Obscena #6 - Outubro 2007

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EDITORIAL

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NEM ÓCIO NEM LAZER, MAS CULTURA! Abrimos as páginas dos jornais, lemos os oráculos nos programas de televisão, passamos pelos cartazes na rua, ouvimos comentários nos transportes públicos e as palavras ecoam ruidosamente ao longo do dia: a cultura, efectivamente, ocupa muito pouco lugar. Entretenimento, lazer, boa vida, ócio, tempos livres são tudo termos usados para falar de um bem intangível, imaterial, subjectivo e nada efémero: cultura. O recente estudo publicado pela Direcção-geral para a Educação e Cultura da União Europeia, ao qual dedicamos espaço na páginas 26 e 27, revela que 74% dos portugueses considera que a cultura é um facto importante para o indivíduo. E, no entanto, 73% diz que nunca participou numa actividade cultural. A média europeia é, refira-se, de 38%. Como é que isto acontece? A que se deve tamanho alheamento numa sociedade que diz prezar a cultura e os valores culturais como um dos mais importantes pilares da sociedade moderna? Que entendimento têm os cidadãos da real importância da cultura na sua relação com a educação, a economia, a segurança social, o direito ou a ciência? Acreditarão, todos, que a cultura passa apenas por um programa de televisão, uma conversa vã na Internet, uma biografia sensacionalista de um jogador ou treinador de futebol? Que fazer para inverter esta situação que não é passageira mas antes cumulativa? Para onde caminharemos? E em que nos sustentaremos quando mais nada restar? A OBSCENA regressa, neste início de Outono, com a intenção de reflectir sobre este fenómeno – cada vez menos fenómeno e mais situação permanente – através

de um amplo dossier sobre políticas europeias e nacionais para a cultura. Aproveitamos os últimos meses da presidência portuguesa da União Europeia para falar das relações entre o poder político e os cidadãos numa área absolutamente vital para o desenvolvimento do ser humano. Desde o início que dissemos não conceber a crítica e a reflexão sobre as artes performativas sem levar em conta o contexto onde estas se inserem. Continuaremos nessa pesquisa, cruzando a cultura com os outros sectores da vida contemporânea, chamado assim até nós a concepção, acertada, que a Comunicação para uma Agenda Europeia para a Cultura num Mundo Globalizado gizou: a horizontalidade do sector em detrimento de uma verticalidade redutora. Regressamos também com uma nova imagem, fruto da colaboração com o gabinete de design Triplinfinito a quem só podemos agradecer a experiência de partilha de um projecto editorial feito, muitas vezes, até ao nascer do sol e mais além. Acolhemo-los nesta viagem esperando que em cada número seja explorado ao máximo o prazer de fazer dialogar imagens e textos. Trazemos ainda novos colaboradores, como André Dourado, experimentado consultor para o sector cultural, e Eugénia Vasques, teatróloga, ambos de regresso à intervenção pública. São motivos mais do que suficientes para acreditar que vale a pena fazer esta revista. Mesmo que nem sempre em papel. E sim, em breve faremos mais um número desses, dos extraordinários, porque normal para nós é irmos de passo em passo mostrando como se pode fazer um projecto editorial independente. Chama-se a isso cultura. TBC

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EDITORIAL

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Numa altura em que se inicia um novo Quadro Geral de Apoio, para o período 2007-2013, os Estados-membros discutem o que se entende por cultura e qual o papel que Bruxelas deve assumir, agora que a Comissão Barroso apresentou uma carta para a cultura que dividiu os deputados europeus.

PÁG.10 ENTREVISTA

DURÃO BARROSO Jean-Marc Adolphe

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FORUM CULTURAL EUROPEU

NEM ÓCIO NEM LAZER MAS CULTURA!

Tiago Bartolomeu Costa

Tiago Bartolomeu Costa

PÁG.38 ENTREVISTA

VASCO GRAÇA MOURA Elisabete França fotos: José Luís Neves PÁG.46

GOVERNAÇÃO E CULTURA

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APOSTA

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OPINIÃO

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EDITORIAL

Miguel Magalhães

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COXIA Bandeira

LEILA

CAMINHANTE SOLI

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Dorothée Smith

OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO

PÁG.51

PONTO CRÍTICO

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Mónica Guerreiro

CAMAROTE PAR

Eugénia Vasques

André Dourado

STA APO


PÁG.76

SOMBRA

PÁG.96

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ESPECTÁCULOS

A CRÍTICA DRAMÁTICA FACE À ENCENAÇÃO Patrice Pavis

OS VIVOS - TEATRO O BANDO Pedro Manuel

CARTA BRANCA

FESTIVAL INTERNACIONAL DE MARIONETAS DO PORTO Tiago Bartolomeu Costa

GRAFIA DA LUZ Pedro Bastos, Jr.

PÁG.64

PÁG.80

AUTORIA: QUAL É A DA DANÇA?

PÁG.66

PÁG.54

PÁG.78

CONQUISTAR O ESPAÇO

INGMAR BERGMAN

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA A SPACE ODISSEY DE CUQUI JEREZ

Nirvana Marinho

Jaime Salazar-Conde PÁG.82

ÉTICA E DIVERTIMENTO

Recorda-se a f igura que m arcou a imagem d e um país, de uma cultura e u m certo modo d e enfrentar o m undo: e m confronto directo com a morte.

Armando Silva Carvalho

JESUS CRISTO SUPERSTAR DE FILIPE LA FÉRIA

João Paulo Sousa PÁG.84

JÚBILOS EM UNÍSSONO TEMPO 76 DE MATHILDE MONNIER

Gérard Mayen PÁG.86

ESPERANDO PELA SOMBRA

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ENSAIO

PÁG.75

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DIAS DO JUÍZO

A PARTIR DE LIBRETO DE SAMUEL BECKETT David Sanson

PÁG.54

PÁG.88

ITÁRIA

FILMES / DVD PÁG.88

A HISTÓRIA DE UM CAIXEIRO-VIAJANTE CHAMADO WITOLD SPLIT OR GOMBRO IN BERLIM DE WIESLAWA SANIEWSKIEGO Cristina Carvalhal PÁG.90

IGUAIS A SI MESMAS LAS PIEZAS DISTINGUIDAS DE LA RIBOT

PÁG.68

PÁG.92

Jaime Salazar-Conde

LINA SANEH:

O QUE RESTA DO TEATRO QUANDO SE REDUZ À PALAVRA E AO ESTAR NUM DADO ESPAÇO? David Sanson

PÁG.94

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PERSPECTIVA

NEITHER DE MORTON FELDMAN,

EXPOSIÇÕES PÁG.92

DAS PALAVRAS AOS ACTOS UN TEATRE SENSE TEATRE Pedro Manuel

LIVROS PÁG.94

O NOVO PARNASO EXHAUSTING DANCE: PERFORMANCE AND THE POLITICS OF MOVEMENT DE ANDRÉ LEPECKI Jaime Salazar-Conde


OPINIテグ

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COXIA

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OPINIÃO

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MOTIM

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OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO Por

Mónica Guerreiro

A CULTURA DEPOIS DO VERANEIO Na agenda municipal de cultura referente a Setembro e Outubro, a Vereadora Ana Clara Justino e o autarca cascaense, António d’Orey Capucho, mencionam os destaques deste início de temporada: depois da exposição integrada na Trienal de Arquitectura de Lisboa, dos Campeonatos Mundiais de Vela e da inauguração do Farol Museu de Santa Marta – “um dos Verões de Cascais mais animados de que há memória” – as próximas razões fortes para visitar e fruir Cascais passam pela recente aquisição da tapeçaria “Batalha de Alcácer-Quibir”, de Paula Rego (a integrar a futura Casa das Histórias e dos Desenhos, o têxtil de 2,5m x 6,5m foi encomendado a Rego em 1966 para um hotel algarvio; o hotel não chegou a existir e a obra será exposta publicamente pela primeira vez no espaço museológico dedicado à pintora, projectado por Souto de Moura) e pelo acolhimento a um evento intitulado “O Chocolate em Cascais”, que ocupará o Centro Cultural durante três dias com degustações, exposições, workshops e um jantar de gala no Hotel Fortaleza do Guincho. O editorial – bem como a agenda – não menciona, porém, o evento mais importante, talvez por se supor que não trata de Cultura: Cascais é, de 8 a 12 de Outubro, a Capital Europeia do Empreendedorismo, no âmbito da Presidência Portuguesa da União. Durão Barroso e José Sócrates marcam presença nesta iniciativa, que abre com o forum “Financiamento da Inovação – Das Ideias ao Mercado”, com 400 participantes previstos. “Dia 9, na conclusão do forum, será assinada a Declaração do Estoril, um documento de referência a nível europeu na área do empreendedorismo e financiamento da inovação”, informa a documentação oficial. A Cultura não passa por aqui? (Mas um festival de chocolate sim?) O programa de cinco dias é absolutamente imperdível para quem se preocupa com a inovação e o empreendedorismo, antecipando, da melhor forma, o Ano europeu da criatividade e da inovação pela educação e pela cul-

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tura, que se deseja assinalar em 2009 com a convicção – incontornável – de que a inovação não se faz sem cultura. É pena que seja desta forma, compartimentada, que se entende e dirige a cultura no concelho de Cascais. Particularmente porque quem está à frente dos destinos do pelouro tem referências valiosas: à cabeça, o facto de ter encomendado ao Observatório de Actividades Culturais um programa de diagnóstico e avaliação sobre as actividades do departamento de Cultura da Câmara, que incidiu no período 2000-2004 e de que resultaram não menos que oito estudos publicados (Programa Cascais-Cultura: Notas para um sistema de informação integrado; Cartografia Cultural do Concelho de Cascais; Associativismo Cultural em Cascais; O Centro Cultural de Cascais: Estudo de um Equipamento Municipal; O

Festival Estoril Jazz: Construção de uma Imagem de Marca; As Bibliotecas Municipais de Cascais; Os Museus Municipais de Cascais e Cascais e a ‘Memória dos Exílios’). A parceria enquadra-se, segundo o sítio da autarquia, “no âmbito do forte investimento que a Câ-

mara tem dedicado à área da cultura, quer ao nível da construção, recuperação e instalação de equipamentos, quer ao nível da produção cultural em termos de eventos e animação”. O investimento tem sido notório, de facto: mas temo que, depois de se cartografar exaustivamente o território e os seus agentes, de se concluir que há imagens de marca que decorrem da excelência das conquistas do passado e que a memória desempenha aqui um papel significativo, sintetizar uma ideia de política cultural em “eventos” e “animação” parece, rigorosamente, pouco. Esperamos criação artística a intervir no património edificado/recuperado, recuperação inventiva de mitos e lugares que contam histórias, apontamentos de arte contemporânea (música, dança, teatro, fotografia, videoarte, cinema, arte pública, tecnologia) nos arruamentos, nas praças e nas noites da vila. Afinal, uma vila que é capital europeia do empreendedorismo. motim@revistaobscena.com


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SO ARRAO B O Ã o d R U Jean-Marc lphe D A T IS ENTREV OPEU R U E L A ULTUTRiago Bartolomeu Costa C M U R FO A MOUFR A Ç nça A a r R G te CO S Elisabe A V eves ISTA V sé Luís N E o J R s T to N fo E A CULTgUalhRães E O Ã Ç A a Miguel M GOVERN

s a vez, ao ir e c r e t a poio, e, pel al presid uadro Geral de A l o g u t r o P Q ia, ua o Europe e inicia um novo e por cultura e q iã n U a n s d ra a entrada em que carta pa se enten a a a e r d u u m t q l is u a o o u p a o de sent Num cutem o dos m anos oso apre ão com um vast unitária. os-membros dis r r m a o B c Vinte e u o a as ã p Comiss discuss da Euro s Estad s directiv o a a s a , o n o e 3 ã u in 1 a t t q r 0 s t s 2 e a e n r d 007 NA e , ago idade forma eríodo 2 assumir a a ident ivil A OBSCE erceber de que . e id s t v u e n e d a r p para o p s a o a r p tará ade c os eu a ser g e Bruxel a socied onde ten deputad mo está d e o s , e c o papel qu s e ia m iu õ e é ropa p id iç b ue div três ed as tam ara a Eu ião Euro p m n , l U l a a a r r d u u t l t cultura q prolongará por l l e u de cu cto c o pap se identida um proje os sobre a e m im d t u sier, que c o e ã ir ç fl n onstru s a defi país. Re is – na c a europeia ultural de cada r tudo. u t l u >> c c es os de es t e s n l a e a c g n e a io s s c a o t d na is o v e r , entr articula s, perfis n e – e em p g a t r o e rep através d


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ENTREVISTA

JOSÉ MANUEL DURÃO

BARROSO texto Jean-Marc Adolphe ilustração Pedro Semedo

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“A cultura é indissociável do projecto europeu”

A Europa cultural está em marcha? José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia retoma a “comunicação política” que esta instância adoptou em 10 de Maio último. Em “Sobre o papel da cultura na hora da mundialização”, afirma-se, pela primeira vez, o papel fundamental da cultura no processo de integração europeia e propõe-se uma agenda cultural para a Europa e as suas relações com países terceiros. A construção europeia estabeleceu-se sobre as bases de um “mercado comum” no seio da qual a cooperação cultural estava longe de ser uma prioridade. É certo que a comunicação política da Comissão Europeia não vai modificar, de um dia para o outro, este estado de coisas. E poderia até inquietar-se com algumas das afirmações de Durão Barroso, que concebe o “diálogo intercultural”como “um factor de flexibilidade e de adaptação dos indivíduos”, mesmo vendo também nele “um motor de solidariedade ao serviço da coesão social”. Mas faríamos mal em fazer má cara a todas as perspectivas que parecem finalmente vislumbrar-se a nível europeu. >>


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A 10 de Maio de 2007, a Comissão Europeia adoptou uma “comunicação política sobre o papel da cultura na era da mundialização”. Este documento é ele mesmo fruto de uma “vasta consulta pública”. Quais as alavancas – no interior da Comissão Europeia, mas também externas – que foram determinantes para se chegar a uma tal comunicação?

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parte muito activa que a Comunidade Europeia tomou na negociação da convenção da UNESCO. A Comissão militou fortemente pela emergência de um instrumento internacional antes que a decisão de iniciar as negociações tenha sido tomada e, de seguida, ela tomou parte activa na negociação ao lado dos Estados-membros assegurando que a União Europeia, falando a uma só voz, se tornasse num actor incontornável dessa negociação. Para nós tratava-se de permitir o surgimento, Por diversas vezes tive a oportunidade de dizer como na governação mundial, de um princípio de tomada de a cultura era, para mim, indissociável do projecto euconsciência transversal das implicações culturais das ropeu. Esta extraordinária aventura que é a construção políticas públicas, equivalente europeia foi, desde o início, um projecto eminentemente cul- Esta extraordinária aventura que é a ao que nós aplicamos na União Os princípios inscritural, porque foi necessário construção europeia foi, desde o iní- Europeia. tos nessa convenção, tal como aproximar as populações de um continente para lá das cio, um projecto eminentemente cul- os objectivos que ela entende cicatrizes dos conflitos que o tural, porque foi necessário aproximar prosseguir estão, com efeito, na mesma linha do que nós dedevastaram, permitindo uma compreensão mútua que não as populações de um continente para fendemos sempre: o reconhecipusesse em causa as tradições lá das cicatrizes dos conflitos que o mento da dupla natureza – cule económica – dos bens e e os modos operativos de cada devastaram, permitindo uma com- tural serviços culturais e a promoção um e indo beber nas fontes de um património comum. preensão mútua que não pusesse em de uma diversidade cultural com Actualmente, mais ainda, já causa as tradições e os modos ope- duas facetas, indispensáveis e complementares. A saber: por que no debate fundamental sobre o futuro da União Euro- rativos de cada um e indo beber nas um lado, a tomada em linha de conta, num determinado quapeia, do seu alargamento ou do fontes de um património comum. dro, da variedade das expresseu papel a favor de uma munsões culturais e, por outro, uma abertura ao outro, ao dialização controlada e de um desenvolvimento sustendiferente, ao exterior, que permita o intercâmbio entre as tado apoiado na economia do conhecimento, a compoculturas. A diversidade cultural que nós queremos pronente cultural impõe-se, inextrincavelmente misturada mover é com efeito uma noção dinâmica implicando um com os interesses económicos, sociais e políticos da diálogo, um valor pacificador. É pois, e nomeadamente construção europeia. É esse reconhecimento crescente para dar vida à diversidade cultural na União Europeia e das questões culturais que esteve na origem desta nos Estados-membros que fazem parte da Convenção, comunicação. que a Comissão pôs sobre a mesa esta comunicação. Se podemos regozijar-nos de um tal avanço, não será Esta comunicação estabelece três grandes objectivos de lamentar que esta comunicação intervenha depois da constitutivos de uma estratégia cultural para as instiadopção da Convenção da UNESCO sobre a protecção e a tuições europeias, os Estados-membros e o sector da promoção da diversidade das expressões culturais? Por cultura e da criação artística. Como conseguir objecoutras palavras, a Europa parece seguir o movimento em tivos comuns quando as “políticas culturais” podem vez de impulsioná-lo. Pensa que a comunicação de 10 de ser muito diferentes de um país para outro da União Maio marca, nesse sentido, uma reviravolta decisiva? europeia, e que mesmo a noção de “política cultural” está longe de ser unânime? Não partilho da sua leitura da cronologia e não penso que a Europa tenha ido a reboque da UNESCO nestas Não se trata, de todo, da Comissão Europeia definir questões. Pelo contrário, mesmo! Em primeiro lugar, “uma política cultural” europeia que se substituiria às considero que, pela sua essência, as questões da dipolíticas nacionais. Também não se trata de procurar versidade cultural e linguística ultrapassam os limites harmonizar realidades nacionais ou locais bem difegeográficos da União. São, de forma evidente, questões rentes umas das outras e que fazem a riqueza do nosso planetárias e é pois natural que o debate nelas implícito continente. A comunicação é muito precisa nesse ponto tenha tomado forma num espaço onde o mundo inteiro quando afirma que a cultura é e será uma responsabiesteja presente. Depois, conhece tão bem como eu a


lidade que incumbe principalmente aos Estados-mema ambição, anunciada pela Comissão na sua comunibros. As propostas inscritas no documento respeitam cação, de trabalhar para melhor levar em conta a cultura escrupulosamente o princípio da subsidiariedade. Conem todos os programas da União Europeia. Trata-se de tudo, este princípio não deve mostrar que a despesa cultural ser invocado para justifi-car a Os actores culturais esperam da União é um investimento estratégico inacção. Os actores culturais projecto que visa o deseme dos Estados-membros que reflictam num esperam da União e dos Espenho económico e a solidatados-membros que reflictam em conjunto sobre certos desafios que riedade numa sociedade do em conjunto sobre certos ultrapassam o âmbito estritamente conhecimento em vias de mundesafios que ultrapassam o dialização. Tal como o relembra âmbito estritamente nacional. nacional. Penso nas barreiras que po- na sua pergunta, a cultura é um Penso nas barreiras que po- dem desencorajar ainda hoje a mobili- vector importante de criatividem desencorajar ainda hoje portanto de inovação e de dade dos profissionais da cultura e das dade, a mobilidade dos profissiocrescimento. É necessário exnais da cultura e das obras no obras no seio da União Europeia. plorar ainda melhor este fenóseio da União Europeia. Penso meno. O ano 2009, que será em também em certos desafios – como o desenvolvimento breve designado como Ano europeu da criatividade e da das competências interculturais nas nossas sociedades inovação pela educação e cultura, deveria ser uma boa cada vez mais diversas, ou ainda o desenvolvimento do ocasião para pôr em evidência este tipo de relações. potencial criativo dos nossos cidadãos num mundo hiper competitivo – com os quais são confrontados todos Se todos os programas da União Europeia são teoricaos países europeus. A troca de boas práticas pode ser mente abertos a projectos culturais, o programa Culum instrumento precioso para lhes dar resposta. tura continua a ser o que suscita mais interesse junto dos operadores culturais. Ora, estes preocupam-se Na apresentação da comunicação escreve que “a culcom a complexidade crescente da montagem técnica, tura e a criatividade [...] são motores importantes administrativa e financeira dos dossiers submetidos de desenvolvimento pessoal, de coesão social e de a esse programa. Um tal peso administrativo parece crescimento económico. Mas são sobretudo elemenafastar de facto os operadores emergentes, cujas initos fundamentais de um projecto europeu”. Contudo, ciativas europeias podem no entanto ser exemplares inúmeros artistas e operadores culturais europeus e portadoras de futuro. A Comissão Europeia tem queixam-se da debilidade dos orçamentos comunitáriconsciência desse problema e, nesse caso, como é que os consagrados à cultura. As instâncias políticas da ela conta remediá-lo? União Europeia parecem-lhe dispostas a reconhecer que “estes elementos fundamentais de um projecto A Comissão deu início a um processo de consulta regueuropeu” merecem uma maior consideração? lar dos beneficiários e dos operadores culturais, cuja primeira etapa foi um grande encontro com profissioÉ difícil dizer com exactidão qual é a parte do orçamento nais da cultura em Bruxelas no início de Março de 2007, da União Europeia que actualmente serve para finanaquando do lançamento do novo programa Cultura. O ciar actividades culturais. O programa Cultura, que visa nosso objectivo é o de recolher junto do sector cultural apoiar a cooperação cultural na União Europeia, dissugestões que sejam úteis para pôr em prática o propõe de um orçamento de 400 milhões de euros para o grama, tão próximo quanto possível das suas necesperíodo de 2007-2013. É ainda relativamente modesto sidades e expectativas. Sobre a base desta consulta e mas representa, mesmo assim, um aumento de cerca da experiência que ela adquiriu na gestão das activide 20% em relação ao período orçamental precedente. dades no domínio cultural, a Comissão fez modificações Por outro lado, para além deste programa, inúmeros substanciais aos seus apelos a propostas, que – tenho a outros instrumentos podem contribuir para o financiacerteza – tornarão o acesso ao programa mais facilitamento da cultura nos nossos países: o programa Media do. Vários elementos visando aumentar a simplificação para o ci-nema, mas também os Fundos estruturais, o e a transparência do programa foram integrados nos programa Recherche ou ainda os programas de ajuda pedidos da nova geração, publicados este Verão. Elas ao desenvolvimento, para apenas citar alguns. Apenas assentam simultaneamente no conteúdo do concurso e um número para lhe dar uma ordem de ideias: até agono procedimento de apreciação e de selecção dos prora mais de 5 biliões de euros estão desde já programajectos, com o intuito de simplificar a apreciação dos dos pelos Estados-membros ou pelas regiões para as mesmos, facilitar a compreensão dos resultados espedespesas culturais no âmbito dos Fundos estruturais rados, aumentar a transparência e diminuir, na medida para o período de 2007-2013. É bastante! E é também do possível, o peso administrativo para os operadores. >>

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Estas modificações deverão permitir uma montagem e uma aplicação menos complexas dos projectos, o que beneficiará sobretudo os operadores emergentes e os que desejam participar no programa pela primeira vez. Ainda na Comunicação de 10 de Maio afirma de forma muito determinada a dimensão externa da cultura na Europa. Ela propõe medidas para reforçar a importância da cultura enquanto componente do diálogo político com os países e regiões parceiras, promover os intercâmbios culturais, integrar sistematicamente a cultura nos programas e projectos de desenvolvimento. A prazo, este objectivo não se deveria substituir ao papel que procuram levar a cabo, isoladamente, grandes agências nacionais tais como o British Council, o Goethe Institut ou Culturesfrance? Em matéria de intercâmbios culturais, certos países da União Europeia parecem-lhe dispostos a abandonar uma parte das suas prerrogativas nacionais a favor, talvez, de uma futura agência europeia? Será esta a missão do Fundo cultural EU-ACP [União Europeia – África, Caraíbas e Pacífico] que a Comissão europeia propõe criar?

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A Comissão europeia propõe instituir um “método aberto de coordenação” para conseguir os objectivos delineados em matéria de cultura. Como se pode estruturar melhor a cooperação entre Estados membros e sobre que bases? O método aberto de coordenação que nós propomos na comunicação é precisamente o instrumento que deve permitir melhor estruturar a cooperação com os Estados-membros num domínio onde a competência comunitária é apenas subsidiária. Este método oferece um quadro inter-governamental não restrito para o intercâmbio e a acção concertada. Ele consiste em adoptar objectivos comuns, em trocar as boas experiências e as informações úteis, por forma a favorecer a aprendizagem mútua e fazer regularmente o balanço dos progressos conseguidos. Nesse contexto os Estados-membros serão convidados a concretizar os objectivos confirmados de acordo com as suas práticas nacionais e poderão definir os seus próprios projectos prioritários. Eles serão igualmente encorajados a associar amplamente a este exercício, as autoridades locais e regionais, bem como os actores culturais nacionais.

Mais uma vez, não se trata, evidentemente, de substituir a acção cultural muito positiva levada a cabo peFinalmente, 2008 será o Ano europeu do diálogo interlos Estados-membros nos países do mundo inteiro. cultural. Que espera, concretamente, das iniciativas O British Council, Culturesfrance ou o Instituto Camões, que poderão ser tomadas nesse contexto? para apenas citar alguns, dão um contributo inestimável à difusão das culturas europeias e à compreensão Em primeiro lugar, desejaria lembrar que esse Ano inentre os povos. Este contributo deve continuar. Desescreve-se num processo de promoção do diálogo interjaria aproveitar a sua pergunta para lembrar um cultural iniciado desde há tempos pela Comissão Euroelemento essencial da nossa comunicação. Os três conpeia, tanto no interior da União como nas suas relações juntos de objectivos que nós propomos não devam ser exteriores e que deve prolongar-se bem para além de considerados como objectivos “comunitários”. São “ob2008. Com efeito, nós sempre considerámos que o diájectivos partilhados” por todas logo intercultural era o coroláas partes: das instituições co- O diálogo intercultural diz respeito a rio indispensável da diversidamunitárias aos Estados-memde cultural e uma componente bros, passando pelas regiões todos, porque ele se joga tanto na es- fundamental de uma cidadania ou ainda os representantes do cola como no local de trabalho, numa europeia activa e aberta para sector cultural ou da sociedade sala de espectáculos como na rua ou o mundo. Mas o diálogo incivil. É pela convergência dos tercultural é também um esforços de todos que nós con- num estádio de futebol. factor de flexibilidade e de seguiremos progredir. No que adaptação dos indivíduos, mais particularmente diz respeito à promoção da culbem como um motor de solidariedade ao serviço da tura como um elemento essencial das relações extericoesão social. Vemos bem que é indispensável desenores da União europeia, este objectivo deve ser lido em volver as competências interculturais dos indivíduos no ligação com a Convenção da UNESCO. Vai ser necessário nosso mundo matizado, que vive modificações rápidas. agora passar à acção e pôr em marcha os princípios O diálogo intercultural diz respeito a todos, porque ele se deste texto nas relações que a União Europeia mantém joga tanto na escola como no local de trabalho, numa sala com os seus parceiros, nomeadamente com os países de espectáculos como na rua ou num estádio de futebol. em vias de desenvolvimento. É essa a ambição do fundo, 2008 deve permitir-nos propagar esta mensagem para que deve ser o instrumento de uma política pró-activa a linha da frente em toda a Europa, a fim de sensibilizar a favor da diversidade cultural nesta região do mundo. os cidadãos, em particular os jovens, para a importân-


cia do diálogo intercultural na sua vida quotidiana. Para tal, nós entendemos mobilizar a longo prazo os actores institucionais e a sociedade civil, a todos os níveis, graças à colaboração activa dos Estados membros, mas também das autoridades locais e regionais. Só juntando todos os esforços conseguiremos criar uma sociedade forte com todas estas diferenças, onde cada um sinta que tem o seu lugar. O apoio a iniciativas concretas e de intensificação do debate sobre as questões e as práticas ao longo do Ano 2008 deveria permitir-nos, assim o espero, esquiçar uma estratégia durável para o reforço do diálogo intercultural no coração do projecto europeu.

Tradução do francês: Rogélia Neves/Instituto Franco-Português Publicado em colaboração com a revista Mouvement A comunicação de 10 de Maio de 2007 está disponível em http://ec.europa.eu/culture/eac/communication/comm_en.html Leia sobre a Convenção para a Diversidade Cultural aprovada pela UNESCO no número 3 da OBSCENA.

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Durante dois dias Lisboa acolheu o primeiro Forum Cultural para a Europa, uma iniciativa da Comissão Europeia que quis auscultar a sociedade civil antes de começar a discutir o modo como a cultura deverá entrar no discurso dos políticos. Workshops sobre o diálogo intercultural, as relações entre economia e cultura e a imagem externa da Europa foram três temas que ocuparam mais de 500 participantes de vários domínios da criação artística. O encontro, visto por Durão Barroso como fundamental para o futuro da Europa, serviu para apresentar a Comunicação de 10 de Maio, entender qual o programa político-cultural para os próximos sete anos, correspondente ao novo quadro de apoio do Programa Cultura. Num dossier que faz o balanço do encontro, a OBSCENA dá-lhe conta do que por lá se discutiu, das ambições da União Europeia e dos agentes culturais, e do papel do Ministério da Cultura português neste processo. Traduzimos-lhe ainda a linguagem mais técnica para que não se sinta perdido nesta imensa Europa cultural.

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Podemos partilhar do desejo de Jacques Delors, presidente da Comissão Europeia de 1995 a 1995 que, recuperando as palavras de Goethe em Elegia em Marienbad, pedia que se “desse alma à Europa”. Ou então sermos mais pessimistas, como Eça de Queiroz, e acreditar que “a crise é a condição quase regular da Europa”. Certo é que aquilo que nos caracteriza, essa ideia de união comunitária cada vez mais alargada, deve passar pela cultura. E, em particular, por uma cultura diversa que é, no fundo, aquilo que desenha, a traços de liberdade que nos chegam desde o iluminismo, uma Europa cada vez mais necessitada de uma identidade. Durante dois dias, 26 e 27 de Setembro, Lisboa tentou encontrar um sentido a tomar que aproximasse Bruxelas dos cidadãos e, em particular, dos agentes culturais. Ministros da Cultura, think tanks, directores governamentais, representantes de instituições europeias, economistas, advogados, professores, programadores, encenadores, coreógrafos, intelectuais e outros tão ou mais anónimos sentaram-se a discutir que destino dar às políticas culturais europeias já que, dissese repetidas vezes, “a identidade europeia só pode ser construída com a presença e o empenho da cultura”. Para Isabel Pires de Lima, Ministra da Cultura e anfitriã por conta de Presidência Portuguesa da União Europeia, “a cultura é o elemento agregador material e imaterial da Europa”, já que “acrescenta fluxo e impacto à criatividade”, potencia “intercâmbios que enriquecem uma identidade cultural europeia” e, enquanto “espaço

PARA UMA CERTA IDEIA DURÃO BARROSO Em que contornos foi imaginado o Fórum Cultural? A Comissão considera, com efeito, necessário desenvolver um diálogo mais estruturado com o sector cultural, a fim de permitir um intercâmbio regular de informações que alimente a reflexão política e favoreça a emergência de boas práticas. O sector cultural europeu deve ser mais ouvido sobre as grandes questões europeias, bem como sobre as questões tratadas ao nível da União europeia e que lhe dizem respeito. Nós estamos evidentemente conscientes da muito grande heterogeneidade do sector cultural, que agrupa actores de interesses por vezes divergentes, bem como da estruturação ainda imperfeita de algumas das suas componentes a nível europeu. Tal não nos deve desencorajar a ir mais além. Jean-Marc Adolphe

de liberdade fundamental” deve nortear os cidadãos para o exercício conjunto de construção de um sociedade mais justa. Foi nesse sentido, acrescentou a Ministra, que a Comissão Europeia pensou o Fórum Cultural para a Europa, cujos dois objectivos se queriam ver concretizados a tempo da apresentação aos Ministros da Cultura da Europa na reunião informal que aconteceu no dia seguinte ao fim do Fórum, sexta-feira, 28 de Setembro: ouvir a sociedade civil e levar as decisões ao Parlamento Europeu a tempo do Conselho de Ministros da Cultura, em Novembro próximo onde será discutida a forma que tomará a acção interventiva europeia no domínio da cultura. Esta Europa, que a Ministra apelidou de “projecto histórico de partilha de valores”, é, na verdade, uma incógnita – como aliás o mostra o Eurobarómetro para os valores culturais na Europa (ver páginas 26 e 27) -,


GLOSSÁRIO onde as leis do mercado atravessam as decisões culturais; onde os processos de criação, com os seus tempos próprios e a sua invisibilidade inerente carecem de um consideração ao mais alto nível; onde grassam desigualdades no campo social que impedem uma troca justa e equilibrada entre agentes culturais de diferentes Estados-Membros; onde o alargamento a Leste levou a nacionalismos serôdios; na qual se começa a deixar perceber uma invasão por osmose de preconceitos fátuos e ausência de valores que branqueam a história. Esta “Europa da paz” está, efectivamente em crise e, por isso, que ideia para uma certa Europa se tentou aqui procurar? Dúvida um: As políticas culturais devem mesmo ser co-

ordenadas?

A pergunta foi formulada por Gerd Harnes, representante do Comité das Regiões, e convidado a falar sobre as relações entre as regiões e o poder centralizado em Bruxelas. Se “a cultura desempenha um papel no processo de integração social”, é no reconhecimento dos “valores intangíveis da cultura que devem ser exploradas” as relações entre os Estados. Só tendo a educação e a cultura como base é que a Europa avançará enquanto projecto social e político. E as regiões têm, nesse linha de raciocínio, “um papel fundamental a desempenhar”. Para Harnes, não faz qualquer sentido que os governos coordenem políticas gerais, porque estas se afastam, cada vez mais, “daquilo que são as necessidades dos cidadãos”. “Acelerar os processos de desburocratiza-

DE EUROPA textos

Tiago Bartolomeu Costa

ção, simplificar os mecanismos de apoio e permitir o acesso, de forma equitativa, aos cidadãos”, são medidas que Harnes gostaria de ver aplicadas o quanto antes, da mesma forma que, disse-o no plenário de abertura, “a Europa devia apostar nas trocas não comerciais” e no reconhecimento da “importância de fundos estruturais para projectos singulares”. Incluir em vez de afastar, foi também a ideia deixada pela Princesa Laurentien dos Países Baixos ao reclamar uma eficiência e uma inclusão mais activas. O princípio da subsidiariedade deve, segundo a Presidente da Fundação Cultural Europeia, ser amplamente considerado sob pena de se perder aquilo que de mais importante a Europa contém: a capacidade inventiva dos seus cidadãos. Foi também nessa linha de pensamento que alguns agentes culturais defenderam a necessidade de verem garantidas as condições de trabalho que permitam >>

Artigo 151 do Tratado da União – Garante a acção interventora da União Europeia a partir de três pontos: 1) a promoção da diversidade cultural e do património comum; 2) uma acção baseada no princípio de subsidariedade; 3) uma compreensão da cultura enquanto sector horizontal e transversal na estrutura da União Europeia. Subsidariedade – Definida pelo Artigo 5º do Tratado da União, assinado em 1992 em Maastricht, assegura que “aquilo que a mais pequena entidade consegue fazer adequadamente não deve ser feito por uma grande entidade, a não ser que o faça melhor.” É usado como instrumento para determinar quando deve a União Europeia intervir em áreas que não são da sua estrita competência. Garante ainda que as decisões são tomadas “o mais próximo possível dos cidadãos”. A União “não toma medidas (a não ser em áreas que sejam da sua exclusiva competência) a não ser que a sua intervenção seja mais efectiva que as políticas seguidas a nível local, regional ou nacional”. Relaciona-se com os princípios de proporcionalidade e necessidade que asseguram a auto-regulação dos Estados-Membros. Método Aberto de Cooperação – Designado pela Comunicação de 10 de Maio como a estratégia a adoptar para a aplicação de políticas culturais a nível europeu. “É um enquadramento intergovernamental e não vinculativo para a partilha de políticas e acções concertadas adequadas a um campo como o da cultura, onde as competências pertencem aos Estados-Membros. Consiste numa plataforma de concordância, procurando progressivamente a troca de boas práticas e dados relevantes, de modo a alimentar o entendimento mútuo”. Comunicação de 10 de Maio – O seu nome completo é “Comunicação para uma Agenda Europeia num Mundo Globalizado”, foi apresentada a 10 de Maio de 2006 sob indicações do Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, aos vários organismos da União Europeia, procurando activar o que havia sido designado pela Estratégia de Lisboa . Segue-se ao estudo, apresentado em 2006, que deu conta do investimento que a cultura faz no desenvolvimento europeu, 2,6%, o terceiro maior contributo para o Produto Interno Bruto. Ano Europeu para o Diálogo Intercultural – Programa de intenções que instrumentaliza mecanismos que auxiliam os cidadãos Europeus, e aqueles residentes na União Europeia , a adquirirem o conhecimento e as ferramentas para lidarem com um contexto cultural cada vez mais aberto e complexo. Boas práticas – Termo adoptado pela União Europeia para definir aquilo que se consideram ser os caminhos a seguir em termos de intervenção política.

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“A RAZÃO PRIMÁRIA DO APOIO À CULTURA É O SEU VALOR INTRÍNSECO” Apesar de por duas vezes ter rejeitado, por referendo, a integração na União Europeia – a primeira em 1972, a segunda em 1994 – a Noruega tem sido parceiro activo no diálogo europeu, nomeadamente no plano cultural, através de acordos estratégicos que vão ao encontro das directivas da Comissão Europeia, mas também com parcerias bilaterais com os vários Estados-Membro. Margaretha Østern, Directora-Geral do Ministério da Cultura e Assuntos Religiosos da Noruega, dá conta, num depoimento que a OBSCENA publica na íntegra, na sequência da indelicadeza da Ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, que, na sessão final cortou a palavra à observadora norueguesa, do modo como o seu país tem trabalhado em prol da cultura europeia e de modo entende o futuro da cultura no centro da discussão política.

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O Forum Cultural para a Europa é, espera-se, o início de um processo de compreensão que levará a resultados concretos quanto ao diálogo intercultural em todas as áreas, bem como potenciando a criatividade – também transversalmente. A Noruega tem participado activamente em todos os programas culturais da União Europeia (UE) desde 1996 – naturalmente pagando a totalidade dos custos dessa presença. Recebemos com satisfação a nova e forte oportunidade dada à cultura na UE, bem como a proposta da Comissão Europeia de uma Agenda para a Europa num mundo globalizado. Num plano formal nós apoiamos as propostas inscritas no documento. Contudo gostaria de salientar que, se a razão primária para o apoio à cultura deveria manter-se o valor intrínseco da própria cultura, podemos usar a cultura instrumen-

O período dos grandes projectos acabou.

Gils Croft, director da Nothingham Playhouse (Inglaterra) talmente, isto é, para atingir objectivos em outras áreas políticas – garantindo que a integridade da cultura será sempre respeitada. Somos favoráveis à intenção de criar um Método Aberto de Cooperação para a área da cultura e estamos apostados para nele participar activamente, à semelhança daquilo que já fazemos, de modo muito proveitoso, em outras áreas como a investigação, educação e juventude. Uma prossecução activa da Convenção da UNESCO para

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a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais é fundamental. Também apreciamos a intenção de planear a cooperação e a coordenação com outros agentes internacionais no terreno no sentido de maximizar os benefícios de todos os recursos disponíveis. Nesse sentido gostaria de chamar a atenção para factos importantes surgidos na revisão do Acordo para a Área Económica Europeia (AEE) [criado em 1994 e que inclui a Noruega, o Liechtenstein e a Islândia] na altura do alargamento da UE [2004]. Foi na altura estabelecida criação de um mecanismo de financiamento norueguês de 567 milhões de Euros para o período 2004-2009 que beneficiaria os dez novos estados membro. Da mesma forma, foi criado pela AEE um outro mecanismo finan-

O diálogo intercultural deve ser, sobretudo, intergeracional. O Ano Europeu para o Diálogo Intercultural não pode resultar numa uniformização e branqueamento da sociedade.

Catarina Martins, directora da companhia de teatro Visões Úteis ceiro, suportado pela Noruega, Liechtenstein e Islândia, de 600 milhões de Euros que beneficiaria os dez novos estados, bem como três outros já integrados, cobrindo o mesmo período. Um outro mecanismo financeiro foi estabelecido, pela AEE para a Bulgária e a Roménia, na altura da sua adesão à UE [2007]. O total é de 140 milhões de Euros para os próximos dois anos. Para nosso grande prazer verificamos que os beneficiários estão a dar grande prioridade à cultura na utilização dos fundos. Quer-nos parecer que quase 20% desses fundos serão maioritariamente usados na cultura, sobretudo em áreas como o património, ou relacionadas com a cultura. A totalidade de dinheiro nesses fundos é de 1307 Euros. Se fizermos um cálculo rápido, descobrimos que 20% do dinheiro gasto na cultura por ano é equivalente a 52 milhões de Euros. Em comparação, a média do orçamento anual do Programa Cultura é de 57 milhões de Euros. Refiro este exemplo como um aspecto positivo que prova a existência de diferentes fontes às quais nos podemos dirigir quando queremos tratar dos grandes desafios da área cultural Por fim gostaria de referir que espero que o proclamado Ano Nacional da Diversidade Cultural, que a Noruega instituiu para 2008, possa contribuir para o Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, também em 2008. Para além disso, e como é sabido, Stavanger será Capital Europeia da Cultura no próximo ano, juntamente com Liverpool, e o seu programa presta-se, também, a um contributo para a iniciativa da União Europeia.


O FORUM CULTURAL QUE O MINISTÉRIO SE ESQUECEU DE ANUNCIAR Comentário A Europa tem destas coisas, faz-nos parecer relevantes em áreas onde devíamos, por vezes, agir com precaução. O Forum Cultural para a Europa não sendo uma oportunidade irrelevante, que não é, também não se transformou no evento mobilizador que o Ministério da Cultura (MC) português quis fazer parecer. Nem a sociedade foi tão civil quanto se alardeava, nem a imprensa se importou muito com a discussão. Um olhar pelos jornais internacionais e agências de informação, já para não falar da imprensa portuguesa, mostra que a importância dada ao tema foi pouca ou nenhuma. E a que houve limitou-se ao relato passivo de alguns acontecimentos, à explanação de alguns desalentos dos primeiros interessados – os agentes culturais que primaram pela ausência –, e ao corrupio de folclore social que preenche qualquer evento relacionado com a cultura. Não houve reflexão, não houve debate, não houve uma extensão que questionasse o papel que a cultura ocupa em Portugal e na Europa. Isto não é, diga-se, mais do que o resultado da total desinformação prestada pelo MC que, duas semanas depois do fim das inscrições, andou de pesca à linha a alguns nomes, solicitando-lhes pronta participação. As respostas, quando não vinham cheias de indiferença, alertavam o próprio MC para o facto de já estarem inscritos. E não porque tivessem daqueles recebido informação prévia, ou mesmo de qualquer outra agência governamental, mas porque, naturalmente, foram alertados por parcei-

ros e cúmplices internacionais que começaram a dar conta das datas de chegada a Lisboa. Para quê? Para um Forum Cultural sob a égide de uma comunicação assinada pelo próprio presidente da Comissão Europeia. Só esse facto pareceu dar garantias aos participantes de que não se tratava de mais uma operação de charme de Bruxelas. Durão Barroso parece querer, mesmo, colocar a cultura na agenda da Europa. Que Steiner o proteja do MC português, já que se estivermos dependentes da dupla que ocupa o Palácio da Ajuda dificilmente teremos resultados prontos ou sequer esclarecimentos sobre as prioridades, objectivos e intenções desta operação. A opinião nem é só minha, mas da imprensa internacional presente numa sessão de esclarecimentos à margem do Fórum no qual Patrícia Salvação Barreto, a Directora-geral do MC responsável pela sua coordenação, fez anunciar, a vinte minutos do fim da sessão, de que não teria tempo para explicar de que forma entendia o MC português a importância do encontro. Hélas! Por muito elogiosos que tenham sido os agradecimentos de praxe dos vários convidados, não foi possível deixar de se sentir na sala um certo incómodo por aquilo que é a imagem internacional do MC e o seu referente interno. Cada um tem o MC que merece e vice-versa. A deselegância para com a representante do Ministério da Cultura e Assuntos Religiosos da Noruega é um sinal claro da política de fachada que o nosso MC pratica para épater l’Europe. Tiago Bartolomeu Costa

>> a exploração da criatividade, elemento que só pode ser desenvolvido com tempo, meios e condições consentâneas com a fragilidade dos projectos. “A arte só tem valor se tiver valor em si mesmo” disse-se várias vezes ao longo dos dias, uma fase que dialoga com uma assumpção da Comunicação de 10 de Maio: “a cultura não devia ser por si só um instrumento político”. Se a dúvida lançada por Gerd Harnes tiver eco no seio do Conselho de Ministros da Cultura, poderemos estar perante uma reavaliação dos mecanismos de contribuição financeira por parte dos Estados-Membros. Nomeadamente ao nível das decisões sobre que projectos apoiar. Juventude em detrimento do diálogo inter-geracional? Património em vez de Contemporaneidade? Estruturação do sector em vez de atenção aos problemas imediatos? A verdade é que ninguém sabe. É por isso que Isabel Pires de Lima fala da necessidade da sociedade civil se organizar para poder ser ouvida, porque só assim se dará à cultura “a necessária visibilidade política”. Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia e primeiro impulsionador deste Forum disse, no discurso de encerramento, que “tal como a educação, a cultura aju-

“A democratização no acesso à cultura ainda não é satisfatória e o acesso á educação artística no sistema primário deve ser prioritário.” Claire Gibault, Membro da Comissão de Cultura e Educação do Parlamento Europeu

da à inclusão social, reduz a pobreza e a exclusão e é de uma estratégica importância a nível local em termos de regeneração social”. Mas, se assim for, como conciliar o desejo de Harnes com a noção que Gils Croft, da Nothingham Playhouse, tem do futuro da Europa – “acabou o tempo dos grandes projectos”, disse-o no workshop sobre o Diálogo Intercultural? Dúvida 2: Como deve a Europa agir num mundo globali-

zado?

Não há dúvida que os últimos anos permitiram um salto qualitativo em termos relacionais entre cultura e sociedade. O estabelecimento de quadros de apoio, como o >>

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>> Cultura 2000, permitiu a aproximação entre países, projectos e criadores, dando a entender que a Europa caminhava para o desenvolvimento de uma plataforma efectivamente comum, onde os fronteiras entre os artistas e os cidadãos-consumidores se esbatiam a cada dia. Mas às portas de um novo programa de apoio, e consciente de que o alargamento a Leste veio trazer novos desafios no que respeita ao diálogo cultural com o outro, a Europa vê-se agora confrontada com um dilema: que fazer e como manter-se à altura das expectativas dos cidadãos? O negócio das indústrias criativas, que mina e cerca a criação artística, tem feito deslocar recursos financeiros para áreas que vivem de um imediatismo e velocidade

“A sociedade civil deve organizar-se para se poder fazer ouvir.” Isabel Pires de Lima, Ministra da Cultura

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pouco consentâneos com a fruição dos bens culturais. Mas, no entanto, a diversidade do termo cultura foi de tão forma alargada que corremos o risco de deixar de falar de cultura para passarmos a consumir um subproduto – ou um meta-produto – estilizado, reproduzível ad nauseum, e economicamente mais eficaz. O perigo da democratização da cultura – não no sentido meritório do termo, mas no outro, o ilusório – é esse, precisamente, e entra em confronto ideológico com a necessária abertura a um mercado comum, inevitavelmente global e transcontinental, mais do que transnacional. A indefini-

É prioritário mais dinheiro que reconheça a importância de que os fundos estruturais devem caminhar para o apoio a projectos singulares.

Gerd Harnes, Comité das Regiões

ção quanto ao modo como devemos lidar com as indústrias culturais esbarra com uma impossibilidade ideológica absolutamente enraizada na cultura europeia: a de que a arte não é uma indústria. Ou pelo menos não é no sentido mais estrito do termo. E entender-se que a arte no cruzamento com a indústria deve produzir um terceiro objecto que explore o lado manual de um e o lado fabril do outro, não é de todo claro. Por isso, quando Gils Croft alerta para o reconhecimento do fim do período dos grandes projectos, está a reclamar uma atenção para um outro modo de pensar e fazer a cultura, menos efémero, menos distante, menos ambicioso. Quase um reboot cultural. Claire Gibault, da Comissão de Educação e Cultura do

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Parlamento Europeu é clara: “a democratização do acesso à cultura ainda não é satisfatório” e o segredo, diz, está na educação artística, está na integração de práticas artísticas, tanto ao nível da execução como da teoria, desde o ensino primário. A formação de novos cidadãos ajudará, certamente, ao estabelecimento de uma outra forma de conceber a cultura e, naturalmente, ajudará a encontrar a identidade europeia que se crê perdida. Dúvida 3: Alguém viu a minha identidade europeia? 2008 foi declarado como Ano Europeu para o Diálogo Intercultural. 2009 será o Ano Europeu da Criatividade e Inovação. Em comum têm o facto de partirem de sugestões apresentadas pela Comunicação de 10 de Maio, mas são também, e muito especialmente, anos-charneira para a definição daquilo que se entende por cultura europeia. Os dados da Eurobarómetro revelam que há um desfasamento entre aquilo que se define como cultura e as práticas culturais. Os cidadãos europeus – e a tendência não parece vir a diminuir – já não parecem carregar, na sua genética (ou se carregam já não dão disso conta) um espírito de questionamento sobre o lugar de pertença. As segundas e terceiras gerações de imigrantes vivem numa realidade bastante diferente da dos seus pais, confundindo-se (e bem) com os demais, provando assim que a sociedade europeia é, efectivamente um melting pot que dificilmente se sustentaria na individualidade. Como disse Karel Capek, escritor checo citado pela Chanceler alemã Angela Merkel no discurso inaugural da presidência alemã, em Janeiro deste ano, “o criador da Europa fê-la pequena e, ainda assim, dividiu-a em numerosos pedaços para que os

O conceito de diversidade cultural é o mais importante e deve contemplar representação, reconhecimento e respeito pelo outro.

Damian Draghici, músico e Embaixador da minoria romena para o Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades corações não se vangloriassem do seu tamanho, mas da sua variedade”. Mas é verdade que, mesmo existindo valores civilizacionais que nos caracterizam, há impossibilidades, provavelmente estratégicas, que nos impedem de aceder a um outro nível. O caso da integração ou não da Turquia na Europa comunitária, não se prende, natural e evidentemente, apenas com a questão religiosa. Uma Europa, ainda que com raízes judaico-cristãs e lidando mal com um catolicismo enfermado, assumidamente laica, >>


EFAH QUER VER RECONHECIDA A CULTURA COMO MOTOR DE INTEGRAÇÃO EUROPEU Reunida informalmente em Lisboa na véspera do Forum Cultural para a Europa, membros do EFAH – European Forum for the Arts and Heritage prepararam um documento que, durante as várias sessões dos workshops, serviu de base para as intervenções dos diversos participantes. O texto refere que os parceiros desta estrutura, que a União Europeia (UE) consulta regularmente a respeito de políticas culturais, são a favor de um Método Aberto de Cooperação (MAC) “flexível e adaptável” que “envolva todos os agentes a nível local, regional, nacional e europeu”. Não admitem, por isso, que os estudos e os documentos produzidos pela Comissão Europeia (CE) permaneçam retidos em Bruxelas, não potenciando “um diálogo estruturado entre os sectores da arte e da cultura”. O sector, dizem, “precisa de um apoio que explore a capacidade de mediação entre agentes culturais e os sectores político, social e económico” de modo a aproveitar as capacidades que, asseguram, “estão à altura da estruturação exigida pela Comissão Europeia”. O seu maior objectivo é “fazer com que a cultura importe”.

E, para isso, as “instituições europeias precisam de parceiros com quem dialogar, consultar e avaliar” os mecanismos que conduzem as directivas de Bruxelas. É preciso “afastar o fantasma da desilusão” que assombra as relações entre a CE e a sociedade civil. Apesar de terem sido surpreendidos pela velocidade na adopção de uma comunicação que respondesse aos desígnios traçados pela Estratégia de Lisboa, e conscientes de que “não foi fácil chegar até aqui”, acreditam que “sem uma aplicação concreta” do artigo 151º, ponto 4, do tratado da União, pilar essencial da construção de uma identidade cultural e ao abrigo do qual se desenhou a Comunicação de 10 de Maio, a Europa perderá o comboio do desenvolvimento cultural e colocará em risco os planos de integração intercultural previstos para os próximos anos, e muito concretamente, já em 2008, o designado Ano Europeu para o Diálogo Intercultural. Acham, aliás, que o documento acusa a “necessidade de compromisso” entre os Estados-Membros, tendo

aliás ficado na dúvida quanto a esta “consulta à sociedade civil”. “E se já estiver tudo decidido”, perguntam-se, conscientes de que a “Comissão Europeia quer que a Comunicação seja legitimada” pela Sociedade Civil porque, “é agora ou nunca”. E daí, entendem, a pressa na organização de um Forum Cultural para a Europa. Alertam que a não aprovação da comunicação pelos 27 ministros da Cultura pode ter reflexos no próximo quadro comunitário de apoio, que abrange o período que vai de 2007 a 2013. São, no total 400 milhões de Euros disponíveis para um sector que A cultura deve não só ser mais carece de políti- eficiente como mais inclusiva. cas estruturais. Princesa Laurentien dos Países Baixos, É neste mesmo Presidente da Fundação Cultural Europeia documento que o EFAH chama a atenção para o garante do “valor intrínseco da cultura”, que “suporta e legitima” qualquer acção no plano cultural. Razão pela qual a Europa deve trabalhar para que as “decisões tomadas ao mais alto nível tenham efeitos ao mais baixo nível”, contribuindo assim, por exemplo, para amenizar as tensões entre os governos regionais e os governos 21 nacionais em países como a Alemanha que trava uma dura batalha no que respeita à partilha de poder, logo à partilha de verbas. Situação contrária à francesa onde o governo, o mesmo que quer “acabar com a Europa dos projectos abstractos”, impede as regiões de dialogarem directamente com a UE, apesar de estar estipulado pela UE que os Estados não são obrigados, “mas convidados” a consultar as regiões. Por isso, garantem, a Comunicação “já provocou guerras de poder antes mesmo de se discutir cultura”.


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>> nunca poderia sustentar a recusa da entrada da Turquia apenas por causa de valores religiosos. Um país como a Turquia, pelo seu tamanho, pelo seu peso económico, por estar na fronteira entre três culturas, seria sempre um elemento decisivo nas políticas generalistas. E, assim sendo, que espécie de identidade cultural – e que não está só relacionada com objectos artísticos – estamos nós a conceber? Em que espécie de retórica nos estamos a sustentar para evitar reflectir sobre o lugar onde nos encontramos? Durante os dois dias de encontros debateu-se muito o que constituiria a identidade europeia. Isabel Pires de Lima falou de uma “Europa da paz e da democracia” e que a identidade europeia se constituia enquanto “mosaico de diversidade e partilha de valores”, estando a “cultura na linha da frente das mudanças sociais e políticas europeias”, Durão Barroso assumiu que a “dimensão cultural da Europa significa que nós, Europeus, temos que trabalhar num diálogo cultural com os nos-

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sos vizinhos estrangeiros” – e não creio que estivesse a falar dos países a 27 -, Odile Quintin defendeu que “as directivas europeias devem apoiar as políticas nacionais em vez de as recusar”, e Anne-Marie Sigmund, representante do Presidente do Comité Económico e Social, definiu a cultura como um “contra-peso importante em todas as economias num mundo em globalização”. Mas ninguém foi capaz de arriscar uma definição de identidade cultural e, por vezes, da própria Europa. Falou-se de tempos de mudança, e que é essa permanente mudança, essa inconstância, insatisfação ou inconformismo que caracterizam a Europa. Falou-se também de um espírito combativo, resistente, capaz de se regenerar de forma surpreendente, não esquecendo mas procurando sempre perdoar. Falou-se ainda de um território amplo na sua diversidade, na sua concepção de identidade, na sua extraordinária capacidade de dar ao mundo lições de democracia. Mas a pergunta que fica no ar, desde sempre, é: alguém sabe para onde caminhamos?

Para saber mais sobre as políticas culturais da União Europeia consulte os sítios abaixo (em cada um deles encontrará documentos, questionários, estatísticas e outros elementos) Forum Cultural para a Europa

www.culturalforum.pt Eurobarómetro sobre os valores culturais dos Europeus

http://ec.europa.eu/culture/eac/sources_info/studies/eurobarometer_en.html Comunicação para uma Agenda Europeia para a Cultura num Mundo Globalizado

http://ec.europa.eu/culture/eac/communication/comm_en.html Sítio da Comissão Europeia relativo à cultura

http//ec.europa.eu/culture/eac/index_en.html Ano Europeu para o Diálogo Intercultural

www.dialogue2008.eu

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JOAQUIM BENITE:

“Procura-se dinheiro para sustentar projectos em vez de se criarem projectos para ir buscar dinheiro” O que é que retira destes dois dias? É sempre útil uma discussão que faça as pessoas entrarem na problemática europeia. Evidente que há da nossa parte, portugueses, um interesse em perceber melhor os mecanismos de realizações entre vários países que permitam não só o intercâmbio mas a reunião de pessoas para projectos comuns. O problema é as pessoas centrarem-se muito numa questão económica e procurarem dinheiro para sustentar projectos em vez de criarem projectos para ir buscar dinheiro. Os pro-

Não podemos atribuir ao diálogo intercultural a responsabilidade de cumprir aquilo em que as políticas falharam. Ekaterini Stenou, representante do Director-Geral da Unesco

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gramas da União Europeia não se destinam a suprir as politicas culturais dos governos, são programas complementares, o que é um problema, já que se dão apoios muito pequenos a unidades de criação que têm dificuldades de produção e que, no caso de Portugal, são realmente sub-financiadas em relação ao que são as normas Europeias. São subsídios de colaboração que, para as grandes estruturas, não adiantam nada. Quem vir na política europeia fundamentalmente um factor económico desilude-se. A situação nacional é muito diferente dos outros países da UE já que enquanto outros investem muito na cultura, nós investimos pouco e vemos a UE como uma tábua de salvação. Consegue identificar a que se deve tal desfasamento? Há pouca informação, e há pouca motivação para saber sobre a maneira como podemos utilizar as verbas da EU. Perdem-se fundos por falta de conhecimento porque o apoio que existe não esta preparado para este meio. É tudo a base de organigramas. As pessoas estão muito empenhadas em pequenas estruturas que são obrigadas a multiplicar-se em actividades. Eu não tenho, como devia ter no meu teatro, um departamento só para as questões da UE, do intercâmbio… Como sabe

tudo o que se passa na cultura é feito a base de contactos, e para mim o que uma reunião deste tipo aquilo têm de mais importante é o facto de permitir muito contactos. Começa a existir uma maior consciência para esse facto, mas não é generalizada e isso vê-se pela pouca presença de criadores neste encontro. E, claro, começa tudo a cair no lado dos burocratas quando os criadores deviam ter a preocupação de conhecerem os mecanismos… Quando se fala da instituição de um Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, e atendendo ao papel que o Festival de Teatro de Almada tem desempenhado, nomeadamente através da presença regular do Instituto de Teatro do Mediterrâneo nas várias edições, que papel pode ter esse diálogo na construção de uma Europa cultural? Precisamente o festival foi pioneiro no estabelecimento dessas relações. Trouxe cá grandes criadores que nunca tinham vindo, criou uma ideia mais europeia do teatro, permitiu que muitas pessoas vissem nomes de companhias e criadores, como o Robert Planchon ou o Luc Bondy, sobre os quais só tinham ouvido falar. Cada vez há mais a consciência de que o intercâmbio e o conhecimento do que se faz nos outros países é importante para a nossa actividade. As referências do criador são a sua vida, a sua sensibilidade mas também são referências culturais. Sem se verem determinados espectáculos também não podemos pensar teoricamente o que fazemos. Há já muito anos que fazemos parte do Instituto do Teatro do Mediterrâneo, uma rede que integra países como o Magreb e Marrocos., e mesmo que não tenha a presença activa que gostaria, por falta de tempo, só o facto de pertencer já me permite uma série de contactos e conheço pessoas que de outro modo não conheceria. Eu acho que os portugueses tem um certo receio em se relacionarem com os estrangeiros, não se querem ver confrontados, nos ainda não temos este hábito. As relações com países europeus deviam ser recorrentes, promovendo aquilo que tem capacidade e potencial para se desenvolver. E não é isso que se faz. Facto tanto mais curioso dado o passado que temos. Exacto. A arte e a cultura têm uma riqueza e uma diversidade cada vez maior na medida em que aquela concepção de que havia os artistas e depois os consumi-


dores hoje já não existe. A criatividade passa por muitos sectores alargados da sociedade que muitas vezes não tem que ver com o critério tradicional do artista. Nesse sentido o que se entende por entidade cultural europeia e como é que isso entra em confronto, no sentido dialogante do termo, com as identidades culturais nacionais? Eu acho que não há, a não ser com o estabelecimento de medidas que, de um certo modo, forçam um pouco a situação, uma unidade política europeia. Pelo contrário, a história da Europa mostrou-nos só as guerras sucessivas entre todos os países europeus. Vemos os casos da Polónia, da Alemanha, da Espanha, de Portugal, da França, da Inglaterra…a história da Europa é uma história de conflitos. Mas curiosamente, e na economia, hoje há uma certa integração mas também ela não é pacifica, há muito países a porem em causa o Euro, o Espaço Shengen, a levantarem problemas relativamente as regras de imigração. O que significa que embora se caminhe para uma integração económica, há ainda grandes disparidades no custo de vida dos vários países, na taxa de desemprego, etc. Mas há uma coisa que sempre existiu e que é a integração cultural. Todo o português pode reivindicar como sua pátria, Portugal, o Camões, o Gil Vicente, mas também o Schiller ou Shakespeare. Digamos que existe uma cultura europeia que essa sim é comum aos vários países europeus. Se a Europa pode ser alguma coisa em termos de identidade é no plano cultural. A Europa moderna é uma Europa marcada, por acontecimentos nacionais que minaram a maioria do perfil dos sistemas. E é do ponto de vista cultural que nos podemos procurar um entendimento. Não pode ser a economia o cimento da nossa união, apenas a cultura. Você não põe em causa na sua formação a presença do Racine ou do Corneille e isso não implica falta de patriotismo, é obrigatório. A cultura europeia vai desde o Dostoievsky ao Camilo Castelo Branco, vai do Camões ao Milton, ao Cervantes, ao Quevedo, ao Metastasio, ao Dante… são todas estas as nossas referências culturais, e acho que é esse património que deve ser explorado, mas para isso precisamos ter essa consciência, porque a cultura europeia não implica uma menorização da cultura nacional. Nacionalismo cultural não significa patriotismo. Patriotismo é o contrário, é integrar a pátria no cosmopolitismo que a enriquece. Encenador, director da Companhia de Teatro de Almada e Festival Internacional de Teatro de Almada

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DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE CULTURA EUROPEIA? ESTUDO RECENTE REVELA DADOS PARADOXAIS

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Se os números servirem para alguma coisa, então servem para explicar porque é que em Portugal o discurso sobre cultura nunca é levado muito a sério. Segundo os dados do Barómetro Europeu para os Valores Culturais na Europa, realizado entre Fevereiro e Março deste ano a quase 27 mil cidadãos da Europa Comunitária e apresentado durante o Forum Cultural, 73% dos portugueses nunca participou em qualquer actividade artística. Este valor é o segundo mais alto da Europa a 27, cuja média é de 38%, sendo apenas ultrapassado pela Bulgária, com 79%. No entanto, 74% dos portugueses considera a cultura como um factor importante para o indivíduo. Aqui, Portugal está mais próximo da média europeia, 77%, e vinte e um pontos percentuais afastado do surpreendente último lugar, a Áustria. Para Xavier Troussard, Director-geral do Departamento de Educação e Cultura, responsável pelo estudo, a explicação, se complexa, não deixa de ser reflexo do entendimento que os europeus fazem da cultura. Cada vez mais a Europa “confunde cultura com estilo de vida e valores com referências culturais”. Assim, explica, o acesso a diferentes produtos de diversos países numa mesma cidade, bem como a facilidade de deslocação entre países, dão aos cidadãos “um sentimento de pertença a uma sociedade aberta, dialogante e culturalmente empenhada”. É por isso que 67% considera que a Europa é “claramente o continente da cultura”, em oposição aos outros continentes, sendo a Holanda o país com o valor mais baixo dos 27 Estados-membros, 39%, e a Eslováquia aquele que se apresenta no topo da tabela, com 92%. Portugal aparece em 12º lugar, com 82%, sendo ultrapassado por praticamente todos os países que entraram recentemente na Comunidade Europeia, e muito à frente da França, Reino Unido e Alemanha, que ocupam os lugares 22, 23 e 24 da tabela. O que o estudo revela é que os países com os valores mais baixos são precisamente aqueles que exportam a sua cultura sem a necessidade de se apoiarem numa ideia de “cultura europeia”, sendo que os países do antigo bloco de Leste, historicamente mais fechados ao

mundo e ao comércio mundial, carecem de uma aproximação a valores culturais mais expansíveis. È este barómetro que revela que apenas 35% dos Europeus considera a globalização uma ameaça à cultura europeia e que os países devem tomar medidas para prevenir esse facto. Medidas essas que, assumem, devem ser tomadas pelos governos nacionais (50%) e as instituições europeias (44%). Apenas 37% acha que as iniciativas devem partir da sociedade civil e, mais abaixo ainda, apenas 25% considera que são da responsabilidade de fundações privadas e Organizações Não Governamentais. O estudo mostra ainda que, em detrimento da existência de uma única identidade cultural europeia – que apenas 38% dos europeus considera existir – é em conceitos associados à cultura que se joga a ideia de “uma cultura europeia”. Diz o estudo, que “é na sua diversidade que a Europa se caracteriza”, com 76% dos Europeus a afirmarem que a sua “riqueza única” da Europa é, precisamente, a sua ampla diversidade. E, no entanto, gostariam de ver garantidos determinados valores. Nesse sentido, o barómetro aponta que é nos países do Mediterrâneo que se encontra a mais alta taxa de reconhecimento de, 35% dos espanhóis e italianos consideram que o conhecimento e a ciência são valores importantes, sendo que a média europeia é de apenas 18%. É também nestes dois países que a educação e o planeamento familiar surgem como um factor de relevo quando se fala de cultura: 39% no caso espanhol e 36% no caso italiano contra 20% a nível europeu. Mas é no Chipre, que aderiu à União Europeia apenas em 2004, que se considera um factor cultural preponderante o estilo de vida e os costumes, 43%, sendo a média europeia de 18%, assim como as tradições e linguagens, 41% contra 24%. O conceito de civilização, frequentemente utilizado na defesa dos valores europeus em oposição às outras regiões, nomeadamente aquelas em conflito, é contudo, apenas referido por 13% dos europeus, sendo que apenas a Grécia o escolhe como mais importante elemento cultural, 38%.


Se 39% dos Europeus imediatamente associa a palavra “arte” a cultura – nomeadamente relacionando-a com artes performativas e artes visuais –, 24% considera que as tradições, as línguas, os costumes e a presença de comunidades social e culturalmente diferentes no mesmo território são sinónimo de cultura. Segundo o mesmo estudo 78% dos habitantes da União Europeia consideram que assistir a um programa cultural na televisão ou escutar um na rádio, mesmo que uma vez por ano, é uma actividade cultural, mas apenas 46% o fazem mais do que cinco vezes por ano. Ler um livro vem em segundo lugar na tabela, 72% lêem um livro por ano, mas apenas 37% o fazem mais do que cinco vezes, depois contam-se as visitas a lugares históricos (54% e 12% respectivamente) e, no fim da tabela, a ida ao teatro (32% e 4%) e ao ballet, dança ou ópera com 18% e 2% de interessados. Por outro lado, 36% dos europeus considera que a ocupação do tempo em decoração, jardinagem e trabalhos manuais é uma actividade cultural. Curiosamente, e porque seríamos levados a pensar que se assiste a uma deslocação da participação em actividades culturais para o uso da Internet, o Barómetro mostra que 46% dos europeus nunca usa a Internet fora do âmbito laboral, e 42% a utilizam para procurar informações sobre, precisamente, cultura. Apenas 16% assume que gasta tempo a fazer download de filmes e música. Mas o estudo também mostra que, quando questionados sobre as razões para um alheamento cultural, as respostas não são a ausência de um background cultural ou falta de conhecimento (13%), falta de variedade de escolha (16%), mas a falta de interesse (27%), o custo dessas actividades (29%) e a falta de tempo (42%). Se os resultados são diferentes, de item para item, consoante os países – as taxas de escolha limitada são mais elevadas em países como a Bulgária, República Checa e Eslováquia –, é na França e na Bélgica, tradicionalmente países reconhecidos pela importância que dão à cultura, que os cidadão se queixam de falta de conhecimento: 24% nos dois países.

Às portas do Ano Europeu para o Diálogo Intercultural, e numa altura em que se discute o papel que a língua pode ter numa Europa alargada, Portugal ocupa o quarto lugar antes do fim da tabela no que respeita ao interesse dos cidadãos em aprender uma outra língua, 47% contra os 86% da Suécia e os 60% da média europeia. Abaixo só a Hungria, Áustria e Bulgária, respectivamente. O estudo está disponível para consulta em http://ec.europa.eu/culture/eac/sources_info/studies/pdf_word/ values_report_en.pdf

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JOSÉ LUÍS FERREIRA:

“Quando estamos a falar de criação artística estamos a falar de investigação pura”

Mas como é possível ainda estarmos no principio quando há anos se fala da “cultura na alma da Europa”?

Que balanço faz deste fórum, nomeadamente no que respeita às preocupações apresentadas quanto ao desaparecimento para as artes performativas do reconhecimento de que o tempo de pesquisa e reflexão nem sempre é compatível com o tempo da apresentação imediata de resultados quantificáveis?

É possível porque a UE criou a sua comunidade sustentada na economia – não esqueçamos que “do carvão e do aço” foi a sua primeira designação –, e durante cinquenta anos tentou-se proteger os interesses individuais económicos instalados em cada país, em vez de se começar a achar que boa ideia mutualizarem-se as coisas. A atitude dos Estados sempre foi protegerem-se a si próprios. E na cultura muito mais porque quando chegamos à moeda única, quando chegamos a um plano onde há regras económicas e financeiras os Estados começam a perder pontos na retórica da independência. E a cultura serve muito bem para que os Estados ganhem esses pontos perdidos, mas depois não se sentem obrigados a politicas concretas que acompanhem essa retórica. No caso nacional, não podemos ser completamente injustos,e esquecer que saímos há 30 anos de uma ditadura que terminou com 45% de analfa-

Nestas coisas só vale a pena ser optimista e eu não saberia fazer um balanço negativo. Primeiro porque finalmente a Comissão Europeia começa a mover-se em direcção à cultura, ou desta figura de expressão que é a criação artística. Começa a fazê-lo, ao que parece, com uma vontade efectiva de encontrar caminhos e um modo de compatibilizar aquilo que são os desejos e as politicas a nível europeu com aquilo que são os desejos e as politicas a nível nacional. Como sabemos a cultura é um desígnio exclusivo dos estados membros. Este é o

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A cultura deve não só ser mais eficiente como mais inclusiva.

Princesa Laurentien dos Países Baixos, Presidente da Fundação Cultural Europeia primeiro passo que, no entanto, surge muito contaminado – e eu sei que a palavra é muito negativa – pelo estudo que em 2006 desvendou, com deslumbramento que, afinal há negocio à volta, de que afinal a cultura é um sector económico. Afinal não estamos só a falar de coisas imateriais nem de espiritualidade ou de suplemento de alma ou outras expressões que tem sido jargão para falar de cultura e de artes. O que aconteceu aqui ao longo destes dois dias é uma tentativa de primeira afinação de quais é que são os temas concretos que se devem usar quando se começa a falar de cultura, criação artística, ligada com as industrias culturais. É evidente que é um discurso ainda demasiado generalista, o tom ainda não foi encontrado mas até naquilo que foi menos positivo podemos encontrar algum valor nisso mesmo, porque vamos começando a procurar um lugar concreto daquilo que são os chamados indústrias criativas.

betismo cultural. Ao longo destes 30 anos deu-se uma transformação económica e uma expansão social brutal que não esta sequer analisada. Isto implicou o fim do Portugal rural e a suburbanização geral da população, mas não implicou a aproximação desse tal Portugal rural de mecanismos mais urbanos, ou seja lá o que for, fazendo com que aquilo que era a realidade urbana mais ou menos pacata se urbanizasse e se desligasse também de qualquer vontade de expressão artística. Depois tivemos, finalmente, 15 anos depois, em 1995, a criação do Ministério da Cultura como gesto político bastante consequente nos seus primeiros cinco, seis anos, depois como gesto político tout court, importante só como gesto. Nos últimos seis sete anos voltou-se à instabilidade, à indefinição em termos políticos.


Como vê o papel da sociedade civil e como analisa a intervenção da sociedade civil neste forum? Foi ou não representativa, está ou não atenta às grandes questões, há ou não uma maior presença do discurso economicista em detrimento de um discurso que deveria estar mais próximo de uma preocupação artística ou cultural de fundo? Eu era capaz de jurar que se não houvesse o esforço da sociedade civil a criação artística já tinha acabado na Europa. Se não fossem países como a França ou a Alemanha que perceberam há já algumas décadas o que é uma politica cultural e o que é que a intervenção de um governo neste domínio, que não é um domínio fácil porque precisamos de politicas que não nos invadam propriamente o espaço, não haveria cultura. Assistese à instrumentalização imediata da criação artística quando se começa a falar de políticas e de economia da cultura. Fala-se do verdadeiro impacto social e económico da acção artística e cultural, e isso está

mundo globalizado. O que eu não sei é se a máquina da Europa, que é mais ou menos o que me parece de alguns discurso aqui, deveria mimetizar os EUA para conseguir construir esse mundo globalizado. Creio que é uma estratégia, mas percebo que se passe também por aí, pelo menos na discussão. Agora tudo aquilo que é a indústria dita cultural tem o seu valor mas tem, na sua raiz, para além desse valor civilizacional que já falámos, um valor esse sim instrumental, de fornecer matéria pura para todos os aproveitamentos industriais que se possa fazer dela. É como se, usando a ciência como exemplo, falássemos de investigação pura ou de investigação aplicada. Quando estamos a falar de criação artística estamos a falar de investigação pura. Ou seja, é um domínio não rentável e não comercializável que nenhuma indústria, no sentido tradicional, deitará alguma vez a mão. Quanto muito um mecenas poderá investir numa criação que lhe interessa, pela sua temática, pelo seu público-alvo, pelo prestígio geral que isso lhe trará, etc., etc.. Mas não vai investir pela criação

A cultura deve ser um contra-peso importante em todas as economias num mundo em gloablização. Anne-Marie Sigmund, representante do Presidente do Comité Económico e Social certo. Não tenho nada contra a medição dos impactos, não tenho nada contra o raciocínio sobre a importância social e politica da criação artística, para lá do valor artístico em si mesmo, mas uma coisa é nós fazermos considerações políticas vagas e gerais sobre a cultura. Outra coisa é o que técnicamente, em concreto, e estruturalmente, a criação artística precisa para se fazer. Francamente acho que ninguém aqui presente, apesar de haver variações de discurso, dos mais economicistas aos mais espiritualistas, ousa dizer que podemos ou queremos viver sem criação artística. Portanto a consideração geral de que a cultura é um valor importante para nós, que é um valor civilizacional europeu e que é uma missão de serviço público dos governos e da União Europeia é mais ou menos consensual. Não podemos é continuar no discurso teórico, teorizante e poético sobre a questão, temos que perceber que criação artística se faz com pessoas que comem todos os dias, faz-se com matérias materiais, passe a redundância, sobre as quais agimos. Nós agora temos é que olhar para as coisas praticas e estruturá-las em termos políticos. O audiovisual e o digital são extremamente importantes e podem ser uma arma de afirmação da Europa num

em si, ou seja, só investirá até certos limites. Portanto, a criação artística é ou não é uma trave mestra das nossas sociedades contemporâneas? Se é vamos tratar delas com o mesmo profissionalismo que tratamos a engenharia nuclear. Responsável pela Relações Internacionais e Assessor da Direcção do Teatro Nacional S. João

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AGENTES CULTURAIS PORTUGUESES TRAÇAM PLANO DE INTERVENÇÃO POLÍTICO-CULTURAL

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As dúvidas ainda são muitas, mas as necessidades impõem que o pragmatismo seja a palavra de ordem. Alguns agentes culturais reunidos informalmente dias antes do início do Forum Cultural traçaram as linhas principais de uma política de intervenção num sector que carece de regulação mais efectiva. Maria de Assis, do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, Miguel Abreu, produtor cultural e director da Cassefaz, Joana Ferreira, directora de produção da ArtemRede, Miguel Honrado, presidente da rede internacional Iris e ex-director do Teatro Viriato, Catarina Martins, da companhia de teatro Visões Úteis e membro da Plateia, uma plataforma para as artes cénicas sedeada no Porto, Graça Passos, do CENTA, um centro de residências e investigação em Vila Velha de Ródão, Sofia Neuparth, directora do CEM – Centro em Movimento, Susana Martinho, directora de produção da Rumo do Fumo, dirigida pela coreógrafa Vera Mantero, ambas de Lisboa – as três em representação da REDE, a estrutura que reúne as companhias de dança contemporânea –, e Jorge Barreto Xavier, consultor, foram alguns dos nomes que responderam ao apelo para a discussão sobre o modo como a sociedade civil portuguesa podia contribuir para o Fórum Cultural. Da reunião resultou um documento, ao qual a OBSCENA teve acesso, que recomenda a explicitação “de forma clara” dos objectivos dos programas de financiamento, apagando “qualquer vestígio normativo sobre o modo de os realizar”. A tarefa, dizem, não é fácil, já que, na Europa a 27, “temos países onde não existem organizações estruturadas e representativas para assegurar esse diálogo; temos países em que as instituições governamentais escolhem interlocutores da sua confiança para desenvolver esse diálogo não mandatados para o efeito pela

sociedade que representam; temos países que não organizam esse diálogo nem sequer divulgam eficazmente as medidas (directivas, relatórios, indicadores, etc.) entretanto tomadas aos vários níveis (regional, nacional e supranacional)”. As críticas incluem, conscientemente, Portugal e, em parte, vão muito directamente para o Ministério da Cultura português que não reconhece estruturas como a REDE ou a Plateia como parceiros estratégicos na auscultação do meio cultural. Mas os mesmos signatários não deixam de apontar o dedo aos próprios agentes que se escusam a uma intervenção continuada, consentânea com necessidades mais abrangentes em vez de pontuais e singulares, e exigente. “A avaliação de resultados invisíveis”, dizem, “como a transformação das mentalidades, é dificilmente monitorizável por indicadores quantitativos exigindo um acompanhamento directo a partir do local”. Para este grupo, a definição de identidade europeia estrutura-se através do “diálogo intercultural, partilha de vivências e respeito pela diversidade”. Por isso, apesar de cautelosos, afirmam que as intenções expressas na Comunicação de 10 de Maio são um bom sinal para o possível diálogo entre os dois lados do projecto cultural. Referem, por exemplo, que o Método de Aberto de Coordenação (MAC), atendendo à disparidade a que atrás se referiam, “seja nesta fase o mais indicado para levar a cabo um processo de tentativa e erro. O facto de não ser vinculativo e não contemplar sanções dá-lhe a necessária flexibilidade, sem perder com isso o carácter de estímulo, pressão e orientação das políticas culturais para uma harmonização relativa”. Mas alertam para a necessidade de se encarar o MAC como uma medida de carácter transitório, com vista à “adopção de legislação comum em matérias específicas em que o interesse comunitário se sobreponha ao interesse nacional”.


A sua eficácia, dizem, dependerá da “capacidade de monitorizar, com rigor e transparência, os resultados alcançados por cada Estado membro na implementação dos objectivos acordados (o que se fez, como se fez, quem fez, para quem e com que resultados analisados do ponto de vista quantitativo e qualitativo)”. Por isso, dividiram a sua intervenção em duas áreas, uma de recomendações e outra de propostas, tentando desta forma encontrar o equilíbrio justo entre aquilo que falta fazer em cada país, e a necessidade de conceber um programa de acções alargado que mais do impor, “ajudará a garantir a adequação e a pertinência das directivas políticas às práticas culturais”. Questões como a tradução para uma linguagem menos tecnocrática dos documentos europeus, provando assim a efectiva aproximação entre os responsáveis culturais e os agentes políticos, ou o entendimento da mobilidade dos artistas como “fertilizador de criatividade e de qualificação” que “contribui para a cimentação da identidade europeia” estão na ordem de trabalhos proposta por este grupo. É nessa linha de pensamento que recomendam redobrada atenção “à tendência para investir em projectos de grande visibilidade com impactos efémeros”, já que essa intenção “deve ser contrabalançada pelo investimento em projectos estruturantes, com impactos duradouros”, como é o caso de “projectos em que os resultados fazem parte integrante do próprio processo de trabalho, assente em pequenas acções de continuidade, pouco visíveis”. É esta atenção ao processo invisível, que o moderador do workshop sobre o Diálogo Intercultural, Chris Torch, definiria como pergunta-chave para a intervenção política na cultura: “como dar patente a curiosidade latente?”. E, por isso, acrescentam: “O reconhecimento de boas práticas não deve ser utilizado para formatar programas de financia-

mento; a reprodução de boas práticas funciona a partir da inspiração na matriz (pensamento estratégico) e não a partir da cópia de uma fórmula que resultou eficaz num dado contexto”. O grupo reunido, que mais tarde apresentaria as suas conclusões, numa outra reunião informal preparatória, a um conjunto de representantes da IETM – International Network for Contemporary Performig Arts e da EFAH – European Forum for Arts & Heritage, sugere a criação de um comité europeu independente que monitorize a avalie “o desempenho das directivas comuns por parte de cada Estado-Membro a partir do funcionamento em rede dos Observatórios Culturais Nacionais (ou instituições similares)”. Uma ideia que se conjuga com a necessidade de se editarem e divulgarem os “estudos comparativos em matérias complexas como os direitos de propriedade intelectual e segurança social” para que “a médio prazo” seja possível a definição de legislação comum. É aliás neste ponto, onde a situação portuguesa mais se ressente, que os agentes culturais gostariam de ver resultados concretos, nomeadamente a “uniformização dos procedimentos e da legislação respeitantes à dupla tributação, ao IVA, às atribuições de Visas e permissões de trabalho entre todos os EstadosMembros”, através de uma “plataforma ágil de apoio a cada país membro”. O documento passará agora por uma fase de revisão e inclusão de novas sugestões, sendo, mais tarde, disponibilizado aos vários agentes culturais sob a forma de carta aberta aos responsáveis políticos, nomeadamente eurodeputados e Ministério da Cultura.

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CARLOS PIMENTA:

“A margem de risco da cultura que a arte permite começa a ser seriamente posta em causa.” Tendo participado em 2000, na altura enquanto representante do Instituto Português das Artes e do Espectáculo (actual Direcção-geral das Artes), num fórum semelhante ao que agora se realizou, que diferenças encontra entre esse e este encontro?

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Na altura o encontro de Bruxelas serviu para a legitimação do Programa Cultura 2000 e foi basicamente uma auscultação dos Estados-Membros sobre as políticas culturais da União Europeia mesmo que elas estivessem à partida mais ou menos desenhadas. A grande diferença que eu noto, para já tendo em conta o painel em que participei [a economia e a cultura] há uma transferência muito grande do chamado centro de decisão do poder central que, na altura, contemplava um maior número de gestores culturais e organizações representativas dos vários sectores artísticos. Eu diria que há uma espécie de shifting entre aquilo que eram gestores culturais há sete anos e hoje em dia, onde está tudo muito mais centrado na economia, porque há uma liderança do sector económico no meio cultural. As pessoas que intervieram eram ou economistas ou advogados ou membros de organizações que tem a ver com áreas entre o centro cultural, o entretenimento e o empresariado. Diria que isso é um reflexo também do que se passa no discurso do sector artístico que sempre reclamou, e bem quanto a mim, por mais dinheiro. Neste momento, e com o desenvolvimento das chamadas empresas tecnológicas associadas à criatividade, à inovação e às novas tecnologias, estes sectores vêem na cultura uma possibilidade que quanto a mim tem muito mais a ver com a possibilidade de fornecer um serviço do que com a possibilidade de fornecer um conteúdo ou entrar completamente no conteúdo cultural. E para mim, confesso, é um pouco preocupante essa predominância, pois estamos na eminência de transferir aquilo que é conceito de cultura para uma área conotada com o entertainment. E aí a identidade europeia desaparece. Segundo Odile Quintin é preciso conceber que a diversidade cultural não tem que se sentir ameaçada pelas leis do mercado. Mas isso depende do tipo de mercado. O mercado tende para uma certa unidade de globalização – que eu associo a formatação como se vivêssemos num aeroporto. Ora, eu prefiro pensar numa ideia de mundialização, que acho mais interessante no conceito cultural, e que tem a ver com uma divulgação mundial de determinado tipo

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de culturas mesmo que sejam minoritárias. A globalização parece uma formatação, quase como se houvesse um Museu Hermitage em cada canto do mundo. Ora, eu não quero ir ao Sri Lanka ver o Hermitage, quero ir ver o museu do Sri Lanka. Para os economistas aquilo de que falamos é de mercado único, quanto mais conseguir reproduzir e vender melhor. Ora isso na cultura é incompatível. Estamos num mercado muito diferente. As ideias que vingam neste momento em termos económicos, quer se queira quer não, não são propriamente as ideias nas quais a Europa se quis fundar. Se calhar serão a breve prazo, acho que é desejo da Europa que assim seja. Eu encontrei neste debate, sobretudo nesta relação da cultura e a economia, e uma vez que a Europa ainda não lidera nessa área económica, a aplicação de algumas teorias ou práticas que, quanto a mim não tem a ver com a realidade europeia mas que se cruzam com uma ideia de diversidade e multiculturalismo. De que modo podemos pensar que as indústrias criativas, mais do que serem uma desvantagem, poderão ajudar ao entendimento dessa diversidade? Eu sou particularmente entusiasta com as novas tecnologias e os novos meios de comunicação que possibilitem o acesso a cultura. Resta saber qual a perspectiva e de que tipo de obras se está a falar. Se é numa perspectiva de diversidade ou se é uma perspectiva de uma certa unidade. Não me preocupa muito que os serviços a oferecer na área cultural sejam de índole comercial e não tenham que ver com a criatividade cultural. Mas o que noto é começam a ser o centro, e não podem ser o centro. Porque se corre o risco de perder aquilo que se entende por identidade cultural nacional? Claro. Eu não acho que a unidade cultural seja muito interessante porque a própria margem de risco da cultura que a arte permite começa a ser seriamente posta em causa. Quanto mais se identificam riscos, menos isso se assume como uma possibilidade, e eu acho que essa diversidade, pelo que notei aqui, não era algo que fosse preocupação das pessoas.


De modo é que essas identidades culturais podem e devem ser exploradas neste contexto absolutamente veloz em que as coisas se podem perder, seja por uma questão de facilidade, seja por uma ausência de conhecimento, seja ate de integração essa sim cultural, mas ainda assim fazer sentido constituir-se uma identidade europeia como resultado das varias identidades nacionais? Eu não sei, neste momento, qual a ideia que a Europa tem de si mesma. Cinquenta anos depois ainda não é possível definir-se o que é a Europa? Eu pessoalmente acho que não. Não sei como é que o sector económico lida com a ideia de respeito pela diversidade quando tem mercados de 3 ou 5 milhões de habitantes e outros de 60 milhões como os que existem na Europa. Eu pessoalmente acho que é muito enriquecedor, enquanto cidadão europeu, a existência dessas diferenças, porque senão deixo de sair de casa e ser confrontado com outras questões. Se é uma ideia civilizacional dá-me ideia de que, no limite e em termos teóricos, aquilo que se pretende, é que determinado tipo de valores constituam mundialmente uma referência assente numa culturas de séculos Mas se é um mercado aquilo que a Europa ambiciona, então o objectivo de um mercado é conquistar o maior número de consumidores. Na sequência disso a padronização parece-me evidente, em todos os sentidos. Depende muito da evolução da própria definição do que a Europa é. Isso passa, quanto a mim, pela própria evolução daquele que é o seu concorrente directo: os Estados Unidos da América. Mas então de que forma é que aquilo que é o reconhecido poder da Europa no mundo está desfasado daquilo que a Europa realmente é? Eu acho que a Europa tem que reafirmar que existe na individualidade dos países com uma cultura ancestral. A Europa defende valores civilizacionais, como ser contra a pena de morte, ao mesmo tempo que dialoga, no mesmo mercado, com países como os EUA onde ela é praticada. E isso já é uma distinção que caracteriza uma identidade cultural que nos últimos anos, e para mim, mais vingou. Actor, encenador e consultor do Instituto Camões

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ODILE QUINTIN, A DAMA DE FERRO DA CULTURA EUROPEIA, QUER FAZER DA ALIANÇA ENTRE ECONOMIA E CULTURA UM CASO DE SUCESSO

modo com as críticas são feitas, nomeadamente as que surgem do sector cultural, onde a exigência de mais dinheiro nem sempre vem acompanhada da melhor argumentação. O que, naturalmente, alimenta o estigma do 1% nos Orçamentos de Estado, miragem que Odile Quintin reconhece, com um encolher de ombros, como Na sessão inaugural do Forum Cultural, Odile Quinpraticamente impossível de atingir. tin, Directora-Geral de Educação e Cultura, começou Por isso regozija-se com a Comunicação de 10 de Maio por falar de números. O famoso valor de 2.6% de cone o desejo, expresso pelo Presidente da Comissão, de tribuição da cultura para o equilíbrio do Produto Interno integrar a cultura na Agenda Estratégica de Lisboa. Os Bruto da União Europeia é mais do que os sectores da aspectos apontados pela nova agenda para a cultura, agricultura e da química juntos, disse. E, no entanto, “a nomeadamente o reconhecimento da diversidade e do cultura ocupa muito pouco lugar nas decisões polítidiálogo intercultural enquanto base para a definição de cas europeias”. Por isso, numa sessão especial para a uma identidade europeia, a legitimação da cultura enimprensa, realizada na manhã seguinte, 27, chamou a quanto catalisador da criatividade, e a consideração de atenção para um aspecto que considera fundamental: que a cultura é um elemento vital nas relações da União, servem de farol a um discurso que não A identidade europeia só pode ser atingida com cede perante aqueles que acham que a cultura não é investimento, mas despea presença e o empenho da cultura. A industria sa. E, por isso, contrapõe: “a cultura é do entretenimento é prejudicial, e é a maior tão diversificada quanto os elementos ameaça, a uma sociedade diversa. Temo que 2008 que a constituem, desde os artistas às seja só um ano especial em vez do início de algo. indústrias culturais”. Mas se o discurso Chris Torch, Vice-presidente da EFAH – European Forum for de convencimento pode parecer difícil Arts & Heritage para quem lida com números e quer ver resultados a curto prazo, não é menos difícil do que aquele que se estabelece com os agentes o segredo não está em pedir mais dinheiro, mas em culturais. Para eles a única coisa que pede é “que “saber usar bem aquele que existe” e, por conseguinte, não sejam desconfiados”. “As regras de mercado não provar que existem noutros sectores verbas que podem ameaçam a diversidade cultural, pelo contrário, auxiequilibrar o investimento na cultura. liam a sua visibilidade”. Ninguém está a vender a alma É este pragmatismo, que já lhe valera elogios quando ao diabo”, diz, rindo-se dos receios infundados que um ocupou semelhantes funções na área da educação, que e outro lado invocam para não dialogarem. Há sempre o a faz acreditar no potencial de intervenção da cultura risco de se achar que “a cultura se vai perder quando se junto dos cidadãos e das instituições políticas. Mas esse deixa cair nas mãos da economia”. “Veja-se o exemplo pragmatismo não esconde a ambição de conseguir modo design, onde é a cultura que ganha sempre à econobilizar outras fontes de receita, provar as mais valias das mia”, ou ainda o da cópia privada, dado como exemplo parcerias entre público e privado e propor, com exemplos de debate entre as leis do mercado e da cultura. “Se muito concretos, que “a cultura também é política”. “Os ambos se aproveitarem, tanto melhor”, diz esta mulher exemplos estão aí”, diz, referindo-se a casos como os da que não acredita que se possa falar de cultura somente Turquia que, apesar de não se conseguir encontrar uma no plano da “estética bem intencionada”, nem de econobase de entendimento que permita a sua integração na mia como “uma obcecação”. Na “competição potencial Europa comunitária, não deixa de poder participar em entre dois elementos importantes, a lei e o mercado”, é programas de apoio, cooperação e estratégia. Ou ainda sempre necessário encontrar o justo equilíbrio. o caso da Eslovénia que, em Dezembro, verá o acordo E, por isso, definiu prioridades: “promover a mobilidade de Schengen limitar-lhe o acesso de entradas e saídas, na área da cultura”, “o diálogo intercultural e respectio que, por consequência, levará a uma maior dificuldade vas competências no estabelecimento desse diálogo”, “o na presença de artistas convidados no país. princípio da criatividade na educação” e “a capacidade Quintin, que fala directamente nos olhos dos seus inde construção no sector cultural através de parcerias terlocutores tentando desmontar o jargão burocrático e com outros sectores”. “Isto não é só blá, blá, blá”, diz. difícil dos corredores de Bruxelas, acredita que a culOlhando para a estratégia de convencimento já iniciatura deve ser entendida enquanto elemento horizonda, e cujos primeiros passos estiveram na organização tal que une os vários departamentos governamentais. deste Forum, ninguém tem grandes dúvidas quanto ao Nessa linha de raciocínio considera falaciosa a oposição empenhamento de Odile Quintin. que há anos alimenta o desprezo com que a economia Odile Quintin regressa a Portugal dia 7 de Dezembro para participar trata a cultura. Diz que grande parte da culpa está no no encontro Teatro e Europa, organizado pelo Teatro Nacional S. João, no âmbito do Portogofone.

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ORLANDO FARINHA:

“Fazer os objectos culturais depender das indústrias culturais e vice-versa é uma ideia completamente disparatada”.

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Que importância têm este Forum Cultural?

E como é que define indústrias culturais?

No meio das ideias gerais que têm todas as iniciativas deste género, há duas ou três mais específicas sobre matérias também elas mais especificas que podem ser despoletadoras de coisas mais interessantes. O resto são, de facto, coisas que já estão definidas, como a Comunicação de 10 de Maio, e que é boa. Penso que aí os países membros tem um papel fundamental porque há uma enorme diversidade nos países membros quer no que diz respeito às estruturas quer à maneira como essas estruturas funcionam, quer ainda à forma como essas estruturas estão relacionadas com o Estado. A diversidade própria dos países membros deve ser enquadrada por esse chapéu mais genérico, que é a politica geral, que por sua vez deve receber as contribuições do terreno dos Estados-Membros.

Ainda que não lhe possa dar aqui uma definição correcta, no sentido Aristotélico do termo, parece-me que as indústrias culturais aparecem mais no fim dos processos de criação, com objectivos que são diferentes e que não são propriamente os mesmos que cultura. Fazer os objectos culturais depender das indústrias culturais e vice-versa é uma ideia completamente disparatada. É preciso perceber os canais mas sem sobreposição nem instrumentalização.

Daquilo que ouviu da parte da sociedade civil portuguesa que ideias é que guarda para aplicação na Direcção Geral das Artes e qual seu o papel enquanto braço do Ministério da Cultura na relação com os agentes culturais? No caso concreto deste Forum não ouvi ideias particularmente novas porque são ideias que já tenho ouvido no contacto com as estruturas e que contribuem com indicações fundamentais acerca da sensibilidade que existe no terreno. É preciso perceber que em Portugal há determinados problemas que não existem noutros países, como a Inglaterra. Ou se existem, existem de outra maneira. É preciso perceber a sensibilidade específica do terreno e distinguir entre indústrias culturais, coisa que aqui apareceu muitas vezes confundida, e a produção cultural propriamente dita. Não são coisas opostas nem contraditórias mas não são a mesma coisa.

O que é que identifica como sendo identidade europeia? Para lá de generalidades que possa dizer, ainda que importantes, como a raiz judaico-cristã, ou as bases do iluminismo que estruturam a Europa, nomeadamente na ideia de laicidade, na verdade a ideia que temos de Europa já não é a mesma, até pela introdução de uma série de factores novos. Não me parece que se possa falar de uma identidade europeia oposta, por exemplo, à dos Estados Unidos. São lógicas claramente diferentes, há diferenças concretas, mas há matrizes que são comuns. E isto é importante haver a noção de Europa não aparece contra os EUA nem os quer imitar. Director Geral das Artes


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GRAÇA MOURA UMA AGENDA CULTURAL EUROPEIA PARA FAZER FRENTE À GLOBALIZAÇÃO

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“Em matéria de cultura não se pode falar de integração europeia, porque isso seria uma espécie de rolo compressor da diversidade. Fala-se só de cooperação entre estados-membros, como prevê o art.º 151.º do Tratado. Com vista à valorização das tradições comuns e da diversidade cultural, mas sempre no plano da cooperação”, vinca Graça Moura. Por isso, diz que “tem sido difícil falar-se de política cultural na União Europeia”. “Há programas, instrumentos que permitem desenvolver a cooperação, de vários modos mas nunca no plano da integração, sempre no princípio da subsidiariedade”. De passagem, o eurodeputado recorda trajectória dos programas-quadro, inicialmente o Caleidoscópio para as artes plásticas, Ariane para as artes do espectáculo e Rafael para a literatura, fundidos em 1999 no Cultura 2000, “uma espécie de grande saco”, a que sucede um outro “grande saco” em 2007-2013. “Saco” com tanta “abertura do campo das candidaturas apresentadas que torna muito difícil uma acção concentrada sobre aspectos realmente importantes”, esclarece. Há programas de apoio a um ano, dois, vários anos; acções com operadores culturais de três países e outras com operadores de cinco ou seis países; outro tipo de acções, emblemáticas, como as Capitais Europeias da Cultura ou instituições especiais que podem ser consideradas Embaixadoras Europeias da Cultura, como a Orquestra Europeia da Juventude, Orquestra Europeia de Jazz, etc. “Em “Em

Reflexão sobre a Europa comunitária e a cultura, com um interlocutor privilegiado. Vasco Graça Moura, escritor, tradutor, eurodeputado eleito nas listas do PSD, é o actual relator da Comissão do Parlamento Europeu (PE) para a Cultura e Educação, da qual foi vice-presidente noutra legislatura. Ouvimo-lo de passagem por Lisboa em meados de Setembro, quando concluíra o projecto de relatório daquela Comissão ao PE, para uma ‘Agenda Europeia da Cultura na Era da Globalização’. Objectivo coincidente com o do Forum Cultural para a Europa, promovido aqui pelo Ministério da Cultura, no âmbito da presidência portuguesa da União, no fim do mês, a par da sessão do PE destinada ao debate e votação do citado projecto, na sua sede em Estrasburgo. Tudo isso, dum modo ou doutro, decorre da Estratégia de Lisboa, definida pelo Conselho Europeu sob a anterior presidência portuguesa, em 2000, com o objectivo de tornar a EU, até 2010, “o espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo, baseado no conhecimento”, visando crescimento económico sustentável, mais e melhores empregos, maior coesão social. Pressupõe uma economia do conhecimento, numa sociedade do conhecimento… Em que ponto estamos depois da avaliação, em 2005, pela Comissão Barroso? E como vamos lá? Ou seja: como se propõem as instituições comunitárias atingir tal meta? Nesta conversa, antes que se avance, Vasco Graça Moura faz um preâmbulo, pretendendo evitar equívocos usuais. Mas “estará um perito em música barroca em condições de avaliar um projecto gerador de emprego?”, questiona o nosso entrevistado. >>

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“Em matéria de cultura não se pode falar de integração europeia, porque isso seria uma espécie de rolo compressor da diversidade. Fala-se só de cooperação entre Estados-Membros, como prevê o art.º 151.º do Tratado. Com vista à valorização das tradições comuns e da diversidade cultural, mas sempre no plano da cooperação”, vinca Graça Moura. Por isso, diz que “tem sido difícil falar-se de política cultural na União Europeia. Há programas, instrumentos que permitem desenvolver a cooperação, de vários modos mas nunca no plano da integração, sempre no princípio da subsidiariedade”. De passagem, o eurodeputado recorda trajectória dos programas-quadro, inicialmente o Caleidoscópio para as artes plásticas, Ariane para as artes do espectáculo e Rafael para a literatura, fundidos em 1999 no Cultura 2000, “uma espécie de grande saco”, a que sucede um outro “grande saco” em 2007-2013. “Saco” com tanta “abertura do campo das candidaturas apresentadas que torna muito difícil uma acção concentrada sobre aspectos realmente importantes”, adianta. Há programas de apoio a um ano, dois, vários anos; acções com operadores culturais de três países e outras com operadores de cinco ou seis países; outro tipo de acções, emblemáticas, como as Capitais Europeias da Cultura ou instituições especiais que podem ser consideradas Embaixadoras Europeias da Cultura, como a Orquestra Europeia da Juventude, Orquestra Europeia de Jazz, etc. Além de programas mais apontados para a educação, como o Erasmus, ou o Media, que tem a ver com audiovisual. Existem comités de peritos, representantes dos países, que apreciam os projectos e dão pareceres à Comissão, num “processo discutível”, opinando sobre a qualidade cultural e a capacidade geradora de emprego… E assim se retoma o ponto da estratégia institucional em questão, cuja incidência cultural Graça Moura afirma ter defendido sempre em plenário, “até que este ano, a Comissão pede a inscrição da cultura, como um dos vectores de pleno direito, na agenda política da Estratégia de Lisboa”. Veja-se então em que termos o faz. Esclareça-se, a abrir: de que cultura se fala nesse âmbito e com que instrumentos se inscreve ela na agenda política? Os instrumentos já existem, trata-se mais duma atitude nova. Aqui também há equívocos, a visão da comissão é muito economicista e a cultura perspectivada no que diz respeito ao crescimento económico e ao emprego, quando transporta valores em si que não podem ser ignorados. De qualquer modo, a decisão da Comissão abre a porta a outros aspectos como o da identidade europeia nuclear e da sua diversidade, essencial para enfrentar

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aspectos negativos da globalização. A cultura europeia é um motor de progresso, de tolerância, de construção humanista que, há uns 500 anos transportada para outras áreas do mundo, permite estreitar relações com essas áreas do mundo. O que põe também a questão da valorização das línguas europeias, das mais faladas no plano universal. Abre-se a porta à acção diplomática própria, conjugável com a dos países-membros para acentuar a importância da vertente cultural. Mas há um segundo equívoco: há uma globalização no plano da cultura, em Tóquio ou em Lisboa ou em Nova Iorque, não haverá grandes diferenças de sinais identitários específicos num certo mimetismo horizontal de comportamentos culturais. Perante isso, é importantíssimo não esquecer, preservar, acentuar a tradição, a herança cultural europeia que nos explique, a sedimentação dum património que vem desde Homero e da Bíblia – sendo um dos riscos daqueles programas, Cultura 2000, Cultura 2007, o de os peritos privilegiarem a novidade em detrimento da valorização da herança. E como é isso feito? Ou que nova atitude o possibilita? A inscrição da cultura na agenda política contribui logo para um melhor conhecimento recíproco dos cidadãos dentro da União: não sei nada da literatura lituana e, na Lituânia, não se sabe certamente nada da música espanhola, ou, na Hungria, daquilo que se faz na Irlanda e vice-versa. Há um lado que os programas existentes podem potenciar. Depois, há que criar novos instrumentos. Por exemplo? Por exemplo, a elaboração de um Livro Branco sobre a crise da cultura europeia: a crise do livro com a literatura esmagada pelo ‘bestseller’, a crise da indústria discográfica… Com uma leitura crítica dos dados, não? No grande estudo de 2006 sobre a economia da cultura, feito para a Comissão Europeia, a edição vem com resultados estonteantes, no topo. Mas inclui livros e imprensa e o livro estagna: os valores em alta são alimentados pela imprensa, nos segmentos de revistas e tablóides; bons auspícios para o livro só em versão electrónica e apenas em ‘e-books’ para as áreas educativa e profissional… A edição tradicional está em crise porque todos os editores querem publicar O Código Da Vinci ou um livro que os faça vender milhões de exemplares, tratam o livro como se fosse um pacote de margarina ou um sabonete. Esquecem a dimensão da criação literária para irem


atrás do sucesso do livro de aeroporto. Há distorções que só podem resolver-se tomando algumas medidas. A óptica da Comissão tem sido economicista, só agora começa a ser diferente. Como se fosse indiferente, num milhão de exemplares, colocar a literatura ‘light’ e pôr de lado Balzac, Homero… A actual inscrição permite que o Parlamento chame a atenção para a necessidade doutra atitude relativa à herança cultural. Isso é mais importante talvez, neste momento, do que criar instrumentos novos. Que, entretanto, seriam? Algumas coisas que já estão a ser feitas, como a instituição de um Ano dos Clássicos Gregos e Latinos, preocupação dos países europeus, que pode ser importante para gerar várias acções, chamar a atenção para o facto de o ensino tecnológico não dever ser desacompanhado do acesso aos grandes valores da cultura europeia. A Comissão não pode elaborar uma directiva nesse sentido, mas os Estados-Membros podem tomar uma atitude solidária que o propicie por via da cooperação. Embora seja importante e até inovador salientar a alta importância económica da produção e do consumo cultural, dar-lhes a expressão material muita vez ignorada, estudos como o que referi não deveriam também passar por redes mais finas? Os estudos costumam ter a ver com a economia do emprego e esquecer, por exemplo, a cultura adquirida na escola ou na família. Hoje, sociólogos franceses concluem que há um descaso entre gerações, uma indiferença – à parte a questão da droga, não interessa aos pais se os filhos gostam de ‘piercing’ ou de tatuagens ou do que quer que seja, nem aos filhos se os pais gostam de ouvir Bach ou de ir ao cinema. É um fenómeno novo, que põe em causa a transmissão geracional, não apenas de obras artísticas e culturais mas de práticas, de maneiras de ver. Esse é um grande risco que a Europa corre face à globalização. E, quase voltamos ao início, como é que as instituições comunitárias enfrentam tal risco? Para já, o projecto de relatório agora concluído aponta para decisões a tomar no PE, antes do Conselho de Ministros da Cultura de Outubro. Seria uma maneira de sensibilizar o Conselho para esta problemática, que poderá eventualmente inflectir a maneira como venham a ser aplicados instrumentos já existentes, através da adopção de uma série de critérios, da acção diplomática a desenvolver, do relacionamento numa perspectiva cultural com outras áreas do mundo. E é todo um campo que se abre a países como a Espanha,

Portugal ou a França, com os contactos privilegiados que têm, na América do Sul, na Ásia, em África. Pode abrir-se uma nova fase, introduzir uma preocupação cultural de fundo na Estratégia de Lisboa. Isso elucida e concretiza a formulação “economia baseada no conhecimento”? É que se tem ligado à ciência e ao desenvolvimento tecnológico e esquecido o facto de não existir progresso científico e tecnológico se não houver, a montante, uma boa formação cultural. Para isso, não basta ir fazer umas formações aos Estados Unidos, etc. É preciso criar um caldo de cultura de construção humanista para se poder falar de uma economia baseada no conhecimento. Estamos a falar de seres humanos, não estamos a falar de máquinas. Sem que se negue a pertinência e utilidade de formulações e estudos que, por assim dizer, materializem o território da criação cultural, retirando a cultura duma espécie de gueto de imaterialidade e marginalidade? Penso que sim, mesmo com as limitações que têm, esses estudos chamam a atenção das instâncias responsáveis para a importância da cultura. Interessa é que sejam daí tiradas consequências a vários níveis, nas famílias, nas escolas, nas universidades. Por muito incompletos que sejam, há sempre a dimensão implícita que pode ser utilmente concretizável. >>

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Tem sido clara a preponderância económica… Mas tudo começou por aí… Sim, mas a pergunta é: agora, ou doravante, que vectores parecem ir ser privilegiados na esfera cultural? Património edificado e móvel? Criação em curso, no sentido da partilha, da difusão, do intercâmbio? Tudo depende da compreensão e duma desejável maior compreensão, por parte das entidades responsáveis. A cultura é essa dimensão especialíssima que toca na identidade, que engloba bens materiais e imateriais, passa pelo património edificado e abrange as outras categorias de património, pelas línguas e pela tradução e a qualidade da tradução. De facto, é difícil coordenar o funcionamento do princípio da subsidiariedade, de estado-membro para estado-membro, porque as situações são relativamente diferentes, de Estado para Estado, nesta matéria. Por isso, esta comunicação [do projectado relatório ao PE] é importante: pode levar o Conselho de Ministros, de todos os estados-membros, a subscrever os mesmos princípios, ficando assim, de alguma maneira, todos eles obrigados a aplicá-los no âmbito da sua jurisdição nacional. Não há receitas feitas. 42

Mas, insisto, quando se fala de cultura no âmbito da União Europeia, de que se fala? De um articulado de princípios, duma procura de encaixar as peças do mosaico cultural que a Europa é na sua diversidade, no quadro da União? Em termos muito genéricos, tenha-se presente uma matriz comum, que explica a situação europeia, e a diversidade cultural, de país para país, as identidades culturais próprias e os pontos de contacto, uns mais fortes e outros mais ténues. Aspectos ligados à crença e à religião, como a disseminação de estilos: o gótico que se espalha pelo mundo, o barroco também. Mas um dos problemas de se intervir nesta área é que, depois, há toda uma série de aspectos difíceis de circunscrever em termos formais. Em todas as áreas da vida, da moda à gastronomia, da produção do azeite e do vinho à produção literária, até que ponto se está ou deixa de estar no âmbito da cultura? Todas essas coisas, tratadas pela União Europeia, são reduzidas a fórmulas muito gerais, numa noção muito abrangente de cultura, depois vista na óptica das diversidades, do mosaico de culturas, tudo isso que leva a considerar a enorme riqueza da identidade cultural europeia, de país para país e, às vezes, de região para região, numa proliferação de subsectores. Os conceitos utilizados são muito genéricos, para serem minimamente operatórios.

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Sendo a língua veículo de expressão e transmissão cultural, vamos à questão linguística. Na Europa a 27, quantas são as línguas oficiais? E qual o ponto da situação quanto a bilinguismo, trilinguismo…? Sem falar de línguas dialectais, são 23 línguas neste momento, uma por estado-membro, parece-me que o gaélico não está a ser utilizado. São 21 ou 23. Tem-se insistido bastante na necessidade da aprendizagem, por cada cidadão, de mais duas línguas além da materna, como no reconhecimento da dignidade de todas as línguas. Há, ao mesmo tempo, uma tendência centrífuga, no respeito por cada língua na sua dignidade, na visão do mundo que transporta, na riqueza que representa, e uma tendência centrípeta, para utilizar uma língua nacional por estado-membro, por razões de praticabilidade de trabalho nas instituições europeias. Está em curso também, para uma comunicação ao Conselho, um projecto sobre indicadores de competência, assunto que vai ser bastante discutido: só estão a ser preparados indicadores para cinco línguas, francês, inglês, alemão, espanhol e italiano. Deputados de vários países insistem em que o indicador seja abrangente. Como vê isso? A questão tem de ser vista em dois planos, o do trabalho nas instituições europeias e o das políticas ligadas à aprendizagem das línguas, em que se insiste muito no princípio da aquisição das línguas estrangeiras junto da materna, no papel que uma língua estrangeira pode ter no combate à exclusão dos migrantes e no papel da construção duma união entre todos os cidadãos, no sentido do seu mútuo entendimento. Mais uma vez, são os Estados-Membros que têm de pôr em prática, ao ritmo dos seus programas próprios, esse princípio: não pode ser uma directiva da União para aplicar em todas as escolas, seria impossível, está-se no plano da cooperação e não no da integração. As cinco línguas indicadas, ou pré-indicadas, francês, inglês, alemão, italiano e espanhol, não o são em função do número global de falantes… Não, só no plano europeu. E um dos problemas em torno da elaboração dos indicadores, com base numa estatística de falantes europeus, tem a ver com isso. O português, por exemplo, é falado por 200 milhões de pessoas, mas por muito poucas na Europa, enquanto o francês é falado por muito mais europeus, embora por menos cidadãos do mundo, ou o alemão. Se a Europa quer desempenhar um papel no mundo, para além do chavão, em parceria com países de fora do espaço >>


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europeu, não pode esquecer a língua no seu desempenho planetário como veículo de comunicação. Em suma, temos de nos bater para que esses indicadores abranjam, pelo menos, todas as línguas oficiais europeias. O nosso Governo já se mostrou disponível para prestar toda a informação necessária à construção do indicador quanto à língua portuguesa. Não há nada, relativamente ao ensino das línguas, equiparável ao processo de Bolonha na Educação? Não, não há nada comparável, esse é um processo que transcende as instituições e directivas da União Europeia, passa-se entre universidades, embora com o beneplácito dos estados-membros. Do que mais se aproxima é dos programas Media para televisão. Tem-se feito um grande esforço no sentido de os países adoptarem duas línguas além da nacional, mas há limitações práticas. Se quiser aprender o português e o esquimó, não temos possibilidades de encontrar este nas estruturas de ensino, mas o princípio em si é saudável, apetrecha cada cidadão, desde a infância, para viver num espaço como a União Europeia. A concretização poderá variar de país para país. 44

A difusão maciça de quase todo o tipo de criações, por meio das novas tecnologias, complica a questão da propriedade intelectual e dos direitos de autor. Como podem ser geridos? Qual é o ponto da situação nesse domínio? Esse é um dos grandes problemas que hoje se levantam. Há uma chamada gestão colectiva dos direitos de autor, que envolve sociedades como a SPA [Sociedade Portuguesa de Autores], que mereceu da Comissão, não uma directiva mas uma recomendação. Esta teve como consequência que está a verificar-se um entendimento entre as três ou quatro grandes editoras discográficas e as sociedades de gestão colectiva de direitos de autor mais poderosas, ‘majors’. É uma questão gravíssima, dada a ameaça ou mesmo o estado de ruína das pequenas sociedades, como a nossa, a dinamarquesa e muitas outras, em prejuízo da diversidade cultural. Tenho tentado criar entendimentos entre colegas gregos, dinamarqueses e doutros países, que estão sensibilizados para as mesmas questões; tenho alertado o presidente da CE, Durão Barroso; estou em contacto com o presidente da SPA… Mas esse não é um problema essencialmente cultural; é, basicamente, de interesses comerciais, de entidades poderosas pela sua dimensão, quer na implantação geográfica, quer na gestão colectiva de direitos, que podem entre si criar, encapotadamente, entendimentos capazes de esmagar as pequenas socie-

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dades mais viradas para as produções nacionais, lesando a variedade cultural. Mas é um problema que atinge sobretudo a criação musical. Neste quadro, onde se situa a ‘excepção cultural francesa’? Sempre exprimi a maior discordância quanto à ‘excepção cultural francesa’, que visa privilegiar o produto cultural francês em competição com o produto cultural norte-americano. A França levou a UNESCO a adoptar uma convenção [para a Diversidade Cultural] completamente absurda que, na verdade, acaba por se esvaziar com as novas tecnologias: se eu não puder ver, no cinema, um filme recém-importado, posso vê-lo na Internet, em DVD, etc. Os próprios franceses têm violado alegremente esse princípio, em coproduções com os norte-americanos, o que deixa essa bandeira muito degradada. Penso que ela não tem grande importância na Europa em geral, onde qualquer limitação à circulação, em produções culturais, é de um proteccionismo nacionalista absurdo. Um princípio que não funciona noutra área que não seja a da produção cinematográfica, manifestamente empobrecida na França, como outras áreas, como a canção. Também não é a macaquear o que os outros fazem que as coisas se resolvem, como os portugueses que cantam em inglês, julgando ter assim mais saída…



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Miguel Magalhães

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Pedro Semedo


No meio da eterna discussão da bondade, ou da sua falta, na atribuição de subsídios estatais às instituições e organizações culturais, por entre os constrangimentos orçamentais e a constante luta de cadeiras, há questões que têm sido esquecidas e ausência explica, a jusante, muitas das insuficiências e incapacidades do sector cultural em Portugal. Mais de 30 anos passados sobre o 25 de Abril e ultrapassados muitos braços de ferro ideológicos que atravessavam tantas áreas da sociedade portuguesa, a cultura permanece como um dos últimos territórios onde o combate ideológico continua aceso e a causar vítimas. Na realidade não se ultrapassou, em muitas questões, a discussão generalista, e raras foram as vezes em que se deram determinadas questões por resolvidas e se passou ao pormenor. Ou seja, em 2007 ainda se discutem os traços gerais das políticas culturais a prosseguir, o lugar da cultura no seio do governo, o seu peso no orçamento, ou mesmo o seu lugar na sociedade. Pese embora a importância das questões referidas, esta discussão tem impedido que se passe de forma eficaz às questões pragmáticas, ao detalhe, em última análise, ao nível (rasteiro, na óptica de tantos) a que as decisões do quotidiano das organizações culturais são tomadas.

GOVERNAÇÃO Uma dessas questões – crucial – é a do bom governo das instituições culturais. Verdadeira governação, susceptível de produzir efeitos concretos na capacitação das instituições, dos seus órgãos e das suas equipas, administrativas e técnicas, muitas vezes desresponsabilizadas (depois de anos de incertezas na estruturação dos modelos de organização dessas mesmas instituições, jamais estabilizadas). Os modelos organizacionais têm estado, de forma genérica, afastados da discussão da cultura não só no quadro da actuação do Estado e das autarquias, mas também no sector privado. Apesar de expressões como corporate governance, no âmbito do sector empresarial e financeiro, ou governança, no quadro da União Europeia, terem entrado no léxico corrente nos últimos tempos, as questões relacionadas com o governo das instituições culturais só muito pontualmente se têm colocado. Richard Eyre, encenador britânico, director do National Theatre entre 1987 e 1997 e autor do esclarecedor The Eyre Report, definiu governo “como o sistema pelo qual as companhias são dirigidas e controladas pelo seu conselho directivo (board)”. Cada organização deverá ter um modelo de coordenação e sistematização estratégica, encabeçado por um órgão directivo, que procurará prosseguir da melhor forma a sua missão fundadora. A actuação desse(s) órgão(s) directivo(s) passará pela definição de uma estratégia de acção, artística e administrativa, pela gestão do quotidiano, pela definição da estratégia de financiamento da instituição – seja este proveniente de um orçamento de Estado, de receitas próprias, mecenato ou patrocínios – pela captação e formação de públicos e visitantes, entre outras acções. Por sua vez, a cada missão corresponderá um modelo ideal, em função das necessidades da organização, da sua vocação, das características dos seus públicos ou da sua

localização geográfica. Ora, isto não sucede neste momento em muitas das organizações culturais portuguesas, públicas e privadas. Os seus modelos de organização obedecem muitas vezes, ainda e preguiçosamente, ao modelo de associação tal como o código de direito administrativo as define, tal como dita a última moda de gestão autárquica, na constituição da empresa municipal gestora dos tempos de lazer dos seus cidadãos ou obedece, simplesmente, às conveniências do governo central; entretanto, os responsáveis pelas instituições culturais públicas sucedem-se, ou por advogarem um novo modelo organizativo, nuns casos, ou por, noutros casos, discordarem que um novo modelo seja instituído de acordo com as vontades da tutela respectiva. No entanto, raras são as vezes em que a nova solução traz uma mais valia de facto à instituição visada. A questão que se levanta é: estarão as organizações culturais do nosso país apetrechadas com as ferramentas administrativas que lhes permitam enfrentar os desafios colocados pelas mutações que as indústrias culturais têm sofrido? Será que os seus modelos organizacionais são suficientemente coerentes e integrados? Será que permitem uma abertura à sociedade e ou ao mercado? Será que abrem canais de comunicação permanentes com os seus stakeholders? Será que estão habilitadas a encontrar financiamento para as suas actividades? Estão as nossas organizações equipadas com um modelo de autonomia que lhes permita prosseguir em condições a sua missão? MODELOS DE AUTONOMIA EM PORTUGAL Numa rápida análise da realidade organizacional portuguesa verificamos que os modelos de autonomia autêntica são reduzidos. Temos, por um lado, o sector público, em que a grande maioria das instituições dependem totalmente da tutela, sem qualquer tipo de autonomia, no>>

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meadamente financeira, que lhes permita outro tipo de actuação racionalizada, que tenha em conta a obtenção de receitas próprias, mecenas ou patrocínios, permitindo uma programação plurianual, requisito fundamental para um planeamento estratégico sério e competitivo. Neste momento, verificamos que os teatros nacionais conseguiram obter a tão almejada autonomia financeira e veremos até que ponto esta autonomia lhes outorga uma maior liberdade para abrir canais de comunicação com a realidade envolvente e se as respectivas direcções aproveitam as oportunidades proporcionadas por essa independência. Na mesma esfera de actuação convivem os museus nacionais que, no entanto, não alcançaram ainda o mesmo grau de autonomia. A recente polémica provocada pela demissão da Directora do Museu Nacional de Arte Antiga levantou de novo essa questão. Temos, por outro lado, a Fundação Centro Cultural de Belém que, estando debaixo da tutela do Ministério da Cultura e sendo financiada fundamentalmente pelo erário público, é uma organização que obedece a um modelo de direito privado e dispõe de uma diversidade de órgãos sociais. Este modelo social repercute-se de forma muito concreta no funcionamento da instituição, nomeadamente ao nível da autonomia de que dispõe e de uma capacidade de angariação de receitas interessante e motivadora. O modelo da Fundação será o que, dada a realidade portuguesa, tem permitido uma maior liberdade às instituições. A problemática do acto fundacional da Casa da Música, que tanta tinta fez correr, poderia ter sido uma boa oportunidade para se discutir verdadeiramente a importância dos modelos organizacionais e de governação das instituições culturais portuguesas. A Casa da Música, no intuito de replicar o “modelo Serralves”, procura a receita mágica no seu modelo legal quando as razões do sucesso, no caso do Museu, ultrapassam o aspecto positivista; essas razões estão relacionadas com prestígio, com os aspectos afectivos ou empresariais, com a carga simbólica que a instituição carrega e que envolvem os membros fundadores e mecenas e o seu Conselho de Administração. Serralves é, por isso, um exemplo interessante ou, pelo menos, a mais conseguida aproximação a um modelo de governo em que um conjunto de boas práticas pode ser identificado de forma consistente. Ou seja, o modelo de governação é que tem de se adaptar às instituições, às suas idiossincrasias, à sua história (mesmo que nascente ou em construção) e não o contrário. No limite, modelo e instituição crescem juntos. Ao nível das regiões e autarquias há sinais curiosos em algumas organizações, no que diz respeito à autonomia de que dispõem. O modelo da empresa municipal, apesar das questões jurídicas e políticas que levanta, é um interessante exemplo legal de autonomia que, no entanto, se dissipa na prática, já que muitas vezes estas empresas são ferramentas políticas, instrumentalizadas à

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nascença pelos dirigentes autárquicos. Há, ainda assim, alguns casos felizes em que a autonomia conferida por estas construções legais deram resultados muito concretos no funcionamento das organizações sob a sua tutela, desde uma programação a longo prazo, à ágil angariação de apoios, financeiros ou de outra índole, junto dos agentes da cidade ou da região. A confiança política é, de qualquer das formas, o elemento indispensável na gestão de uma organização cultural dependente de uma autarquia, seja essa gerida ou não por uma empresa municipal. Há outros modelos possíveis de autonomia ao nível regional sendo o Teatro Viriato em Viseu um exemplo paradigmático de um sucesso possível, neste caso de parceria do Ministério, autarquia e agentes artísticos, onde a independência da condução da organização está assegurada de forma administrativa (um protocolo fundador tripartido entre a Câmara Municipal, a Companhia Paulo Ribeiro e o Ministério criou o Centro Regional de Artes do Espectáculo das Beiras, responsável pela gestão do Teatro e onde a autarquia não está representada, mas para a qual contribui). Será que a falta de agilidade das organizações culturais portuguesas resulta de um simples problema de tesouraria, por falta de vontade de quem está à frente dos destinos dessas organizações ou será que faltam ferramentas estruturais, internas, que lhes permitam uma capacitação adequada aos fins que prosseguem? Emerge, desta feita, a necessidade de se explorar novos modelos organizacionais ancorados numa missão concreta e viável, passíveis de fortalecer essas organizações. ORGANIZAÇÃO A introdução de outro tipo de órgãos sociais (conselhos de administração, consultivos, supervisores, entre outros), a renovação das funções dos órgãos já existentes, nas organizações culturais, ou a adição de novos membros nas cúpulas directivas com funções tanto executivas como não executivas, são uma forma de explorar novos modelos organizacionais, assim como de testar o alcance da actuação da mesma instituição. Um modelo de governo poderá ser inovado, por exemplo, com a constituição de um conselho composto por membros não executivos, com a subsequente criação de novas dinâmicas internas, expandindo as formas de acção da organização a novas áreas e preparando a instituição para os desafios apresentados pelos públicos, pelo mercado ou pelos seus pares. Constituídos por membros de destaque na sociedade e meio em que se inserem ou por membros do mundo empresarial, com funções não executivas, idealmente, estes órgãos directivos, com diferentes graus de decisão e autonomia podem ter influência pelo menos a três níveis: ao nível da gestão corrente (a experiência que os membros não-executivos


trarão do mundo dos negócios, por exemplo, constituirá uma mais valia inestimável para os profissionais que, naturalmente, não têm o mesmo tipo de habilitações); ao nível do financiamento e angariação de mecenato e patrocínios – empresários, membros de conselhos de administração de empresas, donos de negócios têm outra capacidade, engenho e ferramentas para chegar a quem de facto tem capacidade para contribuir para a instituição (nos Estados Unidos, por exemplo, só se senta em alguns boards quem tem capacidade financeira para isso); em terceiro e último lugar, estes órgãos podem servir como elo de ligação, como facilitadores, entre a instituição ou organização e os seus stakeholders, ou seja os públicos, as populações, fornecedores ou a própria entidade financiadora. É costume dizer-se que em Portugal não há tradição de mecenato e que enquanto a lei mantiver esta redacção pouco poderá ser feito. Há pouca tradição, é verdade, e a lei poderia ser melhor. Mas desde quando uma contribuição foi dada a uma organização cultural apenas por causa dos benefícios fiscais que poderão trazer? Mecenato, no sentido clássico do termo, sempre foi bastante mais do que uma simples transacção comercial. Um lugar no board de Covent Garden, do MoMA ou mesmo de Serralves é uma posição apetecível. Rubbing shoulders com a classe artística sempre foi uma actividade de prestígio, fosse no Império Romano, nas cidades-estado da Itália renascentista ou na Nova Iorque da segunda metade do século XX. Também na dinâmica criada entre a direcção artística/ executiva e os “não-executivos” reside grande parte do sucesso, ou não, de uma instituição cultural, seja esta companhia de teatro, museu ou orquestra. Um exemplo de uma “boa” dinâmica foi a verificada entre o mesmo Sir Richard Eyre e Mary Soames, Chairman of the Board e filha mais nova de Winston Churchill, durante parte do período em que o primeiro esteve à frente dos desígnios do National Theatre. No relacionamento destas duas personalidades, política e ideologicamente posicionadas em extremos opostos, residiu parte das razões do sucesso em que Richard Eyre esteve à frente do teatro. CONCLUSÃO O lugar que a cultura ocupa na sociedade sofreu, nas últimas décadas, enormes alterações. Essas mutações passam, entre outras coisas, pela emergência das indústrias culturais e criativas e pelo seu peso crescente nas economias dos países e, principalmente, das cidades. Governos e organizações viram-se obrigados a corrigir as suas estratégias e formas de actuação. São alterações que não se coadunam com uma tutela dirigista e em permanente estado de estrangulamento financeiro. Portugal não escapou a essas mutações e algumas organizações têm procurado adaptar-se a uma realidade

dura mas também cheia de oportunidades. A par disso, a dependência financeira e administrativa das principais organizações culturais e artísticas portuguesas do Estado (directa ou indirectamente) agudiza-se. Numa altura em que o governo faz um esforço para modernizar a economia do país, propõe uma terapia de choque para colocar o país na linha da frente das novas tecnologias, e incorre em medidas surpreendentemente arrojadas para um executivo socialista, o Ministério da Cultura renova os sinais estatizantes e reprime qualquer acto mais arrojado por parte das instituições na sua dependência. A entrevista que no mês de Junho, Gomes de Pinho, Presidente do Conselho de Administração da Fundação de Serralves, deu ao Público [27 de Junho 2007] é oportuna e traz elementos dissonantes ao monolitismo que caracteriza a discussão sobre cultura em Portugal. Na sua opinião, a extinção do Ministério da Cultura seria um elemento quase simbólico que traduziria o lugar actual da cultura, no quadro da actuação do Estado. A proposta de Gomes de Pinho de substituição do Ministério da Cultura por uma secretaria de estado adjunta do Primeiro Ministro, com responsabilidades de coordenação transversal com os outros Ministérios da estratégia para a cultura do governo vem na linha do referido aqui anteriormente. Ou seja, a proposta de criação de novos modelos organizacionais, adaptados à realidade e aos desafios colocados pelas mutações que o sector cultural atravessa, complementaria a actuação de uma tutela menos comprometida ideologicamente e mais empenhada em compreender o lugar da cultura no século XXI. Estas estruturas mais profissionalizadas, mais dinâmicas e menos rígidas, compostas por elementos com diferentes valências e competências mais abrangentes, abertas à sociedade civil, dispostas a comunicar com os seus públicos, com os seus pares e parceiros, estariam, definitivamente mais aptas a trabalhar com a tutela, seja qual for a forma que esta assumir. A necessidade de se explorar novas orgânicas e modelos de governo nas organizações culturais não é, como é óbvio, exclusivo do sector público. O sector cultural privado em Portugal é, organicamente, pouco diversificado e até pouco inventivo. Seria um exercício interessante verificar quais as organizações que tiram verdadeiramente partido da autonomia resultante da sua condição jurídica. As associações e cooperativas, companhias privadas de teatro ou de dança, orquestras, orfeões ou museus – entidades privadas com ou sem fins lucrativos, em geral – têm a ganhar com a exploração de novas formas de organização, que, essencialmente, estendem uma mão ao exterior, ou seja, aos seus destinatários primordiais. E, embora parecendo, não é só de dinheiro ou independência financeira e administrativa que aqui se trata, mas sim de independência artística e estética, com óbvios ganhos para todas as partes envolvidas.

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PONTO CRÍTCO

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OPINIÃO

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PONTO CRÍTICO Por

Eugénia Vasques

ENCENAÇÃO? O QUE É? 1. A história do teatro português radica numa matriz “amadora”. Por muito que esta asserção possa parecer ofensiva, a verdade é que foi muito graças a este nãoprofissionalismo, a esta não-especialização, a este complexo de ilhéu na nossa relação com o mundo, que o nosso teatro pôde, à excepção (talvez) dos seus inícios vicentinos, adaptar-se ou moldar-se a modelos exógenos. Eça chegará a dizer ser Portugal “um país traduzido do francês em calão” e, mais tarde, Augusto de Castro acusará Portugal de ter sido, no início do século XIX, um país traduzido do inglês e do francês! Tais constatações denotam uma espécie de flexibilidade mimética que, em momentos precisos, sobretudo no decurso da segunda metade do século XX, sob o império de modelos franceses e alemães, terá mesmo revestido características de “cosmopolitismo”. Só a meio da década de 80, contudo, este cosmopolitismo se efectivou num verdadeiro trabalho em rede internacional graças ao empenho pioneiro da Fundação Calouste Gulbenkian e da isolada luta de Madalena Azeredo Perdigão no ACARTE. Foi, igualmente, em virtude deste enraizado não-profissionalismo (amigo da incúria estatal) - que depois do 25 de Abril de 1974 se volveria, sem dificuldade, em postura ideológica, meyerholdiana - que o teatro português não afirmou nunca uma “escola” de representar ou de encenar. Em seu lugar, o que se desenvolveu no decurso da segunda metade do século XX foi um, ne-cessariamente restrito, conjunto de singularidades expressivas, de personalidades criativas de origem muito diversificada (teatro profissional com origem no teatro amador, teatro profissional de artistas regressados dos exílios, teatro amador, teatro amador universitário, etc.) que têm vindo a dar um rosto ao (pouco) teatro que produzimos e que, em linhas gerais e epocais, apresentámos, no início da Europália (1991), num número dedicado às artes cénicas portuguesas da revista belga Alternatives Théâtrales.

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2. É com António Pedro, um amador-profissional, que se lançam, a partir de meados da década de 50, no terreno da prática profissional, bases mais cosmopolitas, menos paroquiais, de uma geografia da encenação em Portugal, que vigorou, com raras excentricidades, até à década de 90. O que significa que poderemos estabelecer algumas etapas no nosso percurso pela encenação em Portugal que, em síntese, seriam: - um período de introdução e consciencialização da prática encenatória (1890-1928); - um período de experiências e afirmação (1949-1962), liderado em grande medida, directa ou indirectamente, por António Pedro num despique (oculto) com o esquecido crítico Redondo Júnior, e, com especial interesse para o que aqui nos convoca, ou seja, para a observação do percurso teórico do conceito de encenação teatral no nosso país, - um período, largo, de aparecimento de posteridades geracionais que se inicia com a criação de estruturas sistemáticas de vocação independente (1963-1964) e que estendemos, muito para além de 1974, até à afirmação das actuais gerações de criadores para as quais o encenador-director tende a “desaparecer” como entidade mediadora entre o “texto” e o público, volvendo-se ora em performer de si mesmo (ex: João Garcia Miguel, Lúcia Sigalho, Mónica Calle, André Murraças) ora numa de entre as várias entidades que trabalham “em colaboração” (ex: Projecto Teatral de Maria Duarte), ainda quando a designação tenda a subsistir nos projectos mais afirmadamente contemporâneos, em grande medida mercê do conservadorismo das terminologias e dos normativos emanados pelo Estado. 3. Parece-nos, seguindo, uma vez mais e indirectamente embora, a lição de Hans-Thies Lehmann (Le Théâtre postdramatique, 1999) que outro elemento do espectáculo assume agora estrelato provisório. Guloso de novidade, aberto a um “minuto de fama”, pagando para assumir, por momentos e simbolicamente, a responsabilidade social que delegou nos média e nos políticos, o/a espectador/a ascende ao escalão de protagonista mercê do esvaziamento do teatro dramático (ex: Casa Conveniente de Mónica Calle). O “teatro de arte” vende-se já a domicílio como um serviço de limpeza (de almas?). Perdeu tempo, espaço, acção e personagens e volveu-se em encontro: de sensibilidades, de afinidades, de geração, de angústias breves. O teatro talvez já não seja theatron. O lugar de onde se vê é irrelevante. O teatro é, no momento, o lugar onde o cidadão, sem tempo nem disponibilidade, pode ser visto pela pequena comunidade. Este texto é parte da Introdução ao meu livro O Que É Encenação?, Lisboa, Quimera, em preparação.

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LEILA

CAMINHANTE SOLITÁRIA texto

Dorothée Smith

De origem iraniana, a compositora de música electrónica Leila Arab fugiu de Teerão durante a revolução islâmica e instalou-se na Grã-Bretanha em 1979. Frequentou a secção audiovisual da Universidade de Staffordshire antes de conhecer Björk em Londres, de quem se torna teclista na sua primeira tournée. O primeiro álbum de Leila, Like Weather, saiu em 1998 na editora Rephlex. Depois de um segundo álbum, há sete anos, pela XL Recordings, e de várias colaborações, Leila prepara-se para lançar um terceiro opus intitulado Blood, Looms and Blooms. Digna herdeira de Björk e de Aphex Twin, Leila prepara-se para dar seguimento a dois álbuns que, quase dez anos depois de saírem, pairam ainda acima da cena electrónica. 52 52

“Aplicaria o barómetro na minha alma e essas operações bem dirigidas e muito repetidas fornecer-me-iam resultados tão seguros como [os dos físicos].” Nos seus Devaneios, o caminhante solitário Jean-Jacques Rousseau impunha uma observação climática da sua própria alma que, sondando os movimentos da sua sensibilidade e dos seus estados, permitia-lhe estabelecer um diário muito íntimo dos seus últimos dias. O projecto musical de uma outra sonhadora, a londrina Leila Arab, poderia também adaptar-se a esta metáfora. O seu primeiro álbum, intitulado Like Weather por Graham Massey do grupo 808 State (que se teria pronunciado após a sua escuta desse disco com “sound[s] just like fucking weather”), tem em si algo de boletim meteorológico: estranho e imagético, triste e constelado por optimismo, heterogéneo e imprevisível. Se o percurso musical de Leila mais se parece com uma fábula (convidada por Björk para tocar piano na tournée do seu álbum Debut apesar da sua quase inexperiência musical, construção rápida de um “home studio” no quarto da sua casa de família, composição de um primeiro álbum imediatamente co-produzido por Richard D. James e contratada na sua editora Rephlex), o seu papel e a sua reputação na cena electrónica devem tudo à estrutura genialmente híbrida e audaciosa das suas composições. Híbrida no sentido mais mitológico do termo, ligado ao conceito de hybris, o qual se designa como a imperdoável transgressão da fronteira hierárquica entre os homens

LEILA

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APOSTA

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TA S O AP

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e os deuses. Assim Leila deve a Aphex Twin o seu desprezo pelos géneros e o seu interesse por ritornelos infantis desmantelados, a Marvin Gaye pela sensualidade e pelo poder emocional das suas melodias, a Prince o seu gosto por experiências pouco convencionais (Leila admira os álbuns Controversy e Dirty Mind), e ao hardcore ou ao breakbeat, que a fizeram descobrir a música electrónica, pela sua eficácia rítmica – inspirações que encontramos em filigrana cada uma das suas composições. As suas músicas são editadas tanto em compilações de braindance como de funk. Enfadada pelas noções de estilo ou de enquadramento, Leila propõe uma micro-revolução de formas, nunca suportando os géneros definidos: “os géneros musicais são como um quadro pendurado na parede, onde a moldura seria magnífica, mas a imagem miserável”, explica ela após a saída do seu segundo álbum Courtesy of Choice. Os três cantores mais frequentemente convidados para os seus trabalhos (Lucca Santuci, Donna Paul e Roya Arab, a irmã de Leila que podemos ouvir no álbum Londinium do grupo Archive) conferem à sua música uma dimensão soul degenerada, fazendo por vezes lembrar o melting-pop musical de Tricky ou dos Portishead. As estranhas flutuações, as texturas solúveis e os sons sujos que marcam os seus discos vêm todos de um estúdio algo austero que Leila montou no seu quarto, ficando impedida de utilizar outros instrumentos para além dos de base de que dispõe (sampler, pratos, sintetizador, controlador...), explorando assim ao máximo todas as suas capacidades e qualidades. As faixas mais intensas e potentes da sua discografia são assim, e por vezes, as tecnicamente mais simples. Pensamos no magistral Storm, utilizado na banda sonora do último filme de Matthew Barney, Drawing Restraint 9. A cantora Björk aí debita, numa língua desconhecida, cantos poderosos que se reverberam como um autêntico furacão de sons atormentados, constituindo talvez a mais bela obra das duas compositoras, e justificando plenamente a afirmação de Leila, lida no seu diário online em 2000: “Esta faculdade de criar e apreciar esteticamente as coisas constitui certamente o meio mais claro que os homens dispõem para justificar a sua posição entre as criaturas divinas mais brilhantes.” Apesar das mudanças de percurso que marcaram a sua biografia caótica, Leila afirma apenas encontrar a sua inspiração na música e no universo cacofónico que ela própria construiu e que alimenta, como uma placenta, as suas criações que teimam em se deixar caracterizar. Utilizando quase sempre um formato autenticamente pop, as composições de Leila carregam frequentemente a etiqueta “electrónica”, termo para tudo que serve para descrever a música electrónica mais ou menos experimental e pouco propícia à dança. Considerando-se


apátrida e recusando estabelecer diferenças e barreiras entre os homens, Leila tem a mesma posição perante a música. Nos seus arquivos de DJ sets, reputados pela mania de dar vida aos géneros musicais ao entrecruzálos e vê-los implodir, encontramos alianças inflamáveis que comportam os indícios que decifram as pequenas pontas rimadas que formam os seus discos. Assim, o groove de Michael Jackson encosta-se ao timbre estranho de Ol’Dirty Bastard, e vozes tiradas a quente da cantora de r’n’b Aaliyah confundem-se deliciosamente com o hino techno Poney Part. 1 do francês Vitalic, ou ainda as experimentações de Dopplereffekt. Até hoje, todas as suas edições musicais trazem estampada uma pequena ilustração de Leila em criança, andando de bicicleta. As suas composições têm por característica uma referência sistemática aos mundos de fantasia e brumosos da infância, dos contos, dos pesadelos, das viagens sonhadas ou mesmo do sonho acordado. Carregadas de evocações e de imagens mentais, várias vezes habitadas por melodias que parecem deslizar sobre os ritmos, as músicas de Leila são portadoras de um certo universo mágico que deve mais à maneira com que os sons estão reunidos, sempre no fio da navalha, do que a eles próprios. Este é um dos motivos que levou Leila a escrever apenas sozinha e no seu estúdio, inventando assim uma espécie de bedroom music que desfolha os contornos mais íntimos da sua sensibilidade. Desde sempre muito púdica sobre a sua história pessoal, nomeadamente acerca da fuga do seu país na infância, na altura da ascensão ao poder do Ayatollah Khomeiny, é no entanto convidada como compositora iraniana pelo Festival d’Automne deste ano, cuja excelente programação musical desta edição reúne artistas vindos de países do Médio-Oriente. Neste momento, Leila prepara um projecto que responderá em específico ao tema deste convite, que toma lugar de evento. De facto, a sua discrição e quase ausência da cena musical desde a saída do seu álbum mais recente em 2000, Courtesy of Choice, contribuíram para criar uma efervescência permanente à volta da sua actividade, acentuada por notícias incómodas: uma tournée ao lado de Björk em 2003, um concerto francês no Trabendo cancelado em 2005, mas sobretudo um álbum previsto para o final deste ano, intitulado Blood, looms and blooms, do qual se podem já ouvir alguns excertos na sua página no Myspace (http://www.myspace.com/leilaarab). Leila apresenta-se a 12 de Outubro, em Paris, no espaço Point Ephémère, no âmbito das noites Décadrages, organizadas pelo 36º Festival d’Automne. Blood, looms and blooms, terceiro álbum de Leila, está previsto para sair este Inverno em editora ainda não divulgada. Tradução do francês: Francisco Valente Texto publicado em colaboração com a revista Mouvement

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Grafia da Luz, de Pedro Bastos (1975, Minas Gerais, Brasil)

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Vinte e duas fotografias digitais em torno de processos de notação coreográfica. Trabalho resultante do Prémio Usiminas de Artes Visuais 2006 e realizado no Performing Arts Forum, França, em Agosto e Setembro de 2007, no âmbito do projecto SKITe/Sweet and Tender Collaborations 2007.

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CARTA BRANCA

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PERSPECTIVA

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: a i r o t u A

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É L A U Q A DA A Ç N A D ? 64

texto

Nirvana Marinho

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QUAL É A DA DANÇA?

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AUTORIA:

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PERSPECTIVA

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QUESTÃO 1: POR QUE TEMOS NECESSIDADE EM ASSINAR NOSSAS OBRAS E IDEIAS? Segundo Foucault, em O que é o autor? (1992), há uma unidade primeira, sólida e fundamental que se refere ao autor e sua obra. As pesquisas sobre autenticidade e a atribuição de uma obra a alguém fundaram um sistema de valorização e julgamento do autor, fazendo disso uma relação exterior e anterior à obra. Ou seja, o poder instituído à obra advém do poder do autor, que fora da obra e antes dela existir, ele (o autor) é uma regra imanente, um princípio inserido no sistema. A obra é legitimada por sua autoridade e adquire um carácter autêntico. Isso não é estranho à prática de nenhuma linguagem artística ou feito científico, uma vez que alguém produz algo, o faz sob sua tutela. Busca, portanto, ser autêntico e com isso adquire certo poder sobre a sua criação. QUESTÃO 2: AUTORIA É UMA QUESTÃO DE DIREITO? DE QUEM É O DIREITO: DO SUJEITO (AUTOR) OU DO OBJECTO (OBRA)? Afirmamos, com muita naturalidade, que uma ideia é de alguém. Subverter essa ordem não é colocar em dúvida séculos de história que justificam a autoria. No entanto, o que vale questionar são as implicações ou empecilhos que tal poder promove. Se compreendêssemos o mundo sob o ponto de vista antropocêntrico, as ideias estariam subjugadas aos homens que as articulam. Mas se compreendermos os diversos níveis de significação e convivência entre o homem e as suas ideias, deveríamos repensar o lugar do sujeito e do objecto. O maior problema é atribuir a autoria como original, como um lugar primeiro e único do homem, como se as ideias estivessem ao seu bel prazer e sorte daquele que a detém, como uma propriedade. E que um dia, “do nada”, alguém as possui. Alguns artistas e muitos filósofos vêm discutindo isso e propõem outras direcções. Vale ressaltar, por hora, o perigo que representa a posse sobre ideias, sejam elas quais forem, o que, por sua vez, não ameaça a necessidade de autoria, apenas a descola deste lugar centralizador de poder. QUESTÃO 3: AUTORIA OU ASSINATURA? Certa vez, junto a teóricas respeitadas, este debate foi travado. Outros modos de atribuição foram pensadas e inspirados em outros autores. Repare: do mesmo modo que pensamos algumas noções sobre autoria aqui, outros já fizeram, assinam outros


artigos, concordam ou discordam, inclusive inspirados, consciente ou inconscientemente, em outros tantos pensadores, mais ou menos legitimados. Em um certo nível de curiosidade ou provocação, não importa quem assinou o quê, mas sim o que foi discutido. Pausa: Isso significa que, já que muitos já fizeram e não tem como se rastrear, o autor é um mero instrumento de significação? Novamente devemos alertar aos mais conservadores que o direito do autor é dado por sua assinatura, por sua publicação ou difusão. Não dá a ele plenos poderes vitalícios sobre seu pensar-fazer, mas sim o situa em uma linha do tempo de que aquelas ideias, articuladas daquele modo, naquele tempo, têm uma assinatura. Nem tirano, nem servo; mas articulador. Atente para o facto de que a noção de autor é legítima uma vez que regulamenta o pensar-fazer, cria mercado e autentica sim alguns discursos, e outros não, por competência que tais ideias articuladas e assinadas contêm. QUESTÃO 3: ASSINATURA SERIA MAIS APROPRIADO? Uma hipótese. Parece que assinar algo todos fazemos, deixamos marcas da singularidade do nosso fazer sobre tais ideias. Não podemos perder de vista: outro alguém vai apropriar-se disso e refazer novas teias. Um momento, uma circunstância: a assinatura pode modificar nosso entendimento possessivo que o autor contém, além de assegurar a particularidade que o define. Sugestão: volte à questão 1. QUESTÃO 4: COPYRIGHT E COPYLEFT. Laurence Lessig, advogado que actuou contra a tentativa da Walt Disney em estender o prazo de detenção dos poderes do Mickey Mouse, foi o mentor da ideia de repensarmos a “cultura livre” do direito irrestrito do autor[1]. Ao invés de todos os direitos reservados, alguns, no lugar de copyright, copyleft. Um conceito que cabe em muitas manifestações artísticas, em novas tácticas de inserção no restrito mercado das boas e vendáveis ideias. Saiba mais acedendo ao site do CTS do advogado e coordenador da Creative Commons no Brasil, Ronaldo Lemos[2]. Tal ferramenta internacional de selagem do direito autoral obedece a escolha do autor e consciência de que sua obra foi feita para ser disseminada. Um jeito de pensar e fazer cultura que, nas artes, ganha cada vez mais eco. Vale a pena informar-se e reflectir: a sua obra é right ou left? Sugestão: volte à questão 2.

QUESTÃO 5: E AFINAL, QUAL É A DA DANÇA? Autoria parece ser um tema ainda mais cabeludo quando falamos de dança: uns dizem que é porque é uma arte de excelência corporal e que, assim situada, torna o seu objecto ainda mais autoral; outros dizem que ainda estamos gatinhando em questões como esta por “reserva de mercado”, apelido para hábitos selvagens de tomar para si ideias, oportunidades ou informações que serviram para outros. Seja por que razão for, ainda há muito para matutar, uma vez que toda e qualquer ponderação deve se reflectir em nossa rotina: compartilhar informações, trocar ideias, experimentar várias ideias em vários corpos, sem a alfândega de quem legitima o que você diz, pensa ou faz. Right ou left, uma obra artística ocupa um lugar maior que o autor; contemporâneo (no sentido estético, político e artístico do termo em dança) e cultural, uma peça, coreografia ou obra de dança, em processo ou produto, em vídeo ou em cena, de um ou de várias pessoas, exerce uma função, uma reverberação, conta algo para os que travam contacto com ela. Esta responsabilidade todos nós compactuamos. Então onde colocar o lugar do autor, se pensado como um dominador, centralizador ou originário dessa estória? Se seu lugar fizer parte de uma “partilha do sensível” (expressão do filósofo Jacques Rancière), talvez devêssemos situar nossos discursos de outro modo, ou seja, deixarmos desculpas de lado (como a arte do corpo ou arte do sujeito) e nos posicionarmos diante de nossas obras conjugadas na terceira pessoa. Mercado, crítica, professor, coreógrafo, estrangeiro colonizador, o legitimador, para onde vão estas figuras (no seu sentido mais convencional) em um novo cenário compartilhado? Deixo esta como a questão 6, última e sem resposta, ainda.

Notas: [1] Veja no jornal Carta Capital, Novembro de 2005, um dossier sobre o tema. [2] Veja os sítios http://www.direitorio.fgv.br/cts/index.html e http://www.creativecommons.org.br/. Texto publicado em colaboração com o portal brasileiro www.idanca.net Fotografia do espectáculo Isabel Torres, de Jérôme Bel, apresentado no Alkantara Festival 2006 (DR).

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INGMAR BERGMAN

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PERPECTIVA PERSPECTIVA

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ALEXANDRE, O MAGRO texto

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Armando Silva Carvalho

Ingmar Bergman faleceu durante o Verão, na ilha de Faro, na Suécia. Realizador, encenador de teatro e ópera, foi director do Teatro Dramático Real, em Estocolmo, onde as suas leituras dos clássicos causaram polémica. Num perfil assinado pelo poeta e ficcionista Armando Silva Carvalho tradutor para português de alguns dos seus guiões mas também da sua biografia, Lanterna Mágica, que em breve a Assírio & Alvim publicará, recorda-se a figura que marcou a imagem de um país, de uma cultura e um certo modo de enfrentar o mundo: em confronto directo com a morte.

É dele, do Bergman, que quero falar. Chamo-lhe Alexandre porque o vi, em filme e em livro, feito criança débil, nervosa, assustada com a mãe, dominadora e amada, temerosa do pai, esse pastor austero, distante, tão maltratado, e que falava da sogra como duma megera ávida de poder. Magro e permanentemente em vómito, Bergman parece ter crescido entre adultos ferozes nos prazeres e nas obrigações. A avó, diz ele, “filosofava” com ele, numa auréola de crepúsculo e confiança, nas tardes invernosas. E tinha como ele a paixão pelo cinema. Com o andar da vida, os vómitos não o largaram, nem a magreza. E sempre que as mulheres, os desaires da arte ou os impostos lhe vinham bater à porta, parece que Ingmar Bergman se desfazia em arranques de bílis, ou em espasmos intestinais que muito se reflectiam depois na sua obra. Ingmar Bergman é, nos dias de hoje, uma referência nórdica; quero com isto dizer, é um niilista pela imagem, com fortes intrusões da natureza mais rude, celebrante de um frio cristão e irredutível, e que vê no teatro e nas suas poses mais demoradas, o refúgio da arte individualista. Quando era novo eu ia ver o Bergman para poder “filosofar” com os colegas, como ele diz que fazia com a avó, que afinal o sabia escutar com a maior atenção e não ligava muito às suas pequenas mentiras.


Mentiroso assumido, no amor e na arte, Bergman soube entreter a muitos como eu, que não padecendo dos mesmos frios da alma, iam sofrer, masoquistas, os problemas do sexo vistos à lupa luterana, ou aprender a cultivar um egoísmo feroz que o nosso sangue latino não saberia suportar na guelra. Tanta beleza gelada contrapunha-se às escaldantes tinas de água sensual onde, pela mesma altura, Fellini ia lavar o seu ego infantil e pecaminoso de rumbas. Mas os dois sabiam confrontar-se na mesma ansiedade que era a minha e dos meus colegas de plateia. Nada se passa hoje deste modo, nem eu vejo esse cinema. Traduzi e traduzo Bergman, com um certo tom nostálgico das suas imagens de grande encenação. Os velhos assustados com o pecado da morte, senis, inchados, com a ilusão do prazer. As mulheres, tantas mulheres, a sofrerem, por amor, a exposição do corpo atormentado, sob o olhar do amante sádico que as dirigia como numa posse sexual. Vejamos como ela fala de Strindberg, que tantas vezes encenou. Em Maio de 1901, Strindberg casa com uma jovem beldade, um pouco exótica, com menos trinta anos que ele. O poeta aluga um apartamento, e escolhe móveis, quadros e objectos. A recém-casada entra numa encenação totalmente criada pelo velho marido. Com amor, lealdade e talento, as duas partes esforçam-se por desempenhar os papéis que lhe tinham sido destinados previamente. Mas as máscaras começam a estalar e um drama imprevisto destrói esse tom de pastoral, cuidadosamente preparado. Furiosa, a mulher abandona a cena e o velho poeta fica só, no seu soberbo cenário, em pleno verão, na cidade deserta. É mesmo Bergman, mas não é já um argumento. No seu último filme [Saraband], visto em condições demasiado críticas, eu não soube suportar tanta ferocidade solitária, tanto ódio recalcado e posto à solta, tanta vaidade assumida entre uma natureza natural, de uma beleza cruel, indiferente. Lá estavam ainda as mulheres, algumas solícitas, dispostas a pactuar com o génio auto-proclamado, que só se ouve a si e à grande música e se transforma numa avareza sórdida. Como confissão de velho, reconheço, tem a grandeza de um Alexandre o Magro. E pronto. É o que me dá para dizer. Dum autor que me falou num tempo, mas que nunca me disse nada à minha ansiedade mais íntima. Mas nem ele nem eu temos culpas por isso.

ARQUIVO BERGMAN Para além da carreira de encenador e actor, Ingmar Bergman foi também director do teatro municipal de Malmö de 1953 a 1960, e director artístitico do Royal Dramatic Theatre em Estocolmo, de 1960 a 1966, acumulando nos últimos três anos o cargo de administrador. Quando abandonou a Suécia, em 1976, depois de ter sido detido por evasão fiscal, tornou-se director do Residenz Theatre, em Munique, função que ocupou entre 1977 e 1884. A sua última encenação, O Pelicano, de Ibsen, foi apresentada em 2003, pela Radioteatern, provando assim que o seu trabalho na área do teatro se dividiu sempre entre a escrita de peças – algumas continuam a ser representadas em vários países, a par de guiões dos seus filmes – e encenações para palco e rádio. O sítio www.ingmarbergman.se apresenta uma listagem completa do trabalho do encenador no teatro e na ópera, com fotografias, vídeos e textos complementares. Existem diversos exemplos do trabalho de Ingmar Bergman no teatro e na ópera disponíveis em DVD, sendo, provavelmente a mais famosa a sua versão de A Flauta Mágica, a ópera de Mozart que filmou em 1975. A Criterion Films editou, em 2001 uma versão em DVD (Região 1, 21€). O mundo do teatro é também tema frequente na obra do realizador. Entre os vários filmes, destaque para Persona, de 1966, onde uma actriz (Liv Ullman) tenta ultrapassar uma depressão nervosa na companhia de uma enfermeira (Bibi Anderson) pela qual se sente profundamente afectada, e Fanny & Alexandre, de 1982, que retrata o ambiente claustrofóbico de uma família dedicada ao teatro, vista pelos olhos do pequeno Alexandre, em muitos aspectos considerado um alter-ego do realizador. O livro Ingmar Bergman: A life in theatre, de Frederick J. Marker e Lise-Lone Marker (Cambridge University Press, 1992, 36,42€) actualiza um outro, de 1982, Ingmar Bergman: Four Decades in the Theatre, dos mesmos autores, atendendo ao regresso do realizador ao Teatro Dramático Real de Estocolmo, dando conta do arco criativo que une as encenações de Macbeth (1944) e Peer Gynt (1991). Bergman, no centro da imagem, dirige os actores (da esquerda para a direita) Lars Amble, Thommy Berggren e Erik Hell, na peça Woyzek, de Georg Büchner, apresentada em 1969 no Teatro Dramático Real de Estocolmo.

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LINA SANEH:

“O QUE RESTA DO TEATRO QUANDO SE REDUZ À PALAVRA E AO ESTAR NUM DADO ESPAÇO?” entrevista foto

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Para a encenadora Lina Saneh, a ideia de Appendice, estreada em Abril em Beirute, nasceu de uma experiência pessoal: o seu desejo de ser cremada após a morte, o que vai contra a legislação libanesa que não autoriza essa prática. Essa atitude revelou-lhe as contradições de um Estado pretensamente modernista e laico, que não deixa de se submeter às normas das comunidades religiosas... Foi então que decidiu mandar incinerar, em vida, certas partes do seu corpo, retiradas em operações cirúrgicas – mas também aí esbarrou nas leis do seu país, opostas à legislação europeia e americana que, quando se trata de obras de arte, autorizam esse tipo de operações. Numa conversa por e-mail que antecede a apresentação da peça, de 22 a 28 de Outubro no Théâtre de la Cite Internationale, a artista fala do modo como se vê e se relaciona com essa imagem no contexto cultural e político do Líbano. Durante a performance, avisa, permanecerá sentada numa cadeira, de mãos pousadas no colo, e de frente a um púlpito. Ela quer falar de representação, do que ainda pode ser verdadeiro e falso no acto de representar. É nesse sentido que vão as palavras do crítico britânico Jim Quilty que escreveu no The Daily Star que “em certos momentos da performance, a personagem de Rabih Mroué parece distanciar-se do guião escrito pela mulher para falar com voz própria, sublinhando o lado mundano e os efeitos no seu casamento que as questões existenciais colocadas por Saneh levantam de forma sintomática”.

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Nesta performance, na qual você (re)presenta o projecto de se incinerar, pretende realmente pôr em prática este projecto de ablações e incinerações sucessivas – essa obra de body art – ou tratar-se-á, no fim de contas, de teatro, de performance? O que este trabalho tenta justamente fazer de maneira muito clara, entre outras coisas, é perturbar ainda e sempre, o mais possível, os papéis esperados, habituais, normalizados, de um trabalho artístico. E digo bem: “tenta o mais possível”. Hoje em dia, o facto de perturbar leis e fronteiras já não é insólito nem surpreendente. A tarefa do artista é cada vez menos facilitada. Este trabalho visa, precisamente, baralhar ainda mais as fronteiras que o meu parceiro de trabalho, Rabih Mroué e eu própria há já bastante tempo repensamos, e ao qual o reduzido público libanês fiel e atento ao nosso trabalho está mais do que habituado. Ou seja, não se trata só das fronteiras entre o verdadeiro e o falso, o real e o fictício – fronteiras mais visivelmente e directamente desrespeitadas nos nossos outros trabalhos –, mas também as fronteiras entre representação ou apresentação, espectáculo ou discurso/conferência: quando começa um, quando acaba o outro? Em que momento? Em que signo(s)? Era necessário baralhar, de novo, o que já tínhamos adquirido tão dificilmente. Dando a repensar de maneira crítica as leis arcaicas e totalitárias (quer religiosas quer seculares), Appendice questiona-se acerca de uma possível representação, num mundo onde os absolutos pretendem que as palavras são as coisas, e por conseguinte, que o arbitrário convencional, ou seja, o social, o cultural, o artificial, a escolha pessoal e individual, a outra possibilidade, o actual, o novo, não têm lugar possível. E quando digo “que representação seria possível”, penso tanto no nível artístico como no nível político que esta palavra transporta, e de forma tão feliz. Estão, necessariamente, um para o outro. Assim sendo, este trabalho leva à palavra, ao logos, que é para mim, hoje, a acção politica mais importante e a mais urgente, como a acção teatral por excelência. Tendo eu plena consciência do dilema do que proponho: se a representação se revela não impossível mas tão difícil, cada vez mais difícil num mundo que crê de novo nos eixos do Bem e do Mal,


de que maneira pode a palavra política, em condições semelhantes, manifestar-se mais facilmente? É que, quando não se acredita nas fronteiras claras, nítidas e estanques, preservamos uma liberdade de movimentação e de deslocação de um lugar para outro, liberdade essa que despreza definições. Por isso não sei se este trabalho é “body art”, ou “teatro”, ou “performance”... O que resta do teatro quando se reduz à palavra e ao estar num dado espaço? O que resta do espectáculo, quando quase nada há para ver? O que resta da performance quando praticamente pouquíssimas acções “verdadeiras”, “reais” acontecem ali, em directo, no momento preciso, sem repetição possível? O que resta do body art quando todo este trabalho sobre o corpo é impossível, reduzido a uma imitação de palavras, um projecto de futuro? Palavras que ainda têm pelo menos o poder de assustar, neste canto do mundo que é o meu. Porém, não se trata aqui de um simples discurso, ou de uma simples conferência, isto não é a negação do teatro, nem da performance, nem... Este trabalho é uma apresentação do que é a representação artística e teatral: ser, é só por si um desempenhar de papéis e unicamente um desempenhar de papéis. Ninguém nos fará esquecer essas verdades no entanto comuns, em nome de puritanismos fundamentalista. Este trabalho é uma (re)presentação da ausência. Do desaparecimento. Do vazio. Ideias que se reconhecem na concepção cenográfica desta performance, aparentemente clínica, dada o seu carácter estático. O que tentei fazer em Appendice foi radicalizar algumas ideias estéticas recorrentes nos nossos trabalhos e prosseguir até à meta preconizada por nós, para chegar a um resultado, de facto ainda longe, do género de trabalho ao qual o público que nos co-nhece se habituou. Tentando sempre virar uma página do meu trabalho, estreitei laços com as nossas peças destes últimos anos [as peças Biokraphia e Who’s afraid of representation? apresentaram-se em Portugal em 2006, respectivamente no Auditório de Serralves, integrado no ciclo Em Contra-Mão, e no Teatro Maria Matos, no âmbito do Alkantara Festival]. E isto, tanto pela reposição, a citação (visual ou oral), ou ao contrário pela negação, a recusa, o abandono ou ainda o exagero ou a radicalização... Por exemplo, na maioria das outras peças – como Who’s afraid of representation? –, existe todo um trabalho sobre o espaço cénico: frequentemente um ecrã, por vezes vários, divide(m) em diversos espaços, com finalidades diferentes, uns dos outros. Do mesmo modo, esse/esses ecrã(s) e esses espaços >>

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assim criados desenham os percursos dos actores no espaço cénico, ou/e configuram a sua distribuição. Através dessas cenografias, existe não só um trabalho de interrogação sobre o papel da imagem, mas também um trabalho de encaixe. Em Appendice, há uma ausência da imagem, que se faz sentir, que pesa, assim como uma ausência de toda e qualquer profundeza: a cenografia é plana, sem profundezas nem encaixes (excepto ao nível da palavra), sem cores, focalizada num ponto do palco. Onde, pelo contrário, eu acrescentei bastante, foi ao optar por uma cenografia e uma encenação ainda mais estática, tomando partido do menor esforço possível (que se nega ele próprio), pelo menos do jogo físico e corporal possível (que na realidade, tem como efeito decuplicar, ao mesmo tempo, a força de presença como a força de ausência), a menor “representação” possível (para a revelar melhor em toda a parte), e um minimalismo que não lhe fica atrás... Quanto à reposição e à citação, são sobretudo visíveis ao nível do texto e de algumas ideias, tais como a venda do corpo, que retoma à sua maneira o final de Biokhraphia... O resultado é ao mesmo tempo clínica e espaço de galeria de arte moderna e contemporânea. É também uma página branca na qual dois signos negros recortados, tentam, inscrever palavras, em ritmos diferentes. Onde se situa a fronteira entre a realidade e o jogo, a ficção? Rabih Mroué representa o papel de seu marido, que conta a história da sua mulher – uma história que é a sua... Sim... Rabih Mroué é o meu marido que desempenha o papel de meu marido, que conta a história da sua mulher – eu –, uma história que é a minha… Logo, não é uma biografia mas uma biokhraphia… Diz que o seu propósito, é fazer do seu corpo “um lugar de luta, um campo de batalha” que permita cristalizar “as tensões existentes entre a arte, o dinheiro, a lei e o corpo ele próprio”... Se eu não posso ser cremada depois de morta, tal como desejo, se a incineração é proibida no Líbano, não é unicamente por causa das religiões monoteístas que recusam a incineração, nem tão pouco por causa de uma mentalidade social religiosa e conservadora, mas sim por causa das leis libanesas e da própria Constituição do Estado Libanês, que não nos reconhece como cidadãos com direitos fora das nossas comunidades religiosas, e não nos protege como indivíduos que têm aspirações diferentes das nossas “tribos”. No entanto, este Estado, e os diferentes governos e

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responsáveis políticos de diferentes tendências ideológicas que sucederam na sua Direcção desde a sua independência em 1943 até aos nossos dias, não deixam de nos prometer a edificação de um Estado constitucional de direito e de instituições supostas garantir e preservar a lei, a liberdade de expressão, de trabalho, de comércio, etc., e tudo isto segundo o modelo liberal e modernista. Em vão. Esse projecto é evidentemente impedido pelas forças locais das comunidades religiosas, que se interpõem entre o Estado e o cidadão (como o permitiu a Constituição ela própria), e que regem um e outro (o Estado e o cidadão) a seu belo prazer, fazendo deles reféns. Mas o que é certo, é que uns mais do que os outros, ficam a ganhar com a situação... De qualquer forma, de todas essas promessas, as únicas cumpridas têm a ver com a liberdade da iniciativa comercial privada e das transacções bancárias. Eis ao que se reduz o Estado moderno: ao mercantilismo, ao capitalismo selvagem e caótico! Eis sucintamente – e em consequência, necessariamente incompletamente se a representação se reve vulgarmente – o que diz ela não impossível mas tão respeito à lei e ao dinheidifícil, cada vez mais difícil ro. Por outro lado, adivinha- num mundo que crê de novo -se que, neste contexto, nos eixos do Bem e do Mal, os interditos e os tabus incidem em primeiro lugar, de que maneira pode a pano que diz respeito à liber- lavra política, em condições dade relativa ao corpo, pois é neste último que semelhantes, manifestar-se se mede logo e se torna mais facilmente? visível a afirmação do individuo frente aos grupos ditos “naturais”, inato. Quanto à arte, neste meu país, é entendida como folclore, atracção turística e entretenimento. Em suma, em termos de possível integração no ciclo comercial da produção, do consumo, lucro financeiro. Dado tudo o que foi dito, o que é que podia acontecer se eu fizesse o jogo do poder em vigor no Líbano e da ideologia dominante? Como posso usar o meu corpo, instrumento do meu trabalho de artista por excelência, num espírito e com fins comerciais, muito ao gosto dos libaneses, que se gabam de ser comerciantes natos, desde a época dos Fenícios e acham a sua razão de ser ancestral, lógica ao ponto de se integrar no sistema mundial, da forma como o compreenderam e reduziram consoante lhes convém? A prostituição não é proibida no Líbano. Muitas crianças trabalham e em condições deploráveis. Na arte, o corpo do artista está realmente em jogo, entre outros em jogo financeiro, comercial, e ainda mais no teatro e na dança. A arte contemporânea ainda


Não nos podemos pretender inocentes e excluídos da complexa rede das relações de força e de interesses que ligam os seres entre eles, e pelo mundo fora, dos objectos por eles fabricados, como diria Hannah Arendt. É de dentro que se pode lutar. Sem muitas ilusões. Appendice trata principalmente do fracasso.

complicou mais as coisas, mas infelizmente não é muito exposta no Líbano... O que é que depende da arte, o que é que não depende dela? Quais são os seus limites? Quem dá as qualificações? A instituição artística e cultural? A lei? Qual? A lei do mercado? O olhar do artista? E em caso de conflito de qualificações, quem tem a última palavra? Que lutem entre eles, em tribunal, após a minha morte! E que ganhe o melhor! Quando, no fim da peça, me viro para a instituição artística como última instância de refúgio para a minha liberdade individual, não tenho grandes ilusões, mesmo que as minhas dúvidas não sejam expressas em voz alta. Ao fim e ao cabo, a instituição artística detém um poder que, como qualquer outro, pode ser questionável, é dona de uma autoridade criticável, e goza de um reconhecimento oficial mais que duvidoso. Não nos podemos pretender inocentes e excluídos da complexa rede das relações de força e de interesses que ligam os seres entre eles, e pelo mundo fora, dos objectos por eles fabricados, como diria Hannah Arendt. É de dentro que se pode lutar. Sem muitas ilusões. Appendice trata principalmente do fracasso. A sua nacionalidade confere ao seu trabalho uma importância singular, cujos interesses vão bastante além da body-art – da qual diz, que sendo uma prática “institucional” no Ocidente, perdeu a sua carga política, e no entanto no Líbano, mantém-se como uma forma de expressão quase tabu.

É demasiado cedo para dizer que a body art é uma forma de expressão que se vai manter tabu no Líbano. Demasiado cedo. A body art implica que existam indivíduos livres a viver em países democráticos, onde o Estado, no sentido moderno da palavra, esteja presente, até mesmo demasiadamente presente... É talvez aí que reside o problema na origem dessa forma de crítica e de questionamento artístico que é a body art. Este último supõe muito mais coisas e problemas para encontrar a sua razão de ser, não vamos agora começar a enumerar tudo isso, só quero acrescentar o facto da body art pressupor, também, um Estado forte, industrializado, capitalista, com uma história colonialista e imperialista. Neste sentido, a body art não é à partida tabu, não encontrou foi ainda o seu lugar, aqui, nesta parte do mundo. Em segundo lugar, é certo e seguro que mostrar e manipular em público, os seus órgãos sexuais e genéticos, o que a body art requer frequentemente, mas não necessariamente, isso sim é tabu. Todo e qualquer acto que reivindique ou manifeste a existência do indivíduo são também recusados politicamente e ideologicamente pelas forças no poder (ou que disputam o poder),

no nosso país, mais do que no sentido do tabu. Prova disso foi quando Rabih Mroué apresentou Who’s afraid of representation?, e numerosos espectadores pensaram que ele tinha inventado todas essas histórias de artistas! Vá lá saber por que razão as teria inventado! Mas foi o que pensaram. De qualquer forma o nosso trabalho não tem nada a ver com a body art [a este propósito, consulte a entrevista a Rabih Mroué no primeiro número da OBSCENA]. Who’s afraid of representation? cita o body art e provocou dois tipos de reacção: a gargalhada nervosa mas cúmplice e a recusa total, protestos de escândalo e acusações de pornografia. O que é surpreendente e frustrante é que esta última reacção veio sobretudo do mundo do teatro (e até de pessoas de esquerda!), e não do público “profano”. Creio que o público libanês interessou-se mais, politicamente, pelo fait-divers que aconteceu anos antes, em Beirute, e que fez correr tinta nos jornais, facto também relatado nesta peça de teatro de Rabih Mroué – quero falar da história de Hassan Ma’moun. Ele também estava interessado no tema estético, que escapou no entanto a muita gente do teatro. Aí, volto ao que disse atrás: esse propósito estético, ganhamo-lo duramente. Recordo-me que os primeiros trabalhos de Rabih Mroué, nesse sentido (ausência de jogo de actor – por vezes, até, ausência do actor no palco –, utilização multimédia, ausência de fronteiras claras entre a representação e a realidade, ficção e documento oficial, etc.), foram muito mal recebidos no Líbano, antes de o público se habituar, pouco a pouco, e começar a gostar, e até reivindicar, sempre que nos afastávamos do tema. Foi o que aconteceu com Appendice, que gerou uma grande polémica e finalmente, dividiu novamente o público! É porque Appendice radicaliza ainda mais os propósitos expressos, até então, no nosso trabalho. O importante é que pôs o público a falar. Discussões apaixonadas durante dias e dias... Cada qual quer introduzir o que pensa que eu deveria ter acrescentado ou feito, porque acha que falta algo. Ora, será que Appendice fala de outra coisa que não seja a carência? Tradução do francês: Acidália de Brito/Instituto Franco-Português Agradecimentos: revista Mouvement/Festival d’Automne à Paris O sítio http://www.linasaneh-body-p-arts.com/ dedica ampla reflexão sobre o projecto

Rabih Mroué é um dos artistas convidados do projecto Lugares Imaginários, da responsabilidade do Alkantara, cujo espectáculo Yesterday’s Man, criada em colaboração com Tiago Rodrigues e Tony Chakar, se apresenta, em Lisboa, dias 5 e 6 de Outubro, no Teatro da Politécnica.

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CAMAROTE PAR

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OPINIÃO

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CAMAROTE PAR Por

André Dourado

CCB OU O CAVALO DE TRÓIA QUE COMPRÁMOS A conversa derivou para o CCB, “o bom negócio” entre o Estado e Joe Berardo e a sua altercação pública com António Mega Ferreira. “Eles têm de se entender, e isso tranquiliza-me”, desvaloriza acrescentando que, se assim não for, “com certeza Mega Ferreira terá que sair”. Entrevista a Isabel Pires de Lima, Expresso, 29 de Setembro 2007

Um dos grandes espectáculos do último ano foi a instalação da Colecção Berardo no CCB. O argumento teve um pouco de tudo, misturando épocas e referências: personagens truculentas, eminências pardas, potentados internacionais, um cenário de excepção, milhões na moeda do momento, plumes à louer, portas a bater com estrondo, governantes com visões wharholianas ou papéis trocados, etc. Na história há apenas um papel bem estudado (no género “agarrem-me senão fujo”) e de didascália irrepreensível, pelo que é justo que dê o nome à peça. O crítico que assiste a este work in progress vê o trabalho dificultado por ausência de final, não podendo senão emitir dúvidas e algumas, poucas, certezas. Nestas últimas incluem-se a incomparabilidade da colecção no panorama nacional e o interesse do Estado em ter o seu núcleo duro exposto em Lisboa. Daí a fazê-lo a qualquer preço vai um grande passo, para não dizer um salto mortal. Comecemos pelo preço: foi definido não por uma entidade independente, mas por uma interessada grande leiloeira internacional, actriz num mercado que (se) quer sempre em alta. São as obras únicas? Tanto quanto as que, pelo menos quatro vezes por ano e por local, se podem comprar em Londres e Nova Iorque nos leilões da Christie’s e Sotheby’s. Uma colecção privada deste tipo é toda digna de museu? Não, pelo que não interessa ao Estado comprometer-se com a compra de eventuais obras primeiras a par de outras secundárias. E em caso de separação litigiosa, a quem pertencem as obras compradas pelo Fundo de Aquisições comparticipado pelo Estado? Mais: esse Estado, que há anos conserva/guarda parte da colecção nas reservas do CCB (custo não contabilizado a seu benefício), abdica agora do seu principal espaço nacional de exposições e ainda paga. Os seus representantes, dentro e fora da nova

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Fundação, esquecem-se da tradicional reserva a que estão obrigados - a defesa dos interesses públicos gera necessariamente conflitos - e tornam-se nos maiores publicitários daquela. Alguns jornalistas, certamente viajados, falam de uma colecção como há poucas na Europa (vamos começar a contar por um país pequeno, a Suiça, por exemplo?) pelo que será certamente distracção da revista norte-americana Art News, na sua edição corrente, não a ter considerado sequer nas 200 primeiras colecções privadas mundiais (mas são americanos, logo ignorantes, não é?). As exposições prévias da colecção tiveram sempre números modestos (CCB, Assembleia da República), pelo que os 168 mil visitantes de agora (ou são 800 mil?) constituem um sucesso. Mas conseguido como? Com uma injecção de dinheiro dos Ministérios da Cultura e da Economia (via Instituto do Turismo) que dopariam qualquer resultado em qualquer área, atendendo à gratuitidade e à forte campanha mediática desenvolvida. Que tem isto a ver com as artes performativas? Aparentemente nada, mas na realidade tudo. O CCB foi o primeiro projecto cultural criado em Portugal para fazer interagir de forma plena as artes – à volta dos Centros de Exposições e Espectáculos – e conectá-las à economia através do Centro de Reuniões, assumido como sustentáculo financeiro e co-difusor de actividade. O CCB que conhecemos hoje é o resultado da evolução do trabalho original de Maria José Stock, que lançou a actividade dos três centros, e da programação de Miguel Lobo Antunes, que nele aprofundou a presença da contemporaneidade e a captação/formação de públicos. Depois de uma fase de relativa deriva – na qual a questão Berardo já esteve presente, tendo sido uma das razões para a saída de Fraústo da Silva – podíamos pensar que António Mega Ferreira, com a sua experiência, teria condições para de novo fazer crescer Belém. O que obteve foi uma amputação contra-natura: basta olhar para o passado para perceber como separar os dois pólos artísticos do CCB compromete qualquer trabalho coerente. É por isso que nos devemos interrogar sobre as consequências, a médio prazo, desta solução na programação de um dos mais importantes equipamentos culturais portugueses, bem como sobre os efeitos que terá para além do CCB. A não ser que, horresco referens, a intenção seja refazer a unidade original ao contrário, e a um certo coleccionador nasçam ganas de programar o todo, para o que seria evidente e convenientemente necessário controlar também a terceira vertente, a comercial. Mega Ferreira, cuja cultura é bem conhecida, deve invejar a relativa felicidade que os Romanos podiam sentir com os Barbari ad Portas: no seu caso e no nosso, já estão dentro.

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PERSPECTIVA


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DIAS DO JUÍZO

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ÍNDICE

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ESPECTÁCULOS PÁG.52

SOMBRA OS VIVOS - TEATRO O BANDO Pedro Manuel PÁG.52

CONQUISTAR O ESPAÇO QUANDO AS NUVENS DISSIPAREM FESTIVAL INTERNACIONAL DE MARIONETAS DO PORTO Tiago Bartolomeu Costa PÁG.52

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA A SPACE ODISSEY DE CUQUI JEREZ Jaime Salazar-Conde PÁG.52

ÉTICA E DIVERTIMENTO JESUS CRISTO SUPERSTAR DE FILIPE LA FÉRIA

João Paulo Sousa PÁG.52

JÚBILOS EM UNÍSSONO TEMPO 76 DE MATHILDE MONNIER

Gérard Mayen

NEITHER DE MORTON FELDMAN, A PARTIR DE LIBRETO DE SAMUEL BECKETT David Sanson

FILMES / DVD PÁG.52

A HISTÓRIA DE UM CAIXEIRO-VIAJANTE CHAMADO WITOLD SPLIT OR GOMBRO IN BERLIM DE WIESLAWA SANIEWSKIEGO Cristina Carvalhal PÁG.52

IGUAIS A SI MESMAS LAS PIEZAS DISTINGUIDAS DE LA RIBOT Jaime Salazar-Conde

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ESPERANDO PELA SOMBRA

PÁG.52

PÁG.52

EXPOSIÇÕES PÁG.52

DAS PALAVRAS AOS ACTOS UN TEATRE SENSE TEATRE Pedro Manuel

PÁG.52

PÁG.42

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LIVROS PÁG.52

O NOVO PARNASO EXHAUSTING DANCE: PERFORMANCE AND THE POLITICS OF MOVEMENT DE ANDRÉ LEPECKI Jaime Salazar-Conde

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SOMBRA OS VIVOS - TEATRO O BANDO texto

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Pedro Manuel

Vejamos Os Vivos em linha com Morcegos (2006) e mesmo com Ensaio Sobre a Cegueira (2005). Em comum, a origem dialógica dos textos, que subsiste parcial ou completamente na adaptação dramatúrgica; a impressão da marca urbana, onde a estranheza e a excepção se instalam e progridem; a cenografia representativa, quase figurativa, onde, no entanto, se mantém o exercício de dramatografia de João Brites (uma visão dramatúrgica da cenografia, uma leitura cenográfica do texto). José Saramago e, sobretudo, Jaime Rocha e Jacinto Lucas Pires partilham o modelo dialógico como estrutura literária de representação teatral e entres estes dois últimos, nos textos encenados pel’O Bando, encontramos ainda a coincidência do tema da família, da relação com um lado oculto e inominável (o medo em Morcegos, a morte em Os vivos), numa moldura urbana, habitada por personagens verosímeis. Ora nada mais estranho aos processos e ao imaginário que O Bando vem vindo a desenhar no horizonte teatral português. Não deixa de ser curioso como, habitando na paisagem de Palmela, o perfil da grande cidade se tenha instalado nas suas temáticas; ou como as adaptações de textos narrativos e poéticos deram lugar ao diálogo, o que nos processos d’O Bando significa tentar associar a dramatografia com o dramático e, em última análise, substituir a dramaturgia do texto de cena (nalguns casos, textos que se destacavam como obras autónomas, exercícios de adaptação que se tornavam originais) pela causalidade do texto dramático. Por fim, o próprio estatuto das personagens fica em crise, algures entre a representação regular e verosímil a que o texto obriga e o desvio excêntrico e grotesco a que O Bando sujeitava a presença humana, conferindo-lhes teatralidade por esse excesso. Como contraponto a esta tendência surgiu O Salário dos Poetas, transpondo o conteúdo visceral e rancoroso para uma forma eficaz, cénica e plasticamente. É assim que já em Ensaio sobre a cegueira e, sobretudo, em Morcegos e Os Vivos se respira uma atmosfera diferente e, onde se ganha actualidade, algo de telúrico vai-se perdendo. Esta análise não invalida que Os Vivos seja um bom espectáculo, animado por um texto muito interessante e encenado com sentido experimental e cuidado. O espectáculo é devedor de duas anteriores produções d’O Bando: Luto Clandestino, peça em um acto de Jacinto Lucas Pires que veio a evoluir para Os Vivos, passada em redor de uma Renault 4L num esquema de audio-walk; e Rumor Clandestino, um texto de Fernando Dacosta a partir de Agostinho da Silva, encenado por


Gonçalo Amorim, também um audio-walk (com mais “walk”) entre um casal que se reencontra na rua. Deste modo, a primeira parte de Os Vivos é Luto Clandestino e passa-se na estrada, onde duas personagens dialogam em redor da 4L. Percebemos que se trata da mãe de uma rapariga morta num acidente de automóvel – aquele automóvel – e o namorado da filha. Entre os dois vai desenvolver-se uma perversa relação íntima, de celebração da filha morta, ambos reencontrando no outro o amor perdido. A segunda parte do espectáculo é no espaço fechado de uma das casas e representa com transparências e intervalos o espaço fechado da casa da família da rapariga morta. Aqui vão habitar a mãe e o pai, a empregada, o namorado e a própria filha morta. Estes são os vivos, não por oposição à morte, mas os que sobreviveram à morte, os que estão depois. Daí que a presença do fantasma no mesmo plano destes vivos seja possível, porque também eles são moribundos. A presença da morte é, de todo o texto, o elemento mais conseguido, sobretudo pela forma como Lucas Pires associa a falta de vida à falta de linguagem. Morrer é deixar a história e com isso a possibilidade de comunicar. De onde, mesmo os que sobrevivem continuam no tempo mas afectados pela morte, com dificuldades em comunicar - como um susto provoca a gaguez -, de que são exemplo as óptimas composições do pai e da mãe (João Garcia Miguel e Paula Só). A filha acabará por desaparecer, muda. A utilização de dois dispositivos cénicos tão distintos como o audio-walk, onde actores e espectadores coexistem, e a cenografia da casa, que separa a cena a plateia, é superada pela contínua utilização dos headphones que permitem uma audição do tom baixo, da respiração e do sussurro dos actores. Esta intimidade estabelece um realismo contra o qual os actores constantemente lutam e que sinaliza uma das linhas de confronto entre duas tendências que parecem marcar presença nestes últimos trabalhos d’O Bando: a inegável qualidade e rigor das propostas mas como que descentrada da sua linguagem artística. Ironicamente, a condição dos mortos no diálogo de Lucas Pires aplica-se a Morcegos e Os Vivos, colocando a questão sobre o diálogo entre duas linguagens artísticas no seu confronto, audio-walk e quarta parede, dramatografia e drama, o apelo do campo profundo e a superfície brilhante da cidade.

Os Vivos, com encenação de João Brites, está em cena até 21 de Outubro em Vale de Barris, Palmela

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CONQUISTAR O ESPAÇO

FESTIVAL INTERNACIONAL DE MARIONETAS DO PORTO texto Tiago Bartolomeu Costa

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“O espaço é uma dúvida: é necessário constantemente marcá-lo, designá-lo; nunca é meu, nunca me é dado, é necessário que eu o conquiste.”. A frase é do francês Georges Perec, aparece no livro Espèces d’espaces, editado em 1974 na Gallimard, mas foi também escolhida por Isabel Alves Costa para encimar a programação da mais recente edição do Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP) que de 13 a 22 de Setembro ocupou a Praça D. João I, ao lado do Rivoli. É importante designar o local já que o festival que a ex-directora do Rivoli dirige desde 1989 tem procurado activar uma relação entre o teatro e a cidade, aspecto que, como se sabe, assume contornos de resistência no Porto. A simbologia do acto de permanência na praça que serve o teatro do qual foi despedida por compulsão camarária é tão mais relevante, e contrária, à apatia e displicência entretanto praticada pela comunidade artística do Porto que, breves meses depois de se insurgir e barricar no teatro agora tornado verdadeiro municipal, porque dos 60 mil membros do povo que já viram Cristo Nosso Senhor, Estrela de Todos Nós, se escusou a visitar a praça durante o tempo do festival. Mas, tal como a comunidade artística, também a outra comunidade, aquela que a artística serve, não usa a praça, encravada que está entre prédios e obras, passadeiras que não convidam ao uso da praça e passeio de entrada e saída de um parque de estacionamento que

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impede o uso do piso central devido à fraca resistência do pavimento. Tudo isto parece estranho numa praça desenhada a preço de renovação urbana cosmopolita, como aquele que foi alardeado no Porto 2001. E, todos os dias, a praça permanece vazia. Surreal? Foi contra essa assumpção que a artista plástica Fernanda Fragateiro trabalhou criando na praça um espelho daquilo em que se transformou a cidade do Porto nos últimos anos: um imenso estaleiro cujo potencial corre o risco de permanecer utópico porque impossível de viver para lá dos taipais e das ruas cortadas. Na horizontal e na diagonal colocou duas enormes línguas de madeira maciça, a primeira a servir de moldura a um canteiro onde se plantaram couves – tal como as couves que ainda persistem nos quintais de quem se habituou mal à cidade –, na segunda fê-la estranha entrada para uma concha acústica feita de tubos e frágil cobertura. Em oposição, e demarcando um longo canto, dois bancos corridos, também de madeira mas com luzes de néon branco a iluminarem a curta distância que os separava do chão. E ao centro, verdadeira metáfora da cidade, uma instalação em tubos, sem forma aparente, só imensa e estranha, entre o provisório e o definitivo. Em construção, tal como o sub-título desta edição do FIMP. Mais do que fechar a praça na monumentalidade das quatro instalações, Fernanda Fragateiro, com as suas linhas que dialogam com a verticalidade dos edifícios circundantes e os planos extensos que reflectem as ruas que afastam a praça das pessoas, proporcionou espaços de encontro que se numa primeira fase definiram a programação do FIMP – os espectáculos foram


escolhidos de acordo com as potencialidades de cada uma das instalações, usadas por cada companhia como “palco” para o seu espectáculo –, quis, depois, estender o convite aos habitantes de uma cidade por acabar. Esta insistência na aplicação dos princípios democráticos que definem a existência das praças é, precisamente, a maior das características desta obra efémera que durante mais de uma semana quis explorar o uso que damos à cidade. E, por conseguinte, ao modo como a representamos. Das várias peças apresentadas importa destacar um dos mais estimulantes projectos de descentralização que, discretamente, tem vindo a impor-se como valor seguro contra a maré de boas intenções oportunistas que circulam fora dos grandes centros urbanos. E, por isso mesmo, capaz de provocar alterações no modo como olhamos para a ocupação de espaços ao ar livre. Comédias do Minho, resultante do esforço e espírito de missão das Câmaras Municipais de Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira, é, à revelia de qualquer discurso sobre o teatro enquanto forma de aproximação entre a arte e a vida, prova material da qualidade que se pode e deve exigir a um projecto artístico. Quando as nuvens se dissiparem junta um grupo de seis jovens actores profissionais que, encenados por Philippe Peychaud, traduzem para um olhar viciado na contemporaneidade as técnicas clássicas do clown, conferindo a esta prática uma depuração e uma sensibilidade tais que nos deixamos guiar pela inocência das interpretações, a clareza das sequências, o humor inteligente e a perfeita comunhão entre público e cena. Os clássicos pares usados pelo clown – que espelham a desfasada luta de poderes e valores – são aqui desenhados com feliz coerência e adequada gestão de tempos cómicos e físicos. Cada breve sequência, gerida num mínimo espaço fechado a várias portas, explora as contradições toscas das personagens para, naturalmente, as conduzir ao idílio final. A Praça D. João I, manipulada primeiro pela força da instalação de Fernanda Fragateiro, depois pela evocação de um outro tempo, menos “urbanocrata”, transformou-se, nem que fosse por uma noite, num espaço conquistado por pessoas com nome, rosto e histórias.

Quando as nuvens se dissiparem apresenta-se no primeiro trimestre de 2008 (datas a confirmar) no Centro Cultural de Belém, Lisboa.

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HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA A SPACE ODISSEY DE CUQUI JEREZ texto Jaime

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Salazar-Conde

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Os anos que se seguiram aos Jogos Olímpicos de 1992 em Barcelona são um período obscuro para a criação cénica em Espanha e especialmente em Madrid. O florescimento de políticas culturais ultra-conservadoras conseguiu converter o audaz e entusiasta contexto artístico dos anos 80 num autêntico deserto. Pouco a pouco os artistas foram abandonando Madrid e encontraram noutras cidades e países condições de trabalho mais razoáveis para desenvolver os seus projectos. Este êxodo fez com que no final dos anos 90 fosse muito difícil pressentir o que ia acontecer com a criação cénica: sem artistas não havia escolas e sem escolas seria muito difícil que se formassem novos artistas capazes de formular novas propostas. Mas, afortunadamente, parece que nem tudo se abandonou naquele momento complicado. Os artistas mais jovens tomaram como um feito a precariedade do contexto cultural espanhol e assumiram com assombrosa naturalidade a necessidade de apresentar os seus projectos a partir de estratégias nomádicas que permitiram encontrar apoios noutros lugares da Europa mais comprometidos com a criação. Parece que para eles o exílio resultava mais num convite para participar noutros contextos do que uma solução extrema de sobrevivência. Tal como se demonstrou nestes últimos anos é possível continuar a criar apesar das circunstâncias. Neste sentido, ainda que a obra só tenha seis anos, A Space Odissey (2001), de Cuqui Jerez, pode considerar-se uma obra histórica. A sua estreia presume a confirmação de que apesar da complicada situação existe uma nova geração de criadores que cresceu à sombra dos primeiros exilados, e que entrou em contacto com os artistas vinculados com a chamada nova dança europeia, sendo capaz de desenvolver um discurso independente e, nalguns casos, profundamente crítico. Cuqui Jerez formou-se em dança clássica, mas conhecia em primeira-mão os trabalhos de La Ribot, Olga Mesa, Monica Valenciano, Blanca Calvo, Ion Munduate, Juan Domínguez, Xavier Le Roy, etc. E além disso tinha colaborado com Jérôme Bel na criação de The Show Must Go On (2001). Tudo isto permitiu-lhe iludir os problemas meramente formais da dança contemporânea oficial e começar o seu trabalho a partir da análise da própria dança como um fenómeno. Assim A Space Odissey procurava expor questões a respeito da dança como sistema de representação, a economia da visão dentro do ballet, a relação entre o corpo vivo e o corpo representado em vídeo, etc. Como criadora, Cuqui Jerez situava-se num lugar distante perante a dança. E era essa distância o que lhe permitia sustentar um questionamento crítico que prescindia de qualquer afectação sentimental ou narrativa. Neste sentido, a sua proposta aparecia como algo distinto dos trabalhos da primeira geração de artistas exilados. Nos anos seguintes, os perfis da nova geração tornar-se-

-iam mais precisos quando Amaya Urra, Maria Jerez (sua irmã) ou Cristina Blanco apresentaram os seus primeiros trabalhos. A Space Odissey tem outro ponto de interesse relacionado com o seu carácter inaugural. De alguma maneira esta primeira obra parece enunciar um dos principais assuntos que estruturam o projecto artístico de Cuqui Jerez. A saber: a sua preocupação pela construção do olhar do espectador. A peça começa com uma navalhada no olho como a do filme de Luís Buñuel Un Chien Andalou, de 1929. Com o olho cortado os espectadores passam um terço da obra sem ver nada ou, pior ainda, vendo uma cerimónia a que lhe falta metade, o que como consequência resulta ininteligível. Na repetição aparece a possibilidade de se ter uma visão completa graças ao uso da imagem reproduzida. Descobrimos no vídeo a prótese que restaura o nosso olho cortado. O vídeo permite-nos ver a imagem completa da primeira cena que volta a ser executar-se em palco. Mas ao recuperar a visão total no vídeo damo-nos conta que esta é apenas possível nas condições que a artista nos apresenta. Dependemos totalmente das acções de Cuqui Jerez para ver. E é esse controlo preciso e quase cirúrgico, o que afasta qualquer intenção de metáfora, por via de fuga a uma narrativa distinta das acções que se estão a executar. Tal como ocorria na película de Buñel e Dalí, a navalha que seccionava o globo ocular tornou desnecessária a metáfora das nuvens cruzando a lua. O que temos que ver apresenta-se nos de forma descarnada: somos apanhados por uma visibilidade controlada e fabricada diante de nós. É tudo estritamente ficcionado. E é este controle sobre a nossa experiência como espectadores é o que origina uma profunda incerteza, que Jerez voltaria usar em The Really Fiction (2005) a propósito dos limites da nossa capacidade para aceitar convenções teatrais; e que, a propósito das ideias estabelecidas de autoria, voltará a estar presente na sua próxima obra, a estrear em Janeiro de 2008 em Madrid.

A Space Odissey, de Cuqui Jerez, apresenta-se dia 18 de Outubro no Teatro Municipal da Guarda, integrado no Festival Y #06. Tradução do espanhol: Elsa Soares

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ÉTICA E DIVERTIMENTO JESUS CRISTO SUPERSTAR DE FILIPE LA FÉRIA texto

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João Paulo Sousa

Ao incluir imagens dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 na abertura da sua encenação de Jesus Cristo Superstar, Filipe La Féria traçou, de um modo irreversível, os contornos do território em que o espectáculo se deveria mover. A importância deste gesto para a leitura da peça decorre não apenas do facto de ele se constituir como o momento inaugural da mesma, mas também por se tratar de um acto que parece pretender erguer--se à altura de uma atitude política. Daqui teria de resultar uma coerência com os pressupostos que subjazem à construção das cenas posteriores do espectáculo, até porque a utilização, sob fundo de música rock, das imagens dos aviões que chocam contra as torres nova-iorquinas ou do homem que cai de um desses arranha-céus tem uma evidente implicação ética, que não pode ser descurada. Ora, a única relação evidente com a continuação da peça reside na indumentária dos soldados ao serviço de Roma, que imita a dos soldados americanos, tal como ela nos é habitualmente dada a ver nas imagens provenientes do Iraque. Sem outros elementos de conexão, ainda que esta pudesse ser da ordem do contraste ou da antítese, a ideia que daqui resulta é a da continuidade de um suposto conflito de religiões (ideia que, aliás, sai reforçada da leitura de um texto do programa, assinado pelo encenador, que se refere a um “tempo em que as guerras santas (...) terrivelmente renasceram”). Colocar a questão nestes termos implica que se prolongue o paralelismo entre os dois momentos históricos, sob pena de empurrar o início do espectáculo (e, em consequência, a sua totalidade) para uma espécie de vazio demagógico, em que a vontade de estabelecer afinidades epocais está apenas ao serviço de uma tentativa de justificar a actual apresentação da peça. Ao fazê-lo, porém, somos imediatamente confrontados com uma série de questões que revelam como o suposto paralelismo se deteve na mais rude superfície do problema. Com efeito, se os soldados romanos se vestem como americanos, lícito é que se pergunte se Jesus (Gonçalo Salgueiro) não deveria, então, para obedecer aos pressupostos da presente encenação, envergar as roupas de Abu Mussab al-Zarqawi ou as de Osama bin Laden. Acusado por Judas Iscariotes (Pedro Bargado) de se comportar como um fanático e de conduzir o seu povo à desgraça, Cristo surge aqui, até na dimensão sacrificial que a sua personagem comporta, com algumas aproximações à figura do fundamentalista religioso. Não sendo essa, no entanto, a ideia que o espectáculo pretende preservar de Cristo, o

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resultado é a inexistência de uma lógica sólida e coerente ao nível da encenação. O problema talvez não se revelasse de tanta gravidade se esse suposto princípio ordenador não tivesse sido anunciado com o tom enfático das imagens iniciais. Assim, é a própria justificação da apresentação deste espectáculo que aqui se coloca, sendo esta uma questão que decorre, em grande medida, das opções do encenador. Sem uma coerência estrutural do espectáculo a justificar o uso das imagens dos ataques terroristas, o que sobra é um desejo de colar apressadamente Jesus Cristo Superstar à mais acutilante actualidade internacional, num gesto em que o suposto propósito político (no sentido de leitura do mundo) se esvai na sua absoluta gratuitidade. Ao utilizar esta estratégia demagógica, é a própria encenação que, por efeito de uma espécie de má consciência, vem afirmar a necessidade de justificar a apresentação do musical de Andrew Lloyd-Weber e Tim Rice na primeira década do século XXI. Como o esforço, porém, não vai além dos elementos já referidos, o espectáculo, no seu conjunto, tem as contradições inerentes a um momento de diversão que simula esporadicamente pretensões mais ambiciosas. Há algumas cenas, porém, que permitem pensar que a peça poderia ter trilhado outros caminhos, como as intervenções dos sacerdotes, não completamente destituídas de uma dimensão irónica. O efeito, no entanto, esbate-se depressa, pois o espectáculo pretende levar-se a sério e rapidamente se normaliza enquanto musical de entretenimento. Mesmo as cenas com um Pôncio Pilatos (Bruno Galvão) engravatado e um Herodes (Hugo Rendas) inspirado numa vedeta do Crazy Horse acabam por contribuir para essa normalização, dada a forma como se integram sem resistência na lógica de uma sátira bem comportada. Paradoxalmente, ou talvez não, um dos momentos mais conseguidos em termos de tensão emotiva é a cena do beijo de Judas, em boa parte pelo desempenho do actor, mas também graças ao silêncio que contrasta com a música permanente no resto do espectáculo, abrindo outra dessas vias que, a haverem sido exploradas, poderiam ter permitido a este Jesus Cristo Superstar adquirir outra consistência.

Jesus Cristo Superstar, de Filipe La Féria, está em cena no Rivoli – Teatro Municipal, Porto, durante o mês de Outubro.

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JÚBILOS EM UNÍSSONO TEMPO 76 DE MATHILDE MONNIER texto

Gérard Mayen

Tempo 76, a mais recente peça de Mathilde Monnier, es-

Nuno Patinho fotos

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treada em Junho no Festival Montpellier Danse, deixa um gosto muito estranho que, à distância, a torna divertida ainda que quase aborrecida (uma tensão saudável?). Inscreve-se na categoria das “grandes” Peças (cf. Les lieux de lá [1998-1999], Déroutes [2003], Publique [2004, apresentada na Culturgest em Janeiro de 2005], frère&soeur [2005]) em que a coreógrafa reúne elementos importantes, os conduz até ao palco, ao qual Monnier não sobe, para que sejam bem visíveis os princípios da escritura coreográfica que, no limiar filosófico, respondem às perguntas do mundo. Ao lado desta categoria, que diria superior, distinguem-se peças com elementos mais sóbrios nos quais, naturalmente, a coreógrafa participa, resultando em encontros circunstanciais à volta de temáticas específicas, pontualmente singulares ou por vezes pintadas com alguma fantasia (cf. Allitérations [2002], La place du singe [2005], 2008 Vallée [2007, apresentada no Teatro Camões em Fevereiro passado e criticada na OBSCENA #2]. Assim, Tempo 76 apresentaria o desenvolvimento estrutural das pri-

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meiras, guardando o espírito “saltitante” das segundas. Em todo o caso voltou-se a página da lembrança errática deixada por frère&soeur [apresentada e mal recebida no Festival d’Avignon 2005]. Hoje Tempo 76 possui uma determinação na escrita e um domínio da composição que conduzem a peça, mantida a pulso de ponta a ponta, com uma objectividade impressionante. Monnier é uma coreógrafa que, ao mesmo tempo que dirige se confronta com uma figura coreográfica que traduz, por excelência, a ambição da unidade perfeita. Mesmo que essa unidade seja a figura, aqui, a do uníssomo, cultivada, nesse sentido, pelo ballet clássico, e repudiada de igual forma por uma dança contemporânea muito céptica sobretudo devido às suas implicações ideológicas. Acresce ainda que estes mesmos princípios do uníssono regulam numerosos bailados populares (folclore “majorettes”, ballets aquáticos), e demonstrações disciplinares (cerimónias totalitárias, desfiles militares...). Como acontece muitas vezes no caso de Mathilde Monnier, desencadeia-se a expectativa de que a coreógrafa subscreve o modo da subversão e do começo a partir do nada. A aproximação far-se-á sobretudo de forma enviesada para que melhor se possa trabalhar a partir do interior, permitindo assim que as diferenças produzam novas articulações. Convicta de que os dispositivos não possuem essências intangíveis, a core-


ografia assenta sobretudo na maneira como se investe no aperfeiçoamento dos relacionamentos, ainda que Tempo 76 não se entregue a qualquer jogo de massacre na figura do uníssono (aqui convinha lembrar a peça precedente, Rose [2001], pela qual – de resto demasiado breve – Mathilde Monnier mudava, de forma regozijada, o potencial virtual do Ballet Real da Suécia). Desta vez inventa-se uma modulação contemporânea do uníssono; ambiguidades incluídas. Desde logo, o título da peça sugere um grupo de grande perseverância rítmica, em vez dos decadentes que lembram as grandes composições clássicas, ou a pura dança. Algo de surdo, de grave, de subtilmente entediante na duração ampla, impressiona a comunidade dos nove bailarinos de Tempo 76. Este é, de resto, um processo completamente novo, imperceptível quanto à evidência do olhar dos espectadores, que regula implacavelmente as suas emoções, como se estes estivessem sob controlo. Mas a ambição principal da peça prendese com a abertura da figura do uníssono, aqui relacionada com o todo das pulsações rítmicas do mundo. Se se faz sentir uma inquietude tenaz em Tempo 76, esta vem indiscutivelmente da consciência, hoje mais aguçada do que nunca, no que toca as comunidades artísticas, da emergência de novas opressões e alienações sediadas no coração dos processos expostos e divulgados de produção.Acreditou-se que estes estivessem uniformemente emancipados quando os mesmos representavam

uma conformação de artistas trabalhadores em modelos de precaridade estatuária liberal. Em cena, este alargamento do propósito traduz-se num objectivo estratégico cenográfico (de Annie Tolleter): sobre a integralidade do palco cresce um relvado uniforme, enquanto que uma parede móvel em três quartos do fundo do cenário cria um fora de jogo massivo, favorável às aparições, escamoteações e desaparecimentos, já permitidos pela abertura de todas as escapatórias laterais. Um regime superior de pulsação invade a situação cénica enquanto os intérpretes estão indefenidamente de passagem, no contacto com o mundo, vivificado de clorofila morna. No palco strictu sensu, entregam-se a uma exuberância de acções que não param de irisar o uníssono com os vários tons de ternura, os raios da incongruidade, vibrações de espera, arrepios insólitos. Uma gama vasta de dissociações pontuais, induções e conclusões, declinações e variações não param de realçar perante o mundo a irrepreensível singularidade de cada personagem dançante tendo em conta os vários pontos da teia unificadora. As qualidades que daí surgem mantêm a espera num sufoco, já que estes uníssonos são definitivamente mais ricos e intensos que todos os antigos modelos alguma vez o foram, até porque se empregam em cena forças de contradição que assim demonstram a sua própria impossibilidade. De qualquer modo o singular resiste à uniformidade, ao mesmo tempo que a figura colectiva toma forma. Uma saborosa ironia, um trabalho – de resto nem sempre credível – sobre a orgânica colectiva dos risos e das lágrimas, e uma entrada em palpitação do próprio cenário, elevam o impacto espectacular, diria mesmo sedutor, do conjunto. Porque, precisamente, a ambiguidade de Tempo 76, ao alargar consideravelmente os horizontes do uníssono, quer refrescar os poderes da sedução, à maneira antiga, quando o uníssono exercia um poder de fascínio manipulador, quase suspeito. Com Mathilde Monnier, o uníssono estranhamente tornado diversificado, dispensa impressões de júbilo. Trata-se sempre do mesmo uníssono, o que não passará sem recompensar a expectativa do espectador não contrariado, ao reatar com as sensações do conhecimento, vindas agora para pormenorizar uma peça de grande inteligência. Não, decididamente, o gosto particular desta figura coreográfica está longe de se desvanecer. Poder-nos-emos é aborrecer após nos termos regozijado.

A peça apresenta-se de 9 a 13 de Outubro no Théâtre de la Ville, Paris, no âmbito do 36º Festival d’Automne à Paris e em Lisboa, na Culturgest, dias 4 e 5 de Abril de 2008. Tradução do francês: Carolina Silva/Instituto Franco-Português Texto publicado em colaboração com a revista Mouvement

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ESPERANDO PELA SOMBRA NEITHER DE MORTON FELDMAN, A PARTIR DE LIBRETO DE SAMUEL BECKETT texto David Sanson Há já muito tempo que Joséphine Markovits, directora artística da programação de música do Festival d’Automne, alimentava o projecto de apresentar em Paris Neither, ópera que marca o encontro entre Morton Feldman (1926-1987, na foto) – um compositor ao qual Festival tem dado particular destaque – e Samuel Beckett, vinte anos mais velho. O sonho realizou-se – ou talvez devêssemos dizer, produziu-se, de tanta carga onírica que esta música carrega – dia 22 de Setembro na Cité de la Musique. É verdade que não foi possível apresentar Neither senão em versão de concerto (na altura da sua criação, em Junho de 1977, na Ópera de Roma, a ópera foi encenada pelo artista plástico Michelangelo Pistoletto). Mas esta obra, atendendo

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ao carácter às vezes extremamente estático (o libreto reduz-se a dez linhas e não se dirige senão a uma única voz de soprano) e prodigiosamente espectacular (e é um fascinante espectáculo ver uma orquestra produzir texturas tão inexprimíveis, medindo-se, dessa forma, com o silêncio) satisfaz-se perfeitamente de tamanha “restrição”. No excelente texto publicado no programa do espectáculo [disponível em http://www.festival-automne. com/Publish/evenement/127/Bible%20Neither.pdf], o musicólogo Laurent Feneyrou lembra o cómico encontro que teve lugar em Novembro de 1976 num teatro de Berlim, entre o compositor americano e o escritor irlandês, tal como lhe chegou por Morton Feldman: “[Beckett] estava bastante incomodado – depois de um certo tempo, disse-me: ‘Senhor Feldman, eu não gosto de ópera’. Eu disse-lhe: ‘Eu não o censuro’. Depois disse-me: ‘Não gosto que as minhas palavras sejam colocadas em música’. E eu disse: ‘Estou inteiramente de acordo. Eu raramente utilizo palavras. Escrevi bastantes peças


com voz, mas elas não têm texto’. Depois ele olhou-me por mais uma vez e disse: ‘Mas o que quer você?’. E eu disse-lhe: ‘Não tenho ideia alguma’”. Esta cena pândega marcaria o início de uma longa e fecunda camaradagem artística, que daria lugar a partituras como Words and music (1985-86) ou For Samuel Beckett, última peça acabada de Morton Feldman – que, à data da sua morte em 1987, trabalhava na composição da música de cena para [o poema] Cascando, de Beckett. No imediato ela daria lugar a uma partitura mágica, magnética. Obra mítica, Neither é sobretudo uma obra limite, fruto da alquimia entre uma música que se aventura nos confins do silêncio e um monólogo que pulveriza as fronteiras da narração, onde as primeiras palavras – “Vai e vem na sombra, da sombra interior à sombra exterior” – resumem bem o seu teor. Morton Feldman: “Estava preocupado com a sombra. E esse é precisamente o tema da ópera de Beckett. O tema desta ópera é que a nossa vida é cercada por zonas de sombra que existem à nossa volta, sendo-nos impossível ver o seu interior”. Neither é assim uma viagem imóvel, um movimento pendular da sombra à luz, entre o silêncio e a luz, entre o self e o unself – o ser e o nãoser. A música, que se acantona nos registos aguçados, se se aparenta a uma tessitura de células repetitivas, uma sucessão – feita de micro-intervalos e ínfimas variações – de naipes orquestrais de uma lentidão extrema que vem, de tempos a tempos, insinuar-se junto da soprano, como que para unir os fios de uma dramaturgia invisível, de uma resolução impossível, é, apesar disso, e sobretudo tendo em atenção as outras partituras do seu autor, admiravelmente expressiva, senão mesmo narrativa. É uma lenta progressão que se suspende, conduzindo a um clímax final (os surpreendentes cinco minutos finais durante os quais se confundem os vários eventos musicais, a orquestra agita-se, a língua convulsiva deve silenciar-se bruscamente como se estivesse sem fôlego) que quase nos recorda o fim magistral de Wozzeck de [Alban] Berg… O que interessa nesta obra, como na totalidade da obra de Feldman, é um siderante empreendimento na dilatação do tempo – um “sentimento indizível de suspensão temporal”, como diz o maestro Emilio Pomarico. Deve aqui falar-se do trabalho musical supremamente conseguido, nessa noite, pelos intérpretes. Dirigida por Pomarico a Orquestra da Rádio de Frankfurt provou ser o mais inspirado dos guias para atravessar esse labirinto de miragens. O olhar perde-se na orquestra à procura dos instrumentos que conseguem produzir texturas vibráteis, como são as cores de um quadro de Rothko, sem que jamais a atenção na execução da música seja abandonada. De uma fascinante subtilité (aplicando aqui o sentido que o yoga dá a esta palavra), as vaporosas misturas de timbres que se concretizam nas frequentes nuances pianissimi, produzem um efeito

próximo da hipnose, no qual a soprano evolui. Anu Komsi é, ela mesma, surpreendente, jogando maravilhosamente com todas as dificuldades de uma partitura que, colocando a sua voz numa rude prova, é pontuada por intensas cadências e impulsos angulosos – e à qual ela confere uma presença verdadeiramente surreal. É preciso aqui sublinhar: é em concerto que a música de Feldman, como a maior parte da criação “contemporânea”, melhor se descobre, onde se apresenta mais justa. Não que ela seja particularmente difícil de aceder – ela é genericamente consonante, harmoniosa, desprovida de toda a brutalidade –, mas porque esta música exige, como poucas, uma atenção, uma presença. A sua audição perde-se num tempo que música dilata à porfia, estendendo lentamente, inexoravelmente, uma rede na qual o ouvinte se sente aprisionado, irremediavelmente arrebatado, e eis que, de repente, ao fim de uma hora, toda essa auréola de música se evapora, e não sabemos exactamente onde nos encontramos, nem quanto tempo durou a viagem que poderíamos bem ter continuado por mais horas.

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Neither, de Morton Feldman, a partir de libreto de Samuel Beckett, apresentou-se na Cité de la Musique, Paris, a 22 de Setembro, no âmbito do 36º Festival d’Automne à Paris, com Anu Komsi (soprano) e a Orquestra Sinfónica da Rádio de Frankfurt, conduzida por Emilio Pomarico. O sítio http://www.themodernword.com/beckett/beckett_feldman_neither.html disponibiliza informações relativas à realização desta ópera, bem como indicação de biblio e discografia.


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A HISTÓRIA DE UM CAIXEIRO-VIAJANTE CHAMADO WITOLD SPLIT OR GOMBRO IN BERLIM DE WIESLAWA SANIEWSKIEGO texto Cristina Carvalhal

Split or Gombro in Berlin, de Wieslawa Saniewskiego,

é um filme sobre um homem impedido de aceder plenamente à realidade que o cerca pela omnipresença de um monólogo interior delirante e obsessivo. Mais precisamente, um filme sobre aquilo que este homem designa por “uma viagem interior, uma viagem para a morte”. O homem é Witold Gombrowicz, alguém que desde a infância se sente governado pelo absurdo e pelos binómios realidade-irrealidade, inferioridade-superioridade, senhor-servidor. Alguém que afirma sempre ter mantido uma vida dupla, sempre ter sentido em si alguma coisa de obscuro que por nada deste mundo se abriria à luz do dia. E que se diz incapaz de amar, que o amor lhe terá sido recusado desde o início, quer

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fosse por não o possuir simplesmente, quer por nunca lhe ter sabido dar forma ou expressão própria. Witold Gombrowicz deixa a Polónia em 1939, com trinta e cinco anos, para uma breve viagem à Argentina, onde é surpreendido pela eclosão da guerra. Permanecerá em Buenos Aires até 1963, de onde sai para uma estadia de um ano, em Berlim, a convite da Fundação Ford. O filme começa com a partida de Gombrowicz para Berlim. O regresso à Europa depois de vinte e quatro anos de exílio. Um homem vestido de branco, está apoiado negligentemente numa amurada branca em forma de entroncamento, sobre o mar. Dir-se-ia que seguir em frente é impossível e que urge escolher uma de duas di-

recções opostas. A partir daqui uma voz off, magnética e inquietante, tomará conta das cenas sobrepondo-se às imagens. O homem de branco volta-se para nós, despede-se de três amigos. A cena é estranha e desprovida de emoções, como se estivéssemos a assistir à imagem que Gombrowicz faz de si mesmo. Na primeira pessoa do singular, a voz, supostamente a sua, enumerará factos, sensações, episódios da estadia em Berlim. A palavra é a protagonista deste filme e Wojciech Ziemianski corporiza admiravelmente o eterno constrangimento de Gombrowicz perante a realidade, um misto de aristocrata freak, desencantado, entediado, mas também provocador e atormentado, frágil.


Entre os episódios mais fortes do filme contam-se os delírios interiores de que é vítima: uma torrente de associações e simetrias várias desencadeada pelos factos mais banais, geralmente em locais públicos ou ocasiões sociais. O seu romance Cosmos é construído inteiramente a partir deste distúrbio obsessivo, doentio, e contudo a ironia nunca deixa de estar presente. De resto, um dos ódios preferenciais do autor é dirigido a todos aqueles que se levam demasiado a sério. Contam-se nesta categoria alguns ilustres académicos franceses, e em especial todos aqueles que em nome do estruturalismo, da linguística, da semiologia, ou da ciência em geral, se afastam da complexidade do processo artístico e da vida, encerrados que estão nas suas “cátedras”. Berlim é, para este homem, indissociável do horror nazi. A voz, essa que nos conduz ao longo do filme, por entre uma lógica imperceptível de associações, detém-se ante a extrema simpatia dos rostos alemães, desconfia daqueles corpos de mãos possantes, sente-os inundados de moralidade, num afã inconsciente de apagar um passado recente incompreensível. Como Lady Macbeth lavando as mãos, enlouquecida. E quando, no filme, aquele homem frágil se distrai e mete à boca sofregamente pedaços de terra que esgravata com as mãos, não será tanto por uma reminiscência de infância ou pela dor de não poder regressar à Polónia. Aquele homem assusta-se consigo mesmo perante a possibilidade da morte, a antevisão do seu sabor. No final Gombrowicz pega na mala. Destino Paris. E como que numa tentativa de caminhar para trás a voz recomeça: “Berlim, Argentina...”, e quando chega a “Polónia” o tom é interrogativo. Na nossa memória, enquanto desfila a ficha técnica, ecoam as primeiras palavras do filme: “Uma viagem interior, uma viagem para a morte”. De facto, depois de Berlim e de Paris seguir-se-á Vence onde permanecerá até à sua morte, em 1969. Morre durante o sono, vítima de uma insuficiência respiratória, de que sempre sofreu, agravada pelas dificuldades de sobrevivência que enfrentou e pelo estilo de vida boémio que adoptou. Apesar de ter mantido, ao longo da sua vida, uma actividade regular enquanto escritor, o reconhecimento chegou tarde. Em 1958 o seu romance Ferdydurke é publicado em França, seguindo-se A Pornografia em 1960. O sucesso destas obras abre-lhe as portas para edições em toda a Europa. As suas peças de teatro são levadas à cena em Paris, Estocolmo, Berlim, Buenos Aires... Cosmos (1965) obtém o Prémio Internacional de Literatura (Prémio Formentor).(Saco Films, Polónia, 2005) O filme recebeu o Gold Award no Worldfest Houston 2005 e mostrou-se em Portugal, no mês de Março, durante o IX FamaFest – Festival de Cinema e Vídeo de Vila Nova de Famalicão Actriz e encenadora, Cristina Carvalhal, encenou Cosmos, apresentada na Comuna – Teatro de Pesquisa em Março de 2005.

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IGUAIS A SI MESMAS LAS PIEZAS DISTINGUIDAS DE LA RIBOT texto Jaime

Salazar-Conde

foto Carol Parodi

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Há já algum tempo que La Ribot anunciara o fim do projecto das piezas distinguidas. Durante mais de dez anos acumulou um total de 34 peças (pequenas acções entre 30 segundos e sete minutos) que se apresentaram em blocos distintos. Primeiro em 1993 (Trece piezas distinguidas), depois em 1997 (Más piezas distinguidas) e por último, em 2000 (Still Distinguished). Depois do último bloco realizou duas obras, Despliegue (2002) e Panomarix (2003), em que se reuniram todas as peças e onde se resumiam também o processo de investigação arquitectónica. Este processo fez com que as obras abandonassem a caixa negra e conquistassem uma espécie de cubo branco (semelhante ao de uma galeria de arte) em que havia desaparecido qualquer separação público/artista e o corpo da bailarina e o dos espectadores dividiam o mesmo espaço em igualdade de condições. Pois bem, parece que em 2007 chegou o mo-

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mento de fechar definitivamente o projecto e para isso editou-se um DVD em que se reconhecem as 34 peças gravadas em distintos contextos e distintos momentos. Mas a operação é mais complexa já que o próprio desenvolvimento do projecto podia colocar em dúvida a necessidade de recorrer a um sistema de reprodução técnica para documentar las piezas distinguidas. Quando La Ribot começou a trabalhar no projecto em 1993 imaginou uma série de 100 peças que se acumulariam linearmente ao longo da sua vida. Mas à medida que passou o tempo este propósito foi-se transformando e quando se estreou Still Distinguished tornou-se evidente que algo fundamental havia mudado. As novas peças não eram tão novas assim: estavam repletas de citações às peças anteriores e algumas pareciam inclusivamente remakes das mais antigas. Em frente àquele corpo que pisava o mesmo solo que nós, os espectadores podiam reconhecer acções, objectos, etc. que estiveram ali no passado e que voltavam a estar ali no presente. De repente, o projecto revelava-se como um exercício de memória não linear que implicava não só a própria artista mas cada espectador que tivesse guardado as suas próprias lembranças das obras. Este feito tornou-se evidente em Despliegue e em Panomarix onde todas as peças se misturavam num único tempo e num mesmo lugar: não existia um antes e um depois, não havia lugar para a distribuição cronológica, tudo se compunha caprichosamente como sucede com as lembranças. Mas o projecto das piezas distinguidas tinha a sua própria memória. O desaparecimento inevitável de todas aquelas acções vivas era parte aceite da obra e da memória (compartilhada umas vezes, e totalmente privada outras) dava lugar a um espaço flexível e ge-neroso com aqueles sujeitos que a construíam. Assim, o problema do efémero e da documentação da obra desafiava-se sem recorrer aos


discursos esterilizantes e positivos da história convencional. O que se passou não se voltará a passar, porém podemos sempre recordar aquilo que vivemos juntos. Então, pergunta-se, que necessidade havia de produzir um DVD “documental” que preservasse uma única, estável e precisa versão das peças? Não nos havia levado o projecto a perder o medo do desaparecimento, a desenvolver uma memória (inevitavelmente caprichosa e imprecisa) das peças? Todas as piezas distinguidas são acções vivas. Todas excepto uma: Pa amb tomaquet (pão com tomate). Trata-se de um vídeo que se mostrava nuns pequenos monitores no solo no princípio de Still Distinguished. É a peça nº 34, a última. E tem algo de fronteira, de porta que dá acesso a algo novo. Para o realizar, La Ribot encerrou-se zelosamente no estúdio, como se fosse cometer um crime e não quisesse testemunhas a incomodar. Segurou a câmara de vídeo numa mão, pôs Belmonte do músico Carles Santos a tocar e com a outra mão começou a cozinhar. Primeiro besuntou com alho todo o corpo, depois tomate e para acabar azeite. Todas as peças anteriores estão largamente ensaiadas e têm algo de seta que se lança com precisão: aparecem diante do público como algo claro e conciso. No entanto, Pa amb tomaquet era uma acção que não estava ensaiada e que La Ribot repetiu e gravou unicamente cinco vezes. As cinco sequências mostram uma acção apressada, urgente, acidentada, brutal por vezes, extremamente sensual outras... Como um bom filme porno. Pela primeira vez La Ribot abria um espaço distinto do espaço real e vivo que compartilhava com os espectadores. O vídeo colocava-nos como mirones na sua alcova. Isto é, o espaço público de Still Distinguished aparecia perfurado pelos monitores que davam acesso a um lugar privado, um lugar submetido a uma economia totalmente distinta do espaço da acção vivo no qual decorrem as peças. Tempo depois, La Ribot propôs a Gilles Jobin, Olga Mesa e a Eduardo Bonito que repetissem a experiência: com uma câmara na mão, sozinhos, num espaço privado, onde deviam dançar seguindo, desta vez, a música do terceiro entreacto da ópera Carmen de Bizet. O resultado foi apresentado em 2003 na South London Gallery com o nome de Travelling e confirmou-se aquilo se suspeitava vendo Pa amb tomaquet: o vídeo porno é na realidade um ballet. Um ballet estranho porque o objecto-corpo do bailarino esquiva-se ao olhar do espectador que é, por sua vez, sequestrado pelo próprio corpo do bailarino que sustêm a câmara e produz a imagem. Isto é, trata-se de um ballet em que os bailarinos quase não se vêem (o que, sem dúvida, faz com que o desejo e a excitação cresçam). Os vídeos davam-nos acesso a um lugar privado onde decorria um ballet. Pois bem, talvez o DVD compilação tenha mais a ver com aqueles vídeos do que num primeiro momento se possa

pensar. Uma vez que se vêem as imagens contidas no disco, é difícil pensar que se trata de um documentário: não aparecem as melhores actuações, muitas vezes o som falta, a imagem nem sempre é de boa qualidade, as peças não se apresentam seguindo uma ordem cronológica ou descritiva, etc. Mais do que uma tentativa de documentar e preservar o que ocorreu, parece mais um lembrete que os meninos distribuem no dia da sua Primeira Comunhão: no dia X do ano X, Juanito Pérez recebeu sua primeira comunhão. O pequeno papel recorda-nos que algo se passou num momento e lugar, mas não tenta reproduzir ou preservar o evento. O papel de bordos dourado certifica o desaparecimento e abre as portas da memória: uma vez recebido o lembrete começa o tempo de reconstrução, da elaboração privada. Assim podia funcionar TREINTAYCUATROPIECESDISTINGU ÉES&ONESTREAPTEASE, mas para voltar a recordar basta um niquinho de papel bem impresso. Para quê um DVD caro? Tal como demonstrou Pa amb tomaquet, a câmara, aquele olho colado ao corpo do artista, dava acesso a um espaço privado. Se Panomarix criou uma memória pública do projecto, agora havia chegado o momento de desenvolver uma memória privada das peças. O interessante é que não se trata da memória privada da artista (ou não somente, pelo menos). As gravações seleccionadas não mostram com toda a claridade as peças. O que se vê melhor é o público, as pessoas que acompanharam La Ribot durante as peças. No ecrã os corpos dos espectadores misturam-se com os da artista. Os espectadores convertem-se em parte da obra. Desta forma, La Ribot apela à responsabilidade de cada um de nós na memória do projecto. Mas que para cada um possa fazer o seu trabalho privado de rememoração, faz falta que possamos ir a casa. Por isso, talvez fosse necessário voltar ao espaço privado que abriram os vídeos. A diferença é que agora os que se encerraram no estúdio são os espectadores. De noite, sós, drogados talvez, estendidos no sofá, liga-se a televisão e põe se o DVD das peças. Abre-se o menu e selecciona-se a cena mais adequada para a ocasião. Depois, entregamo-nos ao prazer. O prazer do corpo que não está e que só recordamos através dos pixeis do ecrã. Exactamente como quando se põe um filme porno. Mas esta vez o corpo perdido da artista está acompanhado dos nossos. “Esse da camiseta de riscas sou eu”, “o das calças curtas é o Joaquim”, “a das calças de veludo verde é Paz”, “a dos pêlos é a minha mãe”, “a que se ri é Soledad Lorenzo”... Estivemos ali afinal, finalmente. Os melancólicos prazeres da memória. Esse é o grande presente com que fecha este brilhante projecto de las piezas distinguidas. (Arcad, €20)

Tradução do espanhol: Elsa Soares

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DAS PALAVRAS AOS ACTOS UN TEATRE SENSE TEATRE foto Sonnabend Gallery

texto

foto Kristien Daem

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Pedro Manuel

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EXPOSIÇÕES

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O teatro sem teatro que aqui está em causa é, ao mesmo tempo, duas coisas: o teatro “novo”, que se afasta das convenções clássicas e o teatro que acontece fora do edifício-teatro. No primeiro exemplo, a nova representação teatral apoia-se na crítica e na oposição ao seu modelo anterior, ao seu clássico; no segundo exemplo, afasta-se dos dispositivos técnicos e arquitectónicos que perpetuam, também, um estado imutável. Em ambos os casos, há o descentramento (da cena e da plateia, isto é, dos lugares de representação e dos lugares de quem vê) e a desilusão (como linguagem excêntrica que associa a diversidade artística sem a sintetizar). Por um lado, o descentramento do fazer teatral da sua tradição técnica e semiótica recoloca actor e espectador numa nova relação, e compromete o estatuto dessa relação. Por outro lado, a desilusão do desejo de representação da realidade, afirmando-se antes como nova linguagem, contribuem para um deslize da linguagem crítica para, ao falar de teatro, incluir na fala um novo conceito, transversal ao centro e à periferia: a teatralidade. O teatro sem teatro que aqui está em causa é o da teatralidade, desta vez na relação com as artes plásticas. Aquilo que sempre aproximou o teatro e as artes plásticas numa relação íntima, ao longo de séculos de cruzamentos e influências, foi o conceito de representação. Não tanto como conceito crítico mas como influência de parte a parte na criação de imagens, de coisas para ver e de pontos de vista, nos recursos técnicos, no estatuto do corpo, na representação da ordem e desordem do mundo. Na exposição Un teatre sense teatre, que recentemente terminou no Museo de Arte Contemporanea de Barcelona (MACBA) são essas trocas – mais que o conceito de representação – que estão à vista. Descentramento, desilusão, relação entre actor e espectador, entre obra e espectador (the viewer), são alguns dos pressupostos que podemos reconhecer na teatralidade que atravessa as obras em exposição. Mas onde se pudesse supor uma progressão histórica das relações entre teatro e artes plásticas no século XX, das vanguardas à legitimação da performance, encontra-se antes a presença do modelo teatral, ou da teatralidade, como influência excêntrica que age sobre as obras de arte. Ou seja, à superfície o tema da exposição será o


foto Archivos B. Picon-Vallin foto A. Zambianchi

teatro, e a noção de espectáculo está mais ou menos presente em cada peça, mas o que está em causa é a exposição dos efeitos de teatro sobre o pictural, o plástico, o visual, abrindo-o ao acontecimento, ao espaço, ao corpo. Daí que surja a referência a Michael Fried (Art and Objecthood, 1967), crítico norte-americano que acusou os artistas minimalistas de desenvolverem uma materialidade nas suas obras que perturbava a experiência estética modernista, concentrada na experiência pictórica. Essa materialidade seria, nas suas palavras, teatral, corrompendo a “competência do visual” (Tadeusz Kantor). Vejamos em cada peça não a referência directa à teatralidade mas a interferência do modelo de espectáculo sobre a lógica de criação plástica. Exemplo disso é a passagem, do início ao fim da exposição, de peças onde a presença do espectáculo é mais explícita para obras onde as referências são, sobretudo, do domínio da arte contemporânea. O teatro está mais presente no acervo de documentação histórica que nas obras de arte e é aí

que encontramos uma referência directa. A exposição provoca o diálogo entre a história de arte e a história do teatro no século XX, marcando – e legitimando – o início da exposição, com uma série de cartazes, livros e fotografias: de Marinetti, Meyerhold e Shlemmer (sabia que as máscaras de aparência metálica são de pasta de papel?) a Artaud, Grotowsky e Kantor. A nível temático a exposição evolui da documentação para a acção (performativa) com vídeos, esboços e objectos de performances, Matt Mullican e Mike Kelley por exemplo. Já no piso 2 do MACBA, podemos assistir a uma evolução da arquitectura à dança e ao vídeo, através de obras de Aldo Rossi, Daniel Buren e Juan Muñoz com apropriações do dispositivo do edifício-teatro; referência à dança contemporânea com vídeos de Trisha Brown e Yvonne Rainer, e Rauschenberg ensaia sobre Cunningham. Oportunidade ainda de ver obras de Boltansky, Allan Kaprow, Tony Oursler, Carl Andre, Bruce Nauman e vídeos de Robert Morris. Não sendo tanto uma exposição sobre as relações entre teatro e artes plásticas, enquanto linguagens de representação artística, Un teatre sense teatre é legitimado por uma valiosa documentação e lança um ponto de vista inédito sobre a influência do espectáculo na criação plástica contemporânea. As peças expostas são exemplos e pontos de partida para a leitura alargada de um diálogo contínuo que aqui toma os pressupostos do acontecimento espectacular como elementos de criação artística: o lugar do corpo, o observador/espectador, o site specific, a acção e a narratividade, a duração. Un teatre sense teatre esteve patente de 25 de Maio a 11 de Setembro de 2007 no Museo de Arte Contemporanea de Barcelona e mostrar-se-á em Lisboa, no Museu Colecção Berardo, de 16 de Novembro de 2007 a 17 de Fevereiro de 2008.

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O NOVO PARNASO EXHAUSTING DANCE: PERFORMANCE AND THE POLITICS OF MOVEMENT, DE ANDRÉ LEPECKI texto Jaime

Salazar-Conde

Exhausting Dance é o gé-nero

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de livro pelo qual se esperava pois passou mais de uma década desde que na Europa surgiu um movimento que, com ambíguo sucesso, se tentou chamar Nova Dança. Era inevitável que alguém fizesse o trabalho de ordenar e criar um lugar para este fenómeno que tentou agitar o cimento da dança contemporânea e, finalmente, foi André Lepecki quem assumiu a dura tarefa de escrever algo que já andava no ar há algum tempo. Isto não quer dizer que o livro restabeleça uma calma mortífera dando a tudo uma justificação, um nome, uma causa e um efeito que nos deixe tranquilos. Pelo contrário, não tenta actualizar o relato oficial da história da dança teatral ocidental nem tão pouco esgotar o assunto de que trata: muitos textos aparecerão depois deste que trarão novas versões, matizes, nomes... E, no entanto, o que aqui se confirma é que o contexto se alterou de forma subtil mas fundamental: acabou o tempo no qual Jérôme Bel, La Ribot ou Xavier Le Roy tinham capacidade de confrontar a dança teatral oficial a partir de uma posição periférica ou alternativa ao estabelecido. Hoje todos eles habitam o sistema europeu dos grandes festivais, das grandes instituições, das grandes produções, dos grandes operadores de difusão e do grande público. E, desde este ano contam, para além disso, com uma primeira grande estrutura teórica que apoia os seus trabalhos e justifica as suas investigações. Pelo esquema inicial de Exhausting Dance podemos ser levados a pensar que se trata de uma actualização do projecto formalista moderno (ao mais puro estilo de Martin, Johnston, Siegel, Copeland, Banes, Manning, etc.) e que estamos perante os novos nomes de heróis capazes de estender o relato da evolução linear, contínua e positiva da história da dança até ao infinito. De facto, uma vez mais, repete-se a conhecida estrutura: um ensaio introdutório seguido de capítulos que explicam as propostas de cada um dos novos artistas e que descrevem os aspectos do renovado contexto, tudo isto rematado por um capítulo de conclusões que dá por inaugurado uma nova época. Mas a proposta de Lepecki, longe de reestabelecer a ordem oficial, oferece as bases para uma incerteza que dá nova dimensão aos trabalhos que usa como objecto de reflexão dando ao livro uma certa dimensão de manifesto.

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ACTO 1. UM GRANDE APARATO TEÓRICO Dentro daquilo a que se chama Estudos de Dança não é frequente encontrarem-se ensaios que articulem um sistema de referências suficientemente amplo, heterogéneo e coerente que permita pensar a dança para lá da própria disciplina académica que a estuda. São muito raros os exemplos nos quais a dança é apresentada como um fenómeno que ocorre no mundo e em relação com a vida dos seres humanos. Exhausting Dance é um deles: Lepecki convida para um enorme banquete vozes tão diversas como Peggy Phelan, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Peter Slotedijk, Pierre Bourdieu, Homi Babbha, Martin Heiddeger, Jacques Derrida, Teresa Bennan e um vastíssimo etecetera. Todos eles formam uma rede que faz da dança um problema relacionado com o pensamento humano. Se é certo que na abundância de referências e citações a alguns dos pensadores contemporâneos mais relevantes se pode intuir uma necessidade de utilização da presença de autoridades para criar uma certa sensação de solidez discursiva, também é graças à multiplicidade de convidados que a dança aparece dentro de um contexto muito rico que vai para lá do estritamente cénico. Assim, ainda que o peso teórico existente torne a prosa de Lepecki muito angulosa e, a espaços, áspera, cria-se um ambiente brilhante no qual não deixam de surgir ideias e relações reveladoras. ACTO 2. PARA LÁ DA MODERNIDADE Segundo a descrição oficial da história da dança pode dizer-se que a modernidade surge relacionada com o projecto estético e teórico gerado em torno da modern dance norte-americana. Ainda que o século XX tenha proporcionado múltiplas e diversas tentativas de renovação da dança, somente nos Estados Unidos se tentou desenhar um percurso que ordenasse a história e estabelecesse os mecanismos narrativos capazes de explicar o desenvolvimento da dança teatral ocidental em relação à chamada modern dance. Este projecto está ainda hoje em curso e é muito comum que estes argumentos sejam usados numa crítica de dança relacionada com a “literatura” criada pelos Estudos de Dança. Portanto, é dentro deste projecto moderno onde se fabrica a ideia de “movimento” como categoria estética universal que se define a “essência” da dança. Esta ideia de “movimento” está no coração da reflexão crítica de Lepecki, que não chega a ela através da definição aproximativa de modernidade mas antes por uma muito mais ampla: “a modernidade é entendida neste livro como um projecto duracional que produz e reproduz metafisicamente um ‘marco psico-filosófico’ no qual o sujeito do discurso se define pelo género masculino hetero-normativo, por ser de raça branca e por experimentar a sua verdade como (e dentro de) um impulso incessante que provoca um movimento espectacular,


autónoma, auto-motivado e sem fim” (p. 13). Assim, o tema da modernidade estende-se a um campo que excede a própria dança e que tem que ver com a construção daquilo que as culturas brancas ocidentais denominaram como “sujeito moderno”. A ideia de movimento havia surgido, segundo Lepecki, como um aspecto essencial no qual se definiria essa figura cultural e psicológica. A relação com a dança e em particular com o famoso tratado The Dance in Theory, de John Martin, publicado em 1939 surgiria de forma imediata ainda que posterior à primeira operação de análise. Dessa forma o questionamento que a chamada Nova Dança levou a cabo cumpriu a ideia moderna de movimento e apresenta-se com um problema relacionado não somente com o desenvolvimento da dança teatral mas, fundamentalmente com a construção da subjectividade ocidental. Isto é, os artistas tratados no livro ter-se-iam ocupado não tanto com o ser da dança mas com aquilo que o ser humano é. Assim a coreografia apresenta-se não como um trabalho de desenho e composição de movimentos do ser humano mas também, e bem, com uma forma de reflexão sobre esse ser do “sujeito moderno” que se define em movimento contínuo. ACTO 3. O PROJECTO Exhausting Dance é, em muitos sentidos, um jogo de apropriações graças ao qual Lepecki pode colocar os seus argumentos em casos criados anteriormente por outros autores (esta é, sem dúvida, uma maneira feliz de resistir às esterilizantes normas de propriedade intelectual que tentam fazer-nos crer que o conhecimento é algo morto que se possui em vez de algo vivo que vai de mão em mão e de boca em boca transformando-se continuamente). A primeira apropriação surge logo no título que parafraseia a obra de Teresa Brennan, Exhausting Modernity (2000). Mas talvez o gesto mais comprometido deste livro seja a apropriação do projecto que Peggy Phelan deu a conhecer no seu famosíssimo artigo publicado em 1993 The Ontology of Performance (artigo incluído no livro Unmarked, do mesmo ano). A primeira pista de que estamos no terreno de Phelan é dada pelo jogo de palavras no subtítulo da obra: Performance and the politics of movement que deriva muito claramente de The politics of performance de Phelan. Mais tarde damo-nos conta de que a pergunta sobre o ser da dança com a qual Lepecki inicia a sua obra é irmã da pergunta que Phelan formula acerca da ontologia da acção (performance). E é aqui que surge um dos problemas mais inquietantes e menos claro da obra que agora nos ocupa. Reflectir sobre o ser da dança significa pressupor que esta existe como fenómeno estável para lá das suas realizações concretas e históricas. É como dar por garantido que existe algo essencial que prevalece e une todas as manifestações da dança teatral. Enquanto que a acção (performance) é uma ideia vaga que se refere a um fenómeno que pode estar presente em qualquer comportamento humano, a dança é só um

tipo de actividade humana que tem limites históricos e sociais muito definidos. Se uma ontologia da acção (performance), como Phelan sugere, pode levar-nos a uma postura política que propõe uma nova aproximação ao que significa de garantido na vida, uma ontologia da dança pode levar-nos aos questionamentos formalistas mais conservadores. Todavia, Lepecki consegue contornar o perigo formalista e levar a sua pergunta sobre o ser da dança a um brilhante fracasso. Esse fracasso vai-se estabelecendo pouco a pouco nas obras dos artistas que convida para a sua própria obra. O solipsismo masculino, a ralentização da dança, o desprendimento do corpo dançante, a acção de arrastamento e a melancolia pós-colonial perfilam uma dança esgotada e exausta em si mesma. É aqui que a grande presença de Phelan se mostra evidente e onde se revela o excitante projecto de Lepecki. O desaparecimento que define o ser da acção (performance) faz com que a dança, enquanto acção, entre no campo da memória ou, em termos psico-analíticos, no campo do inconsciente. Então, tal como refere Lepecki “se a única vida da acção (performance) ocorre no presente, a sua relação com o inconsciente é o garante a sua persistente (ainda que intemporal) existência no presente, já que o inconsciente revela apenas o tempo presente da memória. Esta é uma das razões pela qual é sempre necessário evocar a melancolia: recordar como abandonar-se por completo à memória é uma maneira muito eficaz de elidir a passagem do tempo. Desaparecer na memória é o primeiro passo para permanecer no presente” (p. 127). Assim, o inevitável desaparecimento de tudo o que é vivo seria a porta de acesso a um espaço onde a dança se pode entender como sucesso da memória. Por assim dizer, mais do que as definições formais, os estudos e as técnicas, Lepecki consegue articular um projecto onde a dança pode ser um fenómeno que excede as realizações estéticas concretas da disciplina. Uma vez que o tempo não é algo linear, aparecem possíveis níveis de conhecimento que até então tinham permanecido distantes ou excluídos do pensamento académico tradicional. E isto transforma de maneira radical as funções associadas aos Estudos de Dança: quando entendemos que é absurdo tentar reter o vivo e assumimos que o desaparecimento é inevitável, aparecerá a necessidade de repensar figuras como o arquivo, a documentação, as descrições da história, a crítica, etc. Nesse sentido o projecto que Lepecki formula vai muito mais além do que os artistas e as obras sobre os quais escreve. Ou melhor, a sua proposta é de tal forma permeável ao trabalho dos artistas que o discurso destes faz por ultrapassar os limites que normalmente encerram e cauterizam o artístico, fazendo com que surja a possibilidade do político ou, em definitivo, do que tem que ver com a própria vida. (Routledge, 2006, 19,35€)

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A C I T Á M A R D A C I T Í R C A O Ã Ç A N E C N E À E C A F ice Pavis n /Festival d’Avigno Raynaud de Lage

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A CRÍTICA DRAMÁTICA FACE À ENCENAÇÃO

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ENSAIO

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PERSPECTIVA

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Do ponto de vista da teoria teatral a questão poderia colocar-se nos seguintes termos: em que é que a crítica dramática, a da imprensa escrita e audiovisual, me serve para melhor apreciar (em todos os sentidos do termo) a encenação? Em vez de olhar de cima a crítica dramática jornalística, preferiria que a subtil teoria elevasse o olhar para ela. Aliás a crítica dramática dos média, quase instantânea, não estará ela mais próxima do evento teatral, ele também instantâneo, do que a teoria intemporal, pesada, estática, falsificadora por natureza das impressões viscerais e emocionais que o espectador recebe no momento? A minha hipótese teórica, em todo o caso, é a de que a encenação é a ferramenta mais útil para avaliar um espectáculo, não apenas para o analisar, mas também para o julgar em termos estéticos. A noção de encenação está todavia longe de ser universal e o termo, internacionalmente conhecido, tem um sentido específico consoante cada contexto cultural. Em França, a encenação começou por designar a passagem do texto dramático para o palco. Depois rapidamente passou a significar a obra cénica, o espectáculo, a representação, por oposição justamente ao texto ou à proposta escrita para a representação cénica. A esta concepção empírica (e corrente) da encenação, junta-se a utilizada aqui, mais precisa e técnica, teórica e semiológica, a de sistema de sentido, de escolha de encenação. Faz-se então uma diferenciação marcante entre a análise dos espectáculos, que se esforça por descrever de forma empírica e positivista o conjunto dos signos da representação e a análise da encenação que propõe uma teoria do seu funcionamento global. A crítica dramática pratica os dois tipos de análise, mas a que nos interessa sobretudo é aquela que nos informa sobre a encenação considerada como sistema mais ou menos coerente. Em poucas palavras, este tipo de crítica é, com efeito, capaz de descrever as opções da encenação, de lhe revelar o sistema, o Konzept (como dizem os alemães), a dramaturgia (como diziam os Brechtianos), o acting ou o staging style como se diz em inglês. O problema está em saber se todas as noções globais são ainda pertinentes para os espectáculos destes 10 últimos anos. À crítica dramática da imprensa quotidiana, era necessário juntar as antestreias dos semanários, os magazines da rádio e da televisão assim como os fóruns de espectadores na Internet.

CRISE DA ENCENAÇÃO, CRISE DA CRÍTICA O exemplo de Avignon ajuda a repensar tanto o papel e o método da crítica dramática como as novas práticas da encenação. Esta dupla perspectiva e esta dupla crise é contudo salutar já que se verifica uma vez mais a hipótese segundo a qual a crítica deve incessantemente adaptar-se às mudanças da prática teatral, o que, no sentido inverso, permite descobrir na encenação propriedades novas e impensáveis. Até aos anos 1980, os críticos estão conscientes do facto que a sua arte se desdobra entre uma informação para o grande público e um estudo para os profissionais, quer se trate de gente do meio quer dos próprios artistas. Com Thibautdet (1922), o modelo é ainda ternário: “a crítica dos curiosos, a crítica dos profissionais e a crítica dos artistas”1. A maior parte das vezes, o modelo é binário: assim Bernard Dort (1967) opõe “uma crítica de consumo” e “uma outra crítica (...) ao mesmo tempo crítica do facto teatral como facto estético e crítico das condições sociais e políticas da actividade teatral”. A crítica está então “igualmente fora e dentro”2.Mais tarde o mesmo Dort (1982) tentará uma dialéctica delicada entre dois tipos de crítica: a “crítica tradicional”, a “jornalística”, a do “espectador médio ideal” e a palavra “científica ou universitária” da “Theaterwissenschaft ou da teatrologia”. Esta síntese, esta “terceira pessoa”, “ao mesmo tempo fora e dentro”, este “espectador interessado (...) deve ter um saber teatral seja ele histórico ou semiológico”, um saber que ele “não aplica ao espectáculo”, mas “submete à prova da representação teatral”3. Georges Banu (1983) retomará este dualismo: o crítico tem, segundo ele, tanto de “amador esclarecido” quanto de “dramaturgo no sentido alemão do termo”, o qual “dispõe de uma teoria e de uma certeza (...) que se esforça por teimosamente aplicar”4. A continuidade desta tradição francesa existe provavelmente em muitos outros países, embora com outras formulações. No entanto, ela não é de todo universal e o crítico alemão Henning Rischbieter, durante muito tempo editor de Theater heute, propõe uma outra repartição de tarefas da crítica: esta responde, segundo ele, a três realidades : 1) ela é um ramo do jornalismo e da informação; 2) ela tem um impacto económico; 3) ela é uma produção literária já que exige um talento artístico de escrita. A ausência de reflexão sobre a dramaturgia ou a encenação espantará qualquer francês. Este perguntar-se-á se essa ausência é testemunho de uma certa forma de cinismo, de ecletismo ou se essa posição é >>

“Physiologie de la critique”, Conferências no Vieux-Colombier de 1922. Physiologie de la critique, Nouvelle Revue Critique, 1930, p. 23-24. Théâtre réel, Paris, Seuil, 1971, p. 47. 3 Le Monde, 1982. Texto reproduzido no livro de Chantal Meyer-Plantureux. Un siècle de critique dramatique, Complexe, 2003, p. 142. 4 Théâtre/Public, no. 50, 1983. Artigo retirado de Un siècle de critique dramatique, op. cit., p. 146. 1 2

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testemunho de uma grande abertura de espírito. Sejam quais forem as concepções da crítica dramática destes últimos trinta ou quarenta anos, o furacão de Avignon 2005, em parte, aliás, provocado por essa mesma crítica, teve tendência a tudo arrastar consigo na tormenta5. Nesse ano, a dificuldade era não só avaliar os espectáculos do festival como também medir as reacções profundas do público. O pavio inflama-se entre o crítico e o artista. Numa grave crise de confiança, cada qual suspeita do outro: o artista não passa de um charlatão, pensava um; o crítico não passa de um frustrado, opinava o outro. Nada de muito novo neste mal entendido? Seguramente que não. A actual crise de confiança advém, nomeadamente, do facto de o público de teatro já não se constituir em grupos homogéneos que se sintam representados pela crítica, em particular em função das clivagens políticas claras. Inversamente, a crítica já não se faz eco de um grupo determinado porque já só existem mini-grupos, sub-grupos de fãs ou de inimigos declarados e ruidosos. Já não se fala, em todo o caso em França desde Vilar, do teatro em geral nem da encenação como um pôr em relação concreta, estética e ideológica do teatro. Outro tipo de confusão que não sabemos muito bem se é ou não de se felicitar: a antiga distinção entre crítica jornalística e investigação teórica universitária tem tendência a esbater-se. A imprensa escrita já nem sempre tem o papel de resposta imediata ao acontecimento cénico, porque a velocidade dos outros médias ligados à Internet, como os fóruns ou os blogs, lhe passam a dianteira. Muitos dos críticos publicam as suas recensões uma semana, um mês, ou mesmo um ano após a representação. São muitas vezes universitários que seguem e sustêm tal grupo ou tal tendência, quase parecendo comparsas dos artistas. De resto, pode-se até compreendê-los porque a universidade, europeia ou americana, renuncia a propor modelos teóricos, ela toma-se pelo conservatório do know-how e do ready-made, do pós estruturalismo e da desconstrução. A sua imagem de cientificidade, de imparcialidade de rigor e mesmo

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de honestidade intelectual, sofreu muitos revezes. A boa notícia é, no entanto, que os críticos dia a dia ou de semana a semana e os teóricos ao longo do ano estão no mesmo barco, e que já não se os pode pôr uns contra os outros. Pela primeira vez, Avignon coloca à crítica a questão da confiança: como ajudar os futuros ou potenciais espectadores a decifrar, ou simplesmente a aceitar os espectáculos? Questão que se dirige tanto aos especialistas como ao comum dos mortais! O bom senso geral dos críticos de antanho já não é suficiente. Eles apenas podem responder à pergunta: “o que é que isto quer dizer?” com uma pirueta: “o que é que vocês vêem nele?” Eles já não são capazes de fornecer um modo de emprego para a encenação. A perplexidade passageira que segundo Banu garantia a “regeneração de um crítico”6 tornou-se uma regra para todos. Desde então não é de espantar que a análise dramatúrgica e a pesquisa das escolhas da encenação tenham sido abandonadas. A mistura de géneros (cómico, trágico, grotesco, absurdo, etc.) e a multiplicidade de registos baralham as pistas. O crítico deve emitir uma hipótese sobre o funcionamento da encenação, o seu sistema, o seu fio condutor., a fim de ajudar o espectador perplexo, mas essa hipótese corre o risco também de o enganar ou de o perder, se ela revela ser forçada ou banal. Não há dúvida: uma mudança de paradigma para a prática da encenação tornou as grelhas de análise inoperantes, pelo menos temporariamente7. A concepção estrutural, funcionalista, semiológica da encenação, que concebia a representação como um texto espectacular e um sistema semiótico, já não existe. Esta mudança não é completamente nova, mesmo se a crítica fran-cesa ainda a não a assimilou. O teatro parece descobrir que o essencial não reside no resultado, na representação acabada, mas no processo, o efeito produzido.

Um debate sobre a programação teve lugar na imprensa: algumas críticas achando que os espectáculos eram muitas vezes violentos, incompreensíveis, herméticos, longe do espírito do fundador Jean Vilar. Ver os livros: Régis Debray. Sur le pont d’Avignon, Paris, Flammarion, 2005. Georges Banu e Bruno Tackels. Le cas Avignon 2005, L’Entretemps, 2005. Carole Talon-Hugon. Le conflit des héritages, Du Théâtre n.16, Junho 2006. 6 Ibid., p.149. 7 Já não estamos entre a alternativa do crítico dividido entre o desejo de falar da encenação (como sistema) e o de mencionar a performance dos actores. Assim, Jean-Pierre Léonardini: “Estou absolutamente persuadido que o facto de não falar dos actores no meu próprio trabalho é uma falha. Eu penso que no ponto em que estamos, o conceito de encenação deve ser defendido assim como, nos nossos artigos, a perspectiva crítica. Portanto ao falar disso e não do autor, eu amputo o meu trabalho de uma construção secundária”. “La critique en question”, Théâtre/ Public, no. 18, 1977, p. 19. 5

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A encenação tornou-se uma performance, no sentido inglês da palavra: ela participa numa acção, ela está em devir permanente. É preciso de algum modo encarar o espectáculo pelas suas extremidades: as suas origens e os seus prolongamentos, compreender donde vem e para onde vai a acção performativa. Neste espírito, Vincent Baudriller, o co-director do festival d’Avignon, sugere aos críticos e aos espectadores de se perguntar apenas aonde o artista “quer chegar”: “o essencial é que o espectador compreenda o sentido do processo do criador”8. Eis-nos então a ser convidados a interrogar as intenções do artista: uma questão que pensávamos ultrapassada e que volta em força neste tipo de crítica anedótica. Estamos nós então por conseguinte face a um objecto estático estável, perceptível, descritível? O objecto da análise, a encenação, tem ainda algo de tangível, ou terse-á tornado, como estas obras plásticas descritas por Yves Michaud, uma “arte em estado gasoso” cujas obras são solúveis no ar, reduzidas à simples experiência es-

tética do espectador? Esta experiência estética é a única coisa que resta quando se negligencia o objecto cénico em proveito do seu modo de recepção. O que é válido para as obras das artes plásticas é-o também para as encenações, objectos ainda mais frágeis e que desaparecem com o passar do tempo: estas obras “já não visam representar nem significar. Elas já não remetem para além delas mesmo: já não simbolizam. Já nem sequer contam como objectos sacralizados mas visam produzir directamente experiências intensas e particulares”9. Estamos nesta situação paradoxal face ou antes no interior da obra cénica: esta é material, sensível e física. Mas ao mesmo tempo, o que conta já não é esta materialidade mas a experiência na qual mergulhamos. Assim a obra desmaterializa-se, torna-se virtual, impede-nos de lhe distinguir as propriedades e os significados. O crítico dos anos 80 tinha pelo menos a certeza de ter um corpo que partilhava com a sua geração10. Hoje em dia, ele tem um pouco a sensação de perder esse corpo empírico, à medida que o objecto espectacular se des>>

La Croix, 9-10 Julho 2005. Citado por Carole Talon-Hugon. Avignon 2005. Le conflit des héritages. Du Théâtre, hors-série, no. 16, 2006. Yves Michaud. L’art à l’état gazeux. Essai sur le triomphe de l’esthétique. Paris, Stock, 2003, p.100. 10 Georges Banu. « Le corps du critique n’est pas seulement le sien, mais il est aussi celui de sa génération à laquelle il appartient », Un siècle de critique dramatique, op.cit.,p.150. 8 9

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materializa e que o espectador, encontrando um corpo imaginário, se concentra na experiência estética. Dito de outra forma: a crítica perde o seu corpo em proveito do espectador (e é difícil dizer quem é que ganha com a troca!). Esta concentração é dificilmente travada. Contudo, a crítica preocupada com a descrição da representação no seu conjunto retorna incessantemente ao sistema encenado. O recente estudo de uma meia centena de encenadores por Mitter e Shevstova conclui que há um afastamento da palavra em proveito de um domínio do corpo em movimento11. Esta acção corporal em movimento deve tornar-se o objecto da crítica da encenação. Em vez de comparar o texto e a sua concretização cénica (como o fez durante muito tempo a crítica), convém revelar esta lógica do corpo em movimento bem como o espaço-tempo em que se inscreve. Se o crítico, e a seguir o espectador, se preocupam com o conjunto do espectáculo, e não com detalhes isolados, eles evitam-nos os efeitos de zapping: não gosto, passo a outra coisa. Resta contudo a extrema dificuldade de ler e decifrar o espectáculo na sua lógica interna e na sua referência ao nosso mundo. Dificuldade mas não impossibilidade.

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REAVALIAÇÃO DA CRÍTICA DRAMÁTICA PARA UM TEATRO REAVALIADO A crise da representação, que afecta tanto a encenação quanto a crítica dramática, conduz a uma reavaliação de ambas. Este é um desafio à própria noção de encenação, a qual talvez já não seja capaz de seguir a evolução das formas teatrais. Será a encenação uma relíquia à qual nós nos agarramos, enquanto que a performance já não reclama um conjunto coerente, fundado numa ideia directora e uma análise dramatúrgica? Nos espectáculos do festival “in” de Avignon 2005, tinha-se tornado possível reconstituir um discurso global da encenação, uma fábula ou uma concepção de conjunto12. No interior de um mesmo espectáculo, não se distinguia nenhum estilo homogéneo de representação, de direcção de actores ou de cenografia. Estes espectáculos não eram nem clássicos, porque sem harmonia ou coerência reinantes, ain-

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da menos românticos: nenhum génio ao jeito de Wagner ou de Chéreau organizava a matéria; nem hegelianos: nenhuma síntese vinha conciliar e ultrapassar os diferentes estilos. Do ponto de vista do crítico, também não existia o “sistema da arte” da “chave mágica graças à qual (o crítico) entrará na obra”13. O que, para Jean Dutour, teria sido uma boa coisa, um testemunho de simplicidade, parece-nos agora uma dupla demissão: a encenação – parece-nos hoje – ela está totalmente desorganizada e desencoraja qualquer método coerente de análise. Mas este ponto de vista muito pessoal tem pouco em conta a prática actual do palco, uma prática que vai justamente contra a encenação “clássica” e que nos conduz, ou nos leva, à performance, no sentido inglês e não francês da palavra. Já vimos que a performance dinamita as fronteiras fixas da encenação. Mas, do ponto de vista inglês, isso é uma coisa positiva, é uma visão que renova a nossa concepção demasiado estreita da encenação, pelo menos da encenação clássica: “O termo encenação esclarece como os significados da representação são produzidos [postos em cena] não apenas no produto da representação – o espectáculo – mas também através do processo de produção e da recepção do público”14. Isto implica que a crítica dramática saiba pensar a encenação sob dois aspectos: 1) imaginando como o trabalho preparatório se desenrolou, não apenas a leitura mas também e sobretudo a direcção de actores; 2) integrando a descrição das reacções do público, para dar aos leitores ou aos futuros espectadores uma ideia da maneira como poderiam eles também reagir. NOVAS TAREFAS DA CRÍTICA DRAMÁTICA Para além deste alargamento da perspectiva que a crítica dramática pratica, aliás desde sempre, seria preciso ousar atribuir a esta crítica novas tarefas, precisamente nos domínios que a political correctness cuidadosamente evita. Quais poderiam ser essas tarefas? Enumeremos algumas: 1. Assumir e explicitar os julgamentos de valor que a crítica e a teoria não podem evitar; admitir a empreitada de legitimação que supõe qualquer discurso, mesmo

Shomit Mitter e Maria Shevtsova. Fifty key Theatre Directors, London, Routledge, 2005, p.XVIII. Ver Patrice Pavis. « Théâtre et calamité », Théâtre/Public, no.180, 2006. 13 Jean Dutour. LeParadoxe du critique, Paris, Flammarion, 1970, p.20. 14 Paul Allain. The Routledge Companion to Theatre and Performance , London, p. 171. (“O termo ‘mise en scene’ enfatiza o modo como os significados da representação são produção não apenas no produto – o espectáculo – mas também durante o processo de produção e recepção pelo público”) 11 12

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negativo, sobre um artista, um movimento, uma forma de trabalhar; continuar contudo consciente da relatividade desse julgamento dando ao leitor a possibilidade de o contestar ou de o desconstruir. 2. Tomar e fazer tomar consciência da identidade cultural de alguém que emite um julgamento, dando-lhe o direito de falar do que não lhe diz respeito, de uma outra cultura, de um outro meio, de uma outra identidade, de uma outra religião. Deslocalizar as críticas. Fazer-lhe analisar espectáculos que ainda lhe são estranhos. Não se enredar em legitimidade, autenticidade, de fundamentalismo, mesmo cultural. 3. Reafirmar a importância da encenação e do encenador como mediador entre a obra e o público. Como há 20 anos atrás quando Vitez entrou no Chaillot, “defenderemos a função, a existência mesma da encenação, hoje de novo contestada no seu princípio. Não nos deixaremos enclausurar na inefável relação do actor com o texto e com o público”15. A lição de Vitez não foi esquecida, ela vale tanto para a crítica quanto para a encenação. 15 16

A nós agora reconhecer as novas funções e fronteiras da encenação: “extensão do domínio da luta”16. O crítico é também uma espécie em vias de extinção e contudo, como o encenador, ele é indispensável a mediação entre o palco e a sala. Crítico e encenador são velhos cúmplices, compadres não confessos que são hoje obrigados a entender-se , se não quiserem desaparecer. A encenação na sua nova extensão permanece sendo o terreno e o desafio da produção teatral e da crítica dramática. É a ela que nós deveremos dedicar o mais claro da nossa reflexão. Como diria Estragão em À espera de Godot: “Vamos lá!”

Tradução do francês de Margarida Antunes da Silva/Instituto Franco-Português.

Antoine Vitez. «L’art du théâtre», L’Art du théâtre, n.1, 1985, p.9. Ver o nosso estudo em Théâtre/Public, «Extension du domaine de la lutte. La mise en scène à Avignon 2006.», 2006.

O presente ensaio foi apresentado no 50º Congresso Extraordinário da Associação Internacional de Críticos de Teatro, Seul, Coreia do Sul, Outubro de 2006. Fotografias da peça Je Suis Sang, de Jan Fabre, apresentada no Festival d’Avignon 2005, da autoria de Christophe Raynaud de Lage/Festival d’Avignon. Leia na OBSCENA#5 a recensão ao livro Le Cas Avignon, no qual um conjunto de autores reflecte sobre essa edição do Festival.

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