Obscena #3 - Abril 2007

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EDITORIAL

A CRISE DO CORPO NÚMERO 3 ABRIL 2007

No famoso ensaio On Photography, a norte-americana Susan Sontag escrevia que “a fotografia fornece evidência. Algo que ouvimos, mas da qual duvidamos, parece provada quando nos mostram uma fotografia”. Recentemente vieram a lume umas polémicas fotografias de promoção da versão londrina do espectáculo Equus, de Peter Schaffer, a história de um rapaz que se revela perturbado na sua fixação sexual por cavalos. Nada disto teria grande relevância não fosse dar-se o caso de o rapaz que aparece nu ser outro senão o jovem efebo Harry Potter, herói que resiste a sê-lo num tempo difícil para os contos de fadas e mágicas. Depressa se disse que a fotografia era montagem, contrariando assim o postulado de Susan Sontag. Mas para o caso tanto dá ser ou não falsa. Jamais se aceitará com o real uma fotografia que desvela o que antes era apenas imaginado: um herói assexuado na mais complexa etapa da sua vida, a puberdade. É fácil imaginar que Daniel Radcliffe, de 17 anos, tenha uma vida sexual, e um pénis, mesmo que artificial. Mas já é mais difícil conceber que Harry Potter, que impresso na película permanecerá sem idade, tenha uma vida sexual, porque isso seria dar-lhe uma caução de real com a qual lidamos mal. Claro que a polémica estalou em Inglaterra, país onde o pudor é

ainda palavra de ordem. Os efeitos do pénis de Potter são bem menos profundos (ou alongados) se

acaba por cegar seis cavalos. O rapaz é um freak, um potencial monstro, mas estas imagens huma-

© DR

pensados globalmente. Este fait-divers não é assim tão estranho quanto atravessamos um período de crise do corpo. Como o conceber, pensar, contextualizar e lidar com ele, entidade mutante e permeável? Potter, ou Radcliffe, na sua incontrolada pulsão sexual,

nizam-no. Trata-se aqui de dar legitimação real a uma tripla representação: Potter passado a real; Radcliffe tornado homem; Allan, a personagem presa no corpo de Radcliffe, aliás Potter. Estamos perante aquilo que Sontag definiu como transferências agressivas,

porque idealizadas pelo olhar fotográfico. Ele não é um Frankenstein perverso, nem mostra qualquer malformação. O mal que dele pode vir é-lhe interior, fruto aliás do contexto de nascimento da peça, escrita em 1973, na ressaca da contracultura que deslocara a ideia de freak do monstro físico para o monstro emocional. A impassibilidade da imagem denuncia-o: “o freak contemporâneo atrai e seduz, não como o fazia (e com menos veemência) no período moderno quando representava a sedução do outro, da diferença radical encarnada. Agora a sua sedução é indicar o que nós somos, todos nós” (Ieda Tucherman, Breve História do Corpo e de Seus Monstros). Ou seja, o pénis de Potter somos nós. Somos atraídos para o centro da imagem, para aquele pénis que baralha as regras da realidade. É por isso que o argumento da montagem serve bem ao perpetuar a ilusão de que, afinal, os heróis nunca crescem, ou morrem ou ficam erectos. Ou seja, encerra o epifenómeno no domínio da ficção e da representação. Uma dimensão que permite a fantasia mas nunca a realidade já que o fenómeno dos livros de J.K. Rowling ocorre num tempo anacrónico, no qual os pais dos potenciais leitores já cresceram sem margem para manter ilusões acerca dos super-heróis,

mas são responsáveis por uma educação dos filhos que deve saber guardar um espaço de inocência. Ver o pénis de Harry Potter confronta-os com a sua própria descoberta da sexualidade, projectada que foi nas audácias dos super-heróis, com a sexualidade latente dos filhos – a saga acompanha o crescimento do rapaz a par do crescimento dos leitores –, e com a representação da própria sexualidade, aqui efabulada pela composição quase Adriana da fotografia. Fosse outro qualquer rapaz e a peça passaria sem nota de registo. O facto de ele ser Potter alarga a especulação dos efeitos destas fotografias no imaginário juvenil (e mesmo adulto – curiosa a imediata rejeição da comunidade gay às fotografias, como se houvesse conhecimento profundo do verdadeiro Potter, ou a exposição fosse de tal monta que qualquer fantasia seria bem mais verdadeira). Mas a verdade é que, falsa ou verdadeira, o pénis de Potter guarda em si mesmo a chave para a falta de sentido de pertença a um território. Caída a máscara do não-herói, sobra o humano. Humanamente perturbador.

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Editor Tiago Bartolomeu Costa tiago.bartolomeu@revistaobscena.com Editores Adjuntos Miguel-Pedro Quadrio Mónica Guerreiro Colaboradores Bandeira Bruno Horta José Luís Neves Pedro Manuel Rui Monteiro Participam neste número António Lagarto, Bang-Ock Kim, Elisabete França,Carlos Pimenta, Cristina Peres, Don Rubin, Yun-Cheol Kim, Eugénia Vasques, Francesca Rayner, Isabel Capeloa Gil,João Carneiro, Luís Rodrigues, Susana Nascimento Duarte Agradecimentos Eduardo Pitta, João Gonçalves, Henrique Silveira, Pietro Romani, Companhia Nacional de Bailado

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A OBSCENA é uma revista de periodicidade mensal com distribuição electrónica gratuita através de assinatura. A OBSCENA aceita propostas de colaboração dos leitores. Os materiais publicados são da responsabilidade dos respectivos autores, estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial.

As informações devem ser enviadas até dia 8 de cada mês.

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ÍNDICE

CARTA BRANCA (4)

OPINIÃO

ARRITMIA (9)

António Lagarto, cenógrafo e artista plástico, inspirou-se na OBSCENA e propõe uma explosão de cores para a revista

Coxia | Bandeira (6)

João Mota, Bob Wilson e Eric Bentley são os nomes em destaque numa secção que mostra o teatro que se faz no Minho, a mensagem do Dia Mundial da Dança, as experiências transdisciplinares trazidas à ZDB e o mundo visto pelo cinema no IndieLisboa. Analisamos a programação pensada para os 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian no programa O Estado do Mundo e tempo ainda tempo para uma viagem aos bastidores da 28ª Moda Lisboa

Os efeitos sonoros de um motim podem provocar um motim (7) verdadeiro | Mónica Guerreiro Visto dos Bastidores (50) Miguel-Pedro Quadrio AgitPop (66) Rui Monteio

APOSTA (46)

DIAS DO JUÍZO (53)

PERSPECTIVAS (67)

A integral dos filmes de Guy Debord, Com e Contra o Cinema, que se mostra em Abril na Culturgest, é a aposta deste mês da OBSCENA. O percurso do filósofo num texto de Susana Nascimento Duarte

Dança e teatro de diversos registos em vários palcos nacionais, mas também uma carta de Paris, que cruza a ópera com Judy Garland. Nos livros, fixamonos na Vanitas de Paula Rego, nas memórias de Ricardo Pais e numa tese sobre encenação, recentemente editada em França

No mês em que a Companhia Nacional de Bailado inaugura o programa de celebrações do seu 30º aniversário, recordamos o seu percurso, mostramos fotografias do arquivo e discutimos o futuro, a propósito da fusão com o Teatro Nacional São Carlos. Depoimentos de Ana Pereira Caldas, Mark Deputter, Olga Roriz, Jorge Salavisa, Luísa Taveira e da Comissão de Trabalhadores da CNB. Opiniões de João Gonçalves, Eduardo Pitta e Henrique Silveira

ENSAIO (114) Em O corpo do crítico e o teatro do gyee, a crítica sul-coreana Bang-Ock Kim fala-nos de conceito particular: a energia espiritual do gyee e a sua relação com o papel dos críticos

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OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO / Mónica Guerreiro

O NOSSO TEATRO, HOJE

Há poucas semanas, em conversa com alguém mais sagaz que eu, percebi a razão de ser do seu recente afastamento dos teatros: os profissionais resistem em levar a palco espectáculos que articulam a dramaturgia do nosso tempo. “Olho para as carteleiras e não há uma única peça com menos de 20 anos!”, lamentava-se, dando conta da diversidade e actualidade que os espectadores noutras capitais mundiais têm à disposição, em paralelo com a encenação dos clássicos. Entre nós, exceptuando os Artistas Unidos – e o Maria Matos que, num ano, pôs em cena Laramie (2000), de Moisés Kaufman, The Pillowman (2003), de Martin McDonagh e Doubt (2004), de John Patrick Shanley –, é evidente a tendência para insistir nas obras fundadoras ou recriadoras: Medeia, Hamlet, Macbeth e tanto mais Shakespeare, Berenice, Fedra, Misantropo, D. Juan, às vezes em duplicado (às vezes em triplicado!), sucedem-se em revisitações e reinvenções de qualidade desigual. E onde pára o teatro dos nossos dias, o teatro, digamos, depois de Beckett? Estamos reduzidos ao “novo” agressivo teatro britânico (que tem dez anos...), aos canadianos e irlandeses que o Novo Grupo e a Assédio vêm trazendo, à atenção que Nuno Cardoso ou o Teatro Plástico vão concedendo a dramaturgos inéditos entre nós? As razões económicas não serão despiciendas nestas opções: as boas traduções pagam-se caras e há direitos a assegurar. Que os clássicos saem mais em conta todos sabemos. Mas começa a tornar-se insuportável a distância entre o que acontece no nosso

país e em outros centros urbanos, cujos palcos reflectem as alterações sociais e políticas, interpelam a actualidade que as pessoas experimentam. Há muitos exemplos, mas destaco o percurso da peça de Alan Bennett The History Boys (2004): depois do National Theater londrino, ganhou todos os prémios e mais alguns (incluindo seis Tony) e, em 2006, chegou à Broadway e à indústria cinematográfica (www.foxsearchlight.com/site/thehistoryboys/). É urgente ver em Portugal trabalhos recentes de Tony Kushner, Michael Murphy, Sam Shepard, Doug Wright, Richard Greenberg, Nilo Cruz, Suzan-Lori Parks e tantos outros. Para perceber a legitimidade destas preocupações, dediquei uma semana de Março a três exemplos de dramaturgia recente, de origens distintas, em cena em Lisboa. O Coronel Pássaro (1996), de Hristo Boytchev, As Vampiras Lésbicas de Sodoma (1984), de Charles Busch, e A Filha Rebelde (2007), “a partir de José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz, versão de Margarida Fonseca Santos, dramaturgia de Helena Pimenta” (ufa!). Produções, respectivamente, do Teatro da Rainha, Companhia Teatral do Chiado e Teatro Nacional D. Maria II, os espectáculos desiludem porque, ao interesse suscitado pela divulgação mediática das propostas, sucede a ineficácia das linguagens cénicas empregues, que hipoteca contundentemente a qualidade do resultado. E concluo, pela amostra junta, que a nova dramaturgia coloca redobrados desafios para os criadores. Por razões diferenciadas. As Vampiras... de Juvenal Garcês (saberemos por estes dias se concretiza a improvável nomeação para os Globos de Ouro) cumpre o 7

habitual registo: os autores servem de pretexto para a companhia “trucidar” as peças (e nem sempre o fazem mal) e montar os seus exercícios de humor brejeiro e cuidada produção vamp (caracterização e figurinos irrepreensíveis), que hesitam entre o boulevard canastrão e provocatório e a farsa “intertextual”, que tanto pode ser rebuscada como rasteira (a recorrente ridicularização dos colegas: na noite em que assisti, Luís Castro). O Coronel Pássaro de Fernando Mora Ramos denota um equívoco de apropriação – arriscaria mesmo – de entendimento do autor e humorista búlgaro que conhece, Europa fora, assinalável êxito popular. As personagens não convocam as modulações presentes no texto, reduzindo-se a “bonecos” cuja transformação não passa pelo corpo (a fisicalidade é atabalhoada), na marcha de uma banda sonora “militarista” sem subtileza, e num registo interpretativo desprovido da agudeza e do efeito estilístico do burlesco. Quanto ao espectáculo de Helena Pimenta, há a denunciar a faustosa alocação de recursos (humanos e técnicos) para uma produção absolutamente tíbia: construção dramática incompetente e descompassada, diálogos redundantes que são a fala de figuras sem tensões interiores nem complexidade – exactamente aquilo que a peça deveria evidenciar – e uma direcção de actores complacente totalizam uma experiência inócua, sem conflito político, sem entusiasmo, sem fulgor. Annie Silva Pais bem poderia ter sido uma menina de coro.

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motim@revistaobscena.com


ÍNDICE ARRITMIA

O ESTADO DO MUNDO (10)

MENSAGEM DO DIA MUNDIAL DA DANÇA,29 ABRIL (20)

ERIC BENTLEY: PRÉMIO THALIA 2006 (22)

Por Sasha Waltz, coreógrafa

Entrevista e perfil do crítico norte-americano Textos de Yun-Cheol Kim e Don Rubin

EUGÉNIA VASQUES HOMENAGEIA JOÃO MOTA (28)

INDIELISBOA: CINEMA ALTERNATIVO (30)

POLAROIDS DE ROBERT WILSON EM LISBOA (32)

PROJECTO EGDE EM RESIDÊNCIA ARTÍSTICA NO NEGÓCIO (33)

COMÉDIAS DO MINHO: DESCENTRALIZAÇÃO EM CURSO (34)

OLHARES SOBRE A MODA LISBOA (36)

Entrevistas com António Pinto Ribeiro, programador-geral desta celebração incluída nos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian, e Miguel Honrado, coordenador do Jardim do Mundo. Comentário de Isabel CapeloaGil

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Nos bastidores da 28ª edição Texto de Bruno Horta e fotografias de José Luís Neves


ARRITMIA

APRESENTADA DIA 27 DE FEVEREIRO, A PROGRAMAÇÃO GENERICAMENTE INTITULADA O ESTADO DO MUNDO, DA RESPONSABILIDADE DE ANTÓNIO PINTO RIBEIRO, RECUPEROU PARA A FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN (FCG) UM PAPEL INTERVENTIVO E MEDIÁTICO NA PROGRAMAÇÃO ARTÍSTICA. SEM QUERER SER ABRANGENTE NEM CUMPRIR QUOTAS, O PRESIDENTE DA FCG, RUI VILAR, ASSUMIU QUE SE TRATA DE UM PROGRAMA PARA “SAIR DA ESPUMA DOS DIAS”, PROPONDO “UM OLHAR DIFERENTE SOBRE O MUNDO”. REFERIU AINDA QUE ESSA DINÂMICA DE REFLEXÃO SÓ ACONTECE SE DEIXARMOS O OLHAR EUROPEU E ATLÂNTICO, QUE MUITO TEM CARACTERIZADO O MODO DE

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QUESTIONAR PORTUGAL E A SUA RELAÇÃO COM O MUNDO. VILAR ACREDITA QUE É “O DEVER” DA FCG “CONTRIBUIR PARA QUE SE CHEGUE À PERFEIÇÃO”, BEM COMO “À FORMAÇÃO DE UMA MASSA CRÍTICA QUE TORNE MAIS INTERESSANTES” LISBOA E O PAÍS. A OBSCENA TRAÇA AS LINHAS GERAIS DA PROGRAMAÇÃO QUE SE INICIA A 18 DE MAIO COM ESPECTÁCULOS, CONFERÊNCIAS, CINEMA E RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS, NUMA CONVERSA COM ANTÓNIO PINTO RIBEIRO. FALAMOS AINDA COM MIGUEL HONRADO, COORDENADOR PARA O PROGRAMA JARDIM DO MUNDO E TRAÇAMOS UM MAPA DE SUGESTÕES PARA QUE NÃO SE PERCA NESTE ESTADO DO MUNDO.

Luminous People © Apichatpong Weerasethakul

O ESTADO DO MUNDO


ARRITMIA O ESTADO DO MUNDO

PALAVRAS DE ORDEM: NEGOCIAÇÃO CULTURAL

Nos 50 anos da FCG, a apresentação de uma programação assinada corresponde a uma solução para pensar o aniversário ou foi uma imposição do programador? O presidente da FCG conhece o meu trabalho, estivemos juntos na Europália 91 e na Culturgest e não me parece sequer questionável que não houvesse uma marca de autoria dentro daquilo que são os limites e as possibilidades da FCG. O que tentei e tento fazer com este programa, e parece-me que essa é que é a grande novidade, foi ser transversal. Isso tem sido possível, nuns casos melhor noutros nem tanto, com colaborações de outros serviços da FCG, cuja dimensão, apesar dos vários recursos, é complicada. São 50 anos de vícios e virtudes, de qualidades e defeitos. Mas é naturalmente uma experiência nova para a FCG, para os serviços implicados e mesmo para mim. Acho que do ponto de vista da administração é de alguma ousadia fazer este projecto. É um programa afirmativo onde tento mostrar que é possível ter-se um programa crítico, eventualmente muito problemático, sem necessariamente se ser deprimente. A dúvida, a problematização e o cepticismo podem ir a par da festividade e da afirmatividade. Não acho nada que uma pessoa tenha que ter uma atitude radicalmente céptica em permanência e acho que o programa dá sinais disso. Tem sido recorrente encontrarem-se filosofias de programação que forçam os criadores a seguir as linhas dos programadores. Esta ideia pode entrar em conflito com a transversalidade, mas também com a vossa vontade em saírem dos tradicionais eixos de observação, nomeadamente o atlantista? A questão é muito pertinente e põe em confronto aquilo que são as expectativas do projecto, a relação que o programador tem com o mundo, a arte e a cultura de forma geral. Mas ainda as expectativas dele próprio face aos criadores e às instituições. Numa situação destas também é verdade que os contextos delimitam quer as expectativas quer a margem de actividades. À parti12

da, esta liberdade de acção é condicionada, mas isso é fascinante. Uma liberdade condicionada que também desafia a criatividade. Isso é aquilo que apelidaria de negociação cultural. Trabalhando muito em áreas ditas da interculturalidade e do pós-colonialismo, não é possível importarmos ou propormos obras a artistas sem negociação cultural porque, no caso da revisão das histórias de arte, da revisão da criação artística e da sua circulação e internacionalização, precisamos saber o que é que o outro lado tem a propor de radicalmente diferente que nós entendamos. Porque senão estaremos no domínio do exótico sem qualquer interesse. O aspecto de que fala, o mais interessante, é como é que se pode dialogar primeiro com os artistas para que respondamos àquilo que são os projectos desses artistas, mas também da organização, do programador e deste contexto. Mas também é verdade que, sendo público o anúncio deste programa há um ano e meio, não esperava ter recebido apenas duas propostas de artistas portugueses, nenhuma delas particularmente interessante. Esperava mais. Mas isso tem mais a ver com a criação em Portugal, o estado de alguma inércia e de dificuldade de alguns artistas, do que da nossa própria abertura.

Winch Only/ Christoph Marthaler © DR

– ANTÓNIO PINTO RIBEIRO

Se é pertinente encontrar-se na programação o cruzamento de olhares de programadores de outros pontos menos óbvios, como o do japonês Jacob Wong, programador do ciclo Todo o Mundo é Um Filme, e sendo consciente de que não se procurou a abrangência, não consigo ainda assim ler e perceber para onde se caminha. Não sei se essa abertura de horizontes é uma vantagem ou uma impossibilidade. Acho que é as duas coisas. Vantagem porque ninguém pode ter a pretensão ou arrogância de fazer uma síntese sobre o mundo, ou sobre as soluções para o mundo, ainda que se possam reivindicar de pós-coloniais e interculturais. Nesse sentido o que se pretende com este programa é um horizonte de problemas, e algumas 13


ARRITMIA O ESTADO DO MUNDO

soluções, mesmo que antagónicas, aspecto que tem a ver com o mundo contemporâneo. A limitação também é essa na medida em que haverá situações contraditórias. Nos espectáculos, por exemplo, as pistas que os artistas escolhem são muito diversas. Alguns estão preocupados em saber como é que um artista pode responder às questões do cânone da arte, da crise da arte ou da morte da arte ou de todos os clichés a que estamos habituados. Enquanto que para outros essa é uma questão completamente indiferente e trabalham sobre a identidade sexual. Aparentemente nada disto tem a ver mas somos nós, espectadores, que podemos fazer sínteses pontuais. De facto não há uma mensagem, mas uma enorme quantidade de problemas e enunciados que podem ter resposta mais imediata e outros não. É um nível de exigência grande para o espectador, mas também acho que os níveis de abordagem são múltiplos, pretendendo encontrar outro tipo de comunicação e fruição. A minha ideia é que isto se prolongue para lá desta programação. Parece-me haver a preocupação em se contrariar uma ideia de periferia, comummente aceite em relação a Portugal. A deslocação do olhar para outros contextos implica também uma deslocação do país? Não só contrariar. Eu acho que esse lugar comum acaba por ser muito improdutivo teórica e criticamente. As periferias podem ter um papel fundamental hoje em dia no internacionalismo artístico. Podem. Mas se houver um contexto político e social que o permita. É diferente ser periférico em Portugal e ser periférico na Europa de leste. É. Mas há vantagens num caso e noutro, e há tradições e mais valias culturais adquiridas num caso e noutros não. Nós temos, em relação a países europeus que recentemente aderiram à UE, um passado de integração que nos permite maior circulação e maior acesso à informação, do que certos países onde ainda se tentam recuperar 50 anos à pressa. Somos periféricos em muitas coisas, mas até isso é contraditório. Vamos continuar a seguir os outros ou dar um salto? Referiu na conferência de imprensa que se procura formar uma massa crítica. Quer desenvolver? Não advogo nada a ideia de que isto é uma coisa para minorias. Ao contrário de alguns colegas meus acho que é desejo de um programador, e de uma organização que faz uma programação deste género, ter o máximo de pessoas possível, sabendo no entanto que é um programa de enorme exigência. Mas também sabendo que há hoje entre nós, como havia há 15 anos quando criei a Culturgest, bolsas de cosmopolitismo e de pessoas curiosas. Há uma geração que se interessa 14

por estas questões e estes problemas, que têm um tipo de informação que circula entre si, para o qual as massas não têm disponibilidade. E por isso considero que estes diversos sectores podem responder ao programa que propomos. Nos dois cursos de pós-graduação e mestrado associados a este programa, a recepção tem sido absolutamente entusiasta e tem suscitado imensas perguntas, dúvidas, questões. Que se sustentam em quê? O que é que essa potencial massa crítica está à espera? Esta à espera de encontrar respostas e enunciados para este contexto novo em Portugal que tem que ver com fenómenos de imigração e o pós-colonial, questão central na Europa. Mas ainda com o tipo de relação da criação artística com as comunidades onde se instala, que está naturalmente para lá do mero entretenimento mas também não é uma coisa canónica. Também é verdade, e eu acho que isso é fruto do momento que atravessa o nosso país, que o programa suscita uma enorme curiosidade pelo carácter, passe a imodéstia, de alguma inovação e de algum internacionalismo artístico que não tem sido visto muito por aqui. No caso do pós-colonialismo tenho algumas dúvidas em perceber se sendo um tema europeu, é também um tema português, tanto ao nível da criação como ao nível da programação. De uma forma geral não é, mas é uma questão central. O programa não está a impor mas a propor outras formas de pensar. Há em Portugal talentos, tanto de criadores como programadores, talentos, capacidades, temos situações que são inovadoras como noutras cidades europeias e vamos aproveitar isso em vez de estarmos sistematicamente atrás de. Aquilo que é consensual, outras programações o podem fazer, e este programa não pode abarcar tudo, não pode resolver tudo nem pode trazer todos os artistas. Nós, eu, você, mais meia dúzia de pessoas que tem o privilégio de ter acesso à informação, temos a obrigação de as propor em vez de irmos atrás das outras pessoas. O carácter de inovação procura recuperar algum público ressentido com o fim de determinados serviços, como o ACARTE, o Ballet Gulbenkian, os Encontros de Música…? Eu pressinto, pelo que tenho observado neste último ano, que a própria Fundação deseja uma mudança. Como é que ela vai acontecer, que tipo de mudança, isso não faço a mínima ideia, mas a abertura para este programa é sinal de que alguma coisa vai acontecer. Veremos depois o quê. Será que a Fundação tem capacidade de responder à própria abertura que propõe?

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entrevista de Tiago Bartolomeu Costa

A OBSCENA ORIENTA-O NESTE ESTADO DO MUNDO

Lygia chamando Conferência de Suely Rolnik, 20 Maio, 18h30 O trabalho da artista plástica Lygia Clark visto e analisado na perspectiva da memória e preservação das obras.

Plasticization Coreografia de Nelisiwe Xaba (África do Sul), 18 e 19 Junho, 21h30 Um comentário cínico sobre a hipocrisia da igreja em relação ao uso do preservativo.

Ces rencontres avec eux Filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huilet (Itália/França), 23 Maio, 21h30 O último filme do casal baseado na obra do filósofo César Pavese.

Return to Sender Coreografia de Helena Waldmann (Alemanha/Irão), 21 a 23 Junho, 21h30 Um retrato social pungente sobre a mulher no Irão numa peça polémica e fundamental. (Leia na OBSCENA 1 a entrevista à coreógrafa e a crítica à peça)

O Estado da Economia Cultural: Ascensão da Economia Cultural e Desafios do Desenvolvimento de Políticas Culturais Conferência de Andy C. Pratt, 27 Maio, 18h30 Os confrontos dos diferentes modelos de política cultural e os perigos da instrumentalização da cultura. Winch Only Teatro/Ópera Encenação de Christoph Marthaler (Suiça), 8 e 9 Junho, 21h30 Prémio UBU 2007 para esta encenação suíça inspirada na Coroação de Pompeia, de Monteverdi.

Quiet Please! Coreografia de Nina Rajarani (Índia/Inglaterra), 26 a 28 Junho, 21h30 Das ruas de Nova Deli para o caos de Londres, a dança toma conta dos corpos numa coreografia que combina a tradição com o quotidiano. Toda a programação pode ser consultada em www.gulbenkian.pt/oestadodomundo/

Desempacotando a minha biblioteca Teatro Encenação de Jorge Andrade (Portugal), 9 a 11 Junho, 21h30 (9 e 11), 17h30 (10) O universo de Walter Benjamin cruza-se com as referência biográficas do colectivo Mala Voadora num trabalho sobre a narrativa. Gilgamesh 3 Teatro Pela El-Hakawati Theatre Company (Palestina), 14 a 16 Junho, 21h30 O épico Sumério contado através das marionetas palestinianas num espectáculo que é também um jogo de teatro-no-teatro. Luminous People Filme de Apichatpong Weerasethakul (Tailândia), 16 Junho, 21h30, 17 Junho, 17h00 Um barco e uma tripulação no rio Mekong, na fronteira entre a Tailândia e Laos numa viagem onírica que é também uma reflexão sobre a memória. 15


ARRITMIA O ESTADO DO MUNDO

À DESCOBERTA DOS JARDINS Que premissas orientaram a programação O Jardim do Mundo? Quando fui convidado pelo António Pinto Ribeiro, já existia um conjunto de ideias sobre a necessidade de envolver os jardins da Fundação na plataforma 2. Por um lado, que o jardim funcionasse, dentro da FCG, como um interface entre a cidade e aquilo que se passava na programação deste fórum cultural, quase como uma antecâmara. Por outro, preservar e respeitar o espírito e a configuração dos jardins: o lado labiríntico, de surpresa, que propõe caminhos alternativos àqueles que as pessoas já conhecem porque lhes servem de passagem, e o lado de deambulação e evasão, propiciando a fruição da descoberta. Mais do que programar, foi-me pedido que assumisse uma curadoria, no sentido de aplicar ao espaço um ideário já existente. O projecto passa por um contacto muito próximo e muito privilegiado com as comunidades imigrantes em Lisboa, para o que foi fundamental a equipa do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas e o seu inesgotável dinamismo. Paralelamente a isso, desenharam-se convites directos a artistas para conceberem projectos, sobretudo, na área das artes plásticas – e aí contámos com os formandos do Programa de Criatividade e Criação Artística – e da música, através de desafios a grupos de música urbana que possam ser de alguma forma o reflexo de práticas culturais de miscigenação, de multiculturalidade. A este quadro deverei acrescentar as actuações da Orquestra Gulbenkian, que vai tocar nos jardins pela primeira vez. A programação acompanha os períodos de lazer, em seis fins-desemana: as actividades diurnas decorrem das 11h às 18h e os concertos, no auditório ao ar livre, aos sábados às 20h e aos domingos às 21h30. Consultando os numerosos projectos propostos por si e por Susana Gomes da Silva, acho que se salienta um lado festivo, de celebração, no conjunto das propostas. O outro aspecto mais evidente é, como refere, a preocupação com a diversidade cultural e a articulação estreita com os imigrantes e as

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suas realidades. Pode dar alguns exemplos de como foi trabalhada essa relação pelos artistas? No fundo, o que interessava não era o aspecto etnográfico ou museológico de representação do distante ou do outro mas, principalmente, o trabalho sobre esses cruzamentos, a fusão resultante do cruzamento entre universo cultural desses países e o contexto do país de acolhimento. Essa fusão de dois mundos, essa osmose, está patente em projectos como Come as You Are, da Paulina Pimentel, fotógrafa que foi aluna do PCCA, que vai montar um estúdio fotográfico ao ar livre, constituído por cinco painéis de grandes dimensões com cenários de paisagens países de origem de algumas comunidades emigrantes. O projecto aposta num lado lúdico: as pessoas e as famílias podem ser fotografadas em frente a esses painéis e o estúdio digital imprime a imagem no momento. Ou Sombrinhas, uma intervenção plástica de três artistas – Maria Lusitano, Nuno Valério e Gustavo Sumpta – em 3000 sombrinhas chinesas de bambu, um objecto tradicional que vamos imprimir mesmo na China e importar. Novamente, quando as sombrinhas são distribuídas às pessoas adquirem outra dimensão, que não é apenas a de proteger do sol, porque as centenas de pessoas em conjunto desenham no jardim uma mancha de cor, que forma uma instalação fortuita. Os exemplos que envolvem as associações de imigrantes também são sintomáticos dessa relação: o projecto Lil’ John & Friends começou com um levantamento de grupos hip-hop em vários bairros suburbanos, que foram convidados a gravar um disco que será difundido no Estado do Mundo e dará origem a dois concertos; ou a Maratona Lomográfica, que envolve comunidades imigrantes de fora de Lisboa, incluindo as ilhas, desafiadas a fotografar num dia específico do mês de Maio. As imagens são depois alojadas num site e votadas pelos próprios participantes, que escolhem quais farão parte de uma exposição, que depois de estar no Jardim do Mundo terá uma circulação alargada por todos os bairros envolvidos.

Kakitsubata – As Íris © DR

– MIGUEL HONRADO

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entrevista de Mónica Guerreiro

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ARRITMIA O ESTADO DO MUNDO

ESTADOS DE EMERGÊNCIA Isabel Capeloa Gil

No panorama de anomia, conflito e insegurança da nossa modernidade tardia, o estado do mundo é não raro um estado de emergência. Concebida como sinal de excepção, de tensão limite em termos políticos e jurídicos, a emergência apresenta-se igualmente como oportunidade de renovação cultural. Trata-se de entender os limites como tecedores de um novo sentido, a transgressão como apropriação do passado e renovação no presente, afinal como carnavalização produtiva, no sentido bakthiniano, uma encenação limítrofe que destrói construindo. Por outro lado, emergência, na moderna teoria cultural, e nos estudos de performance, reflecte também esse estado de latência, de emergir de um sentido renovado sob o discurso da cultura dominante, associado quer a um experimentalismo estético muito próprio quer a um desejo crescente de intervir produtivamente no diagnóstico do Estado do Mundo. Raramente nos deparamos em Portugal com uma programação tão ambiciosa, tão programaticamente diversa, mas simultaneamente tão claramente posicionada e “emergente” como a que António Pinto Ribeiro concebeu para o Fórum Cultural “O Estado do Mundo” no âmbito das Comemorações do Cinquentenário da Fundação Calouste Gulbenkian. O projecto que se iniciou em Outubro de 2006 com uma palestra de Homi Bhabha intitulada “Ética e Estética do Globalismo – Uma Perspectiva Pós-Colonial” passa, na segunda fase, a Plataforma 2, a apresentar uma praxilogia da retórica da emergência, ancorada no enfoque particular da teoria pós-colonial. Concebida como uma intervenção responsável e situada na geografia artística global, o fórum concilia de modo hábil a reflexão teórica sobre as aporias da condição emergente, renegando, por isso, uma certa estética do nonsense de que são acusadas as produções estéticas contemporâneas, com uma programação variada que do cinema, ao teatro, à dança e à música apresenta a diferente diversidade do sentido criado por artistas que, da América Latina à Ásia, reflectem a condição limítrofe do nosso Estado do Mundo. Da linha condutora da programação, destaco dois aspectos de particular importância. O primeiro é a concepção do projecto performativo como negociação, entre modelos estéticos, tradições, memórias, percursos teóricos e geografias. Trata-se de um posicionamento que se reflecte numa articulação estética entre as aporias da condição moderna e a tradição cultural de um centro hegemónico, carnavalizado e desnaturalizado pelo olhar des-construtivo do artista. Winch Only, do 18

suíço Christoph Marthaler apresenta-se como exemplo representativo deste programa através do entretecer dos temas perenes que condicionam a existência humana situados no presente, mas figurados através da Coroação de Poppea de Monteverdi. Marthaler é aliás um encenador programático para este tipo de des-construção memorial, com a revisão da tradição do centro como Leitmotiv de muitas das suas produções como o Fausto de Goethe (1993) ou de Pessoa (1992), sintomaticamente intitulada Faust. A Subjective Tragedy. Nesta linha se inscrevem também as produções de dança da sul-africana Nelisiwe Xaba, They look at me and that’s all they think e da alemã Helena Waldmann, discípula de Heiner Müller e George Tabori, com Return to Sender – Letters from Tentland. Figurando a desumanização da condição humana pelas ideologias imperiais, a peça de Neli retoma a história da “Vénus Hotentote”, Sara Baartmann, que no século XIX é apresentada na Europa como curiosidade científica e que representa de modo paradigmático a opressão racial e sexual associada ao “olhar científico” e imperial do Centro sobre o Outro. Por seu lado, Waldmann apresenta outra forma de deslocação, a dos migrantes, essa massa que caminha para Norte, na designação de Alvin Toffler, desenraizada, despojada da sua identidade própria e relegada para as margens, recebendo de modo incisivo o impacto de uma globalização que os afecta, mas da qual não participam. A segunda marca que saliento é uma forte preocupação com a democratização do olhar e da narrativa, isto é, dando voz e expressão a subjectividades emergentes para expressar a sua visão muito própria desta negociação intercultural. Disso é exemplo a programação do ciclo “Todo o Mundo é um Filme”, atribuída ao cineasta de Hong Kong Jacob Wong e expressando a sua escolha pessoal e situada sobre a visualização do Estado do Mundo. Do mesmo modo, se ressalta a presença estimulante do teatro nô com Kakisubata – As Íris e a revisitação palestiniana da saga mesopotâmica em Gilgamesh 3. Apesar do olhar ex-cêntrico, o fórum não descura a produção nacional, com os trabalhos de meta-reflexão identitária de Jorge Andrade, Desempacotando a minha Biblioteca e Victor Hugo Pontes/João Paulo Serafim, Ensaio, entre outros. O Estado do Mundo surge, assim, como um convite à participação, à saída de si e ao encontro/confronto com o Outro, revelando afinal a urgência ou mesmo a emergência de refazer um código cultural diversificado que possibilite uma renovada legibilidade do mundo.

9, de Loïc Touzé © Jocelyn Cottencin

texto

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ARRITMIA

MENSAGEM DO DIAMUNDIAL DADANÇA 29 DE ABRIL DE 2007 SASHA WALTZ

DANÇA-SE EM ANIVERSÁRIOS, EM CASAMENTOS, NAS RUAS, NAS SALAS, NO PALCO, NOS BASTIDORES. PARA COMUNICAR ALEGRIA, TRISTEZA, COMO RITUAL OU COMO EXPERIÊNCIA LIMITE. A DANÇA É UMA LINGUAGEM UNIVERSAL,MENSAGEIRA DA PAZ MUNDIAL, DA IGUALDADE, DA TOLERÂNCIA E DA COMPAIXÃO. A DANÇA ENSINA-NOS A SENSIBILIDADE, A CONSCIÊNCIA E A ATENÇÃO A CADA MOMENTO. A DANÇA É A MANIFESTAÇÃO DO NOSSO ESTAR VIVO. DANÇA É TRANSFORMAÇÃO. A DANÇA DETERMINA O LUGAR DA ALMA, PROPORCIONA AO CORPO UMA DIMENSÃO ESPIRITUAL. A DANÇA PERMITE-NOS SENTIR O NOSSO CORPO, ELEVARMO-NOS MAIS ALTO, IR MAIS ALÉM, SER OUTRO CORPO. DANÇAR É PARTICIPAR ACTIVAMENTE NA VIBRAÇÃO DO UNIVERSO.

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O Dia Mundial da Dança organiza-se desde 1982 e é uma iniciativa do Comité Internacional da Dança, membro do Instituto Internacional do Teatro/Unesco.

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Dido & Eneias, de Sasha Waltz © DR

Coreógrafa alemã


ARRITMIA

ERIC BENTLEY O PRÉMIO THALIA FOI INSTITUÍDO PELA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CRÍTICOS DE TEATRO (AICT) EM 2006, PRETENDENDO HOMENAGEAR, BIANUALMENTE, UMA PERSONALIDADE RECONHECIDA PELO SEU CONTRIBUTO AO TEATRO. UM BASTÃO EM MADEIRA ENCIMADO POR UM BUSTO EM PRATA REPRESENTANDO THALIA, A MUSA GREGA DA COMÉDIA – CONCEBIDO PELO CENÓGRAFO ROMENO DRAGOS BUHAGIAR - FIRMA CONVICTAMENTE A VONTADE DA AICT EM HOMENAGEAR AQUELES QUE PROVOCARAM MUDANÇAS NO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRÍTICO. ERIC BENTLEY, CRÍTICO, TRADUTOR, EDITOR, DRAMATURGO, PROFESSOR, MENTOR, ENCENADOR E OCASIONALMENTE ACTOR

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FOI O DISTINGUIDO NESTA PRIMEIRA EDIÇÃO PELOS SEUS TEXTOS DE E SOBRE TEATRO, “CUJA RELEVÂNCIA SE MANTÉM AINDA HOJE ACTUAL”. DE ORIGEM BRITÂNICA MAS RESIDENTE HÁ DÉCADAS NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, O NONAGENÁRIO ERIC BENTLEY RECEBEU O PRÉMIO EM SEUL, NA COREIA DA SUL, NO PASSADO MÊS DE OUTUBRO, DURANTE O 50º CONGRESSO EXTRAORDINÁRIO DA AICT. A OBSCENA PUBLICA NESTA EDIÇÃO O PERFIL DO DISTINGUIDO, PELA MÃO DO CANADIANO DON RUBIN, SEU ANTIGO ALUNO, BEM COMO UMA ENTREVISTA A BENTLEY, DA RESPONSABILIDADE DO VICE-PRESIDENTE DA AICT, O SUL-COREANO YUN-CHEOL KIM.

© DR

PRÉMIO THALIA 2006


ARRITMIA ERIC BENTLEY

LIDAR COM A EXPERIÊNCIA, NÃO COM UMA TEORIA DE EXPERIÊNCIA: ERIC BENTLEY

Este prémio é atribuído àqueles que influenciaram o pensamento dos críticos de teatro. Como primeiro vencedor do Thalia Prize, o que pensa do futuro da crítica de teatro? Primeiro devo responder à questão: que futuro para o teatro?, ou seja, para espectáculos com actores ao vivo e um público diante deles. Ouvimos dizer que o cinema e a televisão podem vir a substituir o ultrapassado teatro. Mas será que vão? Pelo contrário, em todos os grandes centros urbanos do mundo, o teatro não está em pior situação do que estava há cinquenta anos atrás. O teatro sempre existiu e sempre existirá. Mas nem sempre existiu uma crítica de teatro, quem sabe o que o futuro reserva? Será que o público de teatro quer ler a crítica? Deveriam querer? As pessoas sempre falaram sobre “o fim do teatro”, mas nunca tão seriamente como o fazem agora. O teatro atravessa uma crise multifacetada em termos de identidade, comunicação, estética de produção, viabilidade comercial, etc. Pode estar relacionada com a impossibilidade de definir o teatro dos dias de hoje, que é a desconstrução ou negação de tudo o que já foi considerado “teatral”. Partilha esta visão pessimista do teatro? Se sim, qual é o problema do teatro contemporâneo? Se não, o que gostaria de dizer a esses pessimistas? Se eu partilho o pessimismo sobre o futuro do teatro que você citou? Bem, apenas quando estou com disposição para ser pessimista sobre tudo... o que talvez aconteça com alguma frequência hoje em dia. Não há motivos para ser mais pessimista sobre o teatro do que sobre qualquer outro aspecto da civilização dos dias de hoje. Eu não sei nada sobre o teatro Coreano, mas sei alguma coisa do teatro em Nova Iorque, Londres, Berlim e Leste adentro até Moscovo. Em todas estas cidades há um talento para o teatro, até algum génio ocasional, e uma jovem geração dedicada à ideia de Grande Teatro (isto é, grande arte no teatro). Tenho vindo a ler os seus livros desde os anos 60. O meu preferido é The Life of the Drama. Neste livro – a sua versão modernizada da Poética de Aristóteles – afirma que “a grande narrativa não é o oposto da narrativa ordinária: está um grau acima da telenovela”. Posso parecer antiquado, mas creio que um dos principais fenómenos que contribuíram 24

para a corrente crise no teatro é a falta de grandes narrativas. Se “a grande narrativa está um grau acima da telenovela”, o que poderá ser esse grau no teatro pós-dramático, pós-moderno e adverso ao texto dos nossos tempos? As suas questões são duas. Uma refere-se ao meu livro, a outra refere-se às grandes narrativas. Primeiro: sim, Life of the Drama é o meu compêndio no que respeita ao teatro. É tão diferente quanto possível dos outros livros sobre teatro. Isso foi intencional. Quis afastar-me completamente das escolas de crítica Francesa e Alemã do Século XX (pós-estruturalismo e todos os outros ismos), uma vez que todas elas aparentam afastar-se do teatro em si, como experienciado por mim ou por si. Eu lido com a experiência, não com uma teoria de experiência, apesar das teorias terem que ser referidas. Eu digo aos leitores: estas são as experiências que o teatro me proporcionou, comparem-nas com as vossas ou saiam em busca de novas experiências e depois venham contar-me... Sobre a sua segunda questão, a grande narrativa. É apenas uma questão de talento. Uma narrativa torna-se grandiosa quando é um grande artista que se ocupa dela. Um dos meus artistas preferidos neste aspecto é Joseph Conrad. Mas ele não era grande escritor de teatro. O grande escritor de narrativa do teatro do século XX foi Brecht. Ou talvez o Shaw de Santa Joana. Uma das revoluções do teatro contemporâneo é falar do centro a partir da periferia, sobre os poderosos através dos marginalizados, como podemos ver no teatro feminista, gay, etc. Você é conhecido há muito como “um defensor sincero das questões homossexuais.” Qual é, na sua opinião, a importância do teatro gay em termos sociais, filosóficos e estéticos? A sua pergunta é sobre centro e periferia. Você coloca as mulheres e os homossexuais na periferia. Para mim, a questão é que eles antes eram periféricos, mas actualmente são centrais. Basta olhar para os títulos dos jornais americanos... é tudo sobre o papel das mulheres neste ou naquele sector, ou um escândalo homossexual em Washington, DC. É reconhecido globalmente como um dos homens mais influentes do teatro do século XX. Como crítico, tradutor, editor, escritor, professor, mentor, encenador e ocasionalmente como actor, tem demonstrado em si mesmo a relação ideal entre praticantes e críticos. Mas sinto-me tentado a perguntar-lhe em qual destas vertentes encontrou maior satisfação a trabalhar para o teatro. Na prática ou na crítica? Espero que seja o mais pessoal possível. Vou bloquear esta pergunta, acho que vou começar por

questionar os seus pressupostos! Uma vez que eu não considero a crítica e a prática separadamente e, mais particularmente, não considero a crítica e a escrita de peças de teatro separadamente. Estas duas categorias sobrepõem-se. Até porque uma pode conduzir à outra, como no meu caso, por exemplo: eu passei da crítica ao Galileo do Bertold Brecht para a escrita da minha própria versão de Galileo que criticava o BB ainda mais. Quanto ao meu prazer, essa é uma outra questão. O que dá prazer a um escritor? O processo de escrita em si ou a noção de que se escreveu? Eu acho o processo de escrita agradável em certas fases do jogo, mas árduo e mesmo agonizante noutras. Quanto ao prazer de ver uma das minhas peças em palco? Bem, isso é por vezes agonizante também – porque as nossas peças são frequentemente mal interpretadas e mal geridas pelos encenadores e até por vezes pelos actores. Algumas das noites mais felizes da minha vida foram passadas a representar. Podem ouvir-se algumas das minhas actuações em discos que estão agora disponíveis numa edição da Smithsonian/Folkways. Acaba de completar 90 anos. Mas não creio que exista um conflito de gerações entre si e a e os jovens artistas do teatro de hoje, sendo você um homem liberal de intelecto, e que notavelmente previu com exactidão o teatro de hoje há meio século atrás. Parece viver 50 anos adiantado de todos nós. Poderia dar a esta geração de jovens artistas a sabedoria da sua experiência e a sua perspicácia em como lidar com os desafios artísticos desta era tão difícil? Eu gostaria de ter passado um mês ou dois com os jovens coreanos... ouvi-los antes de responder à sua terceira pergunta! Mas creio que os nossos problemas enquanto estudantes de teatro (e eventuais artistas de teatro) não mudaram assim tanto, apesar da política mundial ser hoje muito diferente da dos dias da Guerra Fria – América vs. União Soviética... No entanto, tenho a certeza de que todos teremos que abordar, ainda que indirectamente, esta terrível questão do século XXI – Islão militante versus civilização ocidental... E isso significa passar novamente por velhos temas como Kipling e o Imperialismo Britânico, Ghandi e a sua não-violência... Eu acho que as forças em conflito são: o fanatismo religioso e a civilização – não apenas a civilização ocidental mas uma emergente civilização global. Leu os comentários do escritor turco que ganhou o Prémio Nobel da Literatura [Orhan Pamuk]? Ele define para si próprio uma relação interessante com o seu governo e o seu país... Podemos aprender algo com ele. Diga-me, por favor, como nova-iorquino, que esperanças tem para o teatro americano e onde vê as forças ocultas que ameaçam o seu futuro?

A que forças ocultas se refere? Eu não vejo o teatro americano ameaçado por coisa alguma, excepto pelas forças que ameaçam tudo. Presentemente essas forças são duas: uma é o inimigo que trouxe o 11 de Setembro, a outra é o inimigo dentro de casa, nomeadamente a nossa própria sociedade na sua forma actual, que eu chamaria de democracia plutocrática. Quando eu era um jovem súbdito inglês, aderi ao Partido Trabalhista Independente Britânico, um partido socialista democrático em desacordo com o Comunismo Soviético. Porque é que eu menciono isto aqui? Porque ainda sou essa pessoa. Se isto o intriga, convido-o a ler o meu livro The Kleist Variations, que lhe dará a conhecer o que subsequentemente aconteceu aquele jovem socialista britânico. Não em registo autobiográfico, mas num prolongamento imaginativo (eu estudei Tolkien e C.S. Lewis)... Admiro dois dos seus grandes amigos – ambos já falecidos – Bertold Brecht e Jan Kott. Estou seguro que a vossa amizade teve uma enorme influência mútua no vosso pensamento crítico. Como descreveria a vossa amizade? Qual a sua influência neles, e a deles em si? Eu não conhecia o Kott assim tão bem, mas li-o e encontrámo-nos algumas vezes. Ele era um ser humano deveras inteligente, sábio e espirituoso. Ele fazia ver as coisas de uma maneira diferente e mais “relevante” no sentido de “mais relevante para a nossa vida como a vivemos agora”. Eu discordo frequentemente – geralmente, até – com as suas opiniões sobre literatura, especialmente literatura inglesa. Mas a discordância era uma coisa criativa naquele homem. Por essa razão os comunistas na Polónia estavam insatisfeitos com ele; agradava-lhes ter uma linha partidária e confirmá-la... Bem, basta de Kott por agora. Brecht teve um papel infinitamente mais importante na minha vida. Sabia que existe uma peça sobre a relação Brecht/Bentley? Chama-se Silent Partners e foi escrita por Charles Marowitz. Se eu discordava frequentemente com o Jan, chocava abertamente com o Bertold. Mas mais uma vez, tenho de acreditar que um choque pode ser criativo: empurrou-me subitamente para a minha própria escrita criativa... Começando com a minha peça The Recantation, que é uma retaliação ao Galileo de Bertold Brecht. Se quiser saber mais, pegue num recente livro meu chamado Bentley on Brecht.

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entrevista de Yun-Cheol Kim Tradução de Pietro Romani. O discurso de Eric Bentley de aceitação do Prémio Thalia pode ser lido, em inglês, no site da AICT: http://www.aictiatc.org/documents/congress/seoul_symposiumfeb.07.pdf.

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ARRITMIA ERIC BENTLEY

NOTAS SOBRE A ATRIBUIÇÃO DO PRIMEIRO PRÉMIO THALIA DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CRÍTICOS DE TEATRO A ERIC BENTLEY PELA SUA CARREIRA NA ESCRITA TEATRAL Seul, Coreia, 25 de Outubro de 2006

DON RUBIN Quando eu era um estudante universitário, há 100 anos atrás, parecia-me que todos os livros das minhas cadeiras tinham sido publicados pela mesma pessoa, Eric Bentley. Existiam peças de Pirandello (traduzidas por Eric Bentley), livros críticos sobre Shaw, O’Neill e Brecht (escritos por Eric Bentley) e livros de teoria teatral (nessa altura não sabíamos que se tratavam de teorias e ainda lhes chamávamos ideias), também estes escritos e publicados por Eric Bentley. Tal como a maioria dos estudantes, eu não fazia ideia de quem era Eric Bentley, mas tinha a certeza de que ele era alguém importante. Alguns anos mais tarde, no papel de jovem professor universitário incumbido pela faculdade da gestão de um programa relacionado com artes performativas, encontrei-me na posição privilegiada de poder incluir uma série de palestras no meu programa e sabia que uma das pessoas a convidar seria o ubíquo académico Eric Bentley. Contactei-o através de um dos seus editores e pedi-lhe que desse uma palestra em Toronto sobre a teoria de verfremdunseffekt de Brecht. Este, obviamente, respondeu de forma negativa. Não estava interessado em falar sobre a teoria de verfremdunseffekt, no entanto estava disponível para dar um concerto. “Um concerto de quê?” perguntei de forma incrédula. “Um concerto de canções de Brecht,” respondeu ele. “E talvez algum Prévert.” Fiquei na dúvida se Bentley sabia cantar e dançar, mas não ousei questionar esse grande homem. Respondi afirmativamente e Eric Bentley veio a Toronto uns meses mais tarde. Sentou-se em frente a um harmónio, uma espécie de pequeno piano, e falou sobre o Brecht escritor e compositor. Em seguida leu alguma da poesia de Brecht e começou a cantar. Tenho de admitir que não foi propriamente um cantor, mas de qualquer modo todos sabemos que Brecht não queria cantores a sério. Bentley continuou a cantar durante três horas. Depois fez uma pausa e voltou para cantar 26

mais algumas canções para aqueles que tinham ficado, e eram muitos. Alguns anos mais tarde, estava eu a iniciar um novo jornal sobre teatro no Canadá com o título Canadian Theatre Review e decidi perguntar a Eric Bentley se ele gostaria de ser membro do nosso corpo redactorial. Ele respondeu que não, mas disse que faria tudo o que se pode esperar de um membro da redacção. Iria ler artigos, recomendar escritores, iria aconselhar. E foi o que fez. Acabou aliás por fazer mais ao longo de todos esses anos do que muitos dos membros oficiais da redacção. Um dos projectos em que ele trabalhou comigo foi a publicação de um edição especial da CTR que tinha como tema A Homossexualidade e o Teatro, um assunto que o interessava bastante, e que continua a ser bastante pertinente. De facto, nos últimos 30 anos, Bentley tornou-se uma das vozes teatrais mais incisivas sobre a temática gay, no mundo de expressão inglesa, tendo contribuído com um dos melhores trabalhos sobre essa mesma temática, uma peça sobre Oscar Wilde com o título Lord Alfred’s Lover, que continua a ser uma das minhas peças preferidas de Bentley. Tendo tudo isto em conta, penso que é justo perguntar, neste ponto, o que é afinal uma crítica? Numa entrevista dada há alguns anos atrás para a rádio Voice of America, e que apareceu subsequentemente como um posfácio numa colecção das suas peças, Eric Bentley foi citado como tendo dito que duvidava bastante que houvesse “qualquer coisa mais difícil do que ser um crítico verdadeiro bom”. “A escrita de crítica teatral”, afirmou no seu volume de What Is Theatre editado em 1956, “é pior do que andar sobre ovos. É andar sobre corpos vivos e fazê-los sangrar. Por vezes sinto que a crítica teatral é a arte de fazer inimigos e a capacidade de não influenciar as pessoas”. Esse texto acaba com as palavras “temo que leve a crítica demasiado a sério”. Para Bentley, o dramaturgo alemão Gotthold Lessing foi uma versão do que ele designava como “crítico exemplar”. O poder de Lessing, afirmou Bentley, provinha da sua capacidade de levar a cabo na sua escrita uma polémica contínua, a par com uma vasta investigação sobre o teatro do seu tempo. Lessing estava simultaneamente “a lutar contra aquilo que ele acreditava estar errado” e a “questionar permanentemente o que considerava como sendo certo”. O nosso homenageado já viveu esses ideais tanto na sua vida como no seu trabalho como teatrólogo e crítico (uma função que apenas

exerceu durante cerca de quatro anos), na sua escrita como académico e dramaturgo, e nas suas inúmeras traduções e performances. Ninguém lutou tanto, e de forma tão brilhante, como Eric Bentley, contra aquilo que ele acreditava como estando errado, e ninguém se perguntou de forma mais constante e articulada, tanto sob a forma escrita como de forma pessoal, o que significava estar certo. As suas ideias sobre dramaturgia como pensador ajudaram-nos a entender que as grandes ideias e o grande pensamento teatral podem estar relacionados sem que exista qualquer tipo de apologia. O trabalho de Bentley sobre o teatro alemão deu-nos não apenas as peças de Brecht em língua inglesa, mas também um conhecimento profundo sobre o trabalho de Brecht, o seu pensamento e a sua vida. Bentley deu-nos ainda as peças de Pirandello em língua inglesa, e as melhores razões para que fossem encenadas, ensinadas e a possibilidade de as podermos entender. Caso estas tivessem sido as suas únicas contribuições para o mundo do teatro, estas seriam mais do que suficientes para lhe assegurar um lugar no Hall of Fame Teatral planetário. Mas Bentley fez muito mais. Mudou a forma como vemos o teatro e a literatura dramatúrgica. Quase sozinho, através de cerca de 40 livros, das suas colectâneas, traduções e ensaios, criou aquilo que vemos hoje como sendo o cânone da dramaturgia moderna. Por tudo isso, digo em nome de muitos de nós, obrigado, Eric Bentley. Você conseguiu de facto mudar a forma como vemos e estudamos teatro neste mundo complexo em que vivemos. Eric Bentley disse em tempos que tentou viver a sua vida “nas encruzilhadas onde a esperança e a inteligência crítica se encontram”. Uma noção maravilhosa. A esquina da Esperança e da Inteligência Crítica. Essa foi certamente a sua morada, tendo sido a sua dádiva para todos nós. Eric Bentley fez do teatro um local mais profundo, um local mais acolhedor para os que se preocupam e que se empenham, um local mais estimulante para dramaturgos, académicos e, sim, até mesmo para os críticos. Através da sua escrita, durante mais de seis décadas, Bentley tornou-nos melhor. Não poderia estar mais satisfeito pelo facto de a Associação Internacional de Críticos de Teatro ter escolhido como galardoado do primeiro Prémio Thalia, este grande académico, teatrólogo, crítico, dramaturgo, performer, e verdadeiro Homem do Teatro, Eric Bentley.

Eric Bentley é o autor de mais de uma dezena de livros sobre crítica e análise, incluindo:

The Playwright As Thinker Bernard Shaw In Search of Theatre The Dramatic Event What Is Theatre? The Life of the Drama The Theatre of Commitment Theatre of War Bentley on Brecht É editor de mais de uma dezena de antologias, incluindo:

The Modern Theatre (6 volumes) The Classic Theatre (4 volumes) 30 Years of Treason The Theory of the Modern Stage Bentley é também o tradutor/editor para língua inglesa de inúmeros dramaturgos europeus, incluindo: Bertolt Brecht (16 volumes editados pela Grove Press) Pirandello Eduardo De Filippo Karl Sternheim É ainda autor de mais de uma dezena de peças originais e revisões/respostas, incluindo:

Lord Alfred’s Lover Are You Now or Have You Ever Been The Kleist Variations The Memoirs of Pontius Pilate Bentley pode ainda ser ouvido em mais de uma dezena de discos.

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Tradução de José Luís Neves 27


ARRITMIA

conversa, o diálogo. Aos 14 anos, escrevia peças para a Igreja e representava-as. Tomava conta dos mais novos. No fundo, também aí continuava a tomar conta dos outros, como em casa. (“João Mota: Uma Metodologia de Ensino do Teatro – Relatório de Estágio da Licenciatura Bi-Etápica em Formação de ActoresEncenadores”, Amadora, ESTC, 2004, s/p.)

HOMENAGEM A JOÃO MOTA (QUE EMBIRRA COM HOMENAGENS) Eugénia Vasques I. João Mota (João Manuel da Mota Rodrigues, Tomar, 22 de Outubro de 1942) iniciou, como criança de menos de dez anos, a sua vida de artista da palavra, na Emissora Nacional, num programa de que era ouvinte (e também eu ouvi!), o programa para a infância de Maria Madalena Patacho. Menino solitário, ouvira e lembrava as histórias que contavam a mãe e a avó e escreveu, desde muito cedo, poemas sobre pobres, desgraçados e colegas antigos da escola que deixavam de estudar e também pecinhas de teatro, prática que foi mantendo desde as suas variadas acções (na escola, na Papelaria Fernandes, etc.) de militante da JOC1 – onde trabalhou sob a orientação de Bento Martins, seu primeiro “encenador” na Igreja de Fátima, o que lhe permite dirigir, logo em 1962, o jogo cénico da Acção Católica no Estágio José Alvalade com a intervenção de 2000 pessoas – até à guerra colonial, na qual escrevia e ensaiava os seus colegas soldados. O próprio relembra, deste modo, esses inícios, em entrevista a Álvaro Correia, em 2001, ainda na Escola Superior de Teatro e Cinema: […] sempre me refugiei, sempre fui uma pessoa muito sozinha. Como vivia numa casa de mulheres, a minha fuga era estar calado, sonhava muito, desenhava, aprendi a lidar com o silêncio desde muito novo. E também o fascínio pela Igreja, não tanto a Catequese, mas o que estava para além disso, a

Aos 15 anos era já, não mais o acompanhante da sua adolescente irmã, Teresa Mota, iniciante actriz do Teatro Nacional de Amélia ReyColaço, mas um garboso pescador na peça Mar, de Miguel Torga, que se representa na recém-criada Televisão (a comemorar também ela, neste momento, os seus 50 anos de existência), com direcção de Rui Ferrão. E será, justamente, no Teatro Nacional que ensaia, ainda em calções (era o Joãozinho para Amélia ou Palmira Bastos), e se estreia, ao lado de Palmira, José de Castro, Varela Silva, Jacinto Ramos, Carlos Avilez, entre muitos outros, na peça O Processo de Jesus, de Diego Fabbri, encenada por Luca de Tena e cenografada por Lucien Donnat que, em 1996, o director da Comuna convidou para assinar a cenografia do espectáculo A Senhora Klein de Nicholas Wright.

Medida por Medida (1997) © DR

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II. Creio que para compreender a importância de João Mota no teatro português é necessário muito mais do que lembrarmos, avulso, as encenações que realizou dentro e fora da Comuna que fundou com Manuela de Freitas, Carlos Paulo, Melim Teixeira, Francisco Pestana, juntamente com alguns actores que eram seus alunos no Conservatório, como Luís Lucas e

Fernando Heitor, depois de se retirar, com aqueles actores, do projecto, que se tornou demasiado “ideológico”, de Os Bonecreiros que co-fundara (1971) ao lado de Mário Jacques, Fernanda Alves, Glicínia Quartin, entre outros. Este impulso congregador é um dos traços distintivos de João Mota, como reconhece na entrevista a Álvaro Correia:

Uma das coisas importantes da Comuna na altura foi o aprofundamento humano e a percepção de que o teatro serve também para nos “lavarmos” e para nos entendermos, contra o ritual burguês. O ritual tem o perigo de se transformar em cliché. O teatro deve ser o lugar do ritual sagrado, o espaço sacro, espaço de partilha, feito por nós, feito de amor, sem nunca esquecer o lado profano. Daí a necessidade de comermos juntos, na mesma mesa, onde se falava de tudo, era uma comunhão constante; na altura, recusávamo-nos a fazer televisão porque era importante ter uma total disponibilidade para a criação. III. Há, com efeito, características pessoais do João que marcam indelevelmente a intervenção deste encenador-catalisador que pertencem, ambas, ao âmbito, digamos (para evitar palavrões como Ética, de dimensão demasiado científica no contexto) das relações humanas: a vocação pedagógica e a religiosidade no seu sentido de impulso humano para a elevação da responsabilidade pessoal. Daí a importância que desempenhou o ritual, na sua estética original, e a ideia colectiva de “laboratório de pesquisa”. Assim enunciado, parece que desejo “santificar” João Mota: nada

mais arredado do meu pensamento! Mas, para quem pôde assistir a espectáculos como, por exemplo, A Pécora (1989-90) sobre peça de Natália Correia, compreenderá que a pseudo-heresia que marcou a fase mais iconoclasta do seu teatro não era senão o prosseguir de um grito de revolta, católico de origem, de quem, crente na entidade Personagem e na Contracena, elegeu o lado visceral e emocional dessa mesma Personagem para construir o seu teatro de intervenção social. O seu partido político… IV. Gosto muito de constatar, no segredo das salas de aula ou da sala de ensaios, a miscelânea de ideias e valores que João Mota deixa escapar, de profundas e diferentes proveniências. Ele é o princípio da generosidade – que herdou da mãe, do Bento Martins e da Igreja Católica –, a procura da interioridade que bebeu em Adolfo Gutkin, a crença na autenticidade, na verdade e na importância do silêncio que trouxe de Brook e dos seus colaboradores orientais, a revolta que desenvolveu na Guerra Colonial, e sobretudo uma visceral liberdade individual que o torna, por vezes, inesperado, fugidio. Compagina-se, geralmente mal, este seu ideário com a necessidade de dizer coisas com espectáculos. Contra ele levanta-se, surdo, um passado de formação com os seus mestres, Amélia Rey-Colaço, Francisco Ribeiro (Ribeirinho), Laura Alves e um presente cheio de jovens ou menos jovens actores sem espírito de militância. V. Generoso, solitário e solidário, João Mota dispersa-se, com rasgo missionário, pelas escolas e grupos do país. Tenta acender o facho da 29

paixão pelo teatro (e passar esse facho aos mais novos actores da Comuna), pela convicção na diferença, cria descendência (directa e indirectamente) e continua a acreditar num “teatro de texto” que toque as pessoas e as ajude a transformar-se. Há 50 anos que vê ou ouve o seu nome como Outro. Há 50 anos, franzino e de olhos doces e pestanudos, era um pescador de Miguel Torga. Hoje, tantas páginas de poesia volvidas, continua a ser único e fascinante. Ah, grande Mota! E venham mais cinquenta!

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1 Há uma foto, espantosa, de uma corrida de bicicleta, a Fátima, num jornalzinho da organização, que mostra o muito jovem João Mota em pose de descanso ciclista, qual Jarry adolescente!


ARRITMIA

INDIELISBOA: O CINEMA EXPERIMENTA-SE AQUI Pelo quarto ano consecutivo, Lisboa é a cidade do maior festival de cinema nacional, o IndieLisboa, apostado na descoberta de novos autores e linguagens emergentes da criação cinematográfica. De 19 a 29 de Abril, os cinemas São Jorge, King, Londres e Fórum Lisboa acolhem 223 filmes (88 longas-metragens e 135 curtas) oriundos na sua maioria da Europa (127, 18 dos quais portugueses), da Ásia (38) e da América no Norte (38) mas também de outras geografias: pela primeira vez, serão apresentados três filmes africanos. O IndieLisboa, que espera superar os 28 mil espectadores da edição de 2006, investe igualmente na exibição de fitas ainda inéditas: 19 filmes em estreia absoluta e dez em estreia na Europa. “Com quatro salas de cinema e oito ecrãs em simultâneo, o festival vai potenciar ainda mais a intensa dinâmica de circulação de públicos e de programação que o IndieLisboa tem vindo a consolidar”, afirma a organização. A música surge com principal fôlego nesta edição, em que a secção “IndieMusic”, que congrega a produção cinematográfica sobre o universo musical, adquire maior relevo: cinco curtas e cinco longas, filmes sobre Herbie Hancock, Joe Strummer, Sonic Youth ou os Tédio Boys, ou às voltas com o Rap Negro de Lisboa (Otávio Ribeiro Raposo) ou uma Anthology of American Folk Music (Rani Singh). Estão ainda programadas sessões de filmes musicados ao vivo: Life in Loops: Megacities Remix, que abre o festival, é um trabalho de Timo Novotny sobre os brutos não utilizados por Michael Glawogger (um dos “heróis independentes” da edi-

ção de 2006) em Megacities (filme de 1998 de que o IndieLisboa, aliás, assumiu uma edição comercial). A intervenção de Novotny completa-se com a introdução de novas imagens de Tóquio e com a música dos Sofa Surfers, neste “documentário musical experimental”. Noutra sessão, os Coty Cream são convidados a acompanhar O Garoto de Charlot (1921), de Chaplin. É ainda a música que está em causa no programa especial “New Crowned Hope”, que reúne os filmes encomendados pelo programa oficial do centenário de Mozart: cineastas de todo o mundo – França, Irão, Argentina, Taiwan, África do Sul, Indonésia e Tailândia – experimentam uma abordagem contemporânea aos ideais inspirados pelas últimas composições de Mozart (A Flauta Mágica, La Clemenza di Tito e Requiem). Mas a estrutura da programação mantém-se: a secção competitiva (para longas e curtas metragens) é reservada a filmes inéditos em Portugal, concluídos em 2006 ou 2007 e que sejam as primeiras ou segundas obras dos seus autores (concorrem filmes de ficção, animação, documentários ou experimentais). Os que não verificam esta especificidade são englobados para as secções não competitivas: o Observatório, que reúne as obras consideradas mais relevantes dos últimos anos, “radar do panorama independente contemporâneo” ou o Laboratório, a plataforma de exibição de filmes experimentais, realizados “em absoluta liberdade”. Surgem aqui nomes destacados como o de Hal Hartley, realizador norte-americano que estará em Lisboa a apresentar o seu último filme, Fay Grim, que recupera uma das personagens de Henry Fool (de 1997), uma mãe obsessiva que cuida como pode do filho de 14 anos. Ou o notável colectivo que 30

© Opera Jawa, do ciclo “New Crowned Hope”

assina Destricted: Sam TaylorWood, Richard Prince, Larry Clark, Matthew Barney, Marco Brambilla, Gaspar Noe e Marina Abramovic, num exercício sobre sexo e pornografia que integra sete curtasmetragens, “colecção de argumentos estimulantes e provocadores, com humor e apelo sexual”. A curta de Marina Abramovic remete para o conhecido ciclo Balkan Erotic Epic, que a artista vem desenvolvendo em vários media; já Matthew Barney coloca no centro do seu filme um tractor transformado em carro alegórico para o Carnaval da Baía. As secções não competitivas incluem ainda algumas outras curiosidades em torno dos músicos e da performatividade. Em The U.S. vs. John Lennon, David Leaf mostra-nos um artista cativa pela ambivalência das suas manifestações sociais: a sua luta activa pela paz e os ódios e opressões que essa postura lhe trouxe. O músico tornado activista contra a guerra é o protagonista deste documentário. E os também músicos Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo – ou seja, os Daft Punk – invertem as expectativas e mostram, em Electroma, um filme musical de ficção científica “em estilo minimalista”: num deserto, dois robots desejam transformar-se em seres humanos. Outros destaques: filmes de François Ozon, Miike Takashi, Gabriel Range (Death of a President é o filme de encerramento, que ficciona a morte de George W. Bush), Miguel Gonçalves Mendes, Thomas Arslan, Ethan Hawke, Edgar Pêra ou Richard Linklater. A secção “Director’s Cut” oferece novas versões de filmes antigos e também obras que trabalham o próprio cinema: estão lá Peter Bogdanovitch (Directed By, uma revisitação do aclamado documentário sobre John Ford, de 1971),

© Electroma

Sophie Fiennes (The Pervert’s Guide to Cinema, viagem psicanalítica a alguns dos melhores filmes de sempre, conduzida pelo cáustico filósofo esloveno Slavoj Zizek) ou Manuel Mozos (Olhar o Cinema Português 1986-2006). Além da secção competitiva “IndieJúnior” (22 filmes destinados aos mais novos), ainda lugar para “Herói Independente”, a programação de homenagem para a revelação de cinematografias “consagradas internacionalmente, mas insuficientemente conhecidas em Portugal”: este ano celebra-se o cineasta japonês Shinji Aoyama (14 filmes que percorrem dez anos de carreira autoral, incluindo Eli, Eli, Lema Sabachtani?, já mostrado em 2006, e que acompanha a vida reclusa de dois músicos, devotados à criação de um som puro, enquanto o mundo é tomado por uma epidemia) e, ainda, concede uma retrospectiva ao novíssimo cinema independente alemão, através da exibição de obras (datadas de 1984 a 2006) de realizadores herdeiros da Escola de Berlim, devedoras de um realismo que não admite concessões. Entre as actividades paralelas contam-se ainda visionamentos

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especiais para profissionais, conferências e masterclasses. Apesar de apresentar menos filmes que no ano passado (em que ultrapassou os 300 títulos), o festival solidificou-se em termos organizacionais, permitindo que alguns filmes tenham mais do que uma sessão, activando um autocarro gratuito de ligação entre as várias salas, aumentando o valor dos prémios a atribuir (que totalizam €22.500). Como tem vindo a ser habitual, o IndieLisboa promove extensões a outras cidades: está já confirmada, logo para Maio, exibição de uma selecção dos filmes do festival em Angra do Heroísmo, Alcobaça, Odivelas, Torres Vedras e Vila Nova de Famalicão.

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Toda a programação está disponível em www.indielisboa.com. A partir de dia 5 de Abril os bilhetes são colocados à venda e, até dia 18, é possível adquirir cadernetas de 20 bilhetes no Fórum Lisboa.


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ROBERT WILSON EXPÕE OLHARES SOBRE OS OUTROS A cara de Cindy Sherman, artista plástica, performer e ícone da transfiguração, nunca foi tão exposta como no baço cromatismo com que Robert Wilson, encenador

e mogul da imagem minuciosa, a registou na série Polaroid Portraits, que a Galeria Luís Serpa, em Lisboa, apresenta até 28 de Abril. São provas únicas, têm invariavelmente o mesmo tamanho, umas são a preto e branco e outras a cores – às vezes da mesma pessoa – e prolongam o discurso de Wilson mais interessado na composição de um corpo que na criação de personagens. Mantêm o trabalho sobre a luz, o enquadramento e a estranheza de oscilarem

entre o reconhecível e a distância. São olhares secos e frontais que escondem histórias e dizem pouco, muito pouco. Não obstante, é impressionante verificar como o rosto de Sherman, tantas vezes manipulado pela própria, nos parece tão verdadeiro. Tão verdadeiro que quase parece ficcional. Os retratos são de personalidades que trabalhavam ou visitaram o

Watermill Center no Verão de 1999. Alguns deles são cúmplices no seu trabalho, como o compositor Philip Glass, a actriz Isabella Rossellini ou a ensaísta Susan Sontag. Mas há outros: Lou Reed, Spalding Gray, Nan Goldin, Annie Liebovitz ou Hillary Clinton. Ao todo são vinte e quatro retratos tão íntimos quanto enigmáticos de figuras próximas de Wilson captados durante aquele Verão, aproveitando a técnica desenvolvida pela Polaroid que lhe deu a possibilidade de 32

trabalhar em grande formato. Até 9 de Setembro, do mesmo Wilson, é possível visitar a instalação Alice, na Fundação Elipse, em Alcoitão, Cascais, no âmbito da exposição Open House. Alice, criada em 1994 e então mostrada na Luís Serpa, consiste num espaço luminoso forrado com algodão, onde pontuam uma cadeira de madeira e o molde da

cabeça de um animal, numa espécie de diálogo onde também intervém uma composição musical de Stefan Kurt.

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CINDY SHERMAN, 1999 [#R.W.03/99] Fotografia a preto e branco, 82 x 56 cm, Prova Única

EDGE: PENSAR A DANÇA ENQUANTO REALIDADE AUMENTADA Na sequência do projecto SWAP surge agora um prolongamento daqueles propósitos numa nova criação – eGDe – visando aprofundar a relação entre a criação coreográfica e a composição musical e as artes digitais, através do desenvolvimento de um software designado Realidade Aumentada. Rudolfo Quintas e Tiago Dionísio encabeçam a equipa que vai estar até 30 de Abril em residência artística no Negócio / ZBD, em Lisboa, mês durante o qual se prevêem algumas iniciativas abertas ao público, além da constituição de um weblog que tem como objectivo aproximar os espectadores do processo de criação. eDGe consiste na construção de “um imaginário motivado pela problemática da Realidade Aumentada como lugar de experiência, criação, comunicação e composição, onde o meio digital e o físico convergem”, explicam os autores. O coreógrafo Andreas Dyrdal, o músico Eduardo Coutinho, os bailarinos Mariana Tenger, Isabel Souto e António M. Cabrita e os colaboradores no desenvolvimento do software Eduardo Marques e Jorge Cardoso constituem a restante equipa, que conta ainda com contributos teóricos de Guislane Boddington (artista, curadora, directora do Body Data Space) e Armando Menicacci (professor da Universidade de Paris VIII e director do Media Dance Paris). As apresentações públicas programadas pelo Negócio no sentido

© DR

de estender o diálogo e reflexão directa com o público têm lugar no dia 5 de Abril, com uma curiosa conferência de Armando Menicacci – Em música temos “musicalidade” e em teatro “teatralidade”, porque é que na dança este conceito não existe? – e no dia 13 de Abril com uma apresentação do processo que exibirá, “a partir de um corpo de trabalho performativo, visual e musical, o resultado prático do primeiro mês e meio de residência”. Ainda, o Serviço Educativo da ZDB organiza (sob marcação das escolas) a experiência Eu sou o Infinito!, que dá às crianças do 33

primeiro ciclo oportunidade de explorar um imaginário visual utilizando a expressão corporal através do sistema de Realidade Aumentada.

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Mais informações em www.zedosbois.org ou www.swap-project.com.


abril 2007

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Sob direcção de Isabel Alves Costa e Miguel Honrado, existe na região do Vale do Minho um novo projecto cultural, estruturado pela companhia teatral Comédias do Minho, até há poucos anos dinamizada por Rui Martins. Esse projecto organiza-se em torno de uma acepção do trabalho da companhia de actores que passa pelo abandono da centralização da orientação artística, preterida em prol de um programa integrado de vários criadores: este ano, vão trabalhar com as Comédias do Minho os encenadores Pierre Woltz, Jorge Louraço Figueira e Graeme Pulleyn. Com sede em Paredes de Coura e usufruindo de uma participação local forte – um “consórcio” intermunicipal que dá estrutura física e suporte financeiro ao projecto – as Comédias do Minho começaram com um programa igual ao de tantas outras companhias, como explica Miguel Honrado, “reproduzindo o modelo pós-revolucionário de companhia de reportório, com um director artístico que é simultaneamente encenador, e um grupo de actores que, quando não estão em itinerância ou ensaios, dão formação a grupos amadores ou à comunidade escolar”. Foi no sentido de vincar a especificidade do projecto, por um lado, e responder às necessidades concretas da região, “onde não há quase nada”, que Joana Rodrigues, antropóloga e vice-presidente da associação, engendrou uma nova metodologia de intervenção. O convite aos dois directores artísticos que agora orientam a

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explica Miguel Honrado, está previsto o desenvolvimento de uma acção pedagógica abrangente no Vale do Minho, visando “reforçar a ligação das Comédias do Minho ao território e ao mesmo tempo servir de caixa de ressonância do trabalho da companhia”. A partir do final de 2008, segue-se uma “tentativa de criação de uma rede de difusão de espectáculos no Vale do Minho, que integre outras produções e não apenas a oferta forjada pela companhia”. A situação transfronteiriça daqueles municípios permitirá descobrir outras valências, nomeadamente uma articulação com Galiza. As Comédias do Minho beneficiam desde 2005 de financiamento público do Instituto das Artes no âmbito do Programa de Apoio Sustentado. Recentemente, a apresentação deste novo projecto surtiu acolhimento favorável e esse apoio foi renovado por mais um biénio, reforçado (em €10.000) para €60.000 anuais. Contam ainda com um mecenas, a empresa eólica VentoMinho, que investe €300.000 até 2009, e a quotização dos cinco municípios, num reconhecimento do carácter promissor da companhia, numa região em que – além do festival anual de rock de Paredes de Coura e a Bienal de Vila Nova de Cerveira – a oferta cultural é diminuta. “A norte do Douro não há quase nada, a circulação é pouca e não está adaptada ao contexto social”, explica Miguel Honrado. “O que sobrevive são as ceias medievais e uns híbridos de cultura televisiva com resquícios de cultura popular: arraiais minhotos com a Floribella”.

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COMÉDIAS DO MINHO: NOVO PROJECTO DE DESCENTRALIZAÇÃO

estrutura surgiu da vontade de definir linhas de desenvolvimento que passassem por uma revitalização dos objectivos de descentralização cultural. Assim, em vez de um encenador, a companhia trabalhará com três criadores em cada ano, “numa lógica de passagem de testemunho, em que a diversidade implica também que exista contacto, que vejam o trabalho uns dos outros e haja essa consciência de se estar a trabalhar para um programa uno, com uma linha de desenvolvimento plurianual”, explica Miguel Honrado.A selecção dos encenadores denota um enfoque na prática teatral em meio rural – a carreira de Pierre Woltz é devotada a esse trabalho, Graeme Pulleyn esteve associado ao Teatro Regional da Serra de Montemuro – e uma preocupação na articulação com jovens encenadores, como Louraço Figueira, também dramaturgo, a quem a companhia havia já encomendado um texto. Em 2008, a mesma linha orientadora é patente nos três criadores convidados: Bruno Bravo, João Pedro Vaz e Madalena Vitorino. Enquanto projecto de vocação intermunicipal – Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira são as autarquias envolvidas – a circulação e a itinerância constituem vectores fundamentais do trabalho das Comédias do Minho, cujas produções têm sido apresentadas em largas dezenas de locais, particularmente em ambiente rural: pequenas capelas, salões paroquiais... Nas cidades e capitais de concelho, são os centros culturais ou auditórios de bibliotecas que acolhem as criações, que são executadas cenograficamente atendendo a uma grande economia de meios e modéstia em termos técnicos para se permitirem a uma intensa circulação. Numa segunda fase do projecto,

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MODA LISBOA Bruno Horta fotografia José Luís Neves texto

“COMO ME PARECEM GASTOS OS USOS DESTE MUNDO” Um homem com uns 40 anos pede cigarros no cimo da escadaria que conduz ao Museu. E mete conversa. “Isto parece uma coisa bonita, deve estar muita gente da televisão”. Os carros passam na rua e abrandam na esperança de perceber as razões de um entra-esai invulgar ou deitar olho a uma celebridade qualquer que tenha acorrido. Num café de esquina, durante a tarde, uma mulher de meia-idade comenta: “Parece que só se entra por convite. Mesmo que tivesse, não ia”. Quando se fala com quem há anos organiza a ModaLisboa (MLx) e nela trabalha (é da última edição, que decorreu entre 8 e 11 de Março, no Museu de História Natural, que falamos), encontram-se dois discursos sobre a tangibilidade do mais importante acontecimento de moda em Portugal. Que está aberta a todos e que a prova são as centenas de pessoas que assistem aos desfiles; que não é um sítio democrático, até porque quanto mais elitista a moda for mais se valoriza o sonho que vende. É destas insanáveis contradições que a MLx, financiada pela Câmara Municipal e por fundos da União Europeia, não se consegue livrar: ser de facto elitista e abrir portas só à imprensa e aos empresários, dizerse elitista e abrir-se aos socialites mais depauperados, não ser elitista e encontrar modo de acolher quem quiser ir, ter toda a gente por lá e deixar de ser chique, querer manter-se chique e ser vista como um evento de tias e gente estranha.

Por estes dias, numa entrevista ao Diário de Notícias, Eduarda Abbondanza, a todo-poderosa responsável pela MLx, assumia que se trata de um evento social, embora destacasse mais a sua dimensão comercial. A opinião de quem está por fora é diversa: o social, ou cor-de-rosa, bem instigado por revistas, ganha aos pontos. Há ali moda, roupa para ser fotografada e apresentada nas páginas da imprensa especializada, investidores à espreita e muito trabalho de modelos, agências, estilistas, produtores de moda, maquilhadores, cabeleireiros, fotógrafos. Mas quem frequenta o sítio continua a jactar-se e a socorrer-se de um limitadíssimo glamour à portuguesa e é isso que a cidade e o País vêem. No último dia desta MLx (que, pela primeira vez, se associou ao Portugal Fashion, do Porto, para formar a Semana da Moda portuguesa), coube ao estilista Nuno Baltazar assumir a teatralidade da coisa. Pegou em Hamlet, pela voz do actor João Reis e numa encenação de Ricardo Pais (de há seis anos), e passou-o em off, durante o desfile. A famosa mulher do actor, Catarina Furtado, também desfilou, de peruca ruiva e olhos muito pintados. “Como me parecem velhos, inúteis e gastos os usos deste mundo”, ouviu-se. Fora do contexto original, foi como se a frase de Shakespeare quisesse falar para aquela sala de desfiles, pintada de preto e de branco. Um desabafo sentido, lá do século XVII para os de agora. Os desfiles da Moda Lx podem ser acompanhados na Fashion TV até 03 de Abril (sinal codificado) e na RTP 1 até 07 de Abril (sinal aberto).

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APOSTA

GUY DEBORD O CINEMA DA NÃO-SEPARAÇÃO Susana Nascimento Duarte

O sentido do cinema de Guy Debord é inseparável do seu pensamento e, ao lado da escrita, constitui-se como lugar privilegiado de visibilidade da sua teoria, actualizando-a, por outros meios que não a palavra. A zona de reflexão que determina toda a obra de Debord, e em função da qual é possível auscultar toda a dimensão de intervenção política do seu pensamento e da sua respectiva materialização cinematográfica, é a sua crítica da sociedade do espectáculo, ou seja, do capitalismo acabado como afastamento radical da vida. Esta crítica é, por sua vez, indissociável de uma mobilização total da própria vida do autor na direcção do confronto e da luta contra o seu tempo. Contudo, tal luta é levada a cabo a partir de dentro e não feita à margem da linguagem do espectáculo. De facto, para Debord, na desor-

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dem do presente, estariam simultaneamente contidas quer a destruição da vida perpetuada pelo espectáculo, quer a possibilidade da aparição concreta do seu reverso, identificada com o projecto situacionista. Tratar-se-ia de, no mesmo lugar a partir do qual “a sociedade do espectáculo e o capitalismo organizam concreta e deliberadamente os meios e os acontecimentos para diminuir a potência de vida”, e trabalhando sobre os mesmo elementos, libertar dele um projecto de sinal oposto1, capaz de inverter o sentido da destruição, deslocando-o da vida para a desagregação da própria sociedade do espectáculo. Na última fase da sua vida, a voz de Debord parece apontar para um lugar não reconciliado cada vez mais solitário, que se subtrai ao político, como construção de

© Colecção Alice Debord

texto


APOSTA

si no aqui e no agora, de onde testemunha a vitória aparente da sociedade de que fora visionário pelas suas análises no livro La Société du Spectacle, lugar sobretudo sintomático de um poder de recusa em relação às leis do espectáculo. No entanto, os seus filmes mais tardios, nomeadamente In Girum imus nocte et consumimur igni, espécie de filme balanço e retrospectivo, se por um lado acompanham este movimento, tornando a sua crítica do lixo organizado do mundo indissociável do seu próprio auto-retrato em tom melancólico, por outro podem ainda ser vistos, à semelhança dos primeiros, à luz das analogias que mantêm, em termos composicionais, com o trabalho teórico anterior, centrado no conceito de situação criada, que deu o nome ao situacionismo. O diagnóstico do espectáculo como não vida e da sociedade como produtora incessante de funções de morte que se insinuam em todo o lado, contemplava como reverso a realização do seu negativo, i.e., a possibilidade de uma mudança mediante “acções apropriadas”2, capazes de anularem o espectáculo e a identificação entre espectador e o indivíduo. Segundo Debord, o espectáculo afastou numa representação o que era directamente vivido, criando um mundo da divisão, da estranheza e da não participação, tornando-se o modo dominante de relação entre os homens3. Neste sentido, qualquer actividade, qualquer instante da vida, qualquer ideia, poderiam ser qualificadas de alienadas, pois só teriam sentido fora de si4. O espectáculo mostra a vida às pessoas, mas enquanto representação separada das suas existências. A transformação revolucionária seria fazê-las viver, voltando a reunir a vida e a sua potência. Sendo uma situação construída “um momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização colectiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos”5, o programa de criação de situações propunha aos homens, como única razão de viver, a construção por si próprios da sua vida. A efectividade e realidade do projecto coincidiriam também com o fim da arte (a auto-destruição da arte moderna seria uma sintoma da crise geral dos meios artísticos tradicionais, revelando por sua vez a crise da experiência, ligada à reivindicação de experimentar outros usos para a vida)6, enquanto esfera separada e excepcional reservada à actividade criadora livre, permitindo a entrada do 48

tempo histórico e da transformação do real na vida e assim, a sua indiferenciação da arte. “Quando Debord diz que é necessário construir situações, é sempre algo que podemos repetir e algo de único”7 e, aqui, tal como assinala Giorgio Agamben, o seu modo de composição cinematográfico encontra ecos na teoria, a partir do paradigma do détournement, definido como “desvio de elementos estéticos pré-fabricados e integração de produções actuais ou passadas das artes numa construção superior do meio”8. À semelhança do modo como eram concebidas as situações, cuja construção deveria começar para além da decomposição da sociedade do espectáculo, o cinema de Debord é uma tentativa de reconciliar, de tornar indiscerníveis, a redundância e a irreversibilidade. Para Debord, a tradução da sua crítica da sociedade em imagens passava também por denunciar, no limite da destruição, o próprio cinema e a sua reprodução da temporalidade do espectáculo, que conciliaria o tempo linear e irreversível da produção capitalista com o tempo pseudo-cíclico do consumo de imagens, fabricando “o tempo da realidade que se transforma, vivido ilusoriamente”, e deste modo o espectador e a sua docilidade9. Contra e com o cinema, o détournement cinematográfico, feito da reutilização, entre outras, de imagens “roubadas” à história do cinema, à publicidade, à actualidade televisiva, permitiria ao mesmo tempo meter em cena a dissolução do cinema na sua ligação à alienação do espectáculo e ao seu princípio da não intervenção e reinventar o tempo vivido, através da criação de um espaço, agora de natureza cinematográfica, em que a repetição, ao pôr em causa a irreversibilidade do tempo linear do capitalismo espectacular, ressuscitaria um outro tempo irreversível, individual e colectivo, subtraído à cronologia e feito de uma variedade de tempos autónomos, ligados entre si10, relançando assim o mundo e os seus possíveis. Com efeito, ao repetir as representações, as imagens da realidade, o cinema de Debord desloca-as, e fá-las assim entrar em relação, fora do espaço do horizonte da representação, com o tempo de vida a libertar. Deste modo, uma das consequências imediatas desejadas por Debord, com os seus filmes, seria a provocação crítica do espectador, numa

anulação da separação entre este e o espaço cinematográfico. Desde os primeiros filmes que Debord pretende deslocar os poderes do cinema da sua subordinação ao espectáculo e torná-lo apto a transmitir o que se lhe quisesse confiar, o que corresponde entre 1952 e 1961, com os três primeiros filmes, a um modo de emprego do détournement considerado na óptica das posições situacionistas, enquanto expressão da negação e desvalorização do passado cultural e prelúdio da realização da tarefa histórica de realização das respectivas ideias na vida prática. Em Hurlements en faveur de Sade, primeiro filme de Debord, o détournement incide exclusivamente na palavra, que se encadeia, por intermédio de várias vozes, sobre planos brancos que alternam com planos negros silenciosos. Nos filmes seguintes, Sur le

passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps e Critique de la séparation, a técnica utilizada para a banda de som estende-se agora igualmente à imagem, composta de uma mistura de planos realizados pelo autor e de imagens desviadas dos seus contextos originais, da banda desenhada à publicidade, passando pelo cinema, que enfatizam os elementos estritamente pessoais. A partir de 1974, com o filme La Société du Spectacle, em que se trata, na senda do projecto de adaptação de O Capital de Karl Marx, por Eisenstein, de dar visibilidade cinematográfica ao seu livro maior, e culminando com In Girum, o cinema de Debord põe fim à época da Internacional Situacionista enquanto actividade constituída e adquire outros contornos estilísticos, ao mesmo tempo que instala outras perspectivas teóricas e práticas. O détournement sobre imagens pré-existentes, em que ganham predominância os extractos de filmes de ficção e as imagens de actualidades, combinados com alguns excertos dos seus filmes anteriores, entra agora em relação com a voz do próprio Debord, lendo a sua obra, ou oferecendo, como no caso de In girum, em conjunto com a teoria, enunciada com rigor clássico, o íntimo como traço de persistência do vivo, i.e., a história e os momentos de um itinerário. Se o texto em off, nos filmes de Debord, começou por se dar numa desejada desadequação face às imagens, com intuito de romper com os hábitos do espectáculo,

foi-se progressivamente aproximando de uma palavra crítica, não indiferente, nem complementar, enunciada pelo próprio autor contra as imagens, que repete, através da montagem, fora dos circuitos de reificação, retirando-lhes a sua aparente imediaticidade e autenticidade. Tal palavra, que só poderia coincidir com a voz do próprio Debord, aponta para esse ponto cego das imagens, em que elas se exibem como separadas, no interior e através do próprio cinema, ao mesmo tempo que são devolvidas na sua possibilidade renovada; esse ponto cego é simultaneamente a crítica da sociedade do espectáculo e a sua ultrapassagem.

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1 Cf. Giorgio Agamben, “Gloses marginales aux Commentaires sur la société du spectacle”, Moyens Sans Fins. Paris: Payot et Rivages, 1995, p. 89. 2 Cf. Guy Debord, “Rapports sur la construction des situations ” (1957), Œuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 309. 3 Cf. Guy Debord, “La séparation achevée”, La Société du spectale (1967). Paris: Gallimard, 1992. 4 Cf. Guy Debord, “Préliminaires pour une définition de l’unité du programme révolutionnaire” (1960), Œuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 513. 5 “Internationale situationniste nº 1” (1958), op. cit., p. 358. 6 Cf. Guy Debord, “Préliminaires …”, op. cit., pp. 516, 517. 7 Giorgio Agamben, “Le cinéma de Guy Debord”, Image et Mémoire. S/l: Hoëbeke, 1998, p. 73. 8 Guy Debord, “Internationale situationniste nº 1” (1958), Œuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 359. 9 Cf. Guy Debord, “Le temps spectaculaire”, La Société du spectale (1967). Paris: Gallimard, 1992. 10 Op. cit.

Com e Contra o cinema, a integral do cinema de Guy Debord comissariada por Ricardo Matos Cabo, decorre na Culturgest a 13 e 14 de Abril. A programação pode ser consultada em http://www.culturgest.pt/actual/debord.html

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VISTO DOS BASTIDORES / Miguel-Pedro Quadrio

O “PROPOSITADO ESTUDO” EM FREDERICO LOURENÇO E eis senão quando, o dilúvio. Frederico Lourenço – classicista, professor universitário, romancista e tradutor – foi precipitado dos píncaros críticos por quem – e já são alguns – se diz cansado de uma escrita que reputa de snob, ensimesmada e rebarbativamente gay. No seu mais recente livro – o volume de crónicas Valsas Nobres e Sentimentais, que a Cotovia lançou já este ano – Lourenço responde obliquamente aos seus detractores: “Confesso que sinto especial prazer na composição do tipo de texto a que se convencionou chamar ‘crónica’, prazer esse aliado à agradabilíssima sensação de estar, de facto, a comunicar-me – isto sem prejuízo da pose propositadamente estudada de pedante (traquinice cuja intenção irónica nem sempre é compreendida por quem me lê...)”. José Pacheco Pereira, no seu blogue Abrupto, espantava-se, em 2004, com Amar Não Acaba, relato autobiográfico que Lourenço publicou no Outono desse ano: “não sabia que alguém vivia assim entre nós”. E desenvolve a sua perplexidade: “O relato [...] é umas vezes franco, outras vezes bizarro, pela densidade cultural que parece sempre excessiva. Pode-se viver assim? Pode-se viver sempre dentro do texto dos outros? Pode-se viver sempre dentro dos gestos do bailado, das palavras dos lied [sic], do universo total e absoluto de Wagner? [...] Pode-se viver no meio da beleza transmitida pelas obras de arte sem que estas preencham todo o espaço do sentimento? O que é que sobra? Pode-se ser feliz num universo tão povoado de sentido? Duvido, mas também este livro não é sobre a felicidade, mas sim sobre o deslumbramento”.

“Sobre o deslumbramento”. Arguta pista de leitura para seguir o universo discursivo de Frederico Lourenço. Que este não se constituiu como deriva sobre a felicidade, parece-me óbvio. Nos vários títulos que foi publicando desde 2002 – ano em que saiu o primeiro volume da sua conhecida trilogia ficcional (Pode um Desejo Imenso, O Curso das Estrelas, também de 2002, e À Beira do Mundo, de 2003) –, intuise sempre o adiamento elíptico de uma epifania redentora. Afinal, o dilema insanável de se descrever como “católico homossexual” – título de um dos textos inéditos que surgem em Valsas... – não supõe um desenlace linear. Mas que o adiamento de Lourenço se faz sempre através de digressões deslumbradas, parece-me mais óbvio ainda. A metáfora de sabor renascentista, com evidente ressonância clássica, que dá nome a uma colectânea de contos editada em 2005 – A Formosa Pintura do Mundo –, subsume, talvez, esse programa surpreendente – Pacheco dixit – de harmonizar uma desordem cromática, esforço que radica no propositado estudo de quem sabe que sabe manipular os pincéis, as cores e, sobretudo, a técnica de as apaziguar. Mais que comunicar-se – ou viver e amar face a presenças tão intensas – o Lourenço que lemos é pura invenção. Seria, então, pueril confundir o autor-personagem que se infere dos seus textos – e que os protagoniza, entre eles transitando e se matizando – com Frederico Lourenço himself (e as suas insistências prefaciais nesta coincidência mais não são que uma “traquinice” sabida de cor pela literatura – mesmo a portuguesa –, a que, desde o Romantismo, os escritores se entregam com furiosa e deliciada ironia). A verosimilhança que se 50

exige à narrativa literária – mais ainda no horizonte naturalista anglo-saxónico da primeira metade do século XX, que o autor reencena –, leva-o explorar toda a paleta plausível do seu diletante oxoniense “Frederico Lourenço de papel”, agravando assim uma caracterização que é necessária mas diversamente snob, ensimesmada e rebarbativamente gay. Ora, mais curioso que esta evidente (e previsível) performatividade, afigura-se-me a autonomia e identidade que a sua voz consolida em Valsas Nobres e Sentimentais. O requinte quase perverso de uma sintaxe e de uma semântica fulgurantemente objectivadas – e dominadas, saliente-se – serve com meticulosidade um progressivo refinamento temático. O trabalho da ironia – figura estruturante destes ensaios literários – desmente, aliás, essa tonalidade pastel com que brinca, às vezes quase à beira dum escárnio vulgar, o traquinas Frederico. Lidos com atenção, estes textos são profundamente pós-modernos no modo como encenam um “eu” em vertigem desamparada e excessiva (bem mais carnais que Pacheco os supõe); como buscam uma analogia platónica para o “bem”, que tarda em revelar-se, numa beleza teatral em que humaníssimos deuses de subtis pés de barro se mascaram e desmascaram (as desafinações de Callas, as tonalidades do mar grego, o genial equívoco confessional que constitui o texto “Pôr-me a nu” ou a revelação despudorada, mas genuinamente apaixonada, da “matéria negra” de Elisabeth Schwarzkopf, em “Sete crónicas eruditas sobre E. S.”).

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mpquadrio@revistaobscena.com


ÍNDICE DIAS DO JUÍZO

ESPECTÁCULOS

MATRIOSKA (54) de Tiago Guedes

POR QUIÉN LLORAN MIS AMORES? (55)

CARTA DE PARIS (56) Dedicated to Judy Garland

de Tino Férnandez

de Rufus Wainwrigth

Don Giovanni de Mozart, encenação de Michael Haneke

STABAT MATER (57)

KEEPSAKE (58)

de Jorge Silva Melo/Artistas Unidos

de Gonçalo Ferreira de Almeida e Maria Duarte

LIVROS

RICARDO PAIS: ACTOS E VARIEDADES (60)

LA DIRECTION D’ACTEURS (62)

de Paulo Eduardo Carvalho

de Sophie Proust

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VANITAS (64) de Almeida Faria e Paula Rego


DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS

PALIMPSESTO Cristina Peres O facto de haver espectáculos que são construídos para interpelarem especificamente públicos mais jovens pode muito bem servir para levar todos os públicos a fazer uma reflexão sobre a sua própria relação com o objecto espectáculo. É que, apesar de se atribuir aos críticos o papel e a necessidade de rotular as obras sobre as quais discorrem, seria da mais correcta honestidade reconhecer o jeito que essa parcela da actividade crítica dá à maioria das pessoas que não abdica de querer saber o que vai ver, ou de recorrer a interpretações sobre o que acabou de ver. Tiago Guedes concebeu a sua última criação – Matrioska – para um público com idades compreendidas entre os seis e os dez anos a partir de um postulado tão indefinido e passível de múltiplas interpretações como isto: “muitas vezes o que vemos à frente dos nossos olhos não é mais do que uma primeira imagem, a mais imediata de muitas outras que estarão por detrás dela”. No espaço todo negro da Sala de Ensaio do Centro Cultural de Belém, um dispositivo com duas telas brancas flexíveis opacas (cenografia e figurinos de Catarina Saraiva) servia de interface às manipulações feitas por trás delas e criava, ao mesmo tempo, o lugar da cena e o da narrativa, o do mistério escondido lá por trás. Ao ocultar os intérpretes – que no início têm um papel de manipuladores dos materiais e não têm mais materialidade que a das suas vozes – a tela propõe uma multiplicidade de leituras para o que está a acontecer. E deixa a quem assiste o papel de gerir a identificação das visões que são sugeridas. O espectáculo parte da ideia de que existem muitas camadas sobrepostas nas coisas que vemos (lê-se na folha de sala) e as crianças – que constituíam a maioria do público presente na série de espectáculos que decorreram no CCB entre 3 e 11 de Março –, entregamse ao jogo da adivinha, tentando antecipar-se à acção e identificar signos e significados. Rapidamente se percebe que Matrioska se estrutura numa construção simples que dá respostas em forma de pistas tão abertas quanto a imaginação dos espectadores. A cada um o seu próprio percurso interpretativo. A peça divide-se em duas partes. Há uma primeira em que o postulado cénico é constituído pelos dispositivos de tela flexível e pelo linóleo no chão, ambos brancos, e em que há formas apenas esboçadas e música ou vozes. Numa segunda parte, os corpos dos intérpretes passam a habitar esse espaço à frente do dispositivo, ainda que o “estar presente” não tenha por fim “desvendar o enigma”. Pelo contrário, vem simplesmente formular situações relacionais entre ambos, nas quais não há narrativa explicativa. Há, sim, um corpo a representar uma incógnita. Pietro Romani surge escondido dentro de uma bola prateada flexível que não deixa adivinhar o modo como é manipulada e, quando sai dela, continua

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integralmente envolto por uma malha preta que o transforma numa sombra. Inês Jacques, com umas calças brancas e uma blusa azul, esconde-se por trás de uns óculos escuros e dá uma ideia de acessibilidade que é contrariada pela qualidade de distância dos movimentos que interpreta e pelo modo como se posiciona no espaço. A concepção é inteligente e tem a eficácia de levar os espectadores mais pequenos a deixarem progressivamente de se precipitarem para respostas imediatistas às perguntas com que metralhavam os acompanhantes mais velhos no início – “o que é isto? quem é que está a mexer?”. Matrioska mantém uma lógica de construção

METÁFORAS EM COPOS VAZIOS Tiago Bartolomeu Costa Se tivermos que imediatamente identificar um nome da dança da América Latina, que tenha provado a sua relevância para a história da dança mundial, a tarefa é difícil. O exemplo mais saliente é sem dúvida o coreógrafo mexicano José Límon, que em 1928 se mudou para Nova Iorque onde fundaria, em 1946, a primeira companhia de dança moderna, tendo desenvolvido a técnica Límon, que equilibra os princípios de peso, queda e

© DR

© Dmitri Wazemski / RE.AL 2007

que permite apontar sinais ao longo de todo o seu desenvolvimento que indicam algumas pistas de leitura. E nunca ceder à construção de uma história nem faz uma piscadela de olho conciliatória “aos miúdos”. De tal modo que fica por apurar se os adultos terão considerado respondidas as questões que se terão colocado no silêncio dos seus pensamentos.

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Depois de se ter apresentado no CCB, em Março, Matrioska, de Tiago Guedes, poderá ser visto novamente em Lisboa, na Culturgest, de 5 a 11 de Maio, