos e a outra no sexo. É quando se ouve “[...] Ainda sou uma mulher / Mas parte de mim já partiu. / Em pedaços. / Corte, veneno ou queimadura / Quase como enterrar uma criança. Parte de mim morreu [...]”. Em três ecrãs gigantes (dispositivo cénico criado por Gretchen Bender) são projectadas imagens dos rostos dos participantes nos workshops: crianças, adolescentes e velhos que sorriem, que esboçam gestos ou movimentos. Num dos ecrãs, vê-se um jovem a executar movimentos de uma arte marcial. O bailarino Gordon F. White faz um dueto com ele, reproduzindo-lhe os movimentos. Seguem-se danças de grupo que lembram os movimentos enérgicos da capoeira, um género performativo brasileiro. Depois, Lawrence Goldhuber dança um solo ao mesmo tempo que exprime verbalmente a sua experiência perante a evolução da doença e a morte da própria mãe — o único momento em que um bailarino narra uma história pessoal: “[...] Lembro-me de uma noite de sábado em que os meus / pais estavam a arranjar-se para ir jantar, quando a minha mãe começou a ter / dificuldade em chegar com a mão ao nariz. Bom, / quando cheguei ao hospital, ela já estava com convulsões. Foi então / que me apercebi pela primeira vez que ela ia morrer / Ultimamente tenho visto muito este género / de morte. Sabes, aquele género lento, / a pouco e pouco. Posso simplesmente continuar / a fingir que é normal, porque / se tornou normal. Desde que / vi Arnie morrer há seis anos, bom, / tem sido sem parar [...]” [4]. Goldhuber fala e dança em simultâneo. O seu movimento ora pontua o ritmo das palavras, ora interpreta-as, mimando o seu sentido, como quando, ao dizer que a mãe estava careca, o bailarino passa as duas mãos pela cabeça, unindo-as depois por baixo do queixo, ou quando pantomima o fingimento, simulando andar descontraidamente, com os braços caídos ao lado do corpo, balouçando, pesados. No final da primeira parte são retomados os temas coreográficos dos duetos e do entrelaçamento dos corpos uns nos outros. Os bailarinos dão as mãos, desenhando frisos; estas linhas podem ser quebradas quando um bailarino as atravessa correndo ou saltando; há várias >>

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>> soluções coreográficas, em duetos, de sustentação e suporte dos corpos uns nos outros. A encerrar Still os bailarinos dispõem-se esculturalmente, formando uma sólida e firme pirâmide. Na segunda parte, Here, predominam as dinâmicas coreográficas enérgicas — porque esta é uma obra voltada para o lado da vida. Os textos aludem à esperança e a dança reforça a expressão deste sentimento. Os figurinos (de Liz Prince) são vermelhos (na primeira parte eram de cores claras); nos ecrãs, são projectadas imagens gigantes de corações a palpitar — cores e elementos visuais que reforçam a atmosfera enérgica desta segunda parte. Uma energia esfuziante invade os corpos dos bailarinos que se unem em círculos, formando cordões ondulantes de onde se soltam solos ou duetos. Os bailarinos dão as mãos e correm, em roda; largam as mãos e, aproveitando a energia da corrida, giram sobre si próprios; ainda de mãos dadas formam linhas rectas e entrelaçam-se uns nos outros, formando filigranas; no fim, formam uma figura em seta, em cuja ponta está sustido um bailarino. A dança, de novo mais suave e contemplativa, flui sobre as vozes dos participantes nos workshops, gravadas e processadas num sampler pelo compositor de rock Vernon Reid: “[...] Toda a gente está ligada a alguém. / Diz-me como lutar. / Diz-me como lutar contra esta doença 28 / porque vou vencer”. Sobre estas vozes os corpos entregam-se a solos mais ensimesmados comunicativos com o exterior. Perto do final da peça, a esperança é inequivocamente tematizada. O estímulo é desencadeado pelo próprio nome de uma das participantes nos workshops: Hope [Esperança], e desenvolve-se, metaforicamente, pela sugestões coreográficas. A voz-off é de Bill T. Jones: “[…] Há Esperança. A Esperança está nas / riscas [da bandeira americana]. Podes levantar a mão, / Esperança? Diz a voz. Diz o teu / nome, Esperança. Que felicidade... temos / aqui hoje a deusa da esperança. / Tê-lo-ei planeado? Está bem / Esperança, inclina-te para este lado. Inclina-te / um pouco para o David, está bem. Agora Esperança / permite-te seres passada de mão em mão. Deixem-na... / Desculpa se estou muito poético, hoje. Tenta / outra vez, Esperança. Inclina-te, apenas. Deixa que / o grupo te transporte. Aí vai / ela. Não a deixem cair. Não percam a / Esperança. Está bem. Óptimo [...]” [5]. Por trás da voz de Jones, ouvem-se risos dos participantes que, imaginamos, reagem, com júbilo, às situações coreográficas que vão sendo sugeridas pelo coreógrafo. Entretanto, no palco, uma bailarina é sustida no ar, conservando o corpo horizontalmente, com o auxílio de dois bailarinos; sucedem-se mais dois duetos em que um dos elementos do par segura e transporta o outro, alternadamente. Um corpo que suporta e apoia

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o outro é, na dança a intensificação coreográfica, ao nível do movimento e da comunicação, de uma relação solidária entre as pessoas. Still/Here é uma obra que parte de elementos de realidade, ou seja da expressão de experiências vividas. Estas experiências são sonora e coreograficamente transformadas por via das convenções da arte: as vozes dos participantes nos “workshops de sobrevivência” foram absorvidas no canto de Odetta, e as descrições gestuais de intervenções cirúrgicas, as emoções e os sentimentos estão destilados nas formas abstractas e simbólicas da coreografia. Não está em Still/Here ninguém visivelmente doente ou a morrer. Still/Here é uma obra de um grande vigor, é sobre a esperança e, portanto, voltada para o lado da vida. Anotei estas observações, na sua maior parte relativas à composição coreográfica e ao simbolismo do movimento, quando assisti à estreia da obra, na Biennale de Ia Danse de Lyon, em Setembro de 1994. A obra foi bem recebi-da, não tendo suscitado outros comentários públicos (críticos) para além dos de carácter artístico, que contextualizavam naturalmente a peça numa época particularmente marcada pelas trágicas consequências da SIDA, quer sociais, quer na vida das pessoas directamente implicadas. As ciências, os media, as várias linguagens artísticas (literatura, cinema, teatro, performance e também a dança), associações e organizações mobilizavam-se para reflectir, divulgar, informar sobre esta nova realidade [6]. Depois da estreia de Still/ Here na Europa, a Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company regressa aos Estados Unidos da América para uma digressão com a nova criação. Mas antes mesmo de o espectáculo aí ser apresentado, Bill T. Jones e a Companhia são surpreendidos por um texto brutal da crítica de dança americana, Arlene Croce, sob o título Discussing the undiscussable [7]. Croce começa por anunciar que não tinha visto o espectáculo e não tinha intenções de escrever sobre ele uma recensão crítica porque, argumentava, referindo-se aos participantes: “Não posso criticar alguém por quem sinto pena ou sobre quem sinto não ter espe-


rança”. E, referindo-se ao próprio Bill T. Jones: “Considera-o literalmente indiscutível — o caso mais extremo entre os muitos que agora se apresentam desoladoramente ao público não como artistas, mas como vítimas e mártires” (Croce, 1994:55). Still/Here, um espectáculo que Croce não chegou sequer a ver, era um exemplo do que a crítica de dança designava por “victim art”. Este texto desencadearia uma série de respostas por parte de críticos, teóricos da dança e artistas. Discutiu-se as responsabilidades da crítica, no que diz respeito às reacções que pode desencadear (cf. Siegel, 1996) – Still/Here foi objecto de vários protestos e boicotes em várias partes dos Estados Unidos da América. Alguns artistas também reagiram, reafirmando categoricamente o seu espaço de liberdade e recusando qualquer atitude que visasse controlá-los politicamente [8]. Reacendeu-se o debate sobre as fronteiras entre a arte e a vida, defendendo-se que estas não são definitivas e são, pelo contrário, objecto de uma análise constante por parte dos próprios criadores que reflectem permanentemente sobre a sua relação com o mundo e se capacidade de expressão dos cânones artísticos herdados (cf. Copeland, 1995) [9]. Independentemente das posições tomadas e da perspectiva sobre a existência de limites entre a representação e a experiência vivida, o que é brutal no texto de Arlene Croce é que, sem ter visto o espectáculo, a crítica parta do pressuposto de que nele se apresentavam pessoas doentes ou a morrer, o que na realidade não acontecia. Pelo contrário. Como diz Randy Martin: “Ironicamente, ela perdeu um trabalho que dançava exuberantemente contra a morte” (2004: 57). Ou, como observa s a rca st i ca -

mente Roger Copeland, num texto em que o autor analisa pormenorizada e criticamente a ideologia e os preconceitos inerentes aos argumentos de Croce: “É como se ela tivesse por acaso ouvido à distância uma conversa sobre Rimbaud, a tivesse confundido com uma sobre o Rambo e depois se queixasse prolongadamente da performance de Sylvester Stallone. Mas esse é, claro, o risco que se corre quando Não se Está/Lá” (1995:15). Marcia Siegel, crítica de dança norte-americana, num texto sobre os argumentos de Croce e o seu impacte junto do público, também destaca o espírito positivo de Still/Here: “O tom da peça, longe de ser sombrio ou indescritível, evoca uma espécie de positivismo dos anos 70 [...]. Ninguém na dança está visivelmente doente, deformado ou em qualquer outra condição que perturbe a pessoa mais susceptível. [...] Na realidade, não é o seu estado de saúde que aborreceu Croce, mas a ideia de Jones nos pedir que prestemos atenção à morte” (Siegel, 1996: 61). O coreógrafo não passou incólume no meio da controvérsia que Still/Here suscitou, e, em 1996, quando lhe perguntaram como se sentia em relação à polémica gerada, desabafou: “É difícil continuar a fazer arte” [10]. Uma resposta a si próprio Bill T. Jones não esperava que Still/Here pudesse desencadear reacções negativas ou que a legitimidade de abordar coreograficamente uma experiência que é comum a todos os seres humanos pudesse ser posta em causa: “Still/Here fala de algo que todos partilhamos. Não é uma peça que transporte fúria. Pelo contrário. As pessoas que reagiram negativamente a Still/Here não entenderam que eu procurava algo que ninguém pudesse negar que todos partilhamos. As pessoas ainda não estão seguras de que homens e mulheres são iguais. As pessoas ainda não estão seguras de que negros e brancos têm a mesma inteligência. Mas ninguém pode negar que temos um corpo com uma trajectória, que nasce, cresce e morre. A mortalidade, que faz de nós seres vulneráveis, é o que une a experiência humana, mais do que qualquer outra coisa” [11]. Jones reafirma que as representações da raça e dos géneros separam e hierarquizam pessoas e grupos. Algumas das suas obras, como se viu anteriormente, são denunciadoras e críticas em relação às ideologias discriminatórias, propondo, em contraponto, um universo onde as relações entre as pessoas sejam pautadas por valores de igualdade e de respeito pelas diferenças e escolhas individuais. Em Still/Here, foi seu objectivo abordar temas com forte componente emocional – a doença, a dor, a mortalidade e a esperança – partilhados por todos, e que foram tratados não como uma catarse, mas coreograficamente, ou seja, de um modo reflexivo e recorrendo a materiais da própria dança e a outros >>

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>> elementos do espectáculo: “Para Still/Here construí muitas frases de movimento e quando as fiz não estava a chorar [12]. Estava a fazer movimento que depois pus num contexto como o vídeo, o ambiente. Foi uma experiência formal com material emocional; uma experiência em que tive de aprender muito. Sou um coreógrafo: para mim, as questões colocam-se sempre em torno da escolha de movimentos. Em Still/ Here queria que os bailarinos mostrassem uma espécie de solidez, como uma arquitectura, e, depois, as emoções seriam como o ar que circula à volta do edifício. Mas o público lê as coisas de forma extremamente forte. Por isso quero afastar-me daquilo que é literal, que é demasiado claro, e aí talvez o público não se sinta tão confrontado. 30 Veremos” [13]. No ano seguinte à estreia de Sill/Here, Bill T. Jones parece responder à controvérsia suscitada por esta obra, que tinha na sua base um tema existencial e fortemente emocional, com uma coreografia mais abstracta, desconstrutivista e apoiada num poema dadaísta. A dança é Ursonate (1995), sobre um poema de Kurt Schwitters, cantado por Christopher Butterfield, entre os ritmos sonoros e os ritmos cinéticos produzem sentidos provisórios, desenham arquitecturas fugazes, em permanente construção, desconstrução e reconfiguração: as pessoas ora se agrupam, formando desenhos geométricos, ora se dispersam de forma aparentemente desordenada. Para o coreógrafo, construir Ursonate correspondeu a uma necessidade diferente da que sentiu quando criou Still/Here: “Fiz esta obra depois de Still/Here, que tratava um tema emocional — a vida e a morte —, mas agora não tenho mais necessidade de o fazer” [14]. Ursonate, “uma das coreografias mais formais que já fiz”, é uma peça estruturalmente construída como um jogo: o fraseamento da dança parece ser o eco dos sons ritmados do poema, os movimentos são fragmentados, criando a

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aparência de que as partes do corpo, autónomas umas em relação às outras, dialogam entre si de forma lúdica [15]. Os bailarinos atravessam o palco transportando colchões insufláveis, objectos banais que Bill T. Jones e Gregory Bain conceberam evocando a classe de objectos que poderiam ser usados nas construções dadaístas. A criação de Ursonate, em 1995, tem um significado na vida e no percurso criativo de Jones. Por um lado, porque, ao trabalhar a partir da obra de Schwitters, artista filiado numa escola que no início do século quebrou os cânones estéticos vigentes, rompendo com o conceito tradicional de objecto estético, Jones responde de forma indirecta, mas “combativa”, às críticas dos sectores conservadores de que foi alvo. Por outro lado, ter como ponto de partida um material abstracto – o poema cantado –, permitiu ao coreógrafo, seguindo os propósitos de um projecto modernista, centrar-se no movimento enquanto matéria, sem motivações exteriores. Jones concorda com esta interpretação: “É absolutamente verdade. Fui capaz de dar uma resposta ao mundo porque dei uma resposta a mim próprio. No meio da confusão que Still/Here gerou, p e rg u n t a v a - m e o que é que havia de fazer, questionava-me sobre aquilo em que ainda acreditava. Resolvi dizer a mim mesmo o que me disseram quando o Arnie [Zane] morreu: ‘Ou continuas a tua vida com o teu sofrimento e castigo, ou encontras aquilo que amas e a que podes dar tudo o que tens.’ Eu amo a dança, amo a arte. Então, fui buscar a obra de Kurt Schwitters, uma espécie de modelo do século XX que no seu método e espírito se antecipou ao tempo. Decidi entregar-me àquela peça e ver o que é que descobria. Encontrei nela uma protecção, mas foi aí que descobri muito sobre mim próprio Nesse sentido tem razão. Fui capaz de dar uma resposta ao mundo, porque dei uma resposta a mim próprio” [16].

Excertos de Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções, de Maria José Fazenda, Celta Editora, Outubro 2007, pp. 137-140.


Sobre Bill T. Jones

Last Night on Earth, de Bill T. Jones e Peggy Gillespie, Pantheon Books, 1995

Leia na OBSCENA #4 o dossier que dedicámos ao coreógrafo com textos e depoimentos de André Lepecki, Helmut Ploebst e Martin Nachbar.

Na presente descrição e análise de Still/Here incluo excertos, reformulados, das críticas de dança que assinei no Público, suplemento Zoom, sob os títulos “Corpos em luta” (23 de Setembro, 1994: 17-18) e “A vida na morte anunciada” (5 de Maio, 1995: 10-11) [2] A versão realizada para televisão por Bill T. Jones e Gretchen Ben-der tem apenas a duração de 60 minutos. [3] Excertos da versão portuguesa do texto incluído no programa do espectáculo Still/Here quando da sua apresentação na Culturgest, em Lisboa, de 11 a 13 de Maio de 1995. [4] ibid. [5] ibid. [6] É também neste contexto que, em Portugal, é publicada uma colectânea de textos sobre a forma como as expressões artísticas estavam a incorporar no seu discurso reflexivo esta nova realidade. O livro intitulado Quando o Mundo nos Cai em Cima: artes no tempo da Sida foi organizado pelo crítico de arte Alexandre Melo e editado, em 1994, em Lisboa, pela Associação Abraço, uma organização não governamental de apoio a pessoas infectadas e afectadas pelo VIH/SIDA. [7] Na edição do The New Yorker, de 26 de Dezembro de 1994. [8] “Temos o direito de escolher as nossas formas de expressão, de tratar os temas que escolhemos e até mesmo de quebrar as próprias leis que criámos”, afirma Trisha Brown. “A direita regressa com uma mentalidade cristã e puritana, uma visão exclusiva da arte e uma ideologia que afirma: vocês não têm sexo, não existem pobres […]”, critica Stephen Petronio. “O artista pode fazer o que entender, só depende da sua escolha. A nossa história não é uma ficção e eu não quero ser controlada politicamente”, declara Lucinda Childs. Os depoimentos foram recolhidos pela crítica de dança francesa Marie-Christine Vernay e publicados no Libération (4 de Abril de 1995). [9] Este foi também um dos aspectos analisados no capítulo 1, nomeadamente no que diz respeito à instabilidade do conceito de dança e ao valor expressivo e comunicativo atribuído aos seus materiais. [10] Numa conferência de imprensa que Bill T. Jones deu no Festival d’Avignon, em Agosto de 1996, no âmbito do qual a sua companhia dançou. [11] Em entrevista que Bill T. Jones me concedeu, em Londres, publicada no Público, no suplemento Artes e Ócios (13 de Novembro, 1998: 4). [12] A expressão “frase de movimento” é frequentemente usada pelos bailarinos e criadores para se referirem ao encadeamento sequencial e à articulação simultânea das várias unidades de movimento. Bill T. Jones define de forma precisa uma frase de movimento e explica a analogia linguística implícita: “Uma frase de movimento é uma série de gestos criados por um coreógrafo, usando elementos de tempo e espaço. O coreógrafo pensa sobre as frases de movimento da mesma forma que os escritores pensam sobre as palavras e as frases. Onde uma série de palavras forma uma frase e as frases constroem um parágrafo, as frases de movimento representam os blocos com que se constrói um trabalho de dança” (Jones, 2000). [13] Em entrevista que Bill T. Jones me concedeu, em Avignon, publicada no Público (9 de Novembro, 1996: 30). [14] Explicou Bill T. Jones numa conferência de imprensa que deu em Avignon, França, onde a sua companhia dançou, em Agosto de 1996, no âmbito do Festival d’Avignon. [15] ibid. A expressão “coreografia formal” é frequentemente utilizada por coreógrafos e bailarinos para se referirem a um estilo coreográfico em que não perpassa intencionalmente a expressão de emoções, ou em que não estão presentes outros elementos de teatralidade, como a narração, a voz, a construção de personagens ou a gestualidade simbólica. [16] Em entrevista que Bill T. Jones me concedeu, em Londres, publicada no Público, no suplemento Artes e Ócios (13 de Novembro, 1998: 4). [1]

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“Sou um artista com SIDA, sou um homossexual que nasceu no Irão”. Era assim que Reza Abdoh se via e foi assim que quis ser lembrado. Vítima aos 32 anos, Adboh faleceu em 1995, na cidade de Nova Iorque, deixando uma obra que incluía encenações de autores tão diversos como Sófocles, Shakespeare, Ibsen e Copi, para além de peças suas, onde a confluência de disciplinas procurava retratar a realidade onde se movia. Em 1992 estreou The Law of Remains, peça que circulou na Europa e que António Pinto Ribeiro, então crítico no Expresso, viu e descreveu como anunciadora do apocalipse. É esse olhar que agora recuperamos num texto que sistematiza o discurso de Abdoh na sua relação masoquista e dorida com o desaparecimento do corpo (aqui com evidente ligação ao corpo doente) na sociedade mediática.

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O APOCALIPSE, FINALMENTE

O Apocalipse já começou. Na América, e mais precisamente em Los Angeles, segundo Reza Abdoh, encenador e coreógrafo. Aguardada com particular expectativa, a sua última obra, The Law of Remains, estreou na Europa no Festival de Springdance e confirmou tudo aquilo que se dizia sobre este norte-americano de ascendência iraniana, de 29 anos de idade: que ele pode ser com certeza o encenador do final deste século, um encenador apocalíptico. A produção de The Law of Remains assemelha-se a um megaconcerto e conta com o recurso a três palcos e outros núcleos cénicos espalhados entre o público. Com este aparato cénico Reza criou uma obra total que inclui teatro, dança, música, ruídos, vídeo e performances. No início da peça os espectadores confrontam-se com o cenário de uma floresta desoladora de árvores petrificadas, numa das quais pende um enforcado. Depois, um casal irrompe pela floresta e inicia uma violenta discussão sobre a sua vida sexual. De seguida, o personagem principal responde à primeira pergunta de uma


longa entrevista que está a ser feita para uma cadeia de televisão. Trata-se de Jeffrey Dalmer, o serial killer, que assassinou, esquartejou e chegou a comer parte das suas dezassete vítimas, com as quais tinha anteriormente mantido relações sexuais. São, de facto, centradas à volta desta personagem, simultaneamente vítima e carrasco da sociedade mediática americana, as múltiplas cenas que constituem o espectáculo e onde são predominantes as situações de canibalismo, simulação de sodomia, nudez e sangue, mescladas com discursos de Reagan, marchas e chorus line, extractos do Livro dos Mortos do Antigo Egipto, citações de livros eróticos e outros textos onde a violência sexual e as referências à morte por homicídio ou suicídio são permanentes. Reza Abdoh introduz também extractos de cenas de filmes americanos de particular violência, bem como a reprodução de um vídeo contendo a dissecação pormenorizada de um cadáver numa mesa de hospital. Reconhecendo-se influenciado por Pasolini, por Godard, por Artaud e pelo cinema expressionista (poderíamos ainda vislumbrar no seu trabalho a América de Ginsberg, William Burroughs, Pina Bausch e Genet), este encenador que aos 14 anos montou Ibsen e aos 18 iniciou as suas versões de Shakespeare, Brecht e Marlowe rejeita o teatro como um mecanismo de criação de ilusões encadeado nos mesmos dispositivos de produção da informação esteticizante fabricada pelos media. Se é possível falar num estilo de encenação, ele constrói-se sobretudo a partir de uma estratégia de desmistificação da ideologia e dos cultos mediáticos e, em particular, da ideologia da permanente jovialidade do corpo e da ocultação da morte – o que Reza apelida de “a escoriação do corpo” – imposta pela indústria televisiva. Nesta estratégia de guerrilha, o encenador opta sistematicamente pela sobreposição de imagens, repetição de textos, cânones, cenas simultâneas e um acting directo: por exemplo, a cena em que um actor lê um poema sobre o corpo, enquanto um personagem jovem é martirizado por Jeffrey Dalmer. Nenhuma mensagem pode ser mais simples, mais directa, mais dramatúrgica. A violência que a obra expressa – física e incidindo sobre a violência sexual – toma, por vezes, uma dimensão patética. Mas não é por esta violência ter uma origem específica. È preciso reconhecer nela a América contemporânea e Los Angeles como lugar de referência destas acções. É pois de admitir que a obra de Reza Abdoh é de um realismo descarado. É ele próprio que se declara “contra o teatro actual que se preocupa principalmente consigo próprio, que pratica a autocontemplação e já não pode reivindicar uma intervenção intelectual e política, um lugar de solidariedade”.

Na sua violência sem pudor, sem rodeios, sem esteticismos, Reza responde com um teatro de amargura e de crueldade, onde é determinante a desconstrução desse tabu sistematicamente escamoteado: a violência como base sobre a qual se tem edificado toda a civilização – desde o patriarcado primitivo à guerra do Golfo. E basta que um dispositivo do poder legalize esta violência para que o tabu desapareça. Reza Abdoh vem responder à necessidade de criar um teatro para o final deste século. Ele é o trágico contemporâneo, o que nos reúne sob o mesmo medo da morte que nos está destinada, agora mais incontrolável do que nunca. Alguns verão neste trabalho violento a vingança do seropositivo sobre o mundo. É possível. Mas é também evidente nesta obra a demonstração da efemeridade e da fragilidade de qualquer tipo de poder confrontado com a vizinhança da morte, com o susto do quotidiano, com o pânico. As últimas obras de Reza são o produto de uma cultura nascente sob o signo do medo e da reavaliação de todos os valores políticos, económicos e sociais que a SIDA veio impor. Por isso é num ambiente solene e emotivo, nos rituais que constituem os seus espectáculos, que, segundo Reza, “o teatro deve intervir, reivindicar o seu lugar, criar uma energia suficientemente forte que o ligue à psicologia da sociedade contemporânea, que possa ser uma forma de materialização das ideias”. Há também nesta reivindicação o desejo da criação de um teatro que tenha uma função catártica no sentido mais aristotélico e com contornos mais artaudianos. E no meio desta violência e deste legado da morte e da solidão vem Reza Abdoh, já fisicamente débil, mas convicto, repetir o que já antes tinha dito: “No curso da história houve momentos de obscuridade, onde aparentemente não existia qualquer esperança. Mas, vistos agora, do presente, vemos que, de facto, eles nunca chegaram a ser tão negros que tudo tivesse acabado. Houve sempre um brilho algures, a esperança cresceu e as coisas seguiram o seu curso: as crises foram vencidas. Porque haveria de ser de outra maneira?”. Citações retiradas de Theaterschrift nº3, Edições Kaaitheater, Bruxelas, Março 93, pp. 59 e 65. Texto publicado originalmente no jornal Expresso a 22 de Maio de 1993 e republicado no livro Dança Temporariamente Contemporânea (Vega, 1994). Sobre Reza Abdoh:

Body/Politic: The Ecstasies of Reza Abdoh, de Gautam Dasgupta in Performing Arts Journal, Vol. 16, No. 3 (Sep., 1994), pp. 18-27 Reza Abdoh, de Daniel Mufson, The Johns Hopkins University Press,

1999 Uma outra crítica a The Law of Remains, publicada no The New York Times, está disponível em http://query.nytimes.com/gst/fullpage. html?res=9E0CE6D7123EF937A15751C0A964958260&sec=&spon=& pagewanted=print The Law of Remains

Diplomat Hotel, Nova Iorque, 1992. © DR

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RAIMUND HOGUE: MEINWÄRTS

Em 1994 o coreógrafo e dramaturgo alemão Raimund Hogue apresentou Meinwärts, que no alemão significa “Sobre mim mesmo”, como parte de uma trilogia que se completaria com Chambre séparée, de 1997, e Another Dream, de 2000. Um poderoso retrato biográfico de alguém que não exibia a sua corcunda e o seu corpo imperfeito, mas que dizia, simplesmente, “eis o que foi a minha infância, eis o que sou”. O crítico francês Jean-Marc Adolphe escreveu que Hoghe “fez da arte de ser diferente uma forma de questionar os seus semelhantes, consignando na escrita essa busca por pertencer ao mundo dos outros”. Falando de si e do que o rodeava, o ex-dramaturgo de Pina Bausch, que Lisboa e Porto viram recentemente (Young People, Old Voices, em Setembro de 2006, na Culturgest, e Lecture Performance, em Janeiro deste ano em Serralves) e a capital voltará a ver, a 8 e 9 de Fevereiro 2008, também na Culturgest, com Swan Lake, 4 acts, falava também, e partindo dos anos 40 e da guerra como doença, da “história do corpo e da sua memória; paisagem humana onde se formam novas representações”. Nos excertos que recuperamos, seleccionados pelo autor, Hoghe fala-nos da Sida como metáfora e do modo como a doença se tornou condicionante para as relações humanas. É a partir da sua própria experiência, que havia já exposto em Lecture Performance, que imaginamos um outro mundo, paralelo e fantasista, mas onde a doença não deixa de actuar.


II O estranho contou-lhe que havia sido um príncipe de um conto de fadas. Todas as noites as suas irmãs lhe liam uma história e, quando ele começou a ir para a escola, era capaz de reproduzir vários desses contos de fadas. Os professores olharam-no sempre como um desses príncipes, como o Príncipe Encantado em pessoa. Mas as coisas mudaram quando ele foi para uma nova escola. “Já não havia ninguém interessado em histórias de encantar”. Para se tornar mais forte, tomava sempre banhos de água fria, mesmo no inverno, contou o rapaz de 28 anos. E levantava pesos pela manhã e à noite para aumentar a sua consciência corporal. Os pijamas que usava eram feitos de um tecido azul claro. Certa noite um turista correu apressadamente para os Champs Elysées, mesmo antes da hora de fecho, para comprar um velho disco, Parlez-moi d’amour. Não havia um gira-discos no seu quarto de hotel. Um amigo de Paris escreve que ele viaja, que procura pontos de contacto. Nessa manhã tinha sentido a mão do barbeiro no seu pescoço, no seu rosto e na nuca. Percepcionou a experiência como se de um abraço se tratasse. Mais tarde andou de bicicleta enquanto chovia e sentiu cada gota como um breve abraço. Em casa encontrou na sua caixa de correio uma carta. “Outro abraço”. É assim que ele colecciona abraços, explica-lhe o amigo, e assim os dias se tornam, outra vez, ainda mais longos.

Quando o filho beijou a fotografia do Rock Hudson que estava no calendário pendurado na parede, a mãe entrou no quarto e ficou fora de si. O beijo não significara nada, tentou ele explicar. Tinha estado somente a beijar papel. No verso da fotografia dizia que Rock Hudson podia ser contactado através da Universal International Films, Universal City, California/USA. III Antes de chegarem aos 30, numa altura em que ainda ninguém tinha ouvido falar da SIDA, o mais novo dos dois homens disse que conseguia imaginá-los ainda amigos dali a 50 anos. E quando fossem velhos poderiam olhar para trás, para aquela primeira noite juntos com os discos riscados e os êxitos da Sandie Shaw e da Dusty Springfield, das Supreme e da Lulu. Quando ele morreu, aos 35 anos, as estatísticas da SIDA tinham aumentado. Ele queria ter sido mágico ou vendedor de gomas, disse o escritor aos jornalistas que o descreveram como um promissor jovem talento. O obituário do homem de 37 anos falava da magia das suas peças e das gomas que ele tinha vendido no cinema. A causa da morte não fora mencionada. O postal que um amigo com SIDA lhe enviou de Marrocos mostra uma cidade na eminência de um terramoto. “Porque é que escolho cartões como este?” perguntou ele um ano antes da sua morte, deixando a questão por responder. “Envio-te os meus melhores desejos e abraço-te de todo o meu coração”.

O rapaz de 19 anos sonhava sempre que alguém, um dia, viria para o abraçar. Mas não sentiu nada quando um jornaleiro chegou e o abraçou em frente à salamandra na sua sala de estar. Registou apenas a pintura e os movimentos agitados do homem de fato que não queria ser beijado na boca. Ele precisa sempre que o seu quarto seja bastante quente, disse o rapaz de 25 anos. Dá-lhe a sensação de segurança e integração de que precisa. “Afinal, estou completamente sozinho”. Vivendo sozinho, apenas podia ver o novo aparelho de televisão dos seus vizinhos quando olhava para a sala deles através da sua própria janela. Aos sábados eles viam filmes pornográficos dos anos 60 e 70. A pele nua e os movimentos agitados dos casais eram visíveis através do vidro duplo. O homem e a mulher permaneciam fora do campo de visão.

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>> No passado as pessoas eram menos cuidadosas, diz a mulher na banca dos jornais. Costumávamos dar-lhes o troco na mão. Agora, com o surgimento da SIDA, ela deixou de o fazer. A mulher aponta para o balcão forrado a vidro. Ponho o dinheiro ali, para não ter contacto com ninguém. Sou mais cautelosa agora. A pele do homem parecia fina como papel. Podiam sentir-se os ossos através da t-shirt quando o abraçávamos. À medida que o estranho toca na zona posterior do pescoço do homem, e nos seus braços nus, recorda-se de como é a pele de um bebé. Quando ele morrer de SIDA, o rapaz de 27 anos passará óleo de bebé nos seus braços e abraçará um urso de peluche que se tornara mais delicado com os seus abraços. Ele sabe o que se deveria fazer a quem tem SIDA, diz o dono de um quiosque em Düsseldorf “Ponham-nos a dormir”. Um sorriso rasga-lhe a cara. “Uma pancada na cabeça e eles desapareciam de vez. E mais ninguém fica infectado.”

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Ele já não tem coragem para se entusiasmar com os rapazes que conhece, escreve o autor com SIDA, acrescentando que não tem qualquer orgulho nisso. O de 35 anos pega na câmara de vídeo e filma a sua cama com os dois ursos de peluche ali deitados, abraçando-os como fazia antes. Na peça Wohl ist sie schön, die Welt (Belo é, realmente, o mundo) Marcelo cantou uma canção na sua língua materna. Quando o cantor argentino morreu na Alemanha em 1993 tinha 27 anos de idade.

O texto integral, composto por quatro partes, pode ser lido, em inglês, no sítio http://kulturserver-nrw.de/home/rhoghe/en/en_ meinwaerts.htm. O texto Venir au monde, de Jean-Marc Adolphe, pode ser lido, em francês, no sítio http://matthieublestel.free.fr/ artanzion/index.php?2005/01/08/49-l-espace-temps-de-la-presence-au-monde-raimund-hoghe-par-jean-marc-adolphe. O sítio www.raimundhoghe.com disponibiliza textos e imagens das várias peças do coreógrafo.

fotos: Rosa Frank

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ARIANNE MNOUSCHKINE: LA VILLE PARJURE

COMPREENDER texto João Carneiro

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A partir de 1985 começaram, em França, os incidentes que vieram a consistir naquilo que ficou conhecido como ‘o caso do sangue contaminado’. Várias pessoas importantes na hierarquia médica e política responderam perante a justiça, na sequência de mortes por contaminação. Negligência poderia ter sido a causa. Contudo, o que se passou estava directamente ligado a interesses económicos de algumas pessoas e grupos, que seriam lesados caso o sangue, que alguns responsáveis sabiam estar contaminado, fosse retirado de circulação. Em 1994, Arianne Mnouchkine estreia, na Cartoucherie, o espectáculo La Ville Parjure, com texto de Hélène Cixous. A ideia foi ligar o crime de sangue actual à ideia de crime de sangue como ele aparece, central, em muitas das tragédias antigas. O espectáculo integra um grande número de personagens, entre as quais Ésquilo, guardião de cemitério, e um grupo de Erínias, as deusas que, na tragédia antiga, aparecem para vingar os crimes de sangue, os piores que podem ser cometidos. La Ville Parjure articula personagens de várias épocas, num diálogo que vem da antiguidade para dar conta de questões relevantes hoje. Numa perspectiva imediata, é fácil e evidente conferir relevância a um caso que articula a morte de pessoas totalmente inocentes com o desejo de lucro e, inevitavelmente, o exercício do poder. O crime – é a palavra – ganha relevo suplementar quando o poder em questão é, maioritariamente, o poder do Estado.

A autora do texto toma, na introdução ao texto da peça, uma precaução especial quando chama a atenção para a relação quase automática entre a palavra ‘sangue’ e a palavra ‘contaminação’: ‘Diz-se «sangue» e, para nossa infelicidade, eis a primeira palavra do racismo’ (1). A leitura não imprime, aliás, uma dimensão moral à peça, pois ela nasce já de um imperativo moral, mas ajuda a explicitar aspectos importantes de um universo moral que está em causa, ou em discussão. A introdução continua com uma fábula, a das ovelhas que um dia percebem que os pastores que as guardavam estão a degolá-las. Agonizantes, não querem acreditar no que está a acontecer: afinal as pessoas em quem mais confiavam são aquelas que as estão a matar? Trata-se de confiança, uma palavra-chave nas relações entre as pessoas, sejam elas relações estritamente pessoais, sociais, ou políticas. Uma das personagens principais da peça é a mãe de duas crianças, que morrem com sangue contaminado. Desesperada, retira-se para um cemitério. Porque lá só existem mortos, aqueles que não podem agir como os vivos, também lá ela tem esperança de ver surgir qualquer coisa que está tão profundamente enterrado como as várias gerações de mortos, qualquer coisa tão antiga como a tragédia de Esquilo, tão extraordinária como as Erínias. Elas próprias têm dificuldade em lembrar-se de tudo, as coisas vão acontecendo, o mesmo


© Thèâtre du Soleil

é dizer que as coisas vão aparecendo, ou vão sendo reveladas. ‘Dantes, quando fazíamos parte da paisagem do crime, qualquer assassino sabia claramente que era assassino e que nós seríamos as suas incansáveis e intoleráveis companheiras’ (2). O espanto das Erínias tem a ver com a constatação de qualquer coisa tão grave que é preciso muito tempo para que se fale, realmente, disso. Mas uma delas acaba por se lembrar: ‘Ah, é isso, já me lembro da palavra!! A Consciência! Eis a palavra que eu procurava desde a meia-noite! A Consciência! A Consciência, lembram-se?’ (3) É disso que se trata. A peça é sobre a consciência. É a consciência que pode guiar os julgamentos, e que rege o confronto entre a mãe das crianças mortas e os culpados. ‘Como queres que ele morra?’, pergunta uma das Erínias à mãe. ‘De vergonha, talvez. Sim, de um golpe terrível, vindo do interior. Compreendem?’ (4) Não é só dos perigos, ou melhor, dos medos da contaminação sanguínea, viral, bacteriológica, que se trata na peça. Na introdução, já Hélène Cixous referia que as pessoas aterradas pela contaminação sanguínea não têm medo, contudo, ‘da contaminação da alma pelos maus exemplos e pelas más companhias’ (5). Trata-se de uma doença terrível, sim, que apaga a responsabilidade, a consciência, a vergonha. ‘E a culpa não é nossa. Aliás, ela não é de ninguém, não houve culpa’ (6), diz um dos culpados. Nenhum tribunal pode julgar e punir

estes culpados pois, como diz a Erínia, trata-se de uma palavra esquecida, ‘consciência’, uma coisa, como diz a mãe, ‘vinda do interior’. A pergunta ‘compreendem?’ tem um sentido crucial; compreender produz efeitos.

Hélène Cixous, La Ville Parjure, Théâtre du Soleil, 1994, p.6, ‘On dit: «le sang», et pour notre malheur, voilà le premier mot du racisme’, (1)

ibd, p.55, ‘Autrefois, quand nous faisions partie du paysage du crime, tout assassin savait clairemnent qu’il était assassin, et que nous serions ses inlassables et intolérables compagnes.’ (2)

Ibd, p.129, ‘Ah! Ça y est, j’ai trouvé le mot!! La Conscience! Voilà le mot que je cherchais depuis minuit! La Conscience! La Conscience, vous vous souvenez?’ (3)

Ibd, p.69, ‘Comment veux-tu qu’il meure?’…’Eh bien, - de honte, peut-être. Oui. D’un coup terrible venu de l’intérieur. Vous comprenez?’ (4)

Ibd, p.6, ‘…les mêmes effrayés n’ont pás três peur de la contamination de l’âme par les mauvais exemples et les mauvaises fréquentations.’ (5)

Ibd, p.124, ‘Et la faute n’est pas à nous. D’ailleurs elle n’est à personne, il n’y a pas eu de faute.’ (6)

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KRZYSZTOF WARLIKOWSKI: ANGELS IN AMERICA entrevista Jean-François Perrier Angels in America: A Gay Fantasia on National Themes, da autoria do norte-americano

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Tony Kushner, estreou em 1993, depois de três anos em desenvolvimento. A peça aborda o aparecimento de uma nova doença sem nome, centrada nos efeitos sem precedentes a que ficara sujeita a comunidade homossexual nova-iorquina nos anos oitenta, a par de uma política reformista e conservadora lançada pelo então Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, estas preocupações ocupavam um texto tanto reflexivo quanto visionário e onde a SIDA protagonizava o debate. Ontem como hoje, as encenações de Angels in America apontam para a necessidade de pensarmos o modo como a sociedade se ilude e assobia para o lado quando se trata de enfrentar os mais profundos receios. Em 1994, no âmbito da programação da Capital Europeia da Cultura, Lisboa pode ver a primeira parte da peça, Millenium Approaches, numa encenação de Declan Donnellan. Este ano, o encenador polaco Krzysztof Warlikowski, Prémio das Novas Realidades Teatrais Europeias 2008, estreou no Festival d’Avignon, 17 anos depois, uma versão que, lançando novas pistas para a compreensão do texto de Kushner, não deixa de ser atenta aos movimentos nacionalistas que ressurgiram no seu país. Entrevista de Jean-François Perrier com o encenador e crítica, de Pascal Bély, à peça que em Maio do próximo ano se apresenta em Paris, no Thèâtre du Rond-point.

ANGELS IN AMERICA É “UMA PEÇA SOBRE UMA SO-

CIEDADE ONDE OS MARGINAIS SERIAM VISTOS DE MANEIRA DIFERENTE”


Porquê encenar na Polónia e em 2007 uma peça escrita e ligada aos Estados Unidos dos anos oitenta? Pelas mesmas razões ligadas a Krum [2005, apresentada no CCB em Maio deste ano], uma peça israelita também mais antiga. Porque acredito que Angels in America ainda tem impacto hoje em dia. A SIDA está ainda presente, tal como o pensamento político reaganiano, bem presente na Europa, apesar do presidente Reagan já ter morrido. Encenei há alguns a n o s

A peça é um díptico. Sente que existem duas peças diferentes ou uma só em duas partes?

Penso que pus em cena uma peça que deve permitir o estabelecimento um diálogo com o público polaco. O diálogo em que o seu ponto central tem a ver com o erro e o perdão. Logo, não faço diferenças entre as duas peças. Procuro apenas uma maneira de inserir estes assuntos no universo do público polaco, visto que nunca foram falados pelo teatro aqui. Assuntos estrangeiros que nunca foram tratados. Existe um teatro gay ou que fala de temas gay na Polónia, mas está reservado a pequenas salas ou é feito por companhias independentes. Com Angels in America tudo é diferente, visto que é um teatro institucional, oficial e reconhecido que trata da produção da peça e que fala para um público mais vasto. A primeira peça permite fazer o público entrar no universo homossexual, para que possa ouvir e compreender o drama individual das personagens, antes do drama universal e apocalíptico da história contada por Tony Kushner. Poderíamos dizer que a primeira parte é a constatação do falhanço da religião e da família enquanto contextos seguros para os indivíduos. A segunda peça analisa, de uma maneira perversa, os resultados desta observação sobre a vida pessoal dos heróis da peça antes de chegar ao ritual em primeiro da morte e depois do céu, que poderia surgir como o único lugar possível para a resolução dos problemas. Esta peça tem um argumento bem escrito, bem construído e com bons diálogos. O percurso das personagens está muito bem delimitado, enquanto que outros momentos escapam a esta construção, tal como o monólogo do dirigente comunista, que fala de coisas mais gerais mas que nós conhecemos enquanto cidadãos de um país de antigo regime comunista.

Não será a peça um discurso sobre a homossexualidade?

Cleansed

[ Purificados , 2001] de Sarah Kane, que é um grito muito radical, muito poético, uma visão fora do contexto histórico, num tempo muito impreciso, que penso fazer eco com a peça de Tony Kushner, mesmo estando socialmente contextualizada, num dado momento. Os assuntos são conhecidos, mesmo que o grito de Kane seja muito individual, enquanto que o de Kushner é mais colectivo.

Mais que sobre a homossexualidade, que está muito presente, trata-se de uma peça sobre uma sociedade onde os marginais seriam vistos de maneira diferente. Já tinha abordado uma vez o tema da marginalidade com Cleansed, mas os marginais eram vistos como que fora das leis sociais, um pouco às escondidas, um pouco monstruosos e pervertidos. Com Angels in America, eles estão no centro da sociedade capitalista, falam dos seus desejos de integração, dos seus direitos, do respeito que reclamam. A Polónia tornou-se capitalista e aceitou as leis europeias, mas há no quotidiano uma grande diferença entre a lei e a sua aplicação. Os homossexuais eram estranhamente mais protegidos no sistema comunista do que nas sociedades ocidentais liberais da mesma época. Mas o regresso do catolicismo como força política tornou as coisas mais difíceis para os homossexuais. Havia uma tolerância evidente >>

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>> que deixou de existir, mesmo se as leis são oficialmente mais liberais. Hoje em dia, tenho a sensação que estamos a dar passos atrás.

O peso da religião parece-lhe muito presente na peça?

Sim, com certeza. A religião e o que se lhe liga estão muito presentes, sobretudo na segunda parte da peça. A cena onde o mórmon praticante, facilmente identificável como católico praticante, diz à sua mãe que é homossexual, é sem dúvida a mais perturbante para o público, no sentido em que se torna numa cena muito política. O coming out é um verdadeiro problema para milhares de jovens polacos na Polónia, assim como para os “oficiais”. O monólogo inaugural do rabino, onde ele fala da família como base da sociedade que se desmorona, aproxima-se muito do que ouvimos das entidades religiosas aqui.

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Acha que a sociedade polaca está actualmente próxima de um certo reaganismo?

Desde que nos tornámos capitalistas, muito certamente. Não somos estranhos à selvajaria de uma América onde alguns, entre os mais ricos, chegam ao poder para dizer tudo e mais alguma coisa, particularmente que sem a religião vamos direitos ao apo-calipse.

A peça não permite, justamente, uma passagem do íntimo para o político?

A peça começa com uma análise de uma sociedade perturbada pelo surgimento da doença e da morte através da epidemia de SIDA. Mas passa rapidamente para um olhar mais pessoal sobre as aventuras das personagens em crise com elas próprias. Põem em causa o que a religião as ensinou, colocam-se perguntas sobre o futuro da vida política. A visão é mais introspectiva do que social ou política, mesmo se as duas se misturam. O objectivo do meu trabalho, e que já era assim com Krum, é falar sobre a aceitação do que somos verdadeiramente. É necessário abordar com alguma suavidade os problemas de auto-reconhecimento. É preciso recusar o medo e a mentira.

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Quando Tony Kushner fala da vida de casal, trata-se de tanto de homossexuais como heterossexuais?

Fala sobretudo de maneira a pô-los em pé de igualdade, o que é surpreendente e chocante. Sobretudo porque os dois casais têm problemas violentos, a SIDA para um e a mentira do marido para o outro. A progressão dramática leva-nos até ao descobrimento da mentira que destrói o casal heterossexual. Paralelamente, o casal homossexual também se separa. Há, portanto, uma série de situações que não parecem ter saída. Os problemas que as novas gerações polacas devem afrontar, e não só as polacas, estão no centro do espectáculo: a religião, a família, a escolha sexual.

O peso da família ainda é importante na Polónia?

Estranhamente, poderia parecer que a família fosse um poder de opressão mas pergunto-me se não será mais assim na cabeça dos indivíduos do que na realidade. É preciso fazer a diferença entre Varsóvia e o resto da Polónia, claro, porque há muitos mais solteiros na capital e o problema do casal e do casamento coloca-se de maneira diferente. Mas Angels in America coloca seguramente a questão do casal num lugar muito perturbante para a nossa sociedade polaca.

De que maneira tratou o problema do anjo, dos anjos que estão no centro da peça?

Tony Kushner não foi muito longe na sua análise do “Céu”. O anjo é aqui apresentado como uma criatura em desgraça, como qualquer indivíduo em terra. Poderíamos, assim, entrar pelo grotesco, o que não me conviria em nada. Decidi colocar em cena uma mulher mas muito hermafrodita, de uma beleza tal que se torna quase inumana. Construí a personagem à volta de frases que Kushner lhe faz dizer: “nós somos feitos para amar”, incluído num sentido de copulação eterna e universal. Parece que é enquanto que o anjo faz passar o Homem pela morte que ele lhe dá a vida. Mas não tenho certezas quanto a esta análise.


Tony Kushner deu permissão para cortar a sua peça. Alguma vez a utilizou?

Quis guardar o essencial do texto e eliminar o que me parecia digressivo, o que nos afastava do percurso das personagens, do que nos poderia pôr de lado. Sou terrivelmente fiel aos eixos essenciais da peça, não os traio, concentro-os. Apenas modifiquei, na verdade, o epílogo, acrescentando-lhe quatro linhas.

A forma dramatúrgica da peça traduz-se muitas vezes num grande realismo. Optou por conservá-lo?

O meu trabalho consiste sempre em privilegiar o texto mais do que as situações, apoiando-me na presença dos actores e dos seus corpos. Tento sempre encontrar os meios que o teatro nos oferece para evitar o realismo, apesar de fazer perceber o que está em jogo em cada situação. Há imagens em que a sua violência se torna maior do que a prática efectiva desta mesma. Essa é a força do teatro. Dois homens que se encontram na procura do amor, da pessoa com quem partilharão a vida, podem dizê-lo perante os microfones do teatro, sem se sentirem obrigados a encontrarem-se na mesma cama. É preciso fazer ouvir o que passa pela cabeça deles, a força dos seus desejos. Por vezes confronto duas cenas separadas ao colocá-las lado a lado para que se perceba bem o paralelismo das situações. A confrontação pode ser mais forte quando há simultaneidade.

Entrevista publicada no programa da peça aquando da estreia no Festival d’Avignon. Tradução do francês: Francisco Valente

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Krzysztof Warlikowski é um reconciliador. No Festival d’Avignon 2005, no meio da agitação provocada pelo seu artista associado, Jan Fabre, Krum tinha provocado o efeito de um calmante apaziguador*. Agora regressa para nos contar o romance, em duas partes – Perestroika e Millenium Approaches – de Tony Kushner sobre os anos da SIDA na América de Reagan. Esta tragédia faz tremer os muros e as filas, acorda o vento glacial, e ecoa nesta França decididamente calma demais. Em Junho passado, o Festival Montpellier Danse interrogava-se e comemorava as vítimas: de que maneira a SIDA influenciou a dança? Qual é o seu papel actual? Como alertar a opinião pública sobre o drama em África? Avignon aprofundou o debate ao inscrever a epidemia numa articulação com o político e o íntimo. Curiosa coincidência, apesar de tudo, num momento em que a equipa neo-liberal e puritana de Sarkozy baralha as cartas, abate todos os obstáculos para encerrar controvérsias e marginalizar um pouco mais ainda os que pensam de maneira diferente. O teatro de Warlikowski é, portanto, uma bola de oxigénio que reposiciona a marginalidade no centro do progresso social e do processo criativo, convidando os heterossexuais (maioritários) a deixarem de considerar a homossexualidade a partir da sua moralidade, a que associam à SIDA a sua dimensão social, política e cultural. Estas 5h30 emprestam à tragédia imagens de um filme de David Lynch, as metamorfoses de um Romeo Castellucci, os ritmos de um Joël Pommerat. Warlikowski

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reúne as minhas referências teatrais e encarna a minha história face à SIDA num jogo excepcional de actores, restituindo-a num fresco vivo. Dois homens amam-se; um tem SIDA, o outro não. Noutro ponto da cidade, um casal desfalece: ele sente-se atraído pelos passeios nos parques para observar os homens, ela toma comprimidos na tentativa de ter um filho. Ao lado destes amores em trânsito, um advogado próximo da equipa de Reagan tem SIDA, dissimulada em cancro, com o peso de ter defendido a pena de morte para Ethel Rosemberg. Todos os actores desta tragédia estão ligados entre si, mas estão também profundamente isolados no seu sofrimento. São marionetas manipuladas pelas oligarquias religiosas, fechadas nos jogos das suas castas profissionais, prisioneiros das suas ideologias. Quem segura nos fios? Como escapar deles? É aqui que Warlikowski nos mostra todo o poder da sua arte: curarmo-nos do “sid’amor” é abrirmo-nos aos espaços do diálogo, libertarmo-nos dos nossos medos, remendar as ligações de solidariedade, dar lugar ao inconsciente para que faça o seu trabalho de introspecção e de reparação. À imagem da unidade do lugar (uma grande sala de muros prateados, móveis de um antigo regime comunista, tanto sala de igreja como de reunião partidária) que é transformado em quarto de hospital, num país imaginário da Antárctica, nos bastidores da morte para melhor nos ligarmos, abrindo onde a SIDA fecha, encerra, mata pouco a pouco. A encenação de Warlikowski é uma leitura política face a uma doença reduzida pelos heterossexuais à esfera do íntimo. Mexe com as ligações que os doentes construíram com os seus próximos: dizendo, mas não tudo, sugerindo para evitar o voyeurismo, dando sentido ao que é inaceitável de modo a preservar a vida. Warlikowski compreendeu a fundo esta doença, a sua complexidade, mas também os desenvolvimentos sociais: são as minorias que decidem a mudança. Não simplifica em nada, mas deixa-nos em aberto até à cena final, onde todos os actores sentados à nossa frente dissertam sobre o sentido da vida, ajudando-nos a reapropriar a questão da SIDA, facilitando assim a passagem da ficção para a realidade (a história ainda trabalha neste vírus). Dois dias depois, uma espectadora diz-me: “não se deve reduzir Angels in America a uma peça sobre homossexuais”. Quem lhe falou em reduzir? Uma primeira versão desta crítica foi publicada no portal www.festivalier.net em Julho 2007. Tradução do francês: Francisco Valente *Ver, a este propósito, o dossier sobre o Festival d’Avignon publicado na OBSCENA #5 e o ensaio de Patrice Pavis A crítica face à encenação dramática, na OBSCENA#6. Fotos © Stephan Okolowicz


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PONTO CRÍTCO

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OPINIÃO

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PONTO CRÍTICO Por

Eugénia Vasques

TEATRO EM TEMPO DE PESTE

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1. Houve, no teatro português dos inícios de 90, uma espécie de surto de um teatro de atitude nova, de carácter um tanto underground, que a peça Amo-Te do dramaturgo Abel Neves exemplificou, e que seria representada pelo Grupo da Faculdade de Ciências de Lisboa (1992), com direcção de Almeno Gonçalves, um dos fundadores do Teatro Contemporâneo de Lisboa. Este grupo teve, aliás, vida curta mas marcou uma ligação, desejada provocatória, entre temáticas ligadas aos universos “marginais” do rock (Pó...Uma Viagem com o Rock nas Veias), experiência cénica que terá sequência pontual nalgum do teatro-música assinado por Manuel Wiborg (um dos elementos do grupo rock Os Refundidos) na APA (Crime e Castigo, 1999). Esta emergência de temáticas ligadas aos universos alternativos tem sequência numa outra linha teatral mais arriscada e “política” que consiste na afirmação de uma sexualidade proscrita, como é o caso exemplar do teatro gay, já não só como temática mas como assumpção de uma ética e de uma “ideologia”. De um modo geral, poder-se-á dizer que este teatro alternativo, que se esboça fora dos cânones das Companhias, reivindica uma diferente “autoria” e processos de escrita cénica que ampliam o conceito de “político”. Os “novos notáveis” que se inscreveram, a partir de então, nos mapas de criação teatral portuguesa, experimentaram essa ampliação quer pela assunção de uma construída identidade autobiográfica, quer pela expressão livre da identidade gay (ou feminino-feminista, ou da identidade negra, etc.), o que ocorre em paralelo com um episódico ressurgimento de um teatro de “agit-prop” (ex: Separatistas AM/PM de Tiago Rodrigues), partilhando todos eles a “alegria da descoberta” de uma linguagem neo-épica, narrativa. 2. Mas se estas novas atitudes identificam alguns dos melhores artistas jovens recém-chegados ao teatro, a verdade é que esta mentalidade emergente – a par com uma crítica jornalística que me esforcei por ajudar, a partir dos anos 80, a tornar-se mais assertiva nos seus conceitos e actual na sua linguagem e códigos – impulsiona e estimula os criadores mais velhos a levar mais além as suas posturas de identificação estético-política que se limitavam, até essa altura, à apresentação de

alguns textos de autores como Marlowe, Shakespeare, Wilde, Tennessee Williams, Orton, Albee, Lorca, Pasolini ou Fassbinder. Creio ser justo nomear o Teatro Experimental de Cascais como exemplar dessa contaminação epocal, pois o histórico agrupamento destacou-se, uma vez mais, como um dos lugares em que os closet dramas se exibiam em contexto menos codificado (lembremos The Lisbon Traviata, de Terence McNally, em 1997). Várias Companhias e artistas institucionais, contudo, preferiram continuar a adoptar uma postura cautelosa, ora convidando jovens encenadores ou encenadores exteriores para a direcção de trabalhos comprometidos com as novas temáticas da diferença, ora integrando nos seus cartazes espectáculos visitantes exógenos à Companhia. Outra atitude, esta partilhada por várias gerações, foi continuar a colocar os problemas mais delicados sob o manto da universalidade e de uma cerrada codificação (Enquanto se Está à Espera de Godot, de Beckett, encenação de Mário Viegas ou D. João e a Máscara de António Patrício, encenação de Mário Feliciano são exemplos de espectáculos que falavam já de uma sentença de morte sem que alcançássemos, porém, todo o alcance do aviso). 3. O primeiro espectáculo a deixara pulga atrás da orelha dos espectadores foi Terminal Bar, do dramaturgo americano Paul Selig, que Carlos Fernando encenou, no seu Teatro da Graça, em 1990, como um requiem tocado de urgência, um ano antes de falecer. O espectáculo, dedicado significativamente à memória do cenógrafo brasileiro Dalton Assef Salem, colaborador do Teatro da Graça, desaparecido havia pouco tempo (ao que se dizia, vítima de Sida), metaforizava, pela via da ficção científica, o aparecimento do Sida através da analogia de “uma praga” que estaria a aniquilar toda a população dos Estados Unidos. 4. Apesar da (isolada) publicação da peça didáctica para jovens, Gilberto e Mónica, de Vicente Sanches, em 1992 – António Manuel Couto Viana, no parecer dado á obra para o Serviço de Bibliotecas da Fundação Gulbenkian descreve-a assim: “Trata-se somente de um diálogo, a que o dramaturgo quase subtraiu as didascálias, entre


dois amantes, Ela, viúva de uma vítima de Sida, condenada a morrer. Ele, por muito amor, disposto a contrair, através dela, igual doença. O tema, melodramático, é apresentado, todavia, sem excessos sentimentais que lhe roubem veracidade. Não deixando, todavia, de ser teatralmente comovente” – é somente em 1994 que o teatro profissional ousa nomear a doença sem a carga de preconceitos a que esta se encontrava ainda associada, ou seja, a homossexualidade, as drogas e as opções de vida promíscua. O espectáculo que nomeará finalmente o flagelo é a peça em um acto Greensleeves (1991), de Joyce Carol Oates, que Jorge Silva Melo, regressado há um ano ao teatro em Portugal, encena no Teatro da Malaposta (com interpretação de Rafaela Santos e Manuel Wiborg), com o patrocínio da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida. 5. O ano de 1994 marca, realmente, uma viragem no teatro português. O Teatro da Graça põe em cena Bent, uma peça de Martin Sherman de temática gay, com encenação estreante, do cineasta Marco António Areias, cuja antestreia reverte a favor da Associação ABRAÇO. No programa da Lisboa 94 - Capital Europeia da Cultura consta o inesquecível Angels in América/Millenium Approaches: A Gay Fantasia in National Themes que se sente dividir a comunidade gay. A peça de Tony Kushner, representada pela Companhia Declan Donnelan (que a estreara dois anos antes), veio mostrar os caminhos heterodoxos que trilhava o novo “teatro épico” de temática gay, mostrando o terrível tema da morte por Sida sob o sortilégio do humor e da grande teatralidade musical (“à Spielberg” como parodia o próprio espectáculo). Influenciados ou não directamente por este e outros espectáculos visitantes de vocação glbt mais radical – como Miss Coco Peru: A Legend in Progress, de Clinton Leupp, na Monumental 96 ou as Finger in the Dyke Produtions, de Shawna Dempsey e Lorri Millan, na Culturgest no mesmo ano –, vários grupos ou performers individuais criam espectáculos cada vez mais assumidamente radicais como é o caso de O Ano do Pénis, que o actor João Grosso encena na ILGA, em 1997. No ano de 1997, contam-se inúmeras produções cénicas vocacionadas para a temática glbt: o já referido The Lisbon Traviata, pelo TEC; Pecado, a partir de Bernardo

Santareno, encenado por Luís Castro como “perfinst”, no ACARTE, Corações de Papel, de Harvey Fierstein, na Comuna, que assinala a estreia de Maria Henrique na encenação, entre vários outros. De todos estes espectáculos de1997, porém, somente Um Banco no Abismo, do americano Luigi Januzzi, encenado por Rosa Mãe para o grupo Actornauta, na Comuna, prosseguirá a reflexão sobre a tragédia do Sida em registo melodramático. A Minha Noite com o Gil, de Kevin Elyot, no ano anterior, pelo Novo Grupo/Teatro Aberto (mas com encenação de Fernando Heitor), distinguir-se-á, contudo, pelo modo (cauteloso, embora) com que a peça mostra alguns dos dramas amorosos específicos da era do Sida e do HIV. 6. Depois destas (espaçadas) provas de interesse pelo tema, no quadro (quase) exclusivo da estética gay, a actual sensibilização para o problema do Sida encontra-se nas mãos de agrupamentos mais ou menos amadores ao serviço de comunidades pedagógicas (escolas). O interesse dos profissionais do teatro escasseou e, nos últimos anos, só a Escola de Mulheres falou, poeticamente, de Sida, em A Valsa de Baltimore, de Paula Vogel, em 2004, na Comuna tendo Élvio Camacho, já este ano, encenado, também destinados aos públicos jovens, no Teatro Experimental do Funchal, Credo e Outras

Peças (Bad Dream, Columbia Does Not Figure in Your Travel Plan, Boyfriend Rigg, The Boom Box, Credo), de Craig Lucas, num espectáculo que integra desassombradamente a discussão explícita do Sida.

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É MUITO MAIS SIMPLES DO QUE SE IMAGINA:

UMA CONVERSA COM ALAIN BUFFARD, CLAUDIA TRIOZZI E VERA MANTERO Estreado na última edição do Montpellier Danse, (Not) a Love Song junta as vozes e os corpos de Claudia Triozzi, Vera Mantero e Miguel Gutierrez, bem como a música de Vincent Segal, às ideias e metáfora do coreógrafo Alain Buffard que, numa viagem transversal pela música, nos oferece uma peça cheia de energia e rara na sua liberdade interpretativa. Juntámos o coreógrafo e as duas intérpretes para uma conversa sobre as implicações deste encontro num contexto criativo pleno de dificuldades. entrevista Tiago Bartolomeu Costa

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Começo por solicitar reacções a uma entrevista de Marie-Thérèse Alllier, programadora da Ménagerie de Verre, em Paris, que declarou à Danser (Novembro 2006): “Não vejo novas correntes, é verdade! Sintome um pouco saturada, ou talvez já não saiba ver, mas realmente não sinto que esteja a aparecer alguma coisa. Tivemos uma explosão contemporânea entre 1982 e 1990, depois a dança conceptual de meados dos anos 1990 até 2002 e stop!... Hoje, espero, aguardo, vigio, e aquilo que eu vejo e me disseram ser formidável, aborrece-me a um ponto que não pode imaginar”. Se se sente aqui uma pressão pela novidade, há também o reconhecimento de que essa pressão levou a uma aporia generalizada que talvez comece a ser problemática. De que forma sentem essa pressão? Alain Buffard: Bom, eu não reajo a esse tipo de pressões. Continuo a fazer o que quero fazer e não condiciono o meu trabalho às regras do mercado. Mas é verdade que as coisas estão a mudar muito rapidamente. E não estão a mudar para melhor. Claudia Triozzi: Comigo passa-se o mesmo. Se penso nos meios de produção que tenho, eles não mudaram enormemente nos últimos anos. Continuo o mesmo trabalho ainda que me coloque essas questões, mas não me formato ao que se passa. Ao mesmo t e m p o estou consciente de que algo mudou em França na forma como os espectáculos são olhados. Há uma constante procura pela novidade, agora ligada a uma ideia de negócio. É preciso “o novo”, é preciso “renovar”. Isto não representa uma verdadeira curiosidade em torno de um trabalho ou de um criador, ou criadores. Acho que o olhar que existe para essas coisas “novas” é superficial. Um discurso artístico tem uma duração e um tempo até se instalar. Sinto cada vez mais, sobretudo porque o facilitismo e a superficialidade se começaram a instalar na criação, que tudo isto vai ao arrepio daquilo que acho que deveria ser a solução: ser-se cada vez mais autónomo, procurar criar o seu próprio espaço, apresentar-se e autonomizar os sistemas de criação e produção. Sei que o que defendo – esta autonomização – é uma utopia. Sei que eu, por exemplo, não o poderei fazer. E por isso mesmo tento sempre ver os espectáculos para lá do “gostei/não gostei”, tentando perceber como é que a pessoa evoluiu e o que é que ela teve que fazer para chegar onde chegou. O meio no qual nos movemos é muito violento e não podemos fazer julgamentos sumários. Aquilo a que assistimos são momentos de um percurso. Eu, por exemplo, estou em permanente processo.

Alain Buffard: A haver um problema é algo que nos ultrapassa e que não tem que ver directamente com os nossos discursos – se quisermos falar genericamente. Coloco o problema sobretudo em termos das programações e das ambições dos programadores que deitam cá para fora produtos comerciais uns atrás dos outros. E aquilo que tens que fazer é criar uma estratégia de trabalho que resista à lógica do mercado. Há produtores que simplesmente deixam de trabalhar contigo porque algures não sei onde há um jovem rapazinho prometedor… e fazem assim as suas escolhas. A verdade é que, muitas vezes, essa pode ser uma resposta ao que se entende por “falta de clareza” de uma geração que teve todas as oportunidades para se impor e, de certa forma, é vista pelo público – e por consequência por alguns programadores e crítica – como tendo-se fechado sobre si mesma. Vera Mantero: A questão talvez seja outra e não essa da “falta de clareza”. Vejo mais como a preocupação em se ser evidente. Eu acho que continuo porque há duas ou três pessoas que não precisam dessa claridade, nem de espectáculos que se dirijam completa e frontalmente ao público. Eu nunca farei nada “claro”, ou claro nesse sentido, porque felizmente há pessoas que ainda se interessam por este procedimento. Não vejo outra… Alain Buffard: A mim a palavra claridade chateia-me. Mas se compreendo bem a questão, o termo tem mais a ver com as expectativas que o espectador e os eventuais programadores e produtores têm. Creio que no respeita à França há uma espera muito honesta da parte de certos produtores, não de um espectáculo claro, mas do regresso a um período em que havia trabalhos que traçavam uma pesquisa própria e precisa. Hoje, e para os que acompanharam essa explosão de que falava a Marie-Thérèse Allier, há um sentimento de retrocesso, há a ideia de que aquilo que se faz é quase retrógrado quando comparado com esse outro período. Considero, no entanto, que há uma questão politica de fundo que atravessa esse problema, sobretudo em produtores que trabalham com arte pública e que dizem “isto pode fazer-se, isto não”. E, para mim, isto não passa tudo de uma maneira de dizer: “antes é que era, oh!, há dez anos atrás…” Vera Mantero: Eu não acho que exista uma grande mudança. Houve sempre um público variado, um para coisas mais experimentais, menos de entretenimento… Acho que as coisas on the edge foram sempre para um público muito restrito. >>

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>> Alain Buffard: Mas há mudanças. Se é verdade que há cada vez mais espaços em França, basta olhar para os orçamentos, cada vez mais restritivos. Ou ainda para o caso da France Culture, que substitui a AFAA, e que durante anos apoiou a presença de artistas residentes em França no estrangeiro, desde o Angelin Preljocaj a projectos mais pequenos e experimentais. Mas agora, apresenta umas coisas de hip-hop ou nomes de que ouviste falar mas que não são representativos do que se anda a fazer e a discutir. E isto é só um exemplo da desatenção a que a cultura tem estado sujeita. Se virmos o que se passou nas últimas eleições presidenciais, ninguém falou de cultura. Nem mesmo os socialistas. E quando o fizeram foi uma catástrofe. O apoio à cultura deixou de ser uma prioridade. Razão pela qual um espectáculo como (Not) a Love Song, pelo facto de juntar criadores da mesma geração, pode ser lida como um manifesto político, social, de reacção…

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Alain Buffard: Se compararmos com uma outra peça, Mauvais Genre [2000], o facto de serem só coreógrafos a interpretar dava-lhe uma dimensão política clara. Juntar-se coreógrafos de famílias muito diferentes e dizer que podiam todos partilhar o mesmo espaço, o mesmo palco, era uma forma de contrariar as divisões e impedir que se alimentasse a ideia de se poder optar a partir, somente, das correntes de gosto criadas pelos programadores e pela crítica. Era muito evidente que aquilo que estávamos a dizer era: todas essas categorias de merda não funcionam. Fazer convergir essas pessoas tão diferentes, em França, nos Estados Unidos, no Brasil era uma afirmação geracional e política. Juntar estas pessoas todas forçava-nos a reflectir sobre aqueles que vejo e o que é que eu escolho ver. Uma atitude que se torna cada vez mais premente quando assistimos à necessidade de identificar o que é e não é da dança… Claudia Triozzi: Mas falámos sempre disse. Sempre falámos todos disso. Desde sempre. E, no entanto, houve sempre dança. Eu não sei o que quer dizer isso de “isto não é dança”. Quer dizer o quê? Que não há movimento? Não há uma gestualidade? Uma deslocação no palco? Talvez seja verdade mas não é uma questão que eu me queira colocar. Há momentos em que, efectivamente, eu posso sentir que “isto não é dança” mas toda a minha formação me leva a fazer reflectir as coisas de uma outra forma. Se eu nunca tivesse feito dança talvez fosse mais fácil, mas tendo-a feito, a questão não faz grande sentido. Para mim pelo menos.

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Sim, é sobretudo o que dás ao discurso da dança, como contribuis para o seu alargamento. Claudia Triozzi: Sim, o que dás à representação, ao corpo… Imagino que isso inclua, necessariamente, o público, no sentido que a Claudia lhe atribuiu quando, em entrevista ao Journal des Aubervilliers dizia que “o público não pode achar que pode continuar sem trabalhar”. Claudia Triozzi: É verdade que quando eu vou ver um espectáculo aceito fazer um esforço para o compreender. Para mim isto é um processo de partilha e é algo que faço por oferecer a mim mesma. Há lugares onde nos podemos perder, onde podemos somente ver o que se passa e entrar e sair de uma peça. Mas para mim é uma questão de transmitir a fragilidade do processo de trabalho. Não é fazer uma coisa extraordinária, é convidar a pessoa a entrar e esperar para ver o que, no espectáculo, existe que lhe permite entrar dentro deste processo de partilha. Pegava nesta ideia de partilha e recuperava a questão sobre a junção, numa mesma peça, de diferentes rostos já de percurso firmado – apenas a título de exemplo: Boris Charmatz com Raimund Hoghe (Régi, 2006), Francisco Camacho (Blessed, 2007), Charmatz (It’s not funny!, 2006) ou Benôit Lachambre (Forgeries, Love and Other Matters, 2004) com Meg Stuart, este com Lachambre com Louise Cavalier (I is memory, 2006), Jérome Bel num outro nível, etc. – para tentar ver se, primeiro, podemos estar perante uma frente de intervenção pública e resistência artística a essas mudanças atrás apontadas. E, segundo, perceber que transferências se operam entre os criadores e de que modo podem ser úteis para essa partilha, não só da peça que criam, mas também individualmente. Claudia Triozzi: É mais simples do que isso. O que verifico é que há propostas feitas pelo Alain que correspondem à minha própria identidade. E aí sim, poderia dizer, que reafirmo qualquer coisa a partir dos materiais que são propostos, da energia que circula. Há no olhar do Alain, e na nossa vontade em estarmos juntos, um diálogo que “questiona” de forma indirecta todos estes problemas de que falamos. Às vezes é muito bom poder dizer as coisas com material que outras pessoas propõem e que são resultantes de um diálogo. Às vezes há momentos muito felizes, em que te sentes orgulhoso


de os teres conseguido. Ele diz coisas que eu gostaria de dizer abertamente. Isso prolonga o meu discurso e coloca em perspectiva um discurso comum sem que isso signifique, ao mesmo tempo, uma posição política. É interessante quando o diálogo se faz dessa forma sem a obrigação de dizer que isto fala de A e aquilo de B e queremos dizer C e D. Tu sabe-lo, compreende-lo, mas não precisas de o dizer todos os dias, em todos os espectáculos. Vera Mantero: No fundo, não há aqui grandes debates, grandes tiradas filosóficas, há sobretudo coisas muito concretas. No meu caso, e se só pensar no uso da voz, aqui a relação é diferente daquela que tenho no mesmo trabalho, e é diferente da que tenho quando dou concerto com o Mark Tompkins. Para mim, particularmente, são poucas as experiências de ser intérprete em peças de outras. Houve a peça da Robyn Orlin [Hey Dude… I have talent, I’m just waiting for God, 2005], mas antes dessa há já muito tempo que não era intérprete para outros. Sei da minha experiência com intérpretes que é sempre algo que pode fazer evoluir o trabalho, mas creio que nunca é evidente no momento em que fazemos, mas apenas quando “regressamos ao nosso mundo”. Ou então quando começamos a apresentá-la. Nunca no momento que a estamos a criar. No caso do Alain, tentei entrar no seu universo, que é bastante diferente do meu, e “colocar as coisas no sítio” antes de colocar tudo em causa. Alain Buffard: Acho que não poderia trabalhar com pessoas de quem não gostasse O que me interessa é, de cada vez, e em relação a um projecto específico, fazer trabalhar as pessoas, pô-las a cantar, mudar-lhes as perspectivas. Claro que politicamente é importante ter nomes identificáveis. E sou consciente desse “peso”, mas não sei até onde é que os seus nomes e notoriedade ajudam. O que é claro é a existência de uma admiração pela Vera, pela Claudia ou pelo Miguel Gutierrez, criador que poucos conhecem aqui na Europa. Cada um tem o seu trabalho diferente, com as suas questões, mas depois há um momento em que decidem ter um espaço de partilha. E isso é muito importante. Claro que quando os convido sei que há uma forma de pensar o mundo que espero que se junte à minha, e se isso não estiver nos ensaios aborreço-me. (Not) a Love Song foi apresentado de 12 a 16 de Dezembro no Centre Pompidou, no âmbito do 36º Festival d’Automne à Paris.

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A MAIS BELA CANÇÃO DE AMOR, ÉS TU! texto Pascal Bély É a época das canções de amor. Depois do magnífico filme de Christophe Honoré, Chansons d’Amour apropria-se do tema com júbilo, gravidade e derisão. O coreógrafo Alain Buffard oferece-nos um triunfante espectáculo que nos faz rir até às lágrimas e comover até ao limite através de grupo de intérpretes com os quais o mais pequeno movimento do corpo e a mais pequena nota musical participam num fresco cinematográfico cantado e dançado onde encarnam, ao mesmo tempo, Marlene Dietrich, Bette Davis, Lou Reed, David Bowie e James Brown! Para conseguir esta proeza, Alain Buffard reuniu quatro artistas de excepção: o performer, bailarino, cantor e músico americano Miguel Gutierrez, as coreógrafas Vera Mantero, e Claudia Triozzi, de Itália, e o músico francês Vincent Segal. Os quatro redesenham os contornos de uma obra transdisciplinar à qual o espectador se sente preso até ao infinito acabando por se sentir agradavelmente vulnerável. Elas são duas mulheres, estrelas desacreditadas do cinema. Os fãs abandonaram-nas ao seu quotidiano, reduzido a esse espaço cénico onde o espelho as devolve ao passado glorioso, o guarda-vestidos aos antigos bastidores e algumas canções de salão para os palcos dos festivais. Elas perderam tudo e o cenário oferecelhes a oportunidade para acertarem contas. A partir

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de réplicas extraídas de grandes clássicos do cinema, elas cantam o que já não podem dizer. Vão ao cinema para permitirem que os fãs “mais inteligentes” as vejam no ecrã. O público que assiste pode dar-se de coração transbordante e escrutinar os mais discretos gestos e movimentos deste par. Estaríamos quase no cinema não fosse a presença do músico e do cantor-performer que mais não fazem do que lembrar-nos que as fronteiras entre a dança, o teatro, a sétima arte e os desfiles de moda não nos servem para grande coisa, face à tragédia dos tempos modernos, onde o estrelato conduz à perda da identidade. Alain Buffard ama estas duas actrizes pois, para lá das aparências, é de amor e sempre de amor que aqui se trata. Esta tragicomédia inscreve-se num espaço tanto horizontal como vertical, onde o nosso olhar nunca se perde, tão coerente é o conjunto. Os corpos estão lá para nos lembrar que a dança não é a arte do divertimento, mas da transformação para compreender o indizível. A quatro, eles metamorfoseiam tudo como se fosse necessário reaprender a criar uma ligação e um sentimento amoroso (com o risco de se dizer “não te amo mais”) longe dos códigos histéricos dos fãs. E por mais estranho que isso possa parecer, Alain Buffard devolve-nos a nossa própria história (de loucos e tolos) onde o riso é a mais bela canção de amor. Fotos © Marc Domage


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Observações sobre uma forma coreográfica alternativa para a produção de discurso texto Jeroen Peeters

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Em Abril de 2006 Berlim acolheu o Congresso da Dança, encontro internacional que reuniu mais de 600 profissionais vindos da coreografia, interpretação, investigação, crítica, ensino, gestão cultural e documentação. Pré-publicamos um dos contributos, no mês em que fica disponível para o público a versão inglesa das actas do encontro. >>


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>> Como é que quer trabalhar hoje? Por simples que pareça, quando dirigida a coreógrafos, intérpretes e outros profissionais da dança e da performance, esta questão admite uma miríade de respostas. Para mais, se formulada no contexto de um congresso sobre dança, operacionalizado sob a pomposa máxima “Conhecimento em Movimento”, a performatividade da pergunta expõe tendências e ideologias discursivas ambíguas e controversas, que alimentam o debate actual sobre investigação artística. A ambição de mobilizar a dança como área do conhecimento – mesmo se tenha um propósito crítico – não arrisca uma adopção do vocabulário da sociedade do conhecimento [1]? Quando se espera dos artistas que sejam investigadores, cientistas, até gestores do conhecimento criativo, não se está a catalogar e a instrumentalizar a sua experiência, de forma demasiado fácil? Com o objectivo de uniformizar a educação superior na Europa e introduzir o grau de Doutoramento em Artes, Bolonha pôs o dedo na ferida, perguntando se a investigação artística e a científica têm estatutos comparáveis. Se a produção e a pesquisa artísticas têm não só de ser enquadradas em contextos que lhes são estranhos, mas ainda mais têm de corresponder àqueles discursos, estamos efectivamente a afastar-nos da solução. Se se reconhece à pesquisa artística o facto de estar entrelaçada com a experiência 56 das pessoas – e o conhecimento que produz ser específico, prático e frequentemente implícito por natureza – o que podemos realmente esperar deste discurso neohumanista sobre conhecimento?

Que tipo de arte desejamos fazer? O que significa isso no contexto de um congresso que enfatiza tão veementemente o conhecimento? Como podem o conhecimento, a teoria e a política ser transformados em formas de trabalho coreográfico? Qual é hoje a possibilidade de criar? Quais são as implicações performativas da nomeação? Como é que as etiquetas se relacionam com as diferentes tendências da história da arte? De que estruturas ou formas necessitamos para ser possível abordar certas questões através do coreográfico? Como pode a intersecção das questões clarificar o envolvimento político das diferentes áreas ou produzir uma outra coisa? No Congresso da Dança na Alemanha, em Abril de 2006, André Lepecki e Myriam Van Imschoot, ambos teóricos da dança e dramaturgistas, comissariaram e apresentaram um encontro durante duas tardes sobre Formas de Trabalho Coreográfico. Um núcleo duro de convidados, incluindo os coreógrafos Amos Hetz, Thomas Lehmen e Lisa Nelson, o investigador Scott DeLahunta e a produtora Eva-Maria Hoerster, participaram numa série de

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painéis em torno de uma grande mesa, além de muitos visitantes. Levantaram-se questões sobre pesquisa artística, conhecimento e produtividade, formuladas obliquamente através da pergunta “como é que quer trabalhar hoje?”. De facto, sem antes cartografar o leque de opções e práticas, conferindo substância à questão, todas as discussões sobre epistemologia e política podem tornar-se fúteis. Para lidar com esses problemas – ao mesmo tempo evitando o vocabulário inoportuno da sociedade do conhecimento, a inequívoca romanticização da prática artística e a inclinação para ensaiar os lugares comuns da teoria crítica – a opção do encontro foi por uma enviesada forma coreográfica de discussão. Ao longo do debate, Van Imschoot propôs uma alteração de paradigma: do “coreógrafo” enquanto função, para o “coreográfico”, abrindo ligações para uma diversidade de actividades, atitudes, questões, formas, processos e produtos coreográficos. “Há actividades cujas características, tarefas, responsabilidades e métodos não se solidificam necessariamente numa função”. Visto numa perspectiva ainda mais alargada, as formas de trabalho coreográfico respeitam tanto à criação quanto à criatividade, à produção, ao ensino, ao treino, à dramaturgia, etc. Lepecki associou esta questão também aos estudos da performance, interessados não com a acumulação de conhecimentos mas com a criação de possibilidades, a transformação da realidade através dos discursos, das representações e das imaginações que a moldam. E, para decifrar um pouco mais do encontro, uma “forma” permite um tipo específico de expressão: vincula o sujeito à expressão e modificação de uma maneira particular, que é também expressivo da própria expressão (Deleuze 1990: 13-14). Logo, as diferentes maneiras de pensar e falar não se referem apenas a numa questão de conteúdo, mas também requerem diferentes modos de trabalho, corpo, forma ou processo. Nesse sentido, o encontro Formas de Trabalho Coreográfico não pode ser reduzido ao seu conteúdo, a experimentação com uma forma de conversação alternativa revela também muito sobre a sua gravidade e indagações. Como é que quer trabalhar hoje? É impossível aqui dar conta do encontro de forma circunstanciada, ou traçar a genealogia de todas as reflexões que foram partilhadas e desenvolvidas nas conversações. Simplesmente proporei algumas dessas questões tal como as extraí do meu caderno, na esperança de que preservem a abertura e resistência à compressão. Correndo o risco de generalizar, deduzirei a partir daí algumas observações sobre a “incompressibilidade” da pesquisa artística e o conhecimento que tem para ofertar.


O que é coreografia? Qual o seu significado? Qual a sua (ir)relevância para o trabalho? Os processos são visíveis no resultado? Como podemos manter o produto em aberto? Como percepcionar ou desvendar as formas de trabalhar? O que vê? O que projecta? Como pode coreografar isto? Que material adquire ao observar o mundo através da lente de um artista? Qual a sua responsabilidade ao reivindicar produzir arte? O que oferece às pessoas? Como espera que elas reajam? E se não tornar clara a distinção entre vida e arte? Perder-se-á? Estas questões apontam em múltiplas direcções, mas não só: também representam uma grande quantidade de vozes e são, assim, reminiscência de um gesto fundamental: tomar o lugar. Durante o encontro, foi impressionante a avidez das pessoas em participar no debate e fazer-se ouvir, bem alto. Talvez seja sintomático de um meio da dança como o alemão, tão institucionalizado, no qual muitos artistas são invisíveis, e de um congresso que reservou pouco espaço para a participação das vozes da audiência e dos artistas. Então, de que mais falar? No rescaldo do Maio de 1968, o filósofo e sociólogo francês Michel De Certeau escreveu sobre a “tomada de discurso” como um novo direito que equivale ao direito a ser humano e que afirma a sua existência. É um gesto de recusa e contestação, que rejeita qualquer identificação, mas é também naquele contexto específico “um conhecimento ‘aprisionado’, cuja aprendizagem transforma aqueles que a adquirem em instrumentos do sistema; instituições que recrutam cada um dos seus ‘empregados’ para causas que não são as suas; uma autoridade votada a impor a sua linguagem e em censurar toda a não-conformidade, e por aí fora” (De Certeau 1997: 12-13). Não é necessária muita imaginação para ver uma ligação entre as palavras de De Certeau e a “sociedade do conhecimento” dos nossos dias, cuja linguagem penetra muitas áreas e tem sido seriamente interiorizada. A tomada de discurso precisa de ser repetida uma e outra vez de forma a manter acesas as questões, a perturbar o poder do conhecimento legitimado e a permitir a emergência de novas linguagens e formas de expressão. A tomada de discurso concedeu a todos acesso aos debates sobre assuntos importantes como a sociedade, o conhecimento, a arte e a política. Mas para De Certeau é antes de mais nada a profunda ambiguidade do gesto que tem valor político e contém a possibilidade de sustentar uma nova sociedade. A tomada de discurso gera a diferença através de muitas vozes (não ouvidas). Mas também simboliza a diferença, já que antecede uma nova linguagem por vir. Fundamentalmente provisória, confusa e irredutível, a tomada de discurso desafianos: “a vida no futuro só poderá ser vivida se se alienar o discurso, tal como a existência terminará quando

começarmos a renunciar à tentação de criar” (De Certeau 1997: 24). Como é que quer trabalhar hoje? A cada resposta, esta questão coloca outra: como é que se fala sobre formas de trabalho coreográfico? Ou também: como é que se fala sobre pesquisa artística numa linguagem diferente da do neo-humanismo ou da sociedade do conhecimento? Vale a pena salientar que no contexto da dança europeia, a hierarquia modernista da produção de conhecimento foi deitada por terra quando Pina Bausch começou a fazer perguntas aos seus bailarinos e a ouvir as suas respostas, assim redistribuindo, pelo discurso, a posição daqueles que sabem. André Lepecki (2001: 30) identifica um salto epistemológico no gesto de Bausch, que enfraqueceu as autoridades vigente e fez definitivamente da área da dança um domínio do conhecimento, no qual todas as partes envolvidas no processo criativo partilham a premissa – e a promessa – de “não saber” como ponto de partida. O entusiasmo das muitas pessoas que se fizeram ouvir também fez com que o encontro Formas de Trabalho Coreográfico vagueasse um pouco, impulsionado pela difícil tarefa de sair da confusão e do não-saber para abranger a potencialidade disso como forma de conversação.

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ARRITMIA

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-se fazer dança sem hábitos? Então e o hábito de fazer dança ou performance? Com a expansão das formas de trabalho, como é que se escolhe? Estamos a assistir ao desaparecimento das expectativas claras? Como se relacionam a cultura e a formação da atenção? Como se pode transformar a cultura através da gestão da atenção? Como fazer novos sistemas sensitivos para criar atenção? Como é que se lê intenção e atenção uma na outra, para se conseguir sobreviver num contexto social? Como se esculpe a atenção interior de um intérprete? Como é que se pode tomar consciência dos buracos que nunca se conseguirão tapar? “Podemos ser mais claros sobre o que é que estamos exactamente a discutir, estas formas de trabalho coreográfico?”. Perdida entre as conversações labirínticas do encontro, o pedido de clareza deste participante refere-se a ainda outra ambiguidade. O carácter vago em torno de “formas de trabalho coreográfico”, “pesquisa artística” e assuntos similares está intrinsecamente relacionado com os termos, considerados “conceitos essencialmente contestados”. Estes foram definidos por William Gallie como internamente complexos e inicialmente descritos de forma variável, mas também sujeitos às circunstâncias e portanto altamente maleáveis (Gallie 1956: 171-172). Nestes conceitos funciona uma forte ambiguidade, que relaciona uma intuição partilhada e generalizada com o desenvolvimento de ideologias e agenciamentos específicos. A abertura e performatividade destes conceitos permite uma diferente exploração da realidade, que não procura uma ex-

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plicação geral e objectiva, mas deixa espaço para incluir o singular, o contingente e o arbitrário. Em causa estão não apenas reivindicações e certezas universalistas, mas uma contínua reflexão crítica sobre o “presente”. No ensaio “What is Enlightenment?”, Michel Foucault (1984; cf. Boomkens 2006: 24-27) propõe-se abordar a modernidade e o Iluminismo enquanto atitude crítica, forma reflexiva de se relacionar com o presente. O autor esboça os contornos de uma “ontologia histórica de nós próprios” enquanto projecto filosófico. Trata-se de uma atitude liminal, experimental e incessante que indaga as contingências que nos moldaram e nos permitem ser diferentes. Um corpo particular de práticas e discursos serve de campo de referência: o que fazem, pensam e dizem as pessoas, e como o fazem? E apelando a que liberdade agem dentro de sistemas e alteram as regras do jogo? Contra um pano de fundo de hábitos e crenças existentes, a realidade presente é o critério para trabalhar nos nossos limites e sentido de possibilidade. Uma ontologia do presente fornece respostas apenas temporárias, parciais e locais; tem um carácter processual e é necessariamente vaga no roçar dos limites da nossa compreensão. Se virmos formas de trabalho coreográfico enquanto conjunto de práticas, começar com uma ontologia do presente foi talvez o verdadeiro investimento do encontro. Como é que quer trabalhar hoje?

Fazer arte é lançarmo-nos no desconhecido? Que intuições, momentos e escolhas viajam connosco e constituem um meio de nos preparar para a criatividade? Quais são as condições para entrar num estado de nãosaber? Como ouvir a melodia das palavras, os gestos, as brechas, a hesitação e sentirmo-nos menos ameaçados pelo desconhecido? Como lidar com a nossa própria história, desejos, segredos e invisibilidades? Como encontrar o espírito da peça em vez de projectar o nosso próprio espírito? Como reflectir o mundo se não se sabe como o fazer? O que aconteceu ao poder autoral do coreógrafo? E a improvisação? Como relacionar a vida fora do teatro nas estruturas coreográficas? Como chegar lá fora? Como perceber que existem outras perspectivas? Formas de trabalho coreográfico, e o conhecimento que produzem, estão presas às práticas e à experiência das pessoas. Um tópico recorrente no encontro teve a ver com os limites do nosso entendimento e agenciamento, formulado como um desejo de se relacionar com o desconhecido ou de entrar num estado de não-saber. Mais do que celebrar a dança como o outro dentro da cultura, tal requer uma observação da noção subordinada que reconhecemos na pesquisa artística – adoptar uma posição modesta tanto em relação ao saber quanto


ao não-saber. Grosso modo, discutiram-se dois tipos de heteronomia: primeiro, condições de produção, legitimação canónica, economia, políticas de visibilidade, e outras circunstâncias externas que coarctam a autonomia do artistas. E, em segundo lugar, aptidões técnicas e falta de controlo, autoria e a dificuldade em agarrar o espírito da peça, a lógica quase-autónoma de um método, etc., que nos lembram das limitações e da posição insegura do sujeito que sabe, que não é auto-transparente, mas vulnerável. Não há necessidade de salientar que ambas as categorias desafiam a noção moderna e iluminista do sujeito, assim como do voluntarismo auto-convencido da sociedade do conhecimento, na qual somos todos gestores da nossa própria realidade – ir às compras e googlar conhecimento, em vez de acumular experiências, é o mesmo que dizer “agregados de conhecimento pessoalmente integrados e narrativamente e conceptualmente estruturados” (Sloterdijk 2006: 344, cf. 93-96). Como é que quer trabalhar hoje? Como se pode pensar, falar e agir através da heteronomia? É uma questão fundamental sobre a subjectividade que emerge na pesquisa artística indagando sobre a ontologia do presente. Foucault insiste no presente como critério para evitar as grandes narrativas e projectos da modernidade, e simplesmente esculpir e moldar o que nos rodeia com consciência crítica. Uma divergência similar

atravessou a discussão no encontro em torno da proposta de Thomas Lehmen para encararmos a arte e a restante actividade humana como “fazer um pedaço de mundo”. Então está-se a acrescentar, a transformar ou

a criar um universo paralelo? Quem tem acesso à criação da realidade, da imaginação e das representações que a moldam? Qual o papel do artista? Qual a ideologia inerente? Somos efectivamente os produtores da nossa própria vida e das suas condições? Quanto mais pesado

o assunto em causa, mais delicada, contestada e distante se tornava a discussão sobre formas de trabalho coreográfico. Tão por resolver quanto o conteúdo da discussão, a heteronomia foi abordada explicitamente também na alternativa do encontro no que à produção de discurso diz respeito: uma conversação coreografada. Iniciada como uma “improvisação aberta”, evoluiu para integrar partituras e estruturas de jogos. Na segunda tarde, Van Imschoot propôs uma rotina, na qual cada pessoa passaria a palavra a outra ao levantar uma questão, sendo que as demais poderiam intervir através de “chamadas” para clarificação, expansão ou emergência. Tal redistribuiu o discurso e deixou espaço para mudanças: o saber estava no fazer, resistente e incompressível. Em vez de concluir o encontro com uma alocução final, Van Imschoot demorou-se na densidade nas formas de conversação, pegou numa sugestão de Lisa Nelson e convidou todos os participantes a fecharem os olhos e a retirarem-se tacteando.

As perguntas em itálico são inteiramente baseadas em intervenções dos participantes no encontro Formas de Trabalho Coreográfico. Gostaria de agradecer a Pirkko Husemann, André Lepecki e Myriam Van Imschoot pelas suas sugestões e comentários a este ensaio. Este ensaio tem origem no encontro Formas de Trabalho Coreográfico, comissariado e apresentado pelo teórico da performance André Lepecki e pela dramaturgista Myriam Van Imschoot, que ocorreu a 21 e 22 de Abril de 2006 no contexto do Congresso da Dança, na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim. Para uma análise crítica recente da “sociedade do conhecimento” e do seu vocabulário em relação ao humanismo e à educação, ver Liessmann 2006. [1]

BIBLIOGRAFIA Boomkens, René (2006): De nieuwe wanorde. Globalisering en het einde van de maakbare samenleving, Amsterdam: Van Gennep [The New Disorder. Globalisation and the End of the Manageable Society.] De Certeau, Michel (1997): The Capture of Speech and Other Political Writings, Luce Giard (ed.), Minneapolis/London: University of Minnesota Press Deleuze, Gilles (1990): Expressionism in Philosophy: Spinoza, New York: Zone Books Foucault, Michel (1984): What is Enlightenment?. In The Foucault Reader, P. Rabinow (ed.), New York: Pantheon Books, p. 32-50 Gallie, W.B. (1956): Essentially Contested Concepts, Proceedings of the Aristotelian Society 56, p. 167-198 Lepecki, André (2001): Dance without Distance, ballettanz 2, p. 29-31 Liessmann, Konrad Paul (2006): Theorie der Unbildung. Die Irrtümer der Wissensgesellschaft, Wien: Paul Zsolnay Verlag. Sloterdijk, Peter (2006): Im Weltinnenraum des Kapitals. Für eine philosophische Theorie der Globalisierung, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag. Schreistück de Thomas Lehmen © Thomas Lehmen

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ARTE DA PERFORMANCE

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CARTOGRAFAR A ARTE DA PERFORMANCE, DO FUTURISMO AO PRESENTE, ROSELEE GOLDBERG texto Pedro Manuel Finalmente. Quando, na edição anterior da Obscena, a propósito do livro Raúl Brandão: do texto à cena, de Rita Martins, referi que o contexto editorial português das artes do espectáculo tem um défice de publicação de obras-base, este era um dos textos em que pensava. Publicado pela primeira vez em 1979, em Nova Iorque, é um clássico dos estudos de performance (re)conhecido por artistas, académicos e críticos, referenciado em estudos e ensaios, tendo-se tornado uma referência bibliográfica básica e um guidebook ao qual se regressa de quando em vez. A consulta diagonal da bibliografia e do índice remissivo são por si só um princípio de estudo. A presente edição vem juntar-se a um corpo de traduções sobre artes performativas que têm vindo a aparecer, dispersas por várias editoras e de impacto discreto, como Falem-me de amor, sobre Pina Baush (Fenda, 2006) ou O futuro do drama, de Jean-Pierre Sarrazac (Campo das Letras, 2002). Desta vez, trata-se da última revisão da autora, revisto a partir da edição brasileira. Caminhos enviesados que não impedem que a edição portuguesa de A arte da performance seja motivo de celebração e merecedora da leitura mais atenta mas, ainda assim, fica a nota de desalento. Porque as traduções não servem para tornar a leitura mais confortável. Trata-se de criar dinamismo editorial, crítico e académico, questionando e legitimando a prática artística, influenciando-a. O que torna esta obra um texto de referência é a sua abordagem histórica, em dois sentidos. Por um lado, alinha a dispersão de apresentações, espectáculos, actos públicos, numa sequência cronológica desde o movimento futurista à actualidade (2000). Por outro lado, cartografa os acontecimentos, artistas e relações que determinaram a progressiva definição da performance como género artístico autónomo. E este é (será) o cerne do problema de uma história da performance. A performance é um objecto de estudo volátil, que tende a escapar à consolidação em objectos artísticos e conclusões estéticas. RoseLee Goldberg assume e reconhece o risco no prefácio, limitando o período histórico ao sec. XX, e fundando o ponto de vista da sua análise na importância de reconhecer estes acontecimentos como actos transgressores, testes, rupturas: “Devido à sua postura radical, a performance tornou-se um catalisador na história da arte do século XX; cada vez que determinada escola (...) parecia ter chegado a um im-

passe, os artistas recorriam à performance para demolir categorias e apontar para novas direcções. (...) uma vanguarda da vanguarda“. Assim, substitui a exigência de definição do objecto de estudo pela narração dos acontecimentos, dos espectáculos e dos contextos em que surgiram as primeiras manifestações modernas (ou talvez já pós-modernas) de performance, antes de se chamar performance. O nome, e o seu significado imediato, são assumidos desde o início procurando-se mais a legitimação de uma linhagem histórica do que a definição. Transfere-se o critério de análise do conceito para o exemplo. Mas note-se que, tendo a performance por objecto de estudo, a selecção dos primeiros exemplos segue precisamente um critério negativo: os acontecimentos inclassificáveis. A indefinição torna-se razão maior para iniciar a definição, a construção de uma história da performance do século XX, iniciada precisamente onde os actes gratuits foram mais intempestivos, na vanguarda europeia dos anos 20. Assim a digressão cronológica e temática começa onde o século XIX parece acabar, organizando-se em dois tempos e dois mapas: as vanguardas – Futurismo, Construtivismo, Dada, Surrealismo e Bauhaus – na Europa, considerando a ruptura com os critérios de representação, narratividade, autoria, género; e a performance – no ideário que nos acompanha hoje – nos Estados Unidos, considerando a importância da arte conceptual e das novas tecnologias e, reconhecendo na influência que a performance tem para a revitalização das arts vivants e das artes plásticas, a própria legitimação da performance como género artístico autónomo. Mas a autonomia de um género de ruptura significaria a cristalização do seu movimento. Assim, através do exemplo, do enquadramento cronológico, do mapeamento das relações de influência, o texto evita essa perda, mantendo a performance na margem dos géneros e das definições, em permanentes movimentos excêntricos, ramificando para a música, a dança, o teatro: “Da vida que está para além das suas páginas, só conseguirá dar uma vaga ideia“. Apesar do grafismo pop que tenta sobrepôr uma dinâmica à dinâmica do texto, a história de RoseLee Golberg mantém a vivacidade de uma obra de divulgação, o rigor das referências e reafirma-se como um guia incontornável nos estudos das artes do espectáculo, desta vez em edição portuguesa.

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PERSPECTIVA

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FAZ FALTA UMA POLÍTICA DE CONTINUIDADE Portugal tem ou não uma política para a cultura? E de que modo a entrada na União Europeia, em 1986, contribuiu para a evolução da realidade cultural portuguesa? Juntámos à mesma mesa seis nomes cujo percurso passa pela acção e reflexão sobre estas questões, passando em revista temas como a formação de públicos, o duelo entre infra-estruturas e conteúdos, as políticas de continuidade e a relação entre Estado, mecenas e sociedade civil. Aceitaram o desafio: André Dourado, consultor e ex-assessor cultural de Durão Barroso durante o seu governo; Catarina Vaz Pinto, Consultora na Quaternaire Portugal, S.A. na área do desenvolvimento cultural e ex-Secretária de Estado da Cultura do governo de António Guterres; Cristina Peres, jornalista cultural e crítica, colaboradora do jornal Expresso; Jorge Salavisa, programador do S. Luiz – Teatro Municipal e programador de teatro da Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura; Maria José Stock, especialista em Ciência Política, ex-presidente do Instituto Camões e ex-vogal do Centro Cultural de Belém, aquando da sua inauguração; Miguel Abreu, encenador e programador cultural, responsável pela programação de teatro da Faro 2005 – Capital Nacional da Cultura. Entrevista Tiago Bartolomeu Costa Fotografias Martim Ramos Com a colaboração do Ar.Co e da Galeria Zé dos Bois 63


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PÚBLICOS

Consegue desenhar-se um quadro comportamental dos públicos para a cultura a partir de eventos que tiveram, digamos, chancela europeia (Europália 91, Lisboa 94, Porto 2001, etc.) ?

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MA: O primeiro impacto que eu senti no que respeita as políticas culturais é com a 17ª Exposição, Exposição de Arte Ciência e Cultura em 1983, onde, e pela primeira vez, eu sinto que Lisboa se reestrutura, nomeadamente os museus, o de Arte Antiga, os Jerónimos, Torre de Belém, etc. Há uma certa mudança de atitude ao nível de comportamento individual perante o exterior que pode implicar mudanças com capital em vista, face à atitude museológica e retrógrada que vinha dos períodos do PREC. Mas aquilo que a Europa traz em termos da avalanche de públicos é uma mudança de mentalidades que tem que ver com o cavaquismo e com a capacidade de consumo. Factores como toda a gente ter carro, a abertura dos hipermercados ou os bares poderem ficar abertos ate às quatro ou cinco da manhã, produzem mudanças económicas com grande influência nos comportamentos culturais. É nessa altura que começa a expansão do entretenimento, o que faz disparar os índices de procura dos espectáculos. E é também nessa altura que a cultura em Portugal acaba por comer o entretenimento, ou o contrário, nunca se assumindo, e de forma descomplexada o que é cultura e o que é entretenimento. MJS: Pode, inclusive, fazer-se um paralelo com a generalidade de produtos, pensando que as pessoas começam a consumir sem critério. CP: Até porque depois começaram a chamar-se produtos culturais. Acho sobretudo que há acontecimentos provocados por dinheiros europeus, que criaram um público, não sei se formado, mas com gosto. Se a partir

da Europália 91 que Portugal se começa a organizar internamente para mostra externa, o seu efeito aqui é diferido. Para mim isso acontece a partir de 1994, sendo certo que já havia um trabalho iniciado pelo Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), pela abertura do Centro Cultural de Belém (CCB), em 1992, e pelas programações regulares da Culturgest. JS: Eu acho que há muito público para muitas coisas, mas sempre houve. Encontrei-o sempre quando circulei, pelo país, com o Ballet Gulbenkian e a Companhia Nacional de Bailado. O que havia antes era uma curiosidade e o que há agora, penso, são pessoas muito mais exigentes. As pessoas hoje têm um gosto e opções muito mais definidas, mas não acredito que antes houvesse um interesse mais ingénuo. Houve um trabalho anterior, é verdade, tanto ao nível da oferta como ao nível da performance, e essa variedade deu origem a um público que se foi diluindo e fazendo as suas opções. AD: Ao contrário do Jorge a nossa memória é de uma Lisboa dos anos 80, princípio dos anos 90, onde conseguimos identificar um movimento que gerou públicos e espectáculos. No Porto aconteceu a mesma coisa. Mas há um hiato que apanha provavelmente o início dos anos 70 até ao fim dos anos 80 em que há públicos que se perdem. Eu sempre ouvi dizer que havia espectáculos de ópera e de canto lírico que estavam cheios, e que nomes grandes iam ao porto e a Lisboa e isso perdeu-se completamente. Devo dizer que, no Porto, Serralves foi importantíssimo. Eu acho que o que acontece na Lisboa 94 tem de facto raízes


na Europália. Não é à toa que uma parte das equipas da Europália se transfere para as equipas da Lisboa 94. O CCB vai apanhar grande parte dessas pessoas. MJS: Sim, basta ver a grande exposição que abriu o CCB, O Triunfo do Barroco, e toda a ligação que depois se fez com a programação de teatro e dança, por exemplo. Mas agora o público dirige-se a áreas muito mais particulares, mais concretas. CVP: O que acontece hoje é que há, de facto, uma oferta muito mais diversificada. E há muito mais formas de ocupação de tempo livre. A televisão, a Internet, os dvd’s tem um impacto completamente diferente e tudo isso são factores que contribuem para que a cultura, digamos erudita, possa não ter tanto público como tinha noutras épocas. Mas eu tenho a intuição de que o público aumentou muitíssimo. JS: Hoje em dia há um público muito mais conhecedor, muito mais crítico. CP: Não concordo nada, acho precisamente o contrário. Uma das coisas que mais interrogações me pôs foi ver imensa gente em ovações em pé a coisas que são muitas vezes de qualidade muito inferior ou outras que nós já vimos 10 ou 15 anos antes. Há aqui um fenómeno de geração, de pessoas. Há alguns festivais, acontecimentos, mostras que têm esse tipo de programação e eu fico um bocado perplexa. Mesmo de coisas de qualidade muitíssimo relativa. Há uma renovação de públicos, há uma geração de públicos, eu estou a falar de 20 anos.

MA: Sim, quando eu penso nos públicos a que o Jorge se refere, teremos provavelmente que comparar o que são públicos da cultura e o que são os públicos do entretenimento. E também acho que é preciso distinguir o que aconteceu em Lisboa, o que aconteceu no Porto e no resto do país, porque são três realidades completamente diferentes. É preciso ainda pôr a tónica entre o que é a democratização porque realmente houve um salto em termos da difusão – nomeadamente com todos os equipamentos que foram construídos – mas que levanta um outro problema e que não está de todo resolvido: como é que as população são, se são, chamadas a participar. Porque, de facto, antes tínhamos o PREC, o que fazia com que os índices de procura de espectáculos tenham caído abruptamente. De 82, quando comecei, até quase ao fim da década, eu ia para casa ciclicamente porque não havia um único espectador para ir ver as peças. JS: Mas quando eu chego a Portugal, em 1976, as salas estavam cheias… MA: Porque apanhas uma fase em que as pessoas iam ao teatro essencialmente por razões políticas. E onde os teatros eram locais de encontro de pessoas com um certo estilo de vida. A revista virou à direita e o teatro independente à esquerda. Estava tudo muito bem dividido. Nos anos 80 isto leva uma volta, os públicos desaparecem das salas e, só mais tarde, com este acesso à normalidade, também da diversidade da oferta porque começa a haver outro tipo de espectáculos, é que começa a subir. Os fundos europeus foram importantíssimos para essa democratização.

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CONTINUIDADE A própria criação de um ministério para a cultura é muito recente, data de 1995. Que ideia é que traz e que mudanças provocou?

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MJS: Era preciso fazer um balanço, de fundo, sobre o impacto e alcance reais do processo de integração no ponto de vista da cultura. Ou seja, o que é que se ganhou, perdeu, pode vir a ganhar e a perder, e o que eventualmente permanecerá. Sobretudo perceber se estas alterações se devem a movimentos de oferta e de procura que podem ser depois um paralelo ou extravasar da área económica para a área cultural, ou têm a ver com uma mudança de paradigma que está nas bases de uma política cultural europeia. Essa é que é no fundo a grande questão. O que é que isso depois impacta não só nas culturas nacionais e sub-culturas no quadro de cada uma das nações. Com a actual realidade, a 27, deparamo-nos com uma Europa que não tem nada a ver com a Europa do tratado de Roma nem sequer já de Maastricht. E portanto pensar se faz sentido a bondade de uma politica cultural europeia, que pressupõe, a longo prazo, finalidades, a curto e médio prazo objectivos bem estruturados e pressupõe ainda meios canalizados para o efeito. CVP: Acho que deu um outro estatuto à cultura, e disso não tenho as menores dúvidas. Mas só um estatuto? CVP: Simbólico, mas naquela altura também político, porque houve um acréscimo enorme de orçamento comparativamente aos anos anteriores. AD: E pôs a cultura no centro da discussão e da agenda política.

CP: Brevemente. MA: Mas isso foi por convicção ou por empurrão da União Europeia? CVP: Por convicção. O facto de se ter decidido não fazer a barragem de Foz Côa, preservando-se as gravuras, foi um acto de convicção que não foi só Ministro da Cultura [Manuel Maria Carrilho]. Havia um enquadramento favorável como provavelmente nunca tinha havido em Portugal. Depois é a questão do tempo e das vicissitudes da política. MJS: Mas o problema é sempre esse: como é que se desenvolve? Há decisões políticas, há a forma jurídica, cria-se uma nova instituição com determinadas funções, mas depois não se afectam meios e recursos. Não há um desenvolvimento minimamente lógico. Se há interrupções permanentes, se cada Ministro que chega altera o percurso, então não serviu de nada. Faz-se um mega evento, chama-se a atenção, mete-se na agenda política e depois não tem continuidade. MA: Existiu, deixou de existir, o país não ganhou muito com isso. CVP: Mas a verdade é que as coisas vão-se desenvolvendo e o público está mais atento. JS: A política cultural não pode ter estas interrupções constantemente.


MJS: Mas tem porque as clientelas políticas são diferentes para cada pessoal político. CVP: Não sei se as coisas se estão assim tão ligadas. Acho que há uma falta de preparação de quadros políticos para intervir na área da cultura. MA: No que respeita às autarquias acho que já existem quadros muitíssimo bem preparados, mas o quadro político não leva a sério esta coisa da cultura. É uma coisa que eles acham que é útil na altura das eleições. CVP: Os países da Europa dos 12 começaram a ter as suas políticas culturais a seguir à guerra, nos anos 50/60. Temos os países de leste com uma visão de cultura muito diferente, mas com um nível de educação muito superior ao nosso. E depois estamos nós, e a Espanha, e apesar de tudo nós com um avanço superior em termos de educação em relação a Espanha. É claro que eles têm um nível de evolução cultural superior ao nosso, embora hoje, nas relações com a cultura contemporânea, seja uma visão conservadora. Pelo menos naquilo que diz respeito à criação artística. CP: Mas é criteriosa. AD: E é eficaz em termos internacionais. CVP: Sim, claro. Eu acho que o problema das políticas culturais em Portugal tem a ver com o défice de educação que o país tem. Acordou para aquilo que pode ser uma ideia de política cultural nos anos 80 e a partir daí foi-se pouco a pouco estruturando. De facto estamos muito aquém daquilo que seria desejável e que poderia ser uma ideia completamente coerente de uma intervenção no plano cultural. Acho que um dos grandes problemas é também a questão da descontinuidade. CP: Mas esse problema vê-se até dentro do mesmo partido. A sequência do ministro Carrilho e do ministro Sasportes é exemplo disso. AD: Ao contrário da Espanha, em Portugal nunca houve uma tentativa de consensualmente criar políticas culturais contínuas para lá dos partidos. Aqui ao lado, seja o Partido Socialista ou o PP – e a coisa vai mais atrás, começando nos governos da democracia espanhola – há a noção de que a Espanha não afirma a economia sem afirmar a cultura. No parlamento conseguiram criar consensos sobre uma política cultural espanhola. Estabeleceram políticas voltadas para a defesa da língua em todo o mundo, por exemplo. Em Portugal, pelo contrário, a área cultural manteve-se, por um lado, como

uma área muito politizada, com políticas de esquerda ou de direita quando, provavelmente, num país com as nossas necessidades e a nossa dimensão, as questões fundamentais – eu recuso de todo que existam soluções de esquerda ou direita – passam no essencial por questões de cultura. Nós não o conseguimos, e eu não sei se será presença ainda muito forte da revolução e do modo como foi feita. Não sei até que ponto numa próxima geração todas estas coisas se irão esboroar. Os problemas práticos da cultura em Portugal não têm soluções políticas e de marca ideológica. MJS: Mas você não pode retirar a carga ideológica, strictu sensu. É muito difícil separar a cultura das esferas económica e política porque qualquer decisão – e estes são os três vértices da integração europeia só que a cultura, coitada, está sempre numa posição muito ambígua, sem se saber muito bem o que lá esta a fazer – terá implicações na outra. Eu acho muito difícil autonomizar-se quando diz que há questões primordiais – e eu estou de acordo consigo – em termos da nossa possível divulgação cultural, a língua, etc.. Quando se fez o CCB – que eu apanhei já com a Teresa Patrício Gouveia -, a situação era de uma ambiguidade total, não se sabia para que é que aquilo ia servir, não havia projectos nem planos, as coisas estavam todas a ser feitas sem saber muito bem para que é que iam servir. CP: Isto aconteceu com os equipamentos todos. Quando se faz aquela brutalidade da Expo 98 ninguém sabia o que é que ia acontecer. MJS: Mas depois houve dinheiro para a Expo e para o CCB não e, portanto, toda a programação inicial reflectiu isso. Nada foi ponderado no que concerne aos públicos. MA: A sociedade não está preparada para reagir de uma forma muito afirmativa a isto tudo e, por isso, a cultura é um território de banalização. MJS: A Catarina disse-o já, é um problema de formação de base. AD: Nós tivemos em 6 anos 5 ministros da cultura, é bom que nos lembremos.

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INFRA-ESTRUTURAS VERSUS CONTEÚDOS È sempre a ideia da infra-estruturação versus o conteúdo. Em que medida não foram essas decisões apressadas pela existência de fundos comunitários? 68

CVP: No que respeita à infra-estruturação, a intervenção é superior aquilo que as pessoas têm consciência. Ela começa no princípio dos anos 80, sobretudo associada à componente de turismo e à recuperação de algum património, bem como bibliotecas. Não acho que tenha havido uma grande política cultural estruturada, mas acho que houve algumas políticas sectoriais mais estruturadas e que é o caso das bibliotecas. Isso é um projecto lançado em 1988 quando a Teresa Patrício Gouveia era Secretária de Estado e foi o único projecto que continuou normalmente até hoje. Teve altos e baixos e mas dotou o país todo de uma rede de bibliotecas de leitura pública. Essas bibliotecas, que vieram substituir as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, são uma verdadeira revolução no país. AD: Há um aspecto importante, ainda relativo às bibliotecas. Esse movimento exigia que as autarquias cumprissem uma data de requisitos, o que fez com que se constituíssem, pela primeira vez, verdadeiras equipas de agentes culturais. Porque já não podia ser uma pessoa qualquer, o presidente da câmara, tinham que contratar pessoas com requisitos académicos e científicos. E em muitas autarquias essas pessoas foram o primeiro núcleo da vereação da cultura.

MJS: Isso são os impactos super positivos deste tipo de acções. Dá-me ideia que, se por um lado, tem nexo falar de uma política cultural sem falar de uma politica cultural global que não se canalize apenas para uma parte sectorial, neste caso concreto das bibliotecas, eu pergunto- me, e ao nível mais micro, se terá sentido falarse de uma política para as bibliotecas sem se falar, concretamente, de uma política para o livro? Porque não é só criar bibliotecas. O que me parece, e eu tenho uma visão muito parcelar porque não tive uma função como a Catarina teve, é que houve acções avulsas, algumas com princípio meio e fim, com objectivos determinados que tiveram impactos positivos, e uma série de circunstâncias concretas, no fundo de influências politicas e económicas que tiveram impacto na área cultural. Mas uma política cultural global, até à data, eu creio que ainda não vi uma. Nem sequer enunciados concretos reais. CVP: Os fundos comunitários sempre puderam ser usados em áreas concretas. Há uma grande liberdade de utilização, a questão é saber usá-los e para que fins. O Fórum Dança foi feito, em 1991, com o Fundo Social Europeu e na altura foi uma associação absolutamente inovadora. Outro projecto é a Artemrede, também financidado por fundos comunitários, no caso o FEDER, para o desenvolvimento regional, que procura uma forma


tímida, dar uma ajuda. Mas não consegue resolver tudo, é uma tentativa de resolver as fragilidades destes teatros que abriram há cinco ou seis anos atrás, mas que não têm, em termos de equipamentos e recursos humanos, percepção daquela que é a função de um teatro municipal. E a Artemrede actua aí, é quase assistência técnica, na área da programação, da área da formação. Este ano teve um programa de formação de 400 mil euros. É imenso. CP: Isso surge reactivamente às necessidadades? CVP: Surge quando os teatros abrem. Ou seja, quando os teatros abriram não foram pensados esses problemas. CVP: Exactamente. JS: Porque foi interrompido. O Manuel Maria Carrilho começou isto quando estava no governo e quando ele saiu parou tudo. CVP: Não parou tudo, o processo de construção continuou. AD: A rede de cine-teatros continuou até porque estava suportada pela Tabaqueira que não a deixou parar. CVP: Um caso recente que me aconteceu: um projecto supra-municipal, que envolve vários concelhos em torno do Castelo de Almourol, decidiu que em Vila Nova da Barquinha iam construir um museu. Já tem o espaço, só não têm os conteúdos. E contrataram-nos, à Quartenaire, para providenciar os conteúdos para esse museu. Ou seja, é tudo ao contrário. MA: Ou comigo, que no primeiro ano em que fui para o Maria Matos organizei um curso de gestão de teatros no qual participaram várias pessoas, algumas das vereações, por exemplo, de Guimarães e Vila Real que já tinham teatros e não sabiam o que fazer com eles. Ou seja, há pessoas que se mexem para lá do que se imagina. Agora, a questão é dos dinheiros públicos, que não são decididos por esta pessoas, mas pelos presidentes de câmara que tem uma visão de fachada que decidem fazer um equipamento sem saberem se deve ter 200 lugares ou não.

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O ESTADO, OS MECENAS E A SOCIEDADE CIVIL A quem servem os fundos comunitários?

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AD: Nós não temos estatísticas fiáveis no que respeita à entrada dos fundos comunitários. Começamos a poder medir mais ou menos a canalização de verbas comunitárias para a cultura a meio dos anos 90, depois começam os programas especiais, como a Cultura 2000, mas se os olharmos não percebemos bem o que são. E com os quadros Comunitários de Apoio tudo isto ganhou enorme complexidade. Na verdade o grosso dos fundos comunitários que vieram para Portugal para a área da cultura foi aplicado em áreas como a recuperação do património. Basta ver as listas de atribuição e vemos IPPAR várias vezes, páginas e páginas, depois o Instituto Português de Museus, depois, como é evidente, os investimentos nos cine-teatros que embora sendo menor tem expressão. O estado de alguma maneira, em Portugal, captou completamente – raptou – os fundos comunitários, sendo muitos desses fundos e muitos desses programas de apoio utilizados noutros países para apoiar quem não tinha dinheiro, para a sociedade civil, para os privados, porque era suposto que o estado assumisse as suas responsabilidades. A partir de certa altura, e quando começamos a ver os números do ano 2000, de ano para ano tenta-se aumentar a percentagem de apoio directamente ao privado. Mas há perversões profundas que se vêem na atribuição desses apoios comunitários. Eu acho que é uma perversão profunda que a FCG ou a Fundação Oriente vão buscar dinheiro ao POC [Pro-

grama Operacional de Cultura], e não é pouco. A FCG teve quase 2 milhões de euros e a Fundação Oriente 5 milhões de euros para o museu. Agora, há fundações e fundações. Como é evidente a Fundação de Serralves faz uma utilização muito inteligente do acesso aos fundos comunitários. No Relatório e Contas do ano passado a Fundação de Serralves conseguia ir a quatro programas comunitários diferentes: ao POC, ao Ambiente para o jardim, ia a todos. E isso é, de alguma maneira, até um exemplo para os privados sobre a forma como se relacionarem com os fundos comunitários. Agora o POC tem servido como uma espécie de cassete personel do ministro. Tudo o que se quer fazer vai para o POC, porque é dinheirinho que vem de qualquer maneira. Não é a toa que um projecto importante para este governo como é o Museu da do Mar e da Língua já tem dinheiro reservado no POC. O grande problema é medirmos estes dados, porque não sabemos exactamente como é que o dinheiro foi investido. Todos nós sabemos o que o país era e o que o país é. Conseguimos ver estruturas que abrem, conseguimos ver mais públicos, vemos monumentos restaurados, mas temos que desconfiar porque não há estatísticas fiáveis na cultura. CVP: Mas esse dinheiro vai conseguir medir-se, vai conseguir medir-se o investimento feito. A Capital Europeia da Cultura, Coimbra 2003, a Casa da Música… Agora, o


sentido das aplicações do FEDER vai para o apoio àquilo que eles chamam acções imateriais. E isso será uma oportunidade de construção de outros projectos.

MJS: As políticas culturais não integraram as forças vindas e o tecido sociológico de um território. E isso é condição essencial para funcionarem.

AD: A questão é saber se os projectos vão ter ou não continuidade. Muitos dos projectos – Experimenta Design, ModaLisboa, etc –, foram pensados para, directa ou indirectamente, receberem apoio do estado, seja ele central ou local. E muitos destes projectos não estavam preparados para sobreviver sem fundos comunitários. E esta é, para mim, uma característica muito importante e debilitante de uma parte considerável das atribuições.

JS: Estão dependentes daquele que é mais esperto, do que se sabe mexer melhor… vivem aos soluços.

CVP: Há projectos culturais que não se rentabilizam nem nunca se irão rentabilizar. O problema é que os cortes em algumas dessas instituições foram tão grandes que a instabilidade aconteceu. Há alguns que podem ter muito mais do que aquilo que têm. Há produção cultural que não sai de Lisboa porque, se as redes funcionassem como deve ser, isso era uma forma de aliviar esta dependência demasiado grande. Eu até acho que os artistas não a querem ter, mas o sistema continua a não estar equilibrado. Para mim o grande desafio dos próximos tempos será o de pôr todos estes pilares do sistema a funcionar em condições mínimas de eficiência.

CP: Há aqui uma questão prévia à política. Os portugueses não estão convencidos, nem consideram, que a cultura seja uma necessidade. E isto inclui os políticos portugueses com esse défice também. A subsídio-dependência existe porque há a cultura da dependência. Não estou com isto a dizer que de um dia para o outro se consiga diversificar. Mas sabemos que os mecenas neste país dão dinheiro para aquilo que é prestigiante. MJS: Porque vêem o retorno. E é ai que esta o problema. Mas como é que os privados podem concorrer com o Estado se o Estado ocupa esses apoios? MA: Não podem. O estado devia entender que a sua missão de serviço público passa por estimular essas parecerias. Para mim uma instituição toma a iniciativa percebendo os défices da sua comunidade, desafia a sociedade e depois é capaz de se adaptar à mudança que a

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sociedade lhe dá. O que o Estado devia fazer era: olhem, nós temos aqui uns fundos comunitários que vocês deviam aproveitar, e o Estado ajuda-vos a aproveitar. É isso que fazem os alemães. E isto replica-se, porque ou o Estado não interfere, ou se interfere, mantêm o apoio. Não é dar num ano e depois retirar, porque é isso que desequilibra os défices. AD: O Estado olha para o mecenato das empresas como olhou para os fundos comunitários. Os fundos comunitários ajudaram o Estado a sustentar o cenário cultural, e servem para pagar ordenados, não haja cá dúvidas, dos institutos públicos, porque ajuda a fazer funcionários. MJS: Exactamente. CVP: Isso é mentira. AD: De uma forma ou de outra. Quando se fazem exposições pagas pelo FEDER, quando é o próprio Estado a criar os quadros de referência, ou seja, a dizer quanto é que aquilo custa, o Estado diz que aquilo custa o que muito bem entender. 72

CVP: Pode ajudar a sustentar a actividade, mas estar a pagar o funcionamento não é verdade. AD: O mecenato serve cá, em grande medida, para isso. CVP: Quando estive no Ministério e se pensou o Quadro Comunitário [2000-2007] em termos de distribuição de verbas, onde o grosso foi para a recuperação do património, monumentos nacionais e museus, aquilo que foi afectado em materiais, o próprio programa de difusão ou a Festa da Música eram pagos pelo POC, numa percentagem menos significativa. Nessa altura o IPPAR pagava o seu funcionamento só com as entradas nos monumentos, assim como os museus. Agora, é verdade que para sustentar a actividade, aquilo que são as despesas fixas, se o paga pelo Orçamento Geral do Estado. O que não há é orçamento para promoção, divulgação, exposições temporárias…E uma coisa é certa, o orçamento para a cultura continua a ser sub-financiado. AD: O Estado não dá só prestígio. Porque todas as empresas grande têm relações com o Estado, é uma forma simpática de poder apresentar, quando há um jogo entre os dois lados, que na discussão de outros interesses, esses sejam discutidos também. O grande problema é que cá que se apostou sempre no grande mecenato. E lá

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fora o que é importante é o mecenato de proximidade. CP: E isso permite a diversificação. AD: Os valores que a Tabaqueira deu para os cine-teatros, ou o Millennium dá, são valores grandes à escala europeia. Nós nunca desenvolvemos um trabalho de mecenato para sustentação de projectos a nível da criação, por exemplo. MJS: O Estado olha para a cultura como um custo e não como um investimento com réplicas extraordinárias em áreas como o turismo, de emprego, de mão-de-obra. A cultura é o hiper-sector da transversalidade. E enquanto não for encarado como isso, será sempre o parente pobre. Em Portugal, o impacto da cultura no PIB, é de 1.4%, o que não é nada comparado com os 9% da Suécia ou em Inglaterra onde a cultura cresce a 6% por ano num país que cresce a 20%. CVP: Naturalmente que o que faz sentido é que as politicas culturais sejam transversais, mas daí a, como disse o Gomes de Pinho [Presidente do Conselho de Administração da Fundação de Serralves, em entrevista ao jornal Público], acabar com o Ministério da cultura, não concordo. Porque é no impacto que a cultura tem noutras áreas que se está a discutir a nível europeu. Muito embora esteja previsto no famoso nº 2 do artigo 151 que a comissão terá em conta os aspectos culturais em todas as suas actividades, isso ainda não acontece.


E, portanto, a transversalidade é um modelo teórico. É esse o desafio de futuro. MA: Para mim o grande problema de Portugal é este novelo de várias velocidades. CP: Os avanços que tivemos devem-se a pessoas. MA: A questão está em saber se Portugal está a saber usar os fundos correctamente para quando acabarem os apoios não voltarmos atrás. AD: Nós temos um nível de vida que não pagamos e devemo-lo aos fundos comunitários. Quando estes acabarem poderemos continuar a permitir políticas culturais ou não num país que tem uma dependência histórica do Estado em todas as áreas. Os últimos dados dão conta de 80 mil pessoas a viver da área cultural. Isso não é nada e a subsídio-dependência é, por isso mesmo, uma treta, porque a há, e em maior escala, noutras áreas. MJS: Mas há a mentalidade da subsidio-dependência. AD: Há coisas que se alteraram radicalmente. Nunca tivemos tanta gente a ler, temos um sector privado na área da cultura como nunca tivemos. Eu acredito que há futuro, mesmo que as apostas sejam agora a educação e a inovação tecnológica. Já não se fala de cultura. Nem uma palavra nos discursos políticos. Mas o grande desafio vai ser a internacionalização e que isto nos sirva para aprender e evoluir muito mais. Não seria possível ter-se para a cultura um mesmo pacto europeu como houve para outras áreas? MJS: Não seria possível por numa questão de soberania. É a última parte de um Estado a ser alienada. CP: Unidos na diversidade. AD: Mas, na verdade, isso já existe. Os fundos comunitários já consubstanciam uma política… MJS: Bases de uma política. Não há uma política concertada… AD: Não é concertada, mas a partir do momento em que obriga a contratos, isso tem influência na cultura europeia. MJS: O que se pode fazer é reforçar a cooperação cultural a nível europeu, mantendo a diversidade cultural de cada Estado-nação.

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A CULTURA NÃO SE MOSTRA, PROVA-SE! Durante o fim de semana de 7 e 8 de Dezembro o Teatro Nacional S. João acolheu a iniciativa Teatro Europa, integrada no mini-festival Portogofone. Dois dias para discutir criação artística e políticas culturais entre encenadores, programadores e especialistas vindos de vários pontos da Europa. Breve balanço de um encontro que quis dar espaço ao debate e à reflexão sobre a responsabilidade do teatro. textos Tiago Bartolomeu Costa Conferência de Imprensa, de Álvaro garcia de Zuñiga. foto: João Tuna

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A DISTÂNCIA ENTRE TEORIA E PRÁTICA

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Ex-Ministro da Cultura defende fim das deslocações semânticas

Ella, pelo Teatro da Rainha foto: João Tuna

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Manuel Maria Carrilho, primeiro ministro da cultura entre 1995 e 2000, em dois governos do Partido Socialista, anda há vários anos a tentar colocar a cultura “no coração da política”. O título do seu livro (Editorial Notícias, 2001) serviu-lhe de mote para a intervenção no painel Criação Artística e Criação Europeia. Mas, desta feita, e porque se falava de Europa, Carrilho quis ser claro: “a construção europeia dispensou a criação artística. Acolheu-a na sua dimensão declamatória, mas nunca com as suas políticas”. Já em 1999, no final do primeiro mandato enquanto ministro – que abandonaria um ano depois – escrevia no Diário de Notícias: “sei que muita gente não gosta, mas é, para mim, uma verdade elementar e incontroversa: sempre que se fala de cultura, é tão fácil colocá-la em primeiro lugar em termos de prestígio ou de ornamento, como em último em termos de conhecimento ou de financiamento”. Apesar de Carrilho não esquecer que houve um aumento de verbas do Programa Cultura – que num primeiro quadro de apoio, correspondente a 2000-2007, foi de 167 milhões de euros, e agora, para período equivalente e até 2013, é de 400 milhões –, recorda que, à luz da Estratégia de Lisboa, desenhada durante a última Presidência Portuguesa, em 2000, pouco foi feito para que a cultura tivesse “a dimensão estrutural resultante da tensão entre identidade europeia e identidade política”. Agora, e para uma plateia praticamente convencida, disse que “as políticas valem o que vale o seu orçamento” e, contas feitas, os 0,03% que a Cultura ocupa no global do Orçamento Comunitário, estão, diz, longe de

corresponder à ideia de que o sector é “o terceiro pilar da globalização”. E são também insuficientes para quebrar “a distância” que separa a teoria da prática. “É preciso repensar o papel das políticas culturais num dos seus pontos fundamentais: a democratização de culturas”, porque “só a Europa da cultura pode unificar a Europa política e, se tal não acontecer, a Europa política pode nunca chegar a acontecer”. Em jeito de alerta que é, na verdade, uma constatação, Carrilho sublinhou que “a ausência de espaço e opinião pública europeia” leva à inexistência de “grandes saltos ou transformações”. E, por isso, num contexto onde o mercado domina os discursos, diz que não bastam “deslocações semânticas”, porque essas, invariavelmente, “são deslocações políticas”. Assim, quando se fala em “mercado, gratuitidade, democratização e resultados”, deve levar-se em linha de conta a enfatização corrente das “componentes e perspectivas económicas das actividades culturais e criativas”. Há uma “resistência tendencialmente negativa” que, diz o agora deputado, “insiste numa cultura marginal, ornamental, sub-alterna” e sempre “apresentada na comparação entre actos e orçamentos”. Por isso, e porque o sector é “cada vez mais visto pelo prisma da indústria em vez da arte”, Carrilho disse aquilo que se esperava que dissesse: “o que existe deve-se à acção, consciência e existência de criadores”, porque, e conforme escrito nesse artigo de 1999, “a política cultural, tão tardia entre nós, pactuou sempre com este boçal estado de coisas”.

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REFLECTIR E ALERTAR comentário

Charanga, pela Circolando foto: © Circolando

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“O teatro é um acto responsável”, escreveu o encenador Giorgio Strehler, citado no programa do Teatro Europa, pela mão de Alexandru Darie, encenador romeno e presidente da União dos Teatros da Europa (UTE) há pouco mais de um ano. Foi sob essa égide, mas também porque à sociedade civil foi solicitada, por parte da Comissão Europeia, contribuição para a discussão sobre que relações entre cultura e política, que agentes, na sua maioria estrangeiros, se juntaram no Porto, por iniciativa do Teatro Nacional S. João (TNSJ), membro da UTE desde 2004. As ideias apresentadas não foram novas nem originais e os discursos pautaram por um pessimismo e algum receio por vezes irracional, sobretudo quando proferido por estruturas que, temendo a instrumentalização do Estado são, na sua maioria, organismos tutelados pelo Estado. Mas isso não invalida as reacções, quase todas em jeito de alerta e pedindo reflexão demorada que durante dois dias encenadores, programadores, gestores culturais e demais sociedade civil (e onde a ausência de criadores da cidade do Porto se fez sentir) encetaram. É verdade que este encontro não é uma resposta directa, nem à comunicação de 10 de Março do Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, nem resultado dos debates provocados, ou promovidos, pelo Fórum Cultural, que decorreu em Lisboa no passado mês de Setembro (e que tratámos na edição de Outubro da OBSCENA). Até porque, como se mostrou no vídeo ante-estreado durante o encontro (evento fátuo da responsabilidade do inexistente Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais do Ministério da Cultura, dirigido por Patrícia Salvação Barreto, que há

anos se mantém num cargo sem verdadeiras provas dadas, para lá da repetição de um discurso polido e educadamente distanciado da realidade cultural) o Fórum Cultural mais não serviu do que para legitimar o que a Comissão de Cultura da UE queria que a Sociedade Civil lhe dissesse. O que estes dois dias quiseram, ou tentaram mostrar, para lá da necessária e permanente afirmação da importância das redes (também no que isso representa de perpetuação de um protectorado cultural, com todas as suas vantagens e desvantagens), foi “o processo de afirmação da singularidade” de cada teatro (e por consequência de cada agente cultural), mas também “construir”, de cada lado, “projectos de conhecimento e visibilidade do trabalho artístico que ultrapassem a mera apresentação de um espectáculo, procurando outras modalidades de acesso à actividade das pessoas, autores ou companhias”. Estas duas ideias, referidas por José Luís Ferreira em entrevista publicada no programa do evento, e a propósito dos objectivos do próprio TNSJ, são, de facto, as grandes mais valias de um encontro que, se não foi fundo na dissecação dos problemas (muitas das intervenções pautaram por uma generalidade óbvia e mesmo passadista em alguns casos), não deixou de chamar a atenção para o desfasamento entre, nas palavras de Manuel Maria Carrilho, as “deslocações semânticas” e as “deslocações políticas”. Por isso, ponto, ou não, da situação, este Teatro Europa, porque responsável, como queria Strehler, não deixa de significar um gesto eminentemente político, para lá das palavras, mesmo que estas possam ser estratégicas. Como muitas foram.


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PALAVRA DE TEATRO

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Não foram só as políticas culturais na sua relação com a criação artística que ocuparam o fim-de-semana de Portogofone. Também o teatro, natural e evidentemente, esteve no centro da discussão com peças co ou produzidas em estreita relação com outros grupos da cidade ou antigos cúmplices pelo Teatro Nacional São João em temporadas recentes. Para lá da estreia de Turismo Infinito, de Ricardo Pais, aqui a servir de peçadiamante do programa, e de Conferência de Imprensa, de Álvaro García de Zúñiga, com uma extraordinária interpretação de William Nadylam apenas prejudicada por um texto prolixo que anula o efeito de vacuidade que quer provar existir nos discursos políticos, quatro reposições (Charanga e Quarto Interior, ambos pela Circolando; Ella, pelo Teatro da Rainha; Todos os que falam, uma peça que se fez a partir de quatro outras, os chamados“dramatículos” de Samuel Beckett, encenada por Nuno Carinhas para a Ensemble e a Assédio) e intervenções públicas convenientemente chamadas Actos de rua, geridas também por Carinhas. Em comum as peças mostram uma particular atenção ao lugar da palavra, lugar central de um teatro que quer ser de intervenção, seja a um nível meramente investigatório, no que à identidade diz respeito, como é o caso de Turismo Infinito, concebido por António M. Feijó a partir dos textos ditos “de viagem” de Fernando Pessoa, ou de denúncia: da superficialidade do vale-tudo de Conferência de Imprensa à marginalização, sobretudo e muito particularmente, aquela praticada pelos pequenos poderes como demonstra Herbert Achternbusch em Ella, texto-mina que Fernando Mora Ramos interpreta assombrosamente e encena com ainda mais discrição. A centralidade da palavra ainda, aqui traduzida por uma gestualidade liberta de códigos poéticos, que a Circolando, persiste em oferecer-nos e que, com Charanga e Quarto Interior, num arco criativo que denota bem da coerência extrema desta projecto raro que vai para lá do teatro físico e da confluência disciplinar. Charanga no espaço público, onde se não chover fazem eles a chuva, esse não houver público fazem eles de ávidos observadores, e Quarto Interior, peça onde a deslocação para um espaço cerrado só amplia ainda mais as possibilidades de imaginação, fecham ciclos, respectivamente o das minas e o da casa, sugerindo que a poética da Circolando vive de uma relação íntima com o conflito entre o lugar imaginado e o lugar real.

Todos os que falam é, também, pelo seu rigoroso

exercício confrontacional entre a delimitação corporal forçada por Beckett, que Nuno Carinhas imagina nos mais diversos elementos cenográficos e espaciais, e a expressividade linguística, que Paulo Eduardo Carvalho explora corajosamente, um trabalho sobre os limites e a força das palavras, ideia que este presente nas várias propostas do TNSJ, que procuraram delimitar que uso para a palavra no teatro: poético (Turismo Infinito), denunciador do vazio (Conferência de Imprensa), resistente (Ella), corporal (Charanga e Quarto Interior), libertador (Todos os que falam).


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POLÍTICAS CULTURAIS EUROPEIAS: PODE O PROTECCIONISMO E A PROMOÇÃO ESTADUAL GERAR MAIOR DIVERSIDADE CULTURAL? texto Adolfo Mesquita Nunes

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Se quisermos ter uma perspectiva mais ou menos global das políticas culturais europeias, nelas incluindo a política comunitária e as várias políticas nacionais, teremos necessariamente que tropeçar em dois aspectos que fascinam qualquer liberal que se preze e que, em minha opinião, caracterizam a forma como a cultura, enquanto sector de governação, tem sido encarada na Europa, sobretudo continental. Por um lado, as políticas nacionais dos vários EstadosMembros tendem, sem grande oposição comunitária, a privilegiar medidas de carácter proteccionista, simultaneamente em nome da promoção e desenvolvimento da cultura local e enquanto mecanismo de defesa face a influências exógenas, temidas porque alegadamente mais poderosas. Por outro, essas políticas convivem com uma confessada intenção comunitária, dispersa por vários dispositivos legais, de promover uma identidade cultural europeia, que realce os aspectos comuns às várias culturas locais e que agregue, no seu conjunto, o referencial de uma identidade comum. Como facilmente se entenderá, sou dos que contestam a necessidade de avançar com políticas de proteccionismo cultural, assim como sou dos que duvidam dos benefícios da consagração estadual de uma qualquer identidade cultural. Na verdade, qualquer um destes aspectos contraria, de forma manifesta e aberta, a orientação liberal do meu pensamento político.

O PROTECCIONISMO CULTURAL No âmbito de uma comunidade de Estados que desde cedo aprendeu a cultivar e a fomentar a liberdade de circulação de pessoas, capitais, bens e serviços, seria de esperar que fossem seriamente proibidas todas as políticas nacionais que, de alguma forma, comprometessem esse objectivo. E se essa é a realidade na esmagadora maioria dos sectores de actividade, quer por força dos normativos comunitários quer por força da fiscalizadora actuação das instituições comunitárias, o certo é que, no âmbito mais restrito da actividade cultural, os diversos Estados Membros vêm prosseguindo políticas de cariz proteccionista perante uma suficientemente complacente vigilância comunitária. Os exemplos dessa tolerância comunitária para com os proteccionismos oriundos dos ordenamentos nacionais são vários, todos ao virar da esquina, alguns deles bem presentes no nosso próprio ordenamento jurídico. Refiro-me, por exemplo, às leis que impõem quotas de música nacional nas rádios ou que estipulam quotas de produção nacional nas salas de cinema e nos canais de televisão. Assim como me refiro, outro exemplo, aos nacionais enquadramentos políticos que promovem uma intervenção cultural do Estado, quer como prestador, quer como financiador quer como, na sua vertente empresarial, mecenas. Estas políticas proteccionistas assentam num critério de


séculos. Mas delas resulta ainda a clara impressão de que os bens e serviços no sector da cultura, atenta a sua vocação criativa, não podem confundir-se com um qualquer bem comercial, a eles não se lhes podendo aplicar os tradicionais e fundadores princípios da liberdade de circulação que, no presente caso, apenas serviriam para abastardar a criação cultural.

restrição da concorrência e da liberdade de circulação muito mal visto pela União Europeia, só tolerado no sector cultural. De facto, elas encerram discriminações em razão da nacionalidade, algo verdadeiramente inadmissível nos restantes sectores económicos. A consagração deste verdadeiro tratamento de excepção foi já várias vezes assumida e enunciada e é, por isso, com relativa facilidade que lhe poderemos reconhecer as motivações e os fundamentos. Veja-se, não indo muito longe, a Convenção Internacional saída da 33.ª Assembleia Geral da UNESCO, já ratificada na Assembleia da República, que de forma a assegurar o direito à cultura veio consagrar e dar forma legal a esta “excepção cultural”, através da qual os bens e serviços culturais ficam de fora das negociações do comércio internacional. Ou veja-se, sem surpresa, o Tratado de Nice que, mais ou coisa menos coisa, contém uma disposição semelhante. Delas resulta a manifesta convicção de que a diversidade cultural apenas se consegue alcançar por recurso a medidas proteccionistas. De facto, é clara a ideia de que urge proteger um contexto cultural, local ou nacional, das influências e referências que chegam do exterior e que, de alguma forma, parecem destinadas a empalidecer o relevo que tal contexto mereceu durante

A PROMOÇÃO INTERESTADUAL DE UMA ESPECÍFICA IDENTIDADE CULTURAL Esta complacência comunitária para com políticas proteccionistas é acompanhada por uma especial atenção que ultimamente vem sendo concedida à cultura por parte das instituições comunitárias, podendo actualmente falar-se de uma política cultural europeia. Os objectivos dessa política, ao contrário do que poderíamos pensar, não vão no sentido de tentar estender o mercado comum à actividade cultural. Na realidade, aquilo que expressamente se busca é o florescimento de uma identidade cultural europeia, forjada através de uma complexa rede de programas de apoio e incentivo que tem como exacto pressuposto a existência de referenciais comuns que merecem ser destacados. A dificuldade de encontrar algo que possa resumir o que deva ser tal identidade não tem impedido a União de emitir documentos que expressamente se referem ao património cultural comum e de o fazer de forma admiravelmente abrangente. O Tratado de Maastricht, por exemplo, foi ao ponto de considerar a língua, a literatura, as artes do espectáculo, as artes plásticas, a arquitectura, o artesanato, o cinema e a radiotelevisão como património cultural comum da Europa. Não são, por isso, de estranhar os recentes documentos produzidos a propósito do Fórum Cultural para a Europa. Veja-se a Comunicação da Comissão Europeia pugnando por uma Agenda Europeia para a Cultura num Mundo Globalizado e que veio chamar a atenção para o papel da cultura na construção europeia e para a necessidade de fixar o conteúdo de uma agenda cultural da União. Para esse efeito, a Comissão exortou os Estados-Membros a desenvolver as suas políticas culturais tendo como referência objectivos comuns, a fazer esforços no sentido de conduzir actividades conjuntas e a explorar as oportunidades oferecidas pelos mecanismos de financiamento. >>

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>> A DEPENDÊNCIA FACE AO ESTADO Os dois traços caracterizadores das políticas culturais europeias que acabei de destacar têm em comum o facto de dependerem da força estadual para alcançarem a sua concretização. Do lado do proteccionismo, atribui-se ao Estado o poder e o dever de, sem restrições legais, limitar ou condicionar o acesso das pessoas ao que eles querem de facto consumir. Ao subsidiar determinada oferta, ou ao estabelecer quotas para a sua difusão, o Estado permite-se, de forma aberta, direccionar as pessoas para determinado tipo de realidades culturais que entende proteger ou preservar, deixando as realidades não seleccionadas à sua sorte e à contingência de terem de concorrer com quem beneficia de fundos públicos. Do lado da promoção de uma identidade cultural europeia, atribui-se à União o poder e o dever de, sem especiais restrições que não sejam as leis proteccionistas nacionais, insistir, através de fortes mecanismos de financiamento, na promoção de determinadas referências, que se crêem comuns. Quer porque usa os seus poderes para exortar os Estados-Membros, quer porque os alicia com ambiciosos programas de financiamento, a União Europeia permite-se rotular e catalogar as referências culturais que, no seu entender, merecem preencher o já de si curioso conceito de identidade cultural europeia como que insinuando que, sem tal pres84 timosa acção, andariam os europeus sem saber que referências tomar. A NEGAÇÃO DA CULTURA COMO NECESSIDADE INDIVIDUAL No reverso, os dois traços caracterizadores das políticas culturais europeias que venho destacando têm em comum uma desvalorização da experiência individual e uma especial predilecção pela colectivização do sentir cultural. De facto, só essa convicção pode explicar que se considere necessário criar e fomentar uma identidade europeia comum ou que se gaste dinheiro com o claro objectivo de fortalecer referências supostamente nacionais e comuns aos cidadãos de um determinado país. Essas políticas esquecem, por isso, que as referências culturais nacionais ou europeias foram sendo espontaneamente criadas e moldadas ao longo de séculos, sem qualquer controlo centralizado por parte do Estado, que aliás só veio a ser adoptado no Século passado. E bem se compreende que assim seja. A capacidade humana de acrescentar algo à realidade que conhece, de a transformar e moldar, de a reformar e questionar é algo que é inerente ao indivíduo.

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Em permanente transformação da realidade que lhe foi legada, o indivíduo naturalmente estabelece laços de proximidade com a sua comunidade e, até, com comunidades distantes, numa rede de referências e valores que desempenham um importante e insubstituível papel social. Esse papel, que não pode ser desvalorizado, é o de funcionarem como elementos de coesão, união e identificação. Elementos que apenas desempenham essa função porque, de facto, traduzem os sentimentos dos indivíduos que as partilham e que, para esse efeito, nunca precisaram de qualquer beneplácito ou alvará estadual. Se as referências nacionais ou europeias são comuns, se são efectivamente partilhadas pelos seus membros, se têm, de facto, a importância que se lhes atribui, se são, na realidade, uma força de união e coesão, por que razão delas se esqueceriam os indivíduos? Precisaremos de uma União Europeia para nos sussurrar ao ouvido quais são, afinal, as referências comuns? Precisamos de um Ministério da Cultura para nos relembrar as virtualidades da identidade nacional? Estou consciente de que muitos defendem a presença atenta do Estado na preservação do que é essencial no âmbito das referências culturais. Mas acredito que não precisamos do Estado para nos indicar qual a identidade que comungamos ou quais as referências que adoptamos. Ele deve, isso sim, impedir-se de interferir de tal forma que, através das suas milhentas intervenções, retira espaço aos indivíduos para desenvolver e estreitar os laços que considerem relevantes. É que se o Estado ou a União Europeia se decidem determinar, sabe-se lá com que critérios, quais as referências culturais a promover ou a preservar, aquilo que cedo acontece é, precisamente, e ao invés do desejado, a destruição das referências culturais comuns e a sua substituição por referências culturais oficiais, deixando estas de ter qualquer papel social, passando a ter um mero papel político. O risco que corremos é, por isso, o


de deixar nas mãos de burocratas, tradicional e naturalmente actualizados ao ritmo das agendas partidárias, a definição daquilo que não deveria deixar de pertencer aos indivíduos de uma qualquer sociedade. E ao fazê-lo, estamos a fornecer-lhes um precioso e absolutamente desnecessário instrumento de propaganda. Não é, por isso, de estranhar que tantos e tantos concursos e programas e filmes e conferências e debates e palestras se dediquem, por exemplo, a fazer da União Europeia um shangri-la na terra, não dando sequer espaço a uma perspectiva crítica da forma como vai a construção europeia fazendo o seu caminho. E A DIVERSIDADE CULTURAL? A todas estas objecções que agora levanto poderiam responder as evidências de um maior sucesso na diversidade cultural. Acontece que, ao contrário do que parecem pretender os fundamentos das políticas proteccionistas e de promoção de identidade, a diversidade cultural só tem a perder com tanta intervenção do Estado. Para já, porque a realidade cultural passa a estar nas mãos de um comité ou de uma elite, a quem cabe escolher, afinal de contas, para onde vão os financiamentos e onde devem aplicar-se as quotas. Se assim é, em vez de termos uma realidade cultural que transpira dos indivíduos, temos uma realidade que transpira dos critérios de tal comité, que ninguém escolheu, ninguém conhece e, pior do que isso, anda a reboque de quem os nomeia. Ao invés de termos uma realidade cultural que espelhe os indivíduos que nela actuam, temos uma realidade que espelha as vontades e os critérios de uns quantos que, com boa vontade não posso negar, pretendem saber melhor do que os restantes aquilo que deve ser privilegiado. E os efeitos desta oficialização da realidade cultural não são despiciendos uma vez que o Estado interfere de tal forma no sector que cria uma evidente relação de vantagem a todos aqueles que merecem a sua atenção, relegando os restantes para uma situação de tão desleal concorrência que não podem senão fechar

portas. O Programa Media da União Europeia, por exemplo, que tem como objectivo tornar o sector do audiovisual europeu mais dinâmico e mais competitivo, impondo-o nas salas de cinema dos cidadãos, dispõe de um orçamento total de 755 milhões de euros. O Programa Cultura, que procura promover a sensibilização e a preservação de bens culturais de projecção europeia dispõe de um orçamento total de aproximadamente 400 milhões de euros. Se sem o financiamento estadual se torna quase impossível o desenvolvimento de uma actividade criativa, não podem senão aqueles que, de forma mais profissional e atenta, pretendem dedicar a sua vida às manifestações culturais sujeitar-se aos critérios de financiamento que são estabelecidos pelo Estado, no que não podemos condená-los. Como igualmente têm de submeter-se às amizades, aos compadrios, às filiações e aos apoios políticos, assim se densificando a formação de uma cultura oficial. Não é por acaso, por exemplo, que a Comunicação da Comissão Europeia sobre a Agenda Europeia para a Cultura num Mundo Globalizado aconselha os operadores do domínio da cultura a empenharem-se seriamente no diálogo com as instituições da União e a apoiar o desenvolvimento de novas políticas e acções de tais instituições, de forma a poderem aceder aos financiamentos comunitários. Dir-se-á que tudo poderia ser diferente se o Estado pudesse encontrar critérios acima da suspeita, de inegável mérito cultural. A permanente insatisfação com a atribuição desses financiamentos, que sobrevive a todo e qualquer governo, já oferece a resposta. Mas as questões colocam-se na mesma. Existem esses critérios? Existem tabelas unânimes? Existe alguém tão magnânime que possa ter a capacidade de atribuir com justiça e ponderação os financiamentos? Demonstrando, aliás, a impossibilidade de encontrar resposta para estas questões está, precisamente, a volatilidade de critérios adoptados ou, em certos casos, a verdadeira contradição entre eles. Cabe, inclusivamente, perguntar, quem é que, no meio de tudo isto, sabe o que está a fazer: se os Estados-Membros protegendo as suas culturas, se a União Europeia promovendo uma homogeneização. Em que ficamos, afinal de contas? Para além destas questões, importa evidenciar que a realidade cultural que se gera num sistema como este será, para além de oficial, ou por causa disso, limitada e incompleta. Na verdade, ao favorecer, com ou sem razão que se veja, determinadas manifestações culturais e atenta a estatização do modelo, o Estado dificulta ou quase inviabiliza o surgimento de alternativas culturais. O financiamento estadual é de tal forma grande, está espalhado por tantas manifestações que, de facto, sem >>

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>> ele, poucos criadores podem competir com aqueles que recebem financiamento estadual. Reduz-se, portanto, a escolha daqueles que consomem cultura, ao arrepio de todas as regras da lógica de um mundo composto de diversidade cultural. Finalmente, cumpre notar que um sistema assente nestas políticas tende a reservar a cultura para uma pequena elite. Pois que ao prejudicar o acesso a determinadas manifestações, ao dificultar a entrada de novos referenciais, ao impor determinados padrões, o Estado está a impedir aqueles que menos têm de vencer tais barreiras em busca das manifestações que mais lhes interessam. De certa forma, apenas os mais abastados têm capacidade e suporte suficiente para, apesar de todas as dificuldades que lhes são colocadas pelo Estado, acederem ao que pretendem.

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AS VIRTUALIDADES DE UM SISTEMA ABERTO À LIBERDADE DE CIRCULAÇÃO CULTURAL De tudo o que venho expondo resulta, evidentemente, uma feroz crítica às políticas culturais europeias que assentam no proteccionismo e na promoção estadual de referências culturais. Entendo que apenas num espaço global, de acesso universal e sem fronteiras, pode a diversidade florescer e podem os indivíduos encontrar as manifestações culturais que mais lhes interessam. Sem condicionantes ou imposições. Sem gostos tabelados ou cartilhas aprovadas. As vantagens da liberdade de circulação podem ver-se nos restantes sectores de actividade. Nunca, dizem os números, se viveu melhor do que num Mundo globalizado. Mas mesmo que assim não fosse, e é, salta à vista que a liberdade de circulação tem potenciado um aumento impressivo das nossas liberdades de escolha assim como tem facilitado o acesso a realidades outrora distantes. Basta pensar que a nossa actualidade é feita de um maior conhecimento do Mundo, de um maior aproveitamento das capacidades locais, de uma maior abertura ao desconhecido. Os sabores, os sons, as experiências, as criações locais estão hoje, se não forem limitadas por normas proteccionistas, ao alcance de muito mais pessoas do que estavam anteriormente. Por que razões não podem os bens e serviços culturais beneficiar de um mesmo sistema, se a liberdade de circulação em nada colide com a vocação criativa que lhes está subjacente e que deles, aliás, não pode ser desligada? Se a diversidade cultural é o objectivo, então apenas uma rede que permita uma constante e livre troca de experiências culturais conseguirá cumpri-lo. Pois que é na expansão cultural, na sua exportação para outros contextos, que reside a possibilidade de tornar o Mundo aberto a outras realidades. A diversidade cultural só pode ser construída através da

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livre acção dos indivíduos, a quem é conferida a possibilidade de escolher as expressões culturais que entendem adequadas ou preferíveis. É precisamente porque todos somos diversos, porque todos somos minorias, que a diversidade pode surgir e instalar-se como rotina. Enquanto duvidarmos desta nossa capacidade individual de reformar o Mundo não conseguiremos atingir um estado de verdadeira diversidade cultural.


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CURTO-CIRCUITO:

POTENCIAR A ENERGIA CULTURAL texto Nuno Grande

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O processo de democratização política de Portugal, iniciado com a Revolução de Abril de 1974, foi seguido pela modernização tardia das suas instituições públicas, visando ultrapassar o anacronismo legado pelos precedentes 48 anos de Estado Novo e pelo seu regime conservador e censório. Na verdade, e em diversos sectores da sociedade portuguesa, só nas últimas três décadas se institucionalizaram uma boa parte das políticas públicas e dos direitos cívicos que outros países europeus tinham já assegurado desde o II pós-guerra. Deste modo, e resgatando um pensamento do sociólogo Boaventura Sousa Santos(1), é possível afirmar que o Portugal contemporâneo vem cumprindo o seu inadiável processo de modernização estrutural, em “curto-circuito” com a sua inevitável adaptação à pós-modernidade, ou seja, à matriz da criação e do pensamento contemporâneos. A Cultura, enquanto política pública, constitui uma das áreas onde esse “curto-circuito” é mais notório, não só porque o investimento em novos equipamentos culturais cresceu, apenas recentemente, para níveis mais estáveis – aproveitando os Fundos Estruturais da União Europeia – mas também porque a sua descentralização vem permitindo o confronto de um maior número de cidadãos com essa “aceleração” criativa que, durante anos, lhes esteve internamente vedada. Como consequência, e apesar de ser um dos sectores com menos expressão no Orçamento de Estado em Portugal (não alcança sequer 1% do seu total), o sector cultural contribui, já hoje, para cerca de 1,4% do seu Produto Interno Bruto, fazendo parte do “palco” do debate político e mediático, precisamente quando se confrontam opções “pró-modernas”, na defesa de investimentos prioritários de ordem material e infra-estrutural, e opções “pósmodernas”, no incentivo aos universos do “imaterial” e do “eventual”. Venho afirmando, na minha actividade de arquitecto, suportada por incursões pelo campo da crítica e da programação cultural, que, no Portugal contemporâneo, a intensidade desse “curto-circuito” pode ser avaliada

pela relação estabelecida entre políticas e espaços culturais, um historial que valerá a pena perspectivar neste breve ensaio. Até ao 25 de Abril de 1974, a Fundação Calouste Gulbenkian foi a única instituição portuguesa capaz de definir políticas culturais estruturantes e de alcance internacional. Funcionando como um “Estado social” dentro do próprio Estado Novo – que a utilizaria, tantas vezes, como álibi para a sua desresponsabilização política no sector – a Fundação regeu-se por uma acção de cariz filantrópico e paternalista na difusão e no mecenato artístico. Curiosamente, o conjunto da Sede, Jardim e Museu Gulbenkian – lugares de catarse cultural para tantas gerações de portugueses – seria inaugurado tardiamente, em 1969, num tempo em que o ideário artístico europeu, pós-Maio de 68, recusava, então, a supremacia programática e o confinamento espacial das instituições culturais de raiz moderna, como era o seu caso. No período pós-revolucionário, e perante o lento processo de democratização das instituições públicas portuguesas, coube à mesma Fundação reinventar a sua política em torno da Arte Moderna e Contemporânea, criando novos centros informais e polivalentes, como o CAM e o ACARTE, espaços privilegiados de experimentação conceptual e performativa, que agitaram o nosso limitado quotidiano cultural ao longo da segunda metade da década de 80. No entanto, e no contexto internacional, aqueles anos foram palco de um polémico debate em torno do pós-conceptualismo e do pós-modernismo, no “retorno” a práticas artísticas e programações culturais mais convencionais, mas também a modos de difusão mais populistas, com base, entre outras, numa visão simultaneamente neo-liberal e neo-conservadora da Cultura. O Centro Cultural de Belém não pode deixar de ser enquadrado nessa inflexão política e espacial, enquanto produto tardio da afirmação política do cavaquismo, em prol de um país recém-integrado na CEE, com vontade,


simultaneamente, de celebrar o seu património cultural e de integrar o circuito dos grandes eventos “blockbuster”. Como se constata, esta ambição política resistiu a sucessivas mudanças ideológicas, sustentando mesmo a mais recente decisão de juntar a mediática Colecção Berardo à já longa indefinição identitária daquele equipamento. A consagração popular do CCB verificou-se num momento em que o processo de Globalização obrigou as instituições a ligarem-se às redes supra-nacionais de difusão cultural, mais do que ao diálogo com os tecidos artísticos locais. Esta questão explica a política traçada, a partir do final da década de 90, pelo Museu de Arte Contemporânea de Serralves, tão determinante para a instituição no reforço do seu acervo e na permuta da sua agenda com outros centros artísticos estrangeiros, mas tão discutível para muitos criadores portugueses que olham essa política como símbolo de um circuito curatorial hegemónico, ao nível global, e de um processo de “franchising” cultural, ao nível do território português. Esta alternância cíclica – desfasamento/aggiornamento – das nossas instituições com os contextos nacional e internacional coloca ainda uma importante questão – a necessidade de fazer corresponder ao investimento em hardware cultural (projectos, equipamentos, concepção espacial) a criação de um software cultural permanentemente actualizável (programas, recursos humanos, sustentabilidade temporal). Essa adequação vem sendo difícil, não apenas nas instituições já mencionadas, como também nas que permaneceram para além da “ressaca” dos grandes eventos de massas – que dizer dos emblemáticos pavilhões e auditórios que “sobraram” da transformação imobiliária do Parque das Nações, no pós-Expo’98?; ou da sub-utilização de edifícios históricos reabilitados para fins culturais no âmbito das Capitais Europeias da Cultura, em 1994 e 2001?; ou ainda do novo ícone arquitectónico global - a Casa da Música - do qual se espera muito mais do que a mera adaptação do denominado “efeito Bilbau” ao panorama

português? Esta preocupação estende-se, finalmente, às políticas que instituíram as redes nacionais de equipamentos culturais, por contratualização com os municípios – Museus, Bibliotecas e Cine-Teatros – as quais, há cerca de uma década, vêm tentando inverter a desertificação populacional e cultural das cidades médias portuguesas, colocando o tecido artístico local em diálogo com outras experiências comuns. A proliferação destes equipamentos no nosso território não pode corresponder, como acontece em muitos casos, à transposição dos problemas descritos, da escala nacional para a escala municipal. A criação de uma política de “redes culturais” – tema central na criação contemporânea – tem de ser mais do que o aliviar de consciências do poder governamental pelos anos de investimento centralista em grandes equipamentos, mais do que o simples aproveitamento apressado dos financiamentos europeus em fim-de-ciclo, e mais do que a mera instrumentalização da cultura por uma qualquer política eleitoralista local. Vinte anos após a nossa adesão à comunidade europeia, esta poderá e deverá constituir a possibilidade de aproveitarmos, finalmente, o potencial desse “curtocircuito”, de que nos fala Boaventura Sousa Santos, retirando a máxima energia dessa ligação entre hardware e software culturais. (1) SANTOS, Boaventura Sousa, Pela Mão de Alice, o Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1994

Nuno Grande foi programador cultural na área de Arquitectura e Cidade da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura e é um dos curadores, com Jorge Figueira, da exposição Europa: Arquitectura Portuguesa em Exposição, que representa Portugal na 7ª Bienal Internacional de Arquitectura de São Paulo Este ensaio toma como base o texto do autor Generaciones en Red. Las Infraestructuras culturales lusas, in Arquitectura Viva, nº 109, Madrid: Arquitectura Viva, SL, 2006, e a investigação, em curso, no âmbito da sua Tese de Doutoramento pela Universidade de Coimbra.

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texto Tiago Bartolomeu Costa

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Ao contrário daquilo que se possa pensar à primeira vista, há mais denúncia do que ironia em Arquitecturas de Peso, filme-instalação que Edgar Pêra concebeu e manipulou (classificação dele) para a Trienal de Arquitectura de Lisboa, entretanto recuperado para a representação portuguesa na 7ª Bienal Internacional de Arquitectura de São Paulo. Iludidos que somos pela aparente graça em se convidar Nel Monteiro, cantor de intervenção popular (classificação dele), podemos ser achar que o realizador se escusou, com uma diatribe, a reflectir sobre os impactos sócio-económicos e culturais de quatro intervenções arquitectónicas que, como bem escrevem os comissários da exposição Eurovisão/ Euronews, Jorge Figueira e Nuno Grande, demonstram “as contradições deste Portugal imaginado à escala europeia”. À laia de identidade nacional – ou da tentativa de se forjar uma sob ordens regimentais – o Centro Cultural de Belém, a Expo’98, a Casa da Música e os estádios do Euro 2004 são vistos através de “materiais cravejados de logótipos, textos de rodapé e outras excrescências visuais que abundam nos telejornais” (classificação do realizador) projectados nas próprias fachadas. Nada mais cru. E, por isso, errados aqueles que não virem aqui o paradigma da denúncia. Registe-se, por exemplo, a opção tomada de nunca nos fazer entrar nos edifícios. Ficamos à porta porque, percebe-se nos planos sinistros de Pêra, aquela realidade pouco tem que ver com a modernização do homem e, por consequência, do país. Nel Monteiro di-lo, ipsis verbis, já no final, enquanto correm os créditos: “Só quando o homem se convencer que a modernização do mundo terá de começar por acabar com a pobreza, aí sim teremos um mundo melhor”. Esse mundo melhor deve estar lá dentro, nos quentes e modernos auditórios, nas longas e de vanguarda salas, nas íngremes e desenhadas rampas de acesso, na nobreza e equilíbrio dos materiais usados na construção dos edifícios. Mas isso não é defeito. Tal como não é defeito “não ter nem para cagar um penico/ Defeito é tirar ao pobre para dar ao rico”, canta Nel Monteiro. “Puta de vida/ Merda cagalhões”, portanto, de um país que quer projectar uma imagem sem saber o que fazer dela. “Puta de vida/ Merda cagalhões/ Porque é que tem que ser assim?”, quer saber Nel Monteiro. Edgar Pêra não responde. Ninguém responde. Ou, pelo menos, ninguém vai responder enquanto estiverem croquetes de camarão congelado na travessa de prata. E Pêra não responde porque prefere dar a ver aquilo que a televisão do regime disse, ou quis dizer, das obras do regime. É

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manifestamente pouco e controlado, como se imaginará. Depressa se passa por cima dos trabalhadores vítimas de acidentes, das derrapagens orçamentais, da inexactidão dos processos de construção, da ineficácia dos materiais usados, e dos “ vinte e dois mil milhões/ [que] Já se sabe para onde vão/ Vão para a Ota e TGV/ E não vai sobrar tostão”. È um filme de denúncia, breve (23 minutos), certeiro, claro, sem necessitar de grandes esforços para se impor e, espantosamente, nada panfletário. Que esteja na representação oficial portuguesa para brasileiro ver é que espanta. As imagens, os jornais, as fachadas, os cumprimentos oficiais, “as questões de precisão” e os demais assobios para o lado falam por si. E dizem, talvez com mais maneiras, mas não tão “pronto, para mim é assim o que acho” como Nel Monteiro, que Portugal vive acima da merda. Mas, insiste o intervencionista: “a merda hoje já é uma palavra vulgar. Mas é realmente uma porcaria que incomoda muita gente. Não é o nome que incomoda é realmente o conteúdo que incomoda. E é isso que eu vejo muito neste país, muita coisa a que eu podia chamar caca, mas que eu chamo merda”. Entre um e outros, com Edgar Pêra pelo meio, Portugal cresce, ao preço do betão. A caminho de coisa nenhuma.


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CAMAROTE PAR Por

André Dourado

PROVINCIANOS, DISSE ELA DO HERMITAGE EM LISBOA

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Sempre achei mais vantajoso do que penalizador ter origens provinciais em Portugal, por estas permitirem uma leitura mais equilibrada de uma realidade portuguesa que tem persistências rurais muito fortes. De resto, pode viver-se na província sem ser provinciano e residir-se em Lisboa sendo um pacóvio, da mesma maneira que é possível estar ligado ao mundo na primeira e viver mergulhado numa semi-ignorância no interior do Palácio da Ajuda. Esta reflexão aparentemente deslocada vem a propósito da exposição do Hermitage em Lisboa e da surpreendente e recorrente reacção da Ministra da Cultura a propósito dos críticos do projecto, que segundo a senhora são “provincianos”. Presume-se que quem fala de provincianismo o não é, definindo-se a si próprio, a contrário, como cosmopolita. Ora chamar “provincianos” a todos aqueles que manifestaram reservas em relação a esta opção de duvidosa prioridade é mais do que uma manifestação de intolerância ministerial: é uma expressão de arrogância e a demonstração da sua incapacidade em justificar racionalmente uma exposição montada como uma acção de propaganda, provavelmente surgida no deslumbramento da visita ao Hermitage em São Petersburgo e projectada para servir de arranjo floral à visita de Putin a Lisboa. Tudo isto estaria muito bem e dentro do aceitável se não tivessem sido gastos dois milhões e meio de euros na realização de uma exposição de segunda linha, e se o Agit Prop do Ministério da Cultura não a tivesse vendida como um nec plus ultra das mostras internacionais sobre a Rússia, de caminho abusando uma vez mais da paciência do cidadão e da boa vontade de mecenas e do Instituto de Turismo de Portugal, que tem servido de instrumento ancilar da promoção das grandes e duvidosa opções do M.C.. 500 mil euros davam uma boa campanha de promoção do museus nacionais, contribuindo para aumentar os seus visitantes e as suas receita. Apesar de nos podermos espantar com a forma algo acrítica como a generalidade da nossa imprensa, com excepção do Expresso, a publicitou – reflexo provável e lamentável da sangria de críticos e jornalistas culturais que nela se tem vindo a verificar – a ministra não se satisfez com a questão do provincianismo e tentou ir mais longe, emitindo na Comissão Parlamentar de Cultura aquela que será provavelmente a mais extraordinária declaração de uma já invulgar carreira governamen-

tal: Portugal é um país pobre em património móvel e rico em património imóvel, razão pela qual precisa de importar exposições. Que a tutela desconheça a realidade dos museus portugueses está bem patente no orçamento que lhes atribui e na forma como trata tudo o que lhes diz respeito, a começar pelos responsáveis. Que ignore a afirmação internacional do património português que começou com a XVII Exposição de Arte Ciência e Cultura em 1983, passou pela Europália 91 e pelas exposições feitas pela Comissão dos Descobrimentos nessa década, e que teve recentemente a sua confirmação com a mostra Encompassing the Globe em Washington e Bruxelas é grave. Mas que justifique a exposição com um tal argumento geraria, num qualquer país cioso da sua cultura e dignidade, um escândalo público: que alguém que é suposto proteger e valorizar um património seja a primeira a degradá-lo é impensável. Confesso que, ingénuo, ainda esperei pela repetição de um abaixo-assinado indignado por parte de alguns directores de museus ou ver as associações do sector a defender o que é a sua razão de ser, mas nada aconteceu. A Ministra parece ser inimputável: como Paris – mas sem luz – fluctuat nec mergitur. Na crítica à exposição, Alexandre Pomar notou bem que a implantação de pólos do Hermitage decorre das necessidades financeiras deste, sendo um franchising destinado ou a recolher dinheiro – como Londres, que acabou justamente porque se extinguiu a capacidade de fundraising- ou a estudar colecções – o caso de Ferrara, projectado como pólo de investigação das colecções italianas do museu e de formação de especialistas em restauro. Não havendo colecções portuguesas no Hermitage nem dinheiro para exportar para as margens do Neva, para quê esta exposição cujo custo afronta as dificuldades quotidianos dos museus nacionais? Mas a importância real da exposição também se afere de outras formas. Na página do museu russo encontramos, na agenda internacional, uma nota sobre a exposição de Lisboa, e uma referência ao famoso acordo. Ora, sendo assinante da revista do Hermitage desde o primeiro número, esperei, ao receber a revista do Outono, encontrar nela um artigo sobre a exposição e a sua importância: afinal de contas trata-se, nas certezas do seu palavroso comissário científico, “de uma mostra inédita e muito maior do que qualquer outra alguma vez feita pelo Hermitage fora de portas”. Nada encontrei. Procurei então na agenda de eventos das últimas páginas. Nada. Uma palavra no editorial do também palavroso mas talentoso Mikhail Piotrovsky, o director


do Museu? Nada. Alarguei a procura à Rossica, outra revista internacional de cultura russa. Nada outra vez. Veremos nós em Lisboa o que os especialistas não vêem por esse mundo fora? Passemos aos argumentos qualitativos: número e a originalidade. Quanto ao número, se é prova de qualidade numa mostra estamos entendidos (explica o custo, é certo, X euros por peça, como no supermercado). A última grande exposição de arte russa que circulou internacionalmente, “Russia!”, esteve patente no ano passado no Guggenheim Bilbao e tinha apenas 258 peças, cobrindo todas as épocas desde a Idade Média e recolhendo obras-primas de todos os museus russos. Tinha uma peça em comum com Lisboa - o busto de Pedro, o Grande, de Rastrelli - e que o Guggenheim se contente com menos devia fazer pensar os comissários. Quanto à originalidade, se estes tivessem tido o cuidado de estudar a mobilidade das peças, eram menos ousados nas declarações: basta comparar, a título de exemplo, a exposição Nicolau e Alexandra do Hermitage Amesterdão em 2004 para ver que até o mesmo ursinho de pelúcia por lá andou ou, no mesmo ano, A Grande Rússia Imperial: de Pedro o Grande a Catarina II no Fórum Grimaldi no Mónaco. Na sua esmagadora maioria, os retratos expostos são de autores desconhecidos ou cópias – excepção notória para um Nattier e um Fleming – ou peças de conjuntos extensos com dezenas ou centenas de exemplares. Porquê ilustrar os reinados com retratos de desconhecidos quando em todos existem nomes que diriam algo mais aos portugueses, como o dos grandes escritores russos? E sendo todos os Czares grandes compradores de arte europeia, porque não se trouxe uma verdadeira obra-prima adquirida por cada um deles (Van Dick ou Rubens, por exemplo)? O que sobra então? A Museografia? Um percurso labiríntico, peças mal hierarquizadas em vitrines repletas, a mais espectacular obra em exposição – a coluna com as réplicas das coroas imperiais de Fabergé – escondida num canto, um corredor final da exposição que é uma sucessão heteróclita de retratos e paisagens urbanas e que acaba, com trenós supostamente ao nível dos nossos coches reais, numa loja pouco imperial que vende um catálogo mal traduzido e pior impresso (poderíamos dizer que é todo um símbolo da exposição, se não fosse uma injustiça para as obras de arte). É isto “o carácter verdadeiramente espampanante” da exposição de que falava o comissário? Depois há pérolas científicas: uma legenda fala no “Chefe do Departamento de Caça do

Czar”. Alguém explicará a estas almas vivas que o PCUS e o KGB é que tinham departamentos, o Czar tinha Oficiais e Cargos de Corte, como cá, e que isto se traduz por Couteiro-Mor? Mas há ainda um último aspecto a tratar: a adaptação da Galeria D. Luís I. Inicialmente justificada com o acolhimento do putativo pólo do museu russo, agora o director do ICM já afirma cautelosamente que afinal nada está decidido sobre o seu destino e a Ministra, surpreendendo uma vez mais, diz que gostava de abrir a Galeria “subaproveitada” à arte contemporânea (mas não é para isso que serve o CCB e o investimento na Colecção Berardo?). Ora eu não terei sido o único visitante com maior ou menor experiência na organização de exposições que se interrogou onde estariam os 900 mil euros de beneficiação, tanto mais que a Presidência da República fez obras de monta nesta Galeria em 2005 para instalar a exposição Do Palácio em Belém e não se vêem grandes diferenças no espaço. Como certamente as obras foram feitas ao abrigo da Lei do Mecenato e logo objecto de benefícios fiscais, seria bom perceber o que foi nelas tão caro. Para concluir, só o desconhecimento profundo do que foi, nos últimos quinze anos, a circulação internacional da arte russa pode justificar que se tenha transformado uma exposição mediana “num momento histórico”, como a classificou recentemente no Teatro S. João do Porto o Secretário de Estado da Cultura. A isto acresceu uma vez mais a tentação de fazer uma exposição-Potemkine, que escondesse a ausência de uma verdadeira política para o património. Tudo somado, quem são afinal os provincianos?

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CATARINA BOTELHO

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CARTA BRANCA

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CATARINA BOTELHO Projecto desenvolvido para a Revista Obscena nº8. Série de imagens da qual foi retirada a fotografia “s/título” (júlia à mesa) 2007

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PERSPECTIVA

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DIAS DO JUÍZO

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ÍNDICE

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ESPECTÁCULOS PÁG.100

OS CORPOS DAS PALAVRAS

TURISMO INFINITO DE ANTÓNIO M. FEIJÓ ENCENAÇÃO RICARDO PAIS João Paulo Sousa PÁG.102

QUANDO A ACÇÃO SE PASSA À MESA

BANQUET DE PATRICIA PORTELA Florent Delval PÁG.104

O CASTIGO DE UM CORPO CRIME ET CHÂTIMENT DE GINTARAS VARNAS Francisco Valente PÁG.106

ISTO NÃO É PÚBLICIDADE I AM A MISTAKE DE JAN FABRE

Florent Delval PÁG.108

A FESTA DOS SIGNOS O AVARENTO OU A ÚLTIMA FESTA

PELO TEATRO PRAGA João Paulo Sousa PÁG.110

OH AS CASAS AS CASAS

MANEIRA DE LER ALGUMAS PEÇAS

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DE JOSÉ MARIA VIEIRA MENDES Francisco Frazão

FILMES / DVD PÁG.114

FUTEBOL: EUFORIA E ABSTRACÇÃO José Mário Silva

PÁG.116

BERENICE RASCUNHOS DE SON APPARTEMENT DE JEAN-CLAUDE ROSSEAU Carlos Pimenta

PÁG.118

CINCO POSSIBILIDADES THE FIVE OBSTRUCTIONS DE LARS VON TRIER E JORGEN LETH Emmanuel Veloso

PÁG.120

UNFINISHED, IMAGEM ABERTA UNFINISHED DE SOPHIE CALLE Francisco Valente


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DIAS DO JUÍZO

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OS CORPOS DAS PALAVRAS

TURISMO INFINITO, DE ANTÓNIO M. FEIJÓ, ENCENAÇÃO DE RICARDO PAIS texto João Paulo Sousa foto: João Tuna

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É com os romances que Beckett publicou em francês no início da década de 50 (Molloy, Malone Meurt e L’Innommable) que António M. Feijó estabelece uma analogia quando, no programa do espectáculo, se refere ao espaço cénico em que se desenrola Turismo Infinito. Trata-se aqui de destacar a possibilidade de olhar para a cena como se esta expusesse o interior de uma cabeça, da cabeça de Fernando Pessoa, para ser mais preciso, pois é ele o autor da quase totalidade dos textos que aí são ditos e das figuras que aí comparecem. Não será absolutamente necessário proceder a essa leitura, mas a associação com o dramaturgo irlandês é de igual modo pertinente se nos lembrarmos das suas peças ou ficções em que a voz pode ser pensada como algo que irrompe da escuridão, que dela se destaca para nela imergir depois. O resultado é uma valorização da palavra, fortemente intensificada, porque toda a atenção se deve concentrar nela, eliminados que foram os elementos distractivos. Assim acontece também com Turismo Infinito, composto por António M. Feijó a partir de textos de Pessoa (atribuídos a si mesmo, enquanto ortónimo, ou a alguns dos heterónimos) e três cartas de Ofélia Queirós. A encenação de Ricardo Pais potencia essa valorização verbal ao sustentar-se no dispositivo cénico concebido por Manuel Aires Mateus, que consiste no conjunto formado por um tecto e um chão, em posição inclinada, a

descer na direcção do público. É um espaço abstracto,, negro sobre fundo negro, que condiciona fortemente o movimento das figuras em cena, na medida em que as coloca numa situação de permanente desequilíbrio, ao mesmo tempo que explora uma noção de profundidade e de prolongamento infinito. O jogo de luzes impõe ao espectador o ritmo da descoberta cenográfica, como se apenas existisse o que é mostrado em cada momento. É a esse trabalho, da responsabilidade de Nuno Meira, que cabe o encargo, a par do movimento dos actores, de impedir que o espectáculo possa ser presenciado de olhos fechados. As vozes e as deslocações das figuras em cena acompanham um rigoroso desenho de luz, cujo fascínio advém, em grande parte, da precisão minimalista em que se sustenta. Ora, a atenção do espectador é fundamental para acompanhar com proveito o espectáculo, uma vez que a componente textual agrupa poemas, sequências em prosa e epístolas, numa selecção e organização que parece ter obedecido sobretudo a princípios temáticos. Estruturada em três grandes blocos, bem marcados no decurso do espectáculo, até pelo facto de as transições contarem sempre com uma intervenção no feminino, esta componente tem a unificá-la um certo olhar sobre a noção de viagem e a cisão que se efectiva naquele que a pratica, quer no plano físico, quer no plano mental.


O espectáculo abre com uma intervenção de Bernardo Soares, o semi-heterónimo que assina o Livro do Desassossego, solidamente interpretado por José Eduardo Silva, num exercício de forte contenção que, por isso mesmo, se afigura de uma extrema exigência. Sucede-lhe Álvaro de Campos, o engenheiro metafísico, cuja exuberância é convincentemente assumida por João Reis. O protagonismo deste heterónimo encontra a sua justificação no contexto da obra pessoana e transparece na economia do espectáculo, participando de modo directo ou indirecto nas transições entre os blocos. É no primeiro destes momentos que se situa um ponto muito forte do espectá-culo, quando Emília Silvestre diz esse texto pessoano no feminino que é a carta de amor da costureira corcunda ao serralheiro. Quer pela raridade do género no interior de uma heteronímia masculina, quer pelo rigor e pela intensidade com que a cena é assumida pela actriz, este é um momento que adquire especial relevância na estrutura da peça. Ele permite mesmo que a segunda transição entre grandes blocos textuais se apresente também no feminino, com três cartas da única namorada conhecida do poeta. Se a ligação à vida privada poderia aqui abrir uma brecha num espectáculo cuja sustentação é eminentemente literária, tal não ocorre, porque Ofélia endereça uma das epístolas a Álvaro de Campos, em resposta, aliás, a uma missiva do enge-nheiro metafísico, o que demonstra como é difusa, no caso pessoano, a fronteira entre as dimensões privada e artística. Nessa transição, e na sequência do bloco anterior, actua ainda o Pessoa ortónimo, encarnado por Pedro Almendra, que se divide cuidadosamente entre a versão interseccionista do poeta e o seu lado mais íntimo.

Como numa caminhada por meio da qual se atinge o cume da montanha, a peça encerra com a presença do mestre de todos os heterónimos, aquele que está literariamente na origem dos outros, o sensacionista Alberto Caeiro, finalmente assumido por um Luís Araújo cuja presença em palco se justificara, até então, pelos movimentos individuais ou colectivos. Nada de surpreendente, pois o movimento, ainda que contido, marcado por certa austeridade e enorme precisão, é um elemento decisivo para a construção de um espectáculo que, sem nunca deslizar para a noção de recital de poesia ou de prosa, encara as palavras como corpos e, através delas, estrutura sabiamente um jogo de tensões entre o desejo e a recusa da viagem, entre o sonho exuberante de uma realidade dinâmica e a vertigem interior de uma contemplação estática. Estreado a 7 de Dezembro, Turismo Infinito apresenta-se de 11 a 26 de Janeiro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, de 25 de Março a 12 de Abril no Teatro Nacional São João, no Porto e dias 29 e 30 de Abril na Comédie de Reims, em França. O sítio do TNSJ (www.tnsj.pt) disponibiliza, em ficheiro pdf, o programa e o dossier pedagógico do espectáculo.

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QUANDO A ACÇÃO SE PASSA À MESA BANQUET, DE PATRÍCIA PORTELA texto Florent Delval fotos: Banquete © DR

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Observemos uma sala de espectáculos a partir da disposição da plateia: se as pessoas estiverem sentadas à mesa preparadas para começar a comer, estaremos seguramente num espectáculo musical. Se segurarem um copo e estiverem de pé estaremos, sem dúvidas, num concerto rock. Se estiverem sentados tratar-se-á, talvez, de stand-up comedy. A cada lugar a sua ementa e os seus costumes, tal como as pipocas convocam infalivelmente o cinema. Sendo certo que filmes há que toleram comida fina… O cinema de arte e ensaio não autoriza tais comportamentos, julgados vulgares e associados ao consumo de massas. Se invertermos o ponto de vista, a comida não é aceite em cena senão destituída da sua função, o que a transforma, por perda, num signo. Paradoxalmente, parece ser melhor aceite se subvertida (pela desordem…). Comer é uma acção tão regular quanto portadora de significados. Partilhada por todos, salienta as suas origens culturais ou sociais. Vital e indispensável, é, no momento em que os sinais de referência são deslocados, uma das raras actividades fora da arte que permite aceder a uma experiência crítica. Ou seja, de colocar em questão interrogações que a certeza há muito sedimentou. Por outras palavras, torna estranhos gestos aos quais não prestávamos atenção. Normalmente denegrida pela arte, porque necessária, a alimentação entretevese sempre a criar relações complexas com esta…

Veja-se o controverso convite feito à estrela da nouvelle cuisine Ferran Adriá, director do restaurante El Bulli, na região de Gijón (Espanha), para a última Documenta em Kassel, onde foi ombreado com os artistas contemporâneos. Raros são aqueles que tentaram a mistura de géneros, tal como fazer de uma refeição uma experiência estética, no sentido mais amplo, como o poeta futurista Marinetti, no início do século XX, ou o artista e escritor suíço, de origem romena, Spoerri, da corrente dos novos realistas franceses, na década de 60 ou ainda, e para um exemplo contemporâneo, ainda que a um outro nível e menor medida, o artista plástico argentino, radicado na Tailândia, Rirkrit Tiravanija. Já a transposição temática e pictórica é moeda corrente. A desconfiança instintiva pela comparação do que é avaliado terá constituído um obstáculo? Patrícia Portela viu, precisamente, o potencial desta desconfiança que teima em persistir e tomou-a como ideia para exploração: “Para o ser humano a relação com a comida é uma fonte de interrogação: será bom para mim? Posso comer isso?”, escreve-se no programa. No início de Banquet, cada espectador é servido de um copo aureolado pelo envermelhecer das mesas luminosas e é preciso tempo para que os olhos se acomodem e vejam que, afinal, se trata de um copo de água. Um piscar de olho cúmplice aos vizinhos que ainda escrutinam o líquido desconhecido. O olhar percorre rapidamente as longas


mesas de curvas viscerais que preenchem a sala. “As mesas foram concebidas para evitar qualquer linha direita. Há sempre qualquer coisa no meio. Para entrar ou sair. Para os espectadores e o público. Deve seguir-se uma corrente. O mundo todo é visível. Podemos ver os outros comer sem que sejam perturbados já que todos estão ao mesmo nível. Mas esta é também a forma do ADN, ou talvez de uma árvore, fazendo referência aos temas abordados pelo texto…”, continua. Sim, é verdade, há um texto… há actores… Mas esquecemo-los frequentemente. Parece que se eclipsam. Uma situação que pode gerar colisões perturbadoras. Uma vez que toda a atenção é açambarcada pelas travessas que se deixam ver nos tabuleiros, os gestos dos intérpretes, que distraidamente relegamos para a categoria de empregados, criam por vezes uma surpreendente inquietude: um olhar pesado, um tempo marcado, uma interrogação indecifrável. Mas rapidamente tudo isso se perde e a comida torna-se, de novo, central. O que circula por baixo de tudo isto é a conivência tímida entre os espectadores sobre o que comem: de que se trata? Isso agrada-lhe? O resto, os textos entrelaçados que saem das mesas (através de altifalantes), as intervenções dos actores, a música ao vivo, tornam-se periféricos. Talvez um pequeno erro da parte de Patrícia Portela… Mas há, de qualquer maneira, uma outra coisa mais perturbadora: um simpósio, como o de O Banquete, de Platão para o qual o título remete, é ritmado pelas intervenções dos convivas. Ora, aqui os espectadores são sobretudo consumidores. Um espaço de liberdade do qual são privados: escolher comer, ouvir, discutir, etc.… Mas não é por estar perante uma gama de escolhas que o espectador se torna um

actor. É certo que há algumas injustiças deliberadas na partilha, alguma arbitrariedade na distribuição que conduz à escolha (essencialmente partilhar ou não) mas nunca chega a abandonar uma certa passividade. Banquete transborda de intenções louváveis e visíveis, de questionamentos cruciais, mas infelizmente nunca são totalmente eficazes. Permanecem sempre na condição de indícios. Os pratos são, a esse título, indicadores de uma alimentação pouco usual, intrigante, pesquisada, mas o efeito degustativo é somente, e por vezes, aproximativo. Patrícia Portela, temerária, lançou-se em busca de um sentido que não se deixasse enganar pela ilusão mas que se relaciona mal com a intelectualização: a comida rivaliza muito facilmente com um discurso que se sente ter sido alimentado por uma pesquisa minuciosa. O terreno é arriscado e habitualmente pouco explorado. Será normal que o projecto precise de crescer. “É pouco mas eu acho que há lugar para outra coisa. Acontecimentos inesperados, como quando todos decidem fazer um brinde com copos de cristal. Nesse sentido decidimos elaborar todos os utensílios que permita que a performance aconteça. Mas agora deveremos procurar saber o que podemos fazer com essas regras. Temos todas as condições reunidas”. Deixem-nos um pouco de tempo para digerir. Banquet , estreado a 24 de Novembro em Ghent, na Bélgica,

apresenta-se em Lisboa, em Maio de 2008, durante o Alkantara Festival.

Texto publicado em colaboração com a revista Mouvement.

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O CASTIGO DE UM CORPO CRIME ET CHÂTIMENT, ENCENAÇÃO DE GINTARAS VARNAS texto Francisco Valente © Teatro Nacional de Kaunas

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Quando a directora do Théâtre des Gémeaux em Sceaux, França, decidiu convidar Gintaras Varnas para apresentar a sua versão de Crime e Castigo, parece que o encenador lituano agiu com surpresa, pois já não acreditaria tanto no seu espectáculo. Assim, datado de 2004 e vindo do Teatro Nacional de Kaunas, o seu grupo mudou-se para os arredores de Paris para uma primeira apresentação fora da Lituânia. O desafio é grande: como apresentar hoje e de forma relevante um dos romances que maior influência teve em tudo o que se fez desde então; em teatro, literatura, cinema, ou mesmo na vida? Sobretudo, que temos ainda a dizer sobre o livro de Dostoievski e o seu eterno dilema moral – o da consequência dos nossos actos, dos limites do livre-arbítrio e da nossa consciência? O seu texto perdura, mantém-se intimamente teatral, todo ele é uma visão do mundo e da representação do Homem nele. E isso é o teatro, o palco onde todas as ideias se juntam.


Talvez por isso o público partilhe, desta vez, o espaço dos actores. O palco é a cena onde tudo se passa mas também onde vemos o que se passa, e aí nos sentamos, atrás da representação. O espaço é quase ínfimo e desconfortável, lutamos para ver um longo corredor ladeado de portas e duas mesas, atravessado apenas pelo sofá onde Raskolnikoff (Rodia) se senta e sonha, deslizando por carris de uma ponta à outra, levando outros personagens para fora do seu conto. Um cenário materialmente paupérrimo onde tudo se passa, protegido apenas por um ecrã gigante, onde Raskolnikoff nos olha de frente por uma câmara de vigilância que nos projecta aí a sua loucura. Por detrás dele, outras personagens se passeiam, como que cercando a sua obsessão. Nos lugares onde os espectadores tradicionalmente se sentam, duas cadeiras ocupadas: as duas vítimas do jovem estudante. É um cemitério vivo que se vai modificando, onde se juntam todos os mortos, afinal bem vivos para

julgarem quem os matou. Em quase quatro horas de espectáculo, a narrativa surge desconstruída, apenas unida pela loucura de Raskolnikoff. O seu actor, Gytis Ivanauskas, é mais que um pobre louco, é um corpo em transe. Salta do seu sofá, agarra-se às barras de ferro que dançam por cima dele, gatinha em cima delas, dá voltas no seu corpo, balança-se nos seus braços, atira-se contra todos na sua solidão. É uma personagem que luta contra um corpo, que hesita entre a afecção física dos mais próximos e a violência prática das suas ideias. Os outros vêem-no doente quando não está sozinho, Rodia exprime-se com dificuldade, ganha uma postura torta, quase repugnante, apenas se vê um olhar de quem se crê como espírito. Mas quando se encontra a sós, os seus movimentos explodem e reagem a uma mente demais irrequieta, pega nessa câmara e fala-nos em grande plano, o seu rosto multiplica-se e perde-se nos fios das suas teias mentais. São estes os grandes momentos da peça, como o cinema de uma coreografia, como o êxtase da personagem perto do fim, quando este se olha de novo e tenta apagar o seu rosto frígido com uma mangueira que lhe atira lágrimas que nunca deita. A imagem tinge-se de preto, apenas restam sombras. As luzes apagam-se sobre uma música hitchcockiana, e esperamos o próximo plano como após uma morte em Psycho. Se o princípio é frenético, quase coreográfico, os momentos pausados vão surgindo quando outras personagens interferem. Perde-se um pouco a surpresa quando se esperam novas lutas de corpos, estes que acabam por surgir quase naturalmente. Excepção feita para a imagem perfeita de Sonia, prostituta, amante e oposto de Rodia, corpo franzino e tonto, os tiques incontroláveis de Lebeziatnikoff, ou as gargalhadas loucas de Porphyrius Petrovitch na sua aparência de novo-rico. Corpos estranhos, tão inaturais como o de Raskolnikoff, mas sem grande espaço, talvez, para se projectarem como este num rico imaginário. Crime et Châtiment ultrapassa-se nesses momentos, em que nem sempre percebemos o que se nos diz, em que as cenas e as memórias se misturam, em que os actores tentam sair dos seus corpos, viram-nos as costas e encaram a morte, cientes de ser esse o castigo de se viver. Nem sempre de maneira confortável ou facilitada, mas quem não deseja esse choque, não tem alma para o seu corpo. Talvez seja essa a sua grande lição. Crime et Châtiment apresenta-se no Théâtre des Gémeaux, de 23 de Novembro a 2 de Dezembro.

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ISTO NÃO É UMA PUBLICIDADE.

I AM A MISTAKE, DE JAN FABRE, EM COLABORAÇÃO COMCHANTAL ACKERMAN E WOLFGANG RIHM Texto Florent Delval © Chantal Akerman

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Já repararam que nenhuma personagem fuma nos filmes de Eric Rohmer? O cigarro era, a seus olhos, um acessório fetiche de um certo cinema onde o vazio se mantinha como horror. Enchendo espaço. O cigarro ocupa as mãos, dá presença ao actor silencioso. Torna os homens mais viris e as mulheres mais femininas. O seu fumo enche a imagem e cria movimento. O cigarro é um gesto simples, vazio de sentido: um ornamento. Um talismã de virtudes mágicas, até. Na cena do auditório do Palácio das Belas-Artes de Bruxelas (Bozar para os íntimos), quatro dançarinas fumam cigarro atrás de cigarro. Fumam, portanto, de maneira ostensiva. Admiremos, apesar de tudo, o gesto de coragem e pensemos em todos os espectáculos recentes onde os artistas tiveram que trocar em palco o cigarro pelo chupa-chupa. A lei vai ficando rígida até ao absurdo. Percebemos a jogada explícita de Jan Fabre, mas à saída, ficamos um pouco na dúvida. I am a mistake é-nos vendido como uma ode à liberdade. Nada mais lógico? O cowboy Marlboro, respirando o ar fresco dos grandes espaços, não pede mais nada. Mas uma vez removida a sua cobertura plástica, nenhuma liberdade se avizinha no horizonte. Um aviso: a fotografia não é contratual. Quando acendemos um cigarro, não são apenas vários metros cúbicos de fumo que preenchem o espaço mas

também imagens sem número. Tanto surgem as imagens de Epinal de vendedores populares, da vida simples, assim como, paradoxalmente, a pouco mencionada imagem do glamour, diametralmente oposta… Desde sempre que o cigarro alimenta o discurso. Um discurso onde a incoerência apenas encontra igual na forma irracional com que se tenta impor. Quando a publicidade se junta ao mito… Poder-se-ia trabalhar sobre esse assunto, e de forma apaixonante… Mas ficamos com a sensação progressiva que estamos a assistir a uma conotação bastante pouco assumida de um produto. Se Jan Fabre soube anteriormente utilizar a dança (herdeira do clássico) como um sinal, um símbolo de um código restrito ou para traçar linhas claras entre a desordem do corpo, de gritos e secreções, aqui não passa de uma carapaça vazia. A coreografia lisa e mutável é executada por atletas que constituem um grupo que chama a si a publicidade. E mesmo assim, o cinismo publicitário soube, neste últimos anos, recuperar até o desagradável e o seu segundo grau. Falta a I am a Mistake um recuo singular e alguma autocrítica para trazer um pouco de subtileza a este ensaio académico. No texto – escrito no final dos anos oitenta, e, por isso, não colaremos oportunismos ao autor –, evidentemente, o artista fumador inveterado morre com um cancro na garganta. Uma bela ilustração deste lugar


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comum – “sim, fumar mata, mas viver também”. Trocamos banalidades no café da esquina, onde os frequentadores do bar, ao cuspirem, já não se parecem muito com James Dean. Utilizar alguns procedimentos para denunciar um certo discurso, atribuindo-se as figuras e os códigos, resume-se a reproduzir um outro discurso com a mesma linguagem. É algo de recorrente na arte, mas o seu resultado oscila frequentemente entre a ingenuidade e o indigesto. Existem maneiras mais subtis. Mais grave ainda é o facto de alguns não parecerem estar conscientes dos códigos que recuperam. Rodrigo Garcia não é o único exemplo. Dizer mal da Coca-Cola ou do McDonalds não é um problema. É de uma simplicidade desarmante, melhor que um slogan. Aqui, dizer mal do cigarro, que não deixa contudo de ser um símbolo do capitalismo (um bem criado pelas multinacionais, uma adesão para a vida), não é tão bom. Outros lugares comuns cobrem a peça de Jan Fabre: a ditadura da moda em papel de fotografia, os rostos inquietantes dos maus deste mundo, Bush, Putin, Le Pen, Bin Laden, etc. (sejamos equiparáveis, mesmo na denúncia). Felizmente que estas imagens são assentes com a malícia de uma criança brincalhona diante dos seus colegas de turma, de cigarro na boca. Mas de Jan Fabre estaríamos no direito de pedir outra coisa…

Se a peça fosse interessante, a utilização paralela de um ecrã de cinema teria sido um êxito. É raro ver um espectáculo onde a performance viva e as imagens funcionem de maneira tão equilibrada, sem que uma atropele a outra. Infelizmente, o filme de Chantal Ackerman também é uma desilusão: não é mais que o reverso obscuro de uma publicidade para produtos lácteos. Mulheres fumam em situações diferentes das suas vidas quotidianas. Vinte e quatro horas de uma mulher que fuma. Um universo de liberdade, sem a censura dos homens. Um catálogo de momentos banais e de emoções, elevada pelo calor dos cigarros e das relações humanas. Enfim… Podemos, apesar de tudo, ouvir a partitura de Wolfgang Rhim de olhos fechados… Talvez o fumo que emana do palco nos evoque imagens de concertos de rock… O colisão pode ser engraçada.

I am a Mistake apresentou-se a 11 de Dezembro no Bozar, em Bruxelas. Tradução do francês: Francisco Valente

Teto publicado em colaboração com a revista Mouvement


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A FESTA DOS SIGNOS

O AVARENTO OU A ÚLTIMA FESTA, PELO TEATRO PRAGA texto João Paulo Sousa fotos: João Tuna

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O primeiro indício para uma leitura proveitosa deste espectáculo pode ser encontrado no título, O Avarento ou a Última Festa, em que a referência ao teatro de Molière aparece associada à ideia de transição ou passagem contida na segunda parte do sintagma. É ainda como uma invocação do dramaturgo francês, por analogia com Dom Juan ou le Festin de Pierre (1665), que ele se constitui por um processo de disjunção. Assim, o título indicia uma apropriação da peça L’Avare (1668), cuja utilização é equiparada a um movimento de despedida, de abandono, o que parece pressupor também a noção de um recomeço. Com esta lógica de descontinuidade discretamente subsumida no título, não admira que o espectáculo se organize segundo o princípio da fragmentação e da colagem. Na verdade, esta estratégia criativa não é uma novidade relativamente ao trabalho do Teatro Praga, que sempre apostou no permanente questionamento das convenções teatrais, desse modo tornando mais explícita a interpelação ao espectador. O que aqui se apresenta como uma efectiva inovação nesse processo de maturação artística é a utilização de um texto que foi escrito de propósito para o grupo. Ora, a inserção de um tal espectáculo no seu repertório só é possível graças a uma lógica de cumplicidade e de contaminação artística que funciona como um prolongamento da leitura de trabalhos anteriores do Teatro Praga. Isto significa que a


escrita de José Maria Vieira Mendes, ao encarar L’Avare como um hipotexto capaz de estruturar uma complexa rede de afinidades mais ou menos electivas, o faz na consciência de que esse é o procedimento adequado aos pressupostos teóricos e estéticos do grupo. As falas das personagens tornam-se, assim, na expressão verbal dessa explosão e disseminação de referências que se estende a toda a peça (e de que a peça também se serve para se estender), atravessando o registo suave da tradição lírica, bem ancorada nos primórdios medievais e renascentistas (D. Dinis e Sá de Miranda são autores explicitamente convocados), até à violência reiterada de um calão remetendo em grande parte para o acto e os órgãos sexuais. Radicou aqui um equívoco da recepção pública da peça, com o riso a ser despertado entre os espectadores sempre que vocábulos como cona, caralho ou foder eram repetidos, quase à maneira de uma comprovação das palavras de Georges Bataille: “A extrema liberdade que está ligada à brincadeira ou à graçola é acompanhada, normalmente, por uma recusa em tomar a sério — em tomar tragicamente — a verdade do erotismo”1. Dir-se-á que falar em equívoco é um exagero relativamente a uma peça que pretende conceder uma enorme liberdade interpretativa. Na entrevista que os actores e autor, transcrita no programa do espectáculo, Vieira Mendes afirma mesmo que metade do trabalho cabe ao espectador. Se, de certo modo, esse preceito é válido, em teoria, para qualquer espectáculo, tal só se verifica, na prática, quando é exigido a cada elemento do público um esforço que o obrigue a abandonar a letargia em que tão comodamente se deixa cair. Não é esse um problema de O Avarento ou a Última Festa, que interpela reiteradamente a assistência, não como um colectivo baço, mas como a reunião de várias individualidades. Paradigmático deste tipo de abordagem são as últimas cenas, em que a referência à diminuição do número de presenças, a par da menção à dificuldade de concluir uma peça de cinco actos, instaura um jogo irónico que parece atingir directamente cada um dos espectadores. Ora, paradoxalmente, essa suposta dificuldade em acabar parece ter origem no próprio início da peça, em que a ideia de desagregação já se encontra presente de uma forma tão excessiva na encenação que dilui a intensidade dessa espécie de corte epistemológico, a separar as duas grandes metades do texto, que é o propósito de matar o pai. Dito de outro modo, tanto a encenação como a abordagem das cenas instauram, desde o início do espectáculo, a noção de uma identidade fragmentária, dispersa, em que a recusa de uma instância legitimadora, autoritária, se encontra já inscrita. O processo de colagem, que, em simultâneo, estrutura o texto e organiza a construção do cenário, é um vestígio dessa diluição autoral que a modernidade nos revelou em definitivo. Se não há como lhe escapar, reiterar a sua evidência assemelha-se sobretudo a um

processo de autoconhecimento, a um estado de crise, que pode ser perspectivado como uma etapa de transição para uma nova fase. Nesse sentido, o vazio em que parecem cair as personagens libertas das orientações autoritárias de uma voz de comando, aqui presentificada em Arpagão (Pedro Penim) e no Engenheiro Maleiro (Marcelo Urgeghe), é o equivalente, no espectáculo, à contemplação das possibilidades que se abrem ao Teatro Praga a partir desta peça. É como um indício do horror ao vazio tão geneticamente barroco que pode ser lida a proliferação de signos que enche o palco desde o princípio, mas essa desconexão não se revela obrigatoriamente produtiva, e tende mesmo, em alguns momentos, a esvaziar-se na redundância e na previsibilidade. Para o já assinalado efeito de dissolução, contribui ainda a entrega de personagens geracionalmente bem distintas a actores que têm idades aproximadas. É uma forma de clarificar a ideia de que o conflito fundamental da peça não se pode resumir a uma questão geracional, antes se consubstancia num problema de ordem existencial, pois o confronto entre as entidades paterna e filial opera sobretudo no interior de cada indivíduo. Esta estratégia de distribuição do elenco, que até pode ser vista como estando directamente relacionada com os condicionalismos específicos da produção, tem ainda a vantagem de potenciar a reflexão metateatral inerente à atribuição de um determinado papel a um actor. Arpagão pode, então, abordar a dificuldade do protagonismo, pode manifestar a angústia inerente à solidão em palco ou à ocupação da frente da cena. Não é, no entanto, de uma interrupção da ilusão mimética ou dramática que aqui se deve falar, pois a verdade é que ela, em consequência da encenação colectiva, já se encontra sabotada desde o começo do espectáculo. Que festa é, então, a última de que se fala no título? Atravessada por um êxtase libertador, de pendor dionisíaco, ela representa uma etapa fundamental para a emancipação de algumas personagens, verdadeiras metonímias do colectivo teatral, que encontram na violência expressiva das suas manifestações uma possibilidade de atenuarem a angústia inerente ao confronto com um mundo finalmente liberto dos ditames autorais. É o propósito de escapar à autoridade externa que conduz as palavras e os actos de cada uma dessas personagens (e, através delas, os do próprio grupo), assim as impelindo à radicalidade de gestos que recusam as ordens da razão e perspectivam a intuição como a única possibilidade de ocuparem o vazio do mundo e de lhe reconstituírem o sentido. O Erotismo (L’Érotisme, 1957), Lisboa, Antígona, 1988, p. 236.

1

Estreada a 27 de Junho no Teatro Nacional S. João, a peça apresenta-se em Janeiro, dias 4 e 5 na Black-box do Espaço do Tempo, Montemor-o-Novo, e no Pequeno Auditório do CCB, Lisboa, de 11 a 19. O sítio do TNSJ (www.tnsj.pt) disponibiliza os textos do programa, incluindo entrevista à companhia, comentário de Jacinto Lucas Pires e excertos de um ensaio de Peter Sloterdijk.

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OH AS CASAS AS CASAS AS CASAS

MANEIRAS DE LER ALGUMAS PEÇAS DE JOSÉ MARIA VIEIRA MENDES texto Francisco Frazão fotos: A Minha Mulher © Margarida Dias

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Há várias maneiras de ler peças: em folhas acabadas de imprimir, directamente no ecrã do computador, ainda incertas na boca dos actores durante os ensaios. Versões que por mais finais nunca parecem, pode sempre desaparecer um monólogo, um adjectivo, mudar o título. Podem ler-se as peças em livro, ou numa revista: aí, tudo tem um ar definitivo, ficou assim, pronto, não se fala mais nisso (olha uma gralha) – mesmo que se venha a falar, que ainda haja ensaios e cortes e acrescentos. Ou às vezes o livro vem depois do espectáculo, as indicações cénicas reproduzem os movimentos dos actores e não o contrário, o texto como reportagem de uma encenação. Tive a sorte de ir lendo os textos do José Maria Vieira Mendes (Zé Maria, zm, Zé – aqui JMVM) destas várias maneiras. Ficam bem as peças nestes Livrinhos de Teatro dos Artistas Unidos. Primeiro o T1 e Se o Mundo Não Fosse Assim, agora A Minha Mulher e Onde Vamos Morar. A Minha Mulher ganhou este ano o Prémio Luso-Brasileiro de Dramaturgia António José da Silva, já foi lida


em Nova Iorque, produzida na Suécia e encenada cá por Solveig Nordlund; Onde Vamos Morar vai ser estreada para o ano pelos Artistas Unidos, com encenação de Jorge Silva Melo. Entretanto JMVM escreveu O Avarento a partir de Molière para o Teatro Praga (publicação para breve?), Domingo (para as Urgências 2007) e Duas Páginas (para o programa Mecenas, Mecenas dos Clássicos na Gulbenkian, a editar na próxima revista Artistas Unidos).

acontece que o teatro (algum teatro, a maior parte) costuma ter pessoas que fingem que são outras, e costuma acontecer num palco todas as noites mais ou menos igual. As peças de JMVM servem-se disso, pensam sobre isso – conhecem uma tradição, e as suas transformações. JMVM é, aliás (provavelmente, como se diz da cerveja), o dramaturgo português contemporâneo que mais e melhor leu o teatro que se vai escrevendo agora.

2.

3.

É no nº 14 da dita revista que JMVM, num texto chamado “O Meu Papel”, avança uma teoria que permite agrupar e organizar os seus textos, desenhar uma linha de sentido que os atravessa (entre muitas possíveis): “dei por mim a reciclar. Quero eu dizer que por exemplo tenho na peça uma casa e tento dar-lhe o uso de quatro [T1]. Ou tenho três actores e obrigo-os a sete personagens [Se o Mundo…]. Ou, como no que agora escrevo, três cenas e dou-lhes o uso de seis [A Minha Mulher]. Faço render o peixe”. É uma estética da poupança, meio a sério meio a brincar, vinda de quem no primeiro texto para teatro, reciclando Kafka, pegava por exemplo no “Artista da Fome”. Mas outro nome para isto é a exploração das possibilidades do teatro enquanto prática específica, um gesto herdeiro – o que não quer dizer sinónimo – de alguns modernismos que procuravam delimitar e reflexivamente trabalhar em cada arte o que a define. É assim que, nos três exemplos citados, se procede a uma investigação meta-teatral do espaço, da relação entre actor e personagem e do tempo, respectivamente. Pegue-se no primeiro e no último textos. As quatro personagens de T1 têm cada uma a sua casa, mas o cenário representa-as a todas numa só, porque no teatro é normalmente a um único espaço real bem delimitado (o palco) que cabe representar todos os espaços da ficção (1). Já em A Minha Mulher, ao fazer começar a maior parte das 9 cenas de II da mesma forma que em I, está-se a indicar a natureza repetível do teatro (de que normalmente se diz, e também é verdade, que é irrepetível): uma representação é quase igual à da noite anterior, daí o prefixo. À Espera de Godot (que JMVM traduziu) não demonstrava outra coisa. Não se trata no entanto aqui de um projecto minimalista, de redução a espaços vazios e à relação essencial entre actor e espectador. Nada de tão destilado e cheio de certezas:

Há uma nota inicial em A Minha Mulher: “Esta peça começou a ser escrita depois da leitura da peça em um acto de Strindberg Brincar com o Fogo.” Não é o mesmo que dizer que é uma adaptação: os textos de JMVM distribuem-se de forma clara entre os pólos dos “originais” e as “versões” (a partir de Kafka, Schnitzler, Dostoievski, Damon Runyon, Molière), e A Minha Mulher pertence claramente ao primeiro grupo. O que interessa aqui é o prolongamento da actividade da leitura no gesto da escrita, como que numa só respiração. É a continuação do mesmo por outros meios (outra declinação será traduzir); tal como os críticos dos Cahiers du Cinéma que fizeram a Nouvelle Vague escreviam enquanto cineastas antes de terem impressionado um metro de película que fosse, também JMVM lê como escritor – e escreve como leitor. Há outra maneira? A peça resulta do atrito entre duas dramaturgias: a já mencionada repetição beckettiana e o realismo ácido colhido em Strindberg. Se T1 era um jogo de superfícies, retrato de uma geração onde os fantasmas do passado ficavam de fora (Laura nunca chega, o pai de Chico foi-se embora, a mãe de Sara só se adivinha ao telefone), A Minha Mulher, ao pôr em cena uma família, torna palpáveis os conflitos, acorda os espectros, dá às personagens um lastro de que elas não se conseguem ver livres, e que é tão português quanto nórdico (não só Strindberg, também está por exemplo na Gaivota ou no Solness, ou em Jon Fosse, que se lembra de todas essas peças). A epígrafe de Kierkegaard, ao fazer equivaler repetição e recordação (“o mesmo movimento, apenas em direcções opostas”), traça uma correspondência entre as duas dramaturgias. Se no Pai a repetição é a consciência da morte (“Quando chegas à minha idade descobres que andas há uma data de tempo a fazer uma série de coisas da mesma maneira”), para Nuno repetir é ter a certeza de conservar o passado (“É o princípio do amor feliz. Daquele que nunca acaba. E que não se esquece.”) Se em António, Um Rapaz de Lisboa de Jorge Silva Melo (espectáculo fundador de um projecto de teatro contemporâneo ligado ao aqui e agora) se lia em cena o jornal do dia, na inflamável casa de férias de A Minha Mulher os jornais são velhos de dois meses e trazem sempre as mesmas notícias. Como não há fuga ou saída, as janelas estão fechadas e >>

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nem a água corre, pai e filho têm de lutar pelo mesmo espaço (“Ganhar terreno. Conquistar o território.”). A Minha Mulher inaugura no percurso de JMVM (como o próprio afirma) uma trilogia sobre pais e filhos que continua em O Avarento e termina em Onde Vamos Morar (é o “generation gap”, diz Arpagão). Em A Minha Mulher, Nuno morre (?) (2) às mãos do amigo, Alexandre, que substitui o Pai (o que se deduz tanto da intriga como do esquema das cenas repetidas, com a posição do Pai a ser ocupada estruturalmente por Alexandre).

4.

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Este combate, ao centrar-se no domínio do lugar, não pode deixar de ser pinteriano, com os seus avanços e recuos, provocações, ameaças e violências súbitas. E ao falar de propriedade não pode deixar de ser político. Em O Avarento, Cleanto consegue tomar posse da casa, expulsando Arpagão, tal como Larcão conquista a oficina – numa equivalência entre complexo de Édipo e luta de classes que se pode ler também na Afabulação de Pasolini. Mas estes novos senhores não sabem o que fazer com o poder recém-conquistado. Se a ordem velha era a do teatro clássico com os seus cinco actos (que a peça tão bem usa até ao fim do segundo), a nova dilui-se em cenas dispersas e falsos finais. JMVM tem experimentado várias formas de permeabilidade entre a sua escrita e o processo de ensaios. T1 tem foto: João Tuna

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uma nota inicial em que se agradece a contribuição de actores e encenador, Se o Mundo… saiu no livro antes das modificações do espectáculo e nas peças agora publicadas essas alterações praticamente não existem (a segunda ainda nem estreou). O Avarento parece uma solução mista, com o terceiro acto a ser escrito durante os ensaios – o que coincide com a ruptura formal do texto. O que é interessante é a forma como esse corte faz tanto sentido para a escrita de JMVM (é a influência da parede das Ruínas que vem desabando desde T1) como para o percurso do Teatro Praga – basta pensar no caos que substituía o terceiro acto de Private Lives de Nöel Coward. O Avarento tem como subtítulo A Última Festa (brincadeira com Fin de Partie/Endgame, de Beckett?) , e o que o texto faz é escrever essa recusa da escrita, da forma, o desregramento lúdico que atravessa ainda outros espectáculos da companhia, como Agatha Christie e Discotheater. Pode dizer-se que O Avarento conta, e é uma provocação, a história dos Praga (tal como o recente Construtor Solness parecia falar da Cornucópia). À medida que as personagens vão abandonando a casa que foi de Arpagão, instala-se uma melancolia a que se pode chamar tchekoviana se não for irónica (3) (mas não dizia Tchekov que escrevia comédias?).


5.

Há pouco para rir em Onde Vamos Morar, a peça onde o desespero é mais fundo. É uma espécie de negativo de T1: se no texto de 2003 a casa circulava pelas várias personagens, agora são as personagens quem muda de casa como de camisa ou de sapatos, ocupando os lugares (e os sapatos) que vão sendo deixado vazios. A desorientação de Mário, que nunca acerta no destinatário das flores que entrega ao domicílio, é menos o sinal de uma empresa que não funciona bem do que o sintoma de toda uma comunidade à deriva. Ao contrário de A Minha Mulher, as personagens agem, rompem, partem, regressam, trocam de emprego, mas nenhum gesto as resgata da estagnação. Como diz Mário, entusiasta de fotografia: “Parece que não morreram. / Os teus pais. Na fotografia. Estão. Não sei. / Parece que é uma vida que parou. Mas que pode arrancar daqui a bocado. / Assim de repente. Assim como eu.” Ou Gustavo: “Precisava de uma casa já com vida, percebes? / Uma que estivesse parada mas com tudo pronto para arrancar.” Cada um está parado, e além disso sozinho. Quase todas as cenas são a dois, mas praticamente só um fala, em longas tiradas. Quando Vítor diz à mulher (que o vai deixar) “Já te calaste? Posso falar agora?”, a cena acaba. E Patrícia diz à irmã, quase no fim: “acabou-se a conversa, o diálogo, acabou-se / se é isso que tu queres não vale a pena.” Neste texto, pai e filho partem juntos para apanhar “um comboio cheio de gente” que atravessa a cidade

de madrugada, “todos calados”, entre a composição suburbana e os vagões a caminho de Auschwitz, ou o desfile dantesco reciclado por Eliot (“I had not thought that death had undone so many”). O título da peça é o último verso da primeira estrofe da “Canção do Desterro” de Zeca Afonso, que está em epígrafe; o fim da última estrofe é “Onde vamos morrer”. Mas no percurso de JMVM, Onde Vamos Morar é o princípio de outra coisa que vou querer ler. Seja de que maneira for. É possível estabelecer uma relação de influência entre as encenações das peças de Sarah Kane n’a Capital (e não só os textos propriamente ditos) e T1: as quatro vozes de Falta (Crave) habitavam todas o mesmo apartamento – feito com as paredes do próprio edifício –, umas vezes interpelando-se, outras como se não se vissem; e em Ruínas (Blasted), uma bomba fazia cair uma parede, e a peça tornavase outra – como na Segunda Parte de T1, onde as quatro casas ficcionais se tornam uma só. (1)

Não se vê o tiro, porque a peça é pontuada por inquietantes blackouts no início e no fim de cada cena. As elipses, o não-visto, são um procedimento recorrente em JMVM, fugindo aos clímaxes da intriga convencional. Onde Vamos Morar alterna cenas de noite e de manhã, sem tardes. E quanto a T1, não é um T0, onde estaria tudo à vista. (2)

Ainda não vi o espectáculo. Mas não cessa de me surpreender que a preguiça dos jornais nacionais os tenha impedido de recensear, no Porto, onde estreou, uma produção com os evidentes motivos de interesse que esta tinha. (3)

As peças de José Maria Vieira Mendes estão editadas na colecção Livrinhos de Teatro, da Livros Cotovia e Artistas Unidos. Cada volume € 7.

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FUTEBOL: EUFORIA E ABSTRACÇÃO texto José Mário Silva 116

No DocLisboa, que decorreu entre 18 e 28 de Outubro, foram vários os filmes que abordaram, de diversos ângulos, o chamado “desporto-rei”. Da fixação nos rostos dos adeptos durante a final do campeonato do mundo vista pela TV (Lech Kowalski) ao foco obsessivo sobre Zinedine Zidane num jogo do Real Madrid (Douglas Gordon e Philippe Parreno), o olhar dos cineastas mostrou-se suficientemente poderoso para transfigurar um universo de imagens que ocupa cada vez mais espaço no panorama audiovisual contemporâneo. Num reformatório de Teerão, adolescentes estendidos no solo assistem à estreia da equipa iraniana no campeonato do mundo de 2006, em Nuremberga (Alemanha). Os rapazes entusiasmam-se com a iminência de um golo e desesperam logo depois, quando Omar Bravo inaugura o marcador para os mexicanos, antecipando a derrota final (por 3-1). Atenta, a câmara de Mehrdad Oskouei fixa-se nas reacções dos miúdos e no desalento que é apenas um indício de desalentos maiores. Uns escondem a cara, outros baixam os braços, todos parecem à beira de um choro que mais adiante no documentário (intitulado It’s Always Late for Freedom), há-de chegar em circunstâncias de verdadeira dureza, quando apertam as saudades da família ou o tribunal adia sucessivamente uma ordem de soltura. O futebol é aqui apenas mais uma metáfora da desesperança de um grupo de menores presos por consumirem drogas, por fugirem de casa ou por entrarem em desacatos. Jovens que nem

na sua forma de escape mais imediata encontram motivos de alegria e superação. Numa altura em que o desporto invade de forma brutal o espaço mediático, impondo-se como uma das linguagens visuais dominantes (a par do modelo narrativo das telenovelas), não deixa de ser irónico que seja o cinema documental, justamente uma das vítimas deste poder normalizador, a revelar-nos a complexidade de um fenómeno que está longe de se esgotar em 90 minutos, durante os quais o relvado se transforma na versão moderna da arena dos circos romanos ou do palco das tragédias gregas. Isto é, um lugar de catarse. Além de It’s Always Late for Freedom, outro dos filmes apresentados no DocLisboa deste ano que aborda tangencialmente o mundo do futebol é Alguna Tristeza, de Juan Alejandro Ramírez, um ensaio pessoalíssimo que parte da memória de uma injustiça: a eliminação fraudulenta da equipa peruana que ganhou em campo contra a selecção austríaca, nos Jogos Olímpicos de Berlim (1936), mas se viu forçada a repetir o jogo devido a supostas irregularidades nunca provadas. Ramírez parte das fotografias da época, onde vemos a melancolia estampada nos rostos dos jogadores, para reflectir sobre um certo fatalismo que ainda hoje pairará sobre a sociedade peruana. E se o filme se perde em derivas autobiográficas excessivamente sentimentais, não deixa de ser curioso que termine com imagens de uma vitória comemorada pelo povo nas ruas de Lima, como apogeu possível de uma frágil euforia identitária.


É também por aí que vai, mas de forma muito mais linear e conseguida, o magnífico Winners and Losers, de Lech Kowalski. Quatro dias antes da final do campeonato do mundo de 2006, o realizador decidiu abordar o decisivo Itália-França com uma espécie de campo-contracampo. Onze câmaras em Roma, onze câmaras em Paris. E três núcleos em cada cidade: uma família de classe média sentada em frente à TV, um café de bairro popular e um daqueles estádios improvisados diante de um ecrã gigante, a abarrotar de adeptos de cara pintada com as cores da bandeira nacional. Com um dispositivo destes, a dificuldade de Kowalski estava na selecção e montagem das imagens que mostram, se assim se pode dizer, o avesso do grande jogo. Ou seja, a forma como as incidências dentro de campo se reflectem nos rostos, nas expressões e nos gestos de pessoas muito diferentes, confrontadas com imagens que estavam a ser vistas simultaneamente por milhões de pessoas em todo o planeta. Omitindo cerca de 70 minutos da partida, que foi a prolongamento e penaltys, Kowalski concentrou-se em determinadas sequências (golos, lances polémicos, cartões amarelos) e no modo como um mesmo facto pode ser percepcionado de forma radicalmente oposta, consoante o lugar de onde é visto. Mais do que um exercício sobre o fanatismo que o futebol engendra e propaga (também presente, por exemplo nos insultos dirigidos pelos tiffosi à mãe de Zidane, após a célebre cabeçada do francês em Materazzi), Winners and Losers é uma extraordinária aproximação à essência humana de um acontecimento colectivo integrador (vejase a forma como os imigrantes apoiam les bleus no café parisiense) e que permite, no final, uma sensação de reconfortante comunhão, seja na alegria irracional de uma vitória que pode nascer apenas do acaso ou da sorte, seja na derrota que para muitos é o sucedâneo possível da tragédia numa sociedade obcecada com a normalidade e a segurança.

Last but not least, tivemos Zidane, un Portrait du 21ème Siècle (na pagina anterior), de Douglas Gordon e Philippe

Parreno, o mais aguardado e radical dos filmes com uma abordagem futebolística do DocLisboa 2007 (estreado comercialmente logo depois, esteve em exibição numa das salas do cinema Alvaláxia). Mais conhecidos como criadores no campo da arte conceptual (Parreno tem obras expostas no Guggenheim de Nova Iorque, Gordon venceu o Prémio Turner em 1996), os autores arriscaram um tour de force: filmar Zinedine Zidane com 15 câmaras de 35 mm e duas de vídeo (alta definição), durante o jogo Real Madrid-Villareal, disputado no Estádio Santiago Bernabéu a 23 de Abril de 2005. E quando se diz filmar Zidane, é mesmo de Zidane e só Zidane (ou quase) que se fala. Os sofisticadíssimos zooms captam cada gota de suor que escorre pela careca do jogador, cada arranque, cada toque, cada passe, cada pancada

com a ponta da bota na relva. Tudo o resto se dissolve ou dissipa, seja o movimento dos companheiros e adversários, seja o ruído do público nas bancadas. O quase transe que o filme provoca nasce de um paradoxo. Se o futebol é um desporto colectivo, a observação de um só jogador torna-o incompreensível, para não dizer penoso e exasperante. Ao centrar a sua atenção em Zidane, Gordon e Parreno violam a lógica do jogo, imergindo-nos num território de descontinuidades (na maior parte do tempo ele está ausente, por vezes distraído, quase sempre solitariamente à espera de receber a bola como quem espera por Godot). E assim, com o recurso a uma montagem vertiginosa, intercalando close ups no estranho bailado dos jogadores, ao som das derivas melódicas dos Mogwai, o futebol deixa de ser uma coisa concreta para se transformar numa gloriosa e perturbante abstracção. A única vez que Gordon e Parreno escapam ao seu solipsismo estético é no momento – ignorado pelas críticas ao filme – em que recuperam vários dos acontecimentos daquele 23 de Abril. Uma conferência internacional em Kuala Lumpur, por exemplo, ou a notícia do avistamento, nos EUA, de uma ave que se julgava extinta. Há mundo para lá do futebol, parecem dizer as imagens. Mas ironicamente, na mais forte dessas imagens, que mostra os efeitos de uma explosão em Najaf (Iraque), vemos um rapazinho junto aos destroços com o equipamento alternativo do Real Madrid (preto em vez de branco). O número da camisola é o 5. E o nome por cima do número é o de Zidane.

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BERENICE. RASCUNHOS. DE SON APPARTEMENT, DE JEAN-CLAUDE ROUSSEAU texto Carlos Pimenta

00:00:00 “Havia muito tempo que eu queria tentar ver se podia fazer uma Tragédia com essa simplicidade de Acção que era tão do gosto dos Antigos. Pois esse é um dos primeiros preceitos que eles nos deixaram. Que aquilo que

fizerdes, diz Horácio, seja sempre simples e não deixe de ser uno! (…) Há os que pensam que esta simplicidade

é uma marca de pouca invenção. Esses não pensam que, pelo contrário, toda a invenção consiste em fazer alguma coisa a partir de nada…

Jean Racine, Prefácio a Berenice

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00:00:01 – Plano fixo: interior – noite Um homem de costas. Fecha-se uma porta. Câmara fica na cortina. Imóvel. Passos. Corte. Silêncio. Escuro. Ouve-se uma voz do homem que é a voz de Tito. Corredor. Apartamento. Austero. Quase o vazio. Silêncio. Escuro.

Arrêtons un moment. La pompe de ces lieux, Je le vois bien, Arsace, est nouvelle à tes yeux. Souvent ce cabinet superbe et solitaire Des secrets de Titus est le dépositaire C’est ici quelquefois qu’il se cache à sa cour, Lorsqu’il vient à la reine expliquer son amour. Corte. 00.10.03 – Plano fixo Um café. O som da rua. Uma mulher sentada numa mesa. Berenice? O silêncio. Plano fixo. Quase vazio. Outra vez o silêncio. Quase vazio. Berenice. Escuro. Corte. Exterior. Corpos que se insinuam numa dança latina. Escuro. Interior. Noite. Apartamento. Um homem descalço recupera no ritmo dos seus passos a memória dos corpos. Silêncio. Escuro.

Para decirme que te vas, Tu tienes que pensarlo tanto… Corte. 00:50:10 – Plano fixo: interior - noite O rosto do homem. Agora as palavras de Berenice envoltas no fumo de um cigarro. Corte. Silêncio. Plano fixo

de uma janela. Quase o vazio. O som que vem de fora. Outras vozes. Silêncio. Escuro.

Dans un mois, dans un an, comment souffrirons-nous, Seigneur, que tant de mers me séparent de vous? Que le jour recommence, et que le jour finisse, Sans que jamais Titus puisse voir Bérénice, (…) Escuro. Corte. 00.71.00 – Plano aproximado: exterior – dia

De son appartement, é um filme de 71 minutos reali-

zado em 2007 por Jean-Claude Rousseau (Paris, 1946) e constitui um singular esboço sobre Berenice de Racine (representada pela primeira vez em 1670). Como em todos os seus filmes, Rousseau privilegia a câmara fixa e os planos longos de maneira muito pessoal. Projecto de risco e de mistério, nele reconhecemos a simplicidade da acção, que vai quase até ao despojamento e que faz de Berenice uma verdadeira “tragédia sobre quase nada”. Peça da não acção, Berenice é, contudo, uma sucessão de tragédias íntimas – o homem na sua solidão. Filme de majestosos silêncios, tal como a tristeza de Berenice, De son appartement é uma obra avara de palavras, no qual o espectador é exigentemente convocado a preencher o vazio deixado na sucessão de planos fixos que vão libertando espaço ao pensamento. Na sua austera beleza, na sua desconcertante “não acção”, De son appartement é uma obra à qual apetece colar as palavras de Grüber, que encenou a tragédia de Racine em 1984: “Em Berenice há gritos antes do silêncio”.

Carlos Pimenta encenou Berenice em 2005, no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa. De son appartement venceu o Prémio da Competição Internacional no 18º Festival Internacional do Documentário de Marselha 2007 e mostrou-se no DocLisboa 07.


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CINCO POSSIBILIDADES

THE FIVE OBSTRUCTIONS, DE LARS VON TRIER E JØRGEN LETH texto Emmanuel Veloso 120

Um pedagogo para Lars von Trier, Jørgen Leth define “o homem perfeito” numa curta-metragem em 1967, Det perfekte menneske. Trinta e quatro anos depois, reúnem-se a convite de von Trier sob o propósito de Leth a refazer em cinco iterações com regras impostas. Não há guião, aliás, não há nada planeado na intenção aparentemente destrutiva. Leth nunca esteve em Cuba apesar de viver no Haiti. Logo, uma das condicionantes na primeira obstrução será de fazer a rodagem em Cuba, “obviamente”. Adicionalmente, nenhum troço editado poderá ter mais de 12 fotogramas. Jørgen consegue-o agilmente. Interessa fazer sentir uma imposição, colocar o realizador num espaço inverso e fragiizá-lo além da sustentabilidade. Qualquer hesitação de Jørgen é explorada por von Trier. São os cânones. Gerada uma dinâmica interpessoal mediada por admiração mútua, as regras do jogo colocam ambos realizadores em posições diametralmente opostas. “My plan is to proceed from the perfect human”, elabora von Trier. Nesta progressão sujeita a desmembramentos e articulações tendencialmente impeditivas, o que se retira à liberdade, acresce na possibilidade de escape de um problema que Leth responde. O que há de constante nas mutações de uma linguagem cinematográfica é o fulcro do que realmente é valorizável na sua intenção da curta metragem original e Leth consegue esgrima-lo

sendo conceptualmente verdadeiro consigo próprio. Até que ponto a visão de Leth é comprometida? É justamente no limite que von Trier se denuncia familiar quando tende inevitavelmente para o sadismo ao explorar possibilidades. Apesar do bom ânimo de um espicaçar de oportunidades de sobrevivência, o único veículo capaz de lhe comunicar sucesso é a expressão de uma derrota imensamente sofrida pelo adversário. Será equivalente dizer-se que von Trier quer Leth humano, paradoxalmente além de si próprio, mais próximo de um conceito isolado no branco. Uma ilustração de um manifesto do homem perfeito e não uma extensão no quotidiano. Admitindo essa possibilidade, a premissa de se conhecer o adversário correria perigo (uma das poucas áreas que von Trier se reconhece perito), anulando o fundamento para este jogo. O manipulador das regras não é manipulado senão no próprio movimento da provocação. Como expresso na carta redigida por von Trier dirigida a ele próprio pela voz de Leth na última obstrução, em uníssono forçado, Leth sofre o golpe da aproximação de von Trier, um admirador que piedosamente sempre lhe quis oferece a paridade (Koch Lorber Films, 16,10€. O dvd inclui a curta-metragem Det perfekte menneske).



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UNFINISHED, IMAGEM ABERTA UNFINISHED, DE SOPHIE CALLE texto Francisco Valente © Sophie Calle (2003)

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Numa das sessões do festival Rencontres Internationales Paris/Berlin/Madrid no Centre Pompidou, dia 24 de Novembro, falava-se sobre o tema “Représenter/ Surveiller” (Representar/Vigiar). Entre as obras apresentadas, Unfinished de Sophie Calle, vídeo de 2005, destacava-se dos outros. Há quinze anos atrás, um banco americano desafiara a artista francesa a trabalhar a partir de imagens de segurança captadas a clientes que se dirigiam às suas caixas Multibanco. Imagens cruas a preto-e-branco de rostos anónimos, esperando a resposta de uma máquina invisível que lhes forneceria notas para viverem. O vídeo, tal como o seu título, é a procura permanente da artista, a mesma que qualquer outro: como partir de um objecto a priori vulgar para chegar a uma interrogação artística? Num constante work in progress, Calle apresentaria mais tarde estas imagens na sua exposição individual do Centre Pompidou, mas a sua pesquisa persistiria. Unfinished é mais que o seu relato – é um retrato existencial de uma artista e dos materiais que definem a sua imagem. Porque ao não ter certezas sobre o valor destas imagens, Calle nunca mais as abandonará. Procura a história de cada um dos rostos, vai atrás de fichas e cadastros. Perde-se no tempo e concentra-se naquilo que elas queriam – o dinheiro. Vemo-la nas ruas de Paris, encostada às caixas Multibanco a perguntar às pessoas: “fale-me de dinheiro”. Nenhuma delas sabe verdadeiramente, tal como a artista – “não sei”, “não percebo”, “o dinheiro ajuda”, “não é suficiente”, mas ninguém ousa dizer para o quê. Calle vai mais longe, pergunta-lhes quanto ganham – “não digo”, “nem pensar”, “era só o que faltava”. A artista encontra-se com agentes bancários, pergunta-lhes em quanto dinheiro mexem cada dia, fotografa-lhes as suas mãos abertas, como utensílios para uma ilusão (The Hands That Touch The Money). Procura associar um sentimento ao dinheiro, cria um “perfume do dinheiro”, sujo e atraente, metálico e brilhante. Pega nos seus objectos de afeição (livros dedicados, criações suas, cartas de amor) e tenta

penhorá-los. Tudo é recusado, ninguém dá dinheiro por isso, não têm valor de mercado, dizem-lhe. Mais que tentar fazer alguma coisa com dinheiro, Sophie Calle procura fazer qualquer coisa sobre ele. Hipnotiza-se, resigna-se, tenta interferir com o seu valor, procura algo para além do seu símbolo, acaba por cair e admitir, como diz, na “anatomia de um falhanço”. E se o sentimento do dinheiro é esse falhanço, a artista depara-se também com a crise da sua própria anatomia artística. Em quinze anos de pesquisa, de intromissões e de questões, o falhanço é admissível, mesmo inevitável, mas com que forma? A última questão é a do estilo, o seu estilo. Como associá-lo ao seu nome, à marca do seu trabalho, o texto e as imagens? Esse desencontro entre a marca da artista e a obtenção de um produto final de valor artístico (ou de mercado) torna-se no centro de Unfinished, trabalho inacabado. Os problemas da criação, da sua construção e validação, de seguir um mesmo rumo, guiado por indícios ou pelo instinto da artista. As tentativas falhadas de mostrar o que é palpável por detrás de uma simples ficção, a maior de toda a humanidade – o dinheiro. A segurança que uma verdade fabricada lhes dá, o conforto de não saberem para que tudo isso serve. É essa mesma segurança que inquieta a artista, que tenta deixar as imagens de vigilância em silêncio, para depois dizer que é incapaz de não interferir com elas. No fundo, o que acaba por ser toda a base da arte – interferir com as coisas. Sem deixar conclusões, Sophie Calle faz-nos o documentário do seu falhanço, filma-se a si própria e persegue-se na sua obsessão, criando um trabalho íntimo e honesto, por vezes abandonando a invisibilidade que protege a sua identidade. Unfinished começaria por ser mais uma intervenção, acabando por se tornar numa porta aberta da artista, partindo de relações fabricadas, caindo ainda nas relações (ou reacções) humanas. Calle mostrando Calle, representando a sua vigilância.


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A FACE OCULTA Por

António Pinto Ribeiro

NOTAS DE UM DIÁRIO DE VIAGEM

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15.out.07 Começar este diário com o livro Oriente Próximo de Alexandra Lucas Coelho tem como propósito um olhar para a actualidade focado sobre o exterior – o Médio Oriente –, uma região de conflito permanente. Porque é começar também por um dos mais difíceis, estranhos, nebulosos, confusos acontecimentos da actualidade. São tantas as notícias sobre o Médio Oriente e dizem tão pouco. Há uma tal opacidade nos media, que contam histórias já conhecidas criando um inferno de imagens sem solução e, no entanto, e paradoxalmente, é uma jornalista que resgata esses lugares porque fala a partir do interior e do vivido. Fala das pessoas e das suas contradições, das crianças e dos estudos, dos objectos, das traduções de poesia, dos bares, da beleza de mulheres e de homens, da desistência de uns e da teimosia de outros, da fome e das guloseimas. Fala, relatando os episódios e contando os detalhes que tornam compreensíveis uma história antiga, as suas razões e as suas causas. Oriente Próximo é um livro contra a anestesia política, contra a indiferença que contaminou a burguesia global. É um livro de amor por pessoas suspensas na vida e nos territórios. 16.out. O Rio Secreto, da escritora australiana Kate Grenville, é um romance de perfil histórico sobre aspectos cruciais do processo da colonização inglesa no século XIX. Publicado em 2005, o romance inicia-se em Londres nos finais do século XVIII (o protagonista nasce em 1777) e a descrição da cidade, focada nas relações de trabalho, e das péssimas condições de vida da classe trabalhadora inglesa muito se assemelham às narrativas de Charles Dickens ou de Victor Hugo em Les Misérables. Como se pode ter vivido na Europa cristã de uma forma tão sub-humana. O barqueiro Willie, condenado ao degredo por roubar madeira para sobreviver, é deportado com a mulher, Sal e dois bebés, para a Austrália, chegando a Sydney em 1806, agrilhoado e despojado de quaisquer pertences. A partir daqui, é o relato da sua sobrevivência, tenacidade e sentido de oportunidade, onde muitas vezes os escrúpulos estão ausentes. Descreve-se a ocupação e a conquista das terras aos aborígenes por uma comunidade de degradados, homicidas e ladrões, emparceirados com militares ambiciosos e sanguinários. Todos, os ex-condenados e os militares, vão destruir

uma comunidade nativa, com ódio e com uma violência física e psicológica desmedida. A escrita de Kate Greville descreve com uma enorme crueza, detalhe e rigor histórico a forma violenta como se desenrolou o processo de colonização britânica na Austrália. Mas, em O Rio Secreto, a par desta, há uma outra história de entendimento e de amor, protagonizada por Sal, a mulher de Willie, uma personagem invulgar na sua sabedoria e tolerância. Há também as enormes contradições de Willie, como sobrevivente e como homem atormentado pelos crimes de que muitas vezes é cúmplice. A curiosidade pelos modos de ser dos aborígenes, a descrição dos costumes, o confronto com o outro na subtileza das descrições, tornam esta obra uma narrativa exemplar sobre a barbárie levada da Europa. 17.out A capa desta semana da Time Out de Londres tem como título “Why are the arts so white?”. Vale a pena ler os vários artigos dedicados ao tema, tanto mais que Londres é, de facto, uma das cidades mais multiculturais da Europa, onde os circuitos das artes públicos e privados são dos mais profissionais das cidades contemporâneas. São várias as respostas dadas a esta questão: as artes não são, apesar de tudo, ainda estimulantes em termos de carreira profissional; as minorias étnicas não se candidatam muito aos cargos públicos, eventualmente por difícil acesso à informação relativa; mas, provavelmente e segundo Sir Willard White, deve perguntar-se aos brancos porque é que tal acontece. No entanto, a resposta mais clara e de sólida argumentação vem de Stuart Hall, que afirma que tal acontece porque os circuitos das artes inglesas são muito ignorantes relativamente à cultura negra e à sua influência na arte do século XX, e que é urgente criar uma outra e diferente História. 18.out. Quem entre nós em Portugal, conhece, leu, ou ouviu falar de Chinua Achebe? É um escritor nigeriano reconhecido como o fundador do romance africano de expressão inglesa e autor do clássico Things Fall Apart publicado a primeira vez em 1958, e já traduzido para quarenta línguas. O início do romance é estrondoso e tem sido citado ao longo de várias gerações de leitores e de estudiosos de literatura africana: “Okonkwo era bem conhecido nas nove aldeias e mesmo para além delas. A sua fama assentava nas suas sólidas façanhas pessoais. Este jovem de dezoito anos tinha trazido honrarias para a sua aldeia vencendo Amalinze, o Gato. Amalinze era o grande lutador que durante sete anos nunca tinha sido batido, de Umuofia a Mbaino. Era chamado o Gato,


preciso vir a África na estação chamada das pequenas chuvas. As nuvens parecidas aos continentes de contornos caprichosos, brancos, a rebentar e ornamentados com franjas obscuras, viajando no céu azulado; já se libertaram, em parte, da água que carregavam, talvez ontem, talvez esta manhã ainda...; a verdura das colinas revela-o, um verde brilhante e limpo, como no primeiro dia da Criação” (p.6). Estas nuvens podem ver-se sim no planalto de Antananarive, em Angónia, Huambo ou no planalto de Brasília! 24.out. Três palmeiras, o sol a nascer, a areia branca, o mar imenso. Que lugar seria este há quinhentos anos?

porque as suas costas nunca tinham tocado o chão. Era este homem que Okonkwo venceu numa luta, e que os velhos consideravam que tinha sido uma das mais ferozes da sua cidade tocado por um espírito por sete dias e sete noites”. 21.out

Passeggiate africane (Passeios africanos) é uma obra

escrita por Alberto Moravia durante uma viagem por África, já o escritor contava 77 anos de idade. Escrita sob a forma de um diário de viagem, apontando inclusivamente as horas do dia, esta obra relata o percurso do autor e de outros companheiros por vários países africanos da região dos grandes lagos, no ano de 1984. Alberto Moravia é um observador particularmente atento à Natureza (as árvores africanas são, no seu entender, o grande enigma de África) e os animais merecem-lhe uma enorme admiração, dedicando-lhes muitas páginas. Por outro lado, ao longo de todo o livro, Moravia confronta a paisagem que vê e o modo de vida dos habitantes das várias aldeias e das cidades por onde passa, com relatos de África de outros autores, mais ou menos clássicos da literatura ocidental, como Rimbaud, Hemmingway, Blixen e Céline, apontando-lhes as incongruências ou os efeitos literários que, na maioria dos casos, pouco têm a ver com a África deste viajante tão delicado. 22.out Neste livro Moravia conta como olhava o céu, e lembra-se de um poema de Baudelaire “Eh! Qu’aimes-tu donc e, extraordinaire étranger? J’aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... là-bas, les merveilleux nuages!” Sim, para ver as maravilhosas nuvens é

25.out. Naomi, do escritor japonês Junichir_ Tanizaki, começado a escrever em Março de 1924, foi agora traduzido por Margarida Periquito. Como genialmente se pode escrever sobre a sedução amorosa, a conquista, a irracionalidade do sexo que torna súbditos até à loucura alguns amantes sem limites. 27.out. Que diria hoje o poeta Manoel de Barros?

Caracol é uma casa que se anda E a lesma é um ser que se reside in Retrato do artista quando coisa 1.nov. Vejo hoje, inserida no festival de dança Panorama no Rio de Janeiro, a peça Palimpsesto (sintam o que vocês sentem) apresentada pelo Centro de Criação do Dirceu, residente na cidade de Teresina, no Estado (interior) do Piaúi. São 18 bailarinos-actores e um músico que compõem esta peça. Este projecto, que poderíamos classificar como sendo de dança na comunidade (a Madalena Victorino iria gostar de o ver), resulta de um trabalho diário desenvolvido ao longo de vários meses por bailarinos e actores, cuja fisicalidade é invulgar pelas capacidades atléticas, a energia corporal e a capacidade de gerarem um vocabulário coreográfico complexo, com detalhes subtis de que resultam frases coreográficas inovadoras. A obra refere-se ao lugar da criação – a cidade de Teresina – não havendo, contudo, qualquer juízo moral sobre questões sociais, e nunca enveredando por realismos para facilitar o gosto. Há mesmo uma componente enigmática, que torna o espectáculo afirmativo e a dança contagiante ou, para ser absolutamente qualificativo, podemos utilizar a expressão com que um >>

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espectador a classificou no final: é uma dança que dá uma grande tesão. 3.nov Os bárbaros: pensando Portugal à distância, e não tendo disponível a tradução de Jorge de Sena, nem a de Joaquim Manuel Magalhães, sirvo-me da tradução de Isis Borges B. da Fonseca:

Esperando os Bárbaros -Que esperamos reunidos na ágora? É que os bárbaros chegarão hoje. - Por que no Senado uma tal inação? Por que os Senadores estão sem legislar? Porque os bárbaros chegarão hoje. Que leis farão agora os Senadores? Os bárbaros quando chegarem legislarão. - Por que nosso imperador tão cedo se levantou, e diante da porta mais alta da cidade, está sentado em seu trono, solene, cingindo a coroa?

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Porque os bárbaros chegarão hoje. E o imperador espera receber o chefe deles. Além disso, preparou para dar-lhe um pergaminho, onde lhe registou muitos títulos e dignidades. Por que nossos dois cônsules e nossos pretores saíram Hoje com suas togas vermelhas, bordadas? Por que puseram braceletes com tantas ametistas, e anéis com esplêndidas, brilhantes esmeraldas? Por que empunham hoje preciosos bastões de prata e de ouro excelentemente incrustados? Porque os bárbaros chegarão hoje; E tais coisas deslumbram os bárbaros. -Por que nossos hábeis oradores não vêm como sempre proferir seus discursos, falar sobre suas preocupações? Porque os bárbaros chegarão hoje; E eles se aborrecem com eloquências e arengas. - Por que de repente começou esta inquietude e por que a confusão? (como se tornavam graves as fisionomias!) Por que rápido se esvaziam as ruas e as praças, E todos voltam para casa muito apreensivos?

Porque anoiteceu e os bárbaros não vieram. E alguns chegaram das fronteiras, e disseram que já não há bárbaros. - E agora que será de nós sem bárbaros? Esses homens eram uma solução.

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MODELOS DE GOVERNANÇA DE “CIDADES CRIATIVAS”:

UMA ABORDAGEM COMPARATIVA / Parte 2 (Parte 1 publicada na Obscena nº 7)

texto Bruno Vasconcelos, Gustavo Sugahara, Miguel Magalhães e Pedro Costa fotos: Day of the Figurines © Blast Theory

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4. AS POLÍTICAS DE “CIDADES CRIATIVAS” E OS SEUS MODELOS DE GOVERNANÇA Os capítulos anteriores expressam bem a diversidade de formas de governança subjacentes à multiplicidade de dinâmicas territoriais bem sucedidas assentes em actividades criativas, e como cada uma delas é fundamental para o desenvolvimento das cidades com base na criatividade. É, por isso, da maior importância proceder a uma tentativa de revisão dos vários modelos de governança observados em cada uma destas abordagens e das suas respectivas políticas. Assim, esta secção procura chamar a atenção para as singularidades das estratégias e políticas que lidam explicitamente com as actividades criativas e para os modelos de governança que começaram a emergir com o aumento da importância dessas actividades nas economias

locais, regionais e nacionais. Como foi possível constatar nas duas secções anteriores, deparamos com uma imensa diversidade conceptual sobre o que são as indústrias culturais e criativas bem como em relação às diferentes abordagens existentes em torno das estratégias de cidades criativas. O resultado desta diversidade é uma ampla tipologia de formas de governança. Aquilo a que nos propomos aqui é uma breve revisão sobre as tendências das políticas “criativas”, ao nível regional e nacional.

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4.1 POLÍTICAS CRIATIVAS PELO MUNDO: ALGUNS EXEMPLOS PARA UMA ABORDAGEM COMPARATIVA. A definição de indústrias criativas e subsequentes políticas propostas pelo Department of Culture, Media and Sports (DCMS), no Reino Unido, traduziu-se num impacto significativo em muitos países. O papel desempenhado pelas agências governamentais do Reino Unido, tais como Creative Export, Department of Trade and Industry (DTI) ou do British Council, bem como de um grande número de empresas especializadas em consultoria e centros de investigação académicos em diversos países, tem vindo a construir uma verdadeira esfera de influência britânica. Países como a Colômbia, algumas economias em fase de transição da Europa do Leste, na China/Hong-Kong ou em Singapura são bons exemplos desse impacto. O “modelo DCMS” é bastante interessante, assente num mapeamento rigoroso e exaustivo das actividades criativas e em exercícios de quantificação e avaliação do impacto das indústrias criativas baseada em informação adquirida nos códigos Ocupacionais e Industriais (SIC e SOC). O contributo mais importante e mais significativo deixado por estas políticas, foi, no entanto, uma definição genericamente aceite de Indústrias Criativas. Apesar das críticas, tornou-se a definição mais utilizada para o sector. Este modelo, nos primeiros anos da tendência pró “cidade criativa”, revelou-se bastante atractivo para vários países que vinham dando os primeiros passos neste campo. Stuart Cunningham e Andy Pratt consideraram que seria de esperar a emergência de modelos locais de políticas, apesar do pedido do governo de Inglaterra para que cada região desenvolvesse as suas estratégias para estimular as indústrias criativas (Cunningham, 2003), ignorando as especificidades idiossincráticas de cada uma dessas economias. Neste momento, é possível verificar que inúmeros países, regiões e cidades se emanciparam deste modelo e desenvolvem as suas próprias estratégias e políticas autonomamente. Os países europeus representam uma grande diversidade de exemplos de práticas e de políticas neste campo. Ao contrário do modelo político do DCMS, o modelo Europeu tem frequentemente como ponto de partida os subsectores do turismo e do património. Grande parte das práticas europeias ocorre ao nível de governança regional e local: o sector do turismo orientado para os serviços na área da cultura e património; edifícios emblemáticos (Museu Guggenheim em Bilbao, a Casa da Música de Rem Koolhaas no Porto ou Palau de les Arts em Valência); clusters regionais especializados; grandes fatias de fundos estruturais europeus. Como foi dito anteriormente, não é possível estabelecer um padrão

único de criação de políticas. Apesar de a maior parte dos países não possuírem uma estratégia nacional integrada para o sector, é possível encontrar estratégias para um subsector específico como é o caso do sector do design holandês ou da indústria da música em França. Os Estados Unidos, por seu lado, dispõem de um modelo bastante distinto para a promoção das actividades criativas. Por um lado, o sector cultural americano (strictu sensu) funciona com fundos federais bastante limitados e com pouca intervenção política. A maioria dos artistas e instituições culturais recebem o seu financiamento de privados, mecenas ou subsídios de organizações sem fins lucrativos. Por outro lado, a tradição empresarial norte-americana tornou as actividades criativas mais independentes dos fundos e das políticas públicas do que na Europa. Existem vários mecanismos para a promoção das actividades criativas como o capital de risco ou uma rede muito eficiente de universidades (orientadas para a investigação) com importantes conexões ao mundo empresarial (Wu, 2005). Para além disso, a existência de clusters de impacto mundial como é o caso de Hollywood ou o cluster multimédia de Los Angeles e Nova Iorque, torna possíveis todas as formas de estímulo a iniciativas relacionadas com este sector. O Canadá é similar em alguns aspectos. Os profissionais e as empresas criativos dispõem de uma vantagem, já que beneficiam das dinâmicas de mercado norte-americanas. Ainda assim, os governos federal, estaduais e locais adoptaram uma postura pro-activa na promoção e na formação para as actividades criativas. Cada vez mais surgem estratégias nacionais sub sectoriais para as diversas actividades, promovendo a sua cultura, os seus artistas, empresas e criativos (Canada Heritage, 2006). O Estado do Québec, por exemplo, tem o seu próprio Ministério da Cultura e da Comunicação dedicado a este fins, ainda que ainda não utilize o conceito “criativo”. Por sua vez, os governos de países do Este da Ásia como Singapura, Malásia ou a China estão a fazer um forte investimento nas indústrias criativas. Grande parte destes países desenhou planos abrangentes para promover o sector recorrendo a incentivos fiscais e a projectos de capital de risco, por exemplo. Contudo, uma das características chave desses países é o facto de os investimentos tenderem sempre para o forte peso do investimento em infra-estruturas. Para além disso verifica-se uma dificuldade em atrair (ou reter) profissionais talentosos como resultado das restrições impostas sobre a sociedade, sendo Singapura um exemplo flagrante disto (Wu, 2005). Curiosamente, um dos primeiros países a utilizar o termo “criativo” no seu discurso de desenvolvimento de políticas foi a Austrália, em 1994, no plano estratégico lançado pelo governo, “Creative Nation” (Creative Nation, 1994). Mais recentemente, e juntamente com a >>

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Nova Zelândia, a Austrália conseguiu renovar a taxinomia das actividades económicas considerando as novas actividades emergentes (Brisbane’s Creative Industries 2003, 2003). Na Nova Zelândia, o departamento New Zealand Trade and Enterprise é responsável pela Creative Industries’ Sector Engagement Strategy e deu prioridade a quatro grandes projectos baseados nos recursos estratégicos do país (incluindo os naturais): o design (Better by Design); o cinema (Entertainment Industry Project) – os filmes do realizador Peter Jackson O Senhor dos Anéis ou King Kong, por exemplo, tiveram um enormíssimo impacto na indústria local, seja ao nível de locais de filmagem assim como na promoção de profissionais e criativos (Creative Clusters Conference, 2005); a indústria da moda e a indústria têxtil; (New Zealand Trade & Enterprise, 2005).

4.2 MODELOS DE GOVERNANÇA: ALGUNS ELEMENTOS-CHAVE

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Nesta tentativa de esquematizar os procedimentos em termos de governança, que promovem as actividades criativas, são propostos três eixos de análise, configurando diversos modelos de governança (sendo que lhes é ainda adicionado um quarto eixo transversal). Este exercício não deve ser encarado como uma base de trabalho cristalizada. Como será possível ver, muitos dos elementos-chave apresentados sobrepõem-se enquanto factores relacionados com aspectos políticos, ideológicos ou mesmo de tradição e variam significativamente de local para local.

a) NACIONAL VS. LOCAL/REGIONAL

O nível de intervenção nacional sobre as cidades criativas é geralmente preconizado por um governo central através do seu gabinete responsável pelo sector cultural (ministério, secretaria de estado, agência, etc.).

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Contudo, esta entidade não se encontra sozinha na promoção das actividades criativas pelo que muitas vezes se encontram envolvidos os ministérios da economia, da indústria ou do comércio. Incluídos também, estão as entidades de poder local que desenvolvem as suas estratégias de acordo com as suas necessidades. Ao governo cabe a responsabilidade de desenvolver os objectivos estratégicos como, por exemplo, o desenvolvimento de exercícios de mapeamento, a actualização dos códigos SIC e SOC, ou a promoção do sector ao nível interno e externo. O exemplo Britânico é paradigmático deste nível de governança. Uma das primeiras decisões do governo Labour, em 1997, foi a exigência da criação de estratégias ao nível regional. Apesar da centralização no DCMS, a estratégia criativa inglesa não exclui de todo o papel de outros departamentos, como por exemplo o DTI (Department of Trade and Industry). O ex-Ministro das Finanças desenvolveu, inclusivamente, um programa nacional para os profissionais das indústrias criativas (DCMS, 2005). Esta preocupação transversal com o crescimento da importância do sector criativo é uma interessante característica, mas não exclusiva, do Reino Unido. Existem ainda algumas agências governamentais, tais como o NESTA, responsável por promover e estimular a inovação, ideias e criatividade no sector. Há outras dimensões, neste nível de governança, que são da responsabilidade do governo. A promoção internacional e alguns exercícios de branding são um claro exemplo disso (tanto ao nível sectorial como sub sectorial). É também do nível nacional que partem os principais exercícios e esforços de mapeamento e quantificação. Foi o governo Britânico que foi o responsável pelas primeiras tentativas de mapeamento e apesar de actualmente esta preocupação de categorização atravessar um momento mais pacífico, é no Reino Unido que é possível encontrar os modelos de explicação para o sector criativo mais desenvolvidos.

Definição de estratégias para o sector Ministério da Cultura em articulação com outros departamentos do governo Promover, desenvolver marcas e internacionalização Mapeamento das actividades criativas Políticas de cidades criativas Orientação para o turismo e património cultural Promoção dos clusters e cadeias de valor Promoção da regeneração urbana Diversidade de actividades económicas Atracção de talentos e recursos humanos qualificados Atracção de investimento/Capital de Risco Universidades Criação de agências para a promoção das actividades nas regiões e nas cidades (internacionalização, desenvolver marcas).

ENSAIO

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O nível de governança Regional/Local aparenta ser o mais diversificado e abrangente e acaba por se relacionar com algumas dimensões que não são abrangidas pelo modelo nacional de governança, como por exemplo a promoção da regeneração urbana ou a atracção de profissionais. Considerando as teorias de Richard Florida, a capacidade dessas cidades para atrair talentos e fomentar a diversidade é um ponto fulcral. A verdade é que a maior parte das cidades e regiões em todo o mundo competem para atrair o maior número de visitantes, profissionais criativos e investidores. Para tal, cada um desses centros urbanos recorre às ferramentas disponíveis: património histórico e recursos naturais, clusters de empresas especializados num subcampo cultural, promoção das “experiências” associadas à visita, colocando em prática estratégias de marketing, promovendo o turismo local, desenhando planos para a atracção de investimento ou a criação de condições para a existência de vários estilos de vida e amenidades. No mesmo nível das cidades estão algumas regiões, que partilham algumas especificidades, nomeadamente o desenvolvimento em torno de clusters criativos. Grande parte dos clusters é territorialmente baseada numa região e por isso a estratégia de desenvolvimento regional poderá ser planeada considerando a cadeia de valor específica desse cluster. O desenvolvimento de marcas, a promoção ou as estratégias para captar investimento podem ser delineados com base nesse grupo especializado de empresas ou nesse sector. Na Europa, Barcelona é um bom exemplo de uma estratégia de governança ao nível local/regional. Vinte anos de investimento na cidade, através da contínua promoção da arquitectura, cultura, grandes eventos (Jogos Olímpicos, por exemplo), transformaram-na numa das cidades (e região, tendo em conta que Catalunha e Barcelona formam um todo dinâmico) mais procuradas do mundo, por jovens profissionais na área da criatividade, por turistas e visitantes, bem assim como investidores dos mais diversos sectores da vida empresarial. Num documento recentemente publicado pelo Ayuntamiento de Barcelona/ Institut de Cultura, Ferran Mascarell, responsável pelo pelouro da Cultura, reconhece a importância das Indústrias Criativas para a capacidade competitiva das cidades e enumera algumas iniciativas do governo local bem como os desafios que a cidade enfrenta. A informação que 7,8% do orçamento municipal é canalizado para a cultura é impressionante; a criação de um Fundo de Capital de Risco para projectos culturais é uma iniciativa importante, considerando a inexistência de uma tradição deste tipo de medidas dentro do sector, pelo menos da Europa Continental, ou a criação da Film Commission, Barcelona Plató, que

representa mais do que uma mera intenção política – alguns meses depois, a cidade viria a receber a mais recente produção de Woody Allen (Mascarell, 2006).

b) INTERVENÇÃO POLÍTICA VS. AUSÊNCIA DE POLÍTICAS

Em paralelo a ambas estas categorias de intervenção pública, acima apresentadas, coexiste um outro nível de governança, caracterizado pela auto-regulação dos sistemas urbanos e culturais, sem qualquer tipo de intervenção pública deliberada, isto é, sem uma política explícita direccionada para o desenvolvimento das cidades criativas. Este nível de governança é geralmente resultado da existência prévia de dinâmicas inerentes a actividades locais tradicionais (ou não tradicionais). Os seus mecanismos de governança são essencialmente regulatórios e promocionais sem grande intervenção política. Este papel político pode ter uma função proteccionista em relação a ameaças externas ou à concorrência. Ao mesmo tempo estas indústrias/clusters são geralmente agressivos a qualquer ameaça à sua dominância ou liderança. Estas características conjugadas (regulação + protecção + lobbying) fazem com que estas actividades evoluam longe de um modelo convencional de governança. Ausência de Políticas

Dinâmicas Territoriais Intervenção Regulatória do Governo Grupos de Pressão Proteccionismo

Os exemplos mais paradigmáticos destas formas de governança são a indústria de música inglesa ou a indústria cinematográfica de Hollywood. Estas duas indústrias são fortes e dinâmicas sem que para tal tenha que se verificar qualquer intervenção política tradicional por parte do Estado. Ainda assim, o seu valor é demasiado importante para a economia do Reino Unido ou dos Estados Unidos para ser ignorado pelos governos centrais ou pelos principais grupos de influência. Weiping Wu propõe uma lista de factores que justificam o sucesso de determinados centros criativos nos EUA: “uma investigação universitária de excelência (apoiada muitas vezes por fundos federais), ligações comerciais concretas e a disponibilidade do capital de risco para investir, empresas-âncora e organizações de mediação, uma base de conhecimento e talento apropriada, políticas públicas direccionadas, qualidade dos serviços e das infraestruturas, diversidade e qualidade dos “lugares” (Wu, 2005).

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c) PROJECTOS PÚBLICOS VS. PROJECTOS NÃO-PÚBLICOS

Apesar de alguns destes modelos de governança assentarem fundamentalmente em projectos públicos há também estratégias de governança que resultam da vontade não-pública (mesmo que sejam parcialmente financiados por dinheiros públicos). Projectos com estas características são, de forma geral, produto da actividade de organizações sem fim lucrativos tais como fundações, associações ou agências financiadas com dinheiro privado e/ou público. Estes organismos podem-se organizar das mais diversas formas embora duas dimensões, nos objectivos prosseguidos, sobressaiam: (i) a promoção de uma actividade criativa específica; (ii) a promoção de uma determinada área geográfica (região, cidade, bairro, concelho, etc.), na diversidade das suas actividades criativas e dos seus impactos na economia, na regeneração urbana, na educação ou na promoção de eventos, por exemplo. Organizações sem fins lucrativos

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lado, temos políticas, medidas públicas ou tão somente dinâmicas locais/regionais centradas nas questões da cultura e da criatividade; e, por outro lado, temos políticas, medidas públicas ou tão somente dinâmicas territoriais cujo foco são as questões do planeamento e desenvolvimento urbano, local ou regional. Ambas as perspectivas, como discutido nos capítulos anteriores, estão presentes em diversas abordagens e estudos de caso empíricos e isso permite confirmar, pelo menos, um facto: a criatividade tem sido um ponto de convergência destas duas perspectivas e uma âncora útil para integrar actuações e análise que permitam combinar e potenciar os dois tipos de preocupações e de objectivos.

Promoção de uma determinada actividade Branding e promoção da internacionalização dessa actividade Promoção de áreas geográficas específicas Educação Promoção da diversidade e inclusão social Promoção da regeneração urbana

Bons exemplos destas duas dimensões são as seguintes organizações: a) Premsela Dutch Design Foundation (esta fundação promove o desenvolvimento do design holandês; a sua missão é “melhorar o clima do design holandês”, promover o desenvolvimento assim como as infra-estruturas do sector do design (Premsela); é subsidiada pelo Ministério Holandês da Educação, Cultura e Ciência e pela Câmara da Cidade de Amsterdão); b) Cultural Industries Development Agency (CIDA) de Londres Este (agência com sede no leste de Londres que procura “fornecer um leque abrangente de serviços ao sector das indústrias culturais e criativas; promover um sector das indústrias criativas sustentável e culturalmente diversificado; melhorar e promover a prosperidade económica através do apoio do empreendedorismo individual e apoiar politicas, planeamento, regeneração urbana, centros criativos, clusters e iniciativas d bairros culturais” (CIDA); é financiada, entre outras instituições e organismos, pelo Arts Council of England, por vários Boroughs, pela London Development Agency e por fundos europeus). Cada um destes 3 eixos de análise é atravessado por um quarto eixo, igualmente fundamental e transversal: por um

5. NOTAS CONCLUSIVAS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CASO PORTUGUÊS Como se verificou, a discussão sobre o conceito de Cidades Criativas está longe de ser consensual e este tornou-se num conceito abusivamente usado pela retórica política, pelos media e mesmo nos meios académicos e mais técnicos. Também é difícil, apesar de todos os exemplos apresentados, identificar nesta fase preliminar um conjunto de casos de estudo de sucesso, com a distância necessária e rigor conceptual que a prudência académica exige. No entanto, a sistematização pretendida neste trabalho pode ser útil na compreensão de alguns tímidos padrões emergentes e da acção política neste campo em Portugal. Efectivamente, existe a tentação de afirmar que existe um sector criativo em Portugal e alguns exemplos tímidos de abordagens a Cidades Criativas, mas que na verdade não existem políticas criativas, pelo menos por enquanto. Aqui, tentamos apresentar muito sinteticamente algumas características da realidade portuguesa: - A palavra “criativo” raramente tem sido usada pelo discurso político oficial e nomeadamente pelos decisores

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ao nível da política económica e cultural deste país. O Plano Tecnológico, apresentado pelo governo português com o intuito de melhorar o lugar de Portugal nos domínios da inovação tecnológica e no âmbito da Estratégia de Lisboa, tem um item específico sobre a implementação de uma política para o sector das Indústrias Criativas, que no entanto não foi muito explorado e, aparentemente não existem planos conhecidos para a prossecução deste ponto dentro da estratégia geral; - A nível nacional, mas principalmente a nível municipal, a classe política começa no entanto a demonstrar alguma atenção pelas actividades culturais e a manifestar algum interesse em analisar e promover projectos que possam ter algumas semelhanças com os modelos de Cidades Criativas; - A um nível mais concreto, existe a possibilidade de os fundos para o sector cultural que Portugal irá receber da União Europeia no âmbito do Quadro de Referencia Estratégico Nacional (QREN) para o período de 2007-2013, sejam, em parte, canalizados para algumas tentativas piloto de implementar projectos de Indústrias Criativas /Cidades Criativas a nível regional/local (apesar de os fundos estruturais do sector serem historicamente usados de forma mais convencional e “tradicional” e de o enquadramento geral da grelha de financiamento deixar ainda muito em aberto e pouco concretizada esta possibilidade, tanto nos programas operacionais temáticos como nos regionais); - Um exercício de levantamento das actividades criativas, e do seu impacto na economia, está ainda por ser feito. À semelhança de outros países europeus, os códigos industriais e ocupacionais (SIC e SOC) não foram ainda actualizados convenientemente, atrasando uma correcta leitura da realidade do sector das actividades criativas. Apesar da discussão sobre a instrumentalização do mapeamento e do rigor destes exercícios ser uma tarefa complicada, ninguém pode questionar a sua utilidade e urgência; - Finalmente, num plano mais genérico, sabemos que a ”questão” cultural carrega ainda, neste país, o peso da luta ideológica. Após a revolução de 1974, as actividades culturais – e algumas actividades periféricas – não conseguiram emancipar-se da instrumentalização de um discurso ideológico mais ortodoxo e as múltiplas tentativas de promover um debate sério sobre o sector criativo/cultural têm sido normalmente subvertidas por dificuldades de diálogo (a nível conceptual e metodológico) e por mal-entendidos essencialmente artificiais.

uma vontade política objectiva e explícita nesse sentido, podemos relevar alguns sinais favoráveis, a partir dos quais tais actividades podem ser promovidas. O contexto recente de Portugal (muito por influência das políticas europeias neste sentido, aliás) revela um período importante de aumento de maturidade dos objectivos das políticas públicas nesta área de intervenção. A nível local, existem algumas iniciativas importantes em desenvolvimento e agentes criativos locais estimulantes. A existência desta dinâmica de base local, a vontade crescente (e a possibilidade) de incluir projectos nesta área no âmbito de acções susceptíveis de serem apoiadas com os novos fundos estruturais e a presença de uma nova consciência política sobre o tema, permitem acreditar que estão reunidas condições adequadas ao desenvolvimento de iniciativas de Cidades Criativas no futuro próximo. Finalmente, espera-se que este trabalho represente uma oportunidade para abrir espaço para um novo debate na sociedade portuguesa sobre o desenvolvimento de mecanismos de governança proeminentes e para a discussão de novas prioridades relativas às dinâmicas e estratégias no âmbito da criatividade e cultura. Conside-rando a dimensão da articulação e orquestração destas intervenções, é crucial que as instituições de relevância a nível nacional trabalhem conjuntamente, com uma nova abordagem pro-activa, envolvendo agentes inter-sectorialmente e medindo as oportunidades que emergem a nível local e na sociedade civil. Uma questão chave para uma implementação efectiva de estratégias de Cidades Criativas será portanto uma nova atitude na gestão política. O sucesso destas intervenções depende indubitavelmente desta mudança de atitude.

Reconhecendo a relevância contemporânea dos modelos das Cidades Criativas, parece-nos incontornável que estes se devem tornar uma ferramenta fundamental no desenvolvimento do país na promoção da sua competitividade externa. Apesar de ainda não existirem experiências explícitas de Cidades Criativas, nem sequer >>

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Este texto foi originalmente apresentado na XVI Conferência da RESER (The European Association for Research on Services), subordinada ao tema “Services Governance and Public Policies” e realizada no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em 28-30 de Setembro de 2006, tendo sido posteriormente publicado, em língua inglesa, na série de working papers do Dinâmia/ISCTE(Costa et al., 2006, On ‘Creative Cities’ governance models: a comparative approach, Dinâmia WP nº2006/54). Uma versão revista desse texto encontra-se em actualmente em publicação no Services Industries Journal (vol 28, nº3, April 2008).

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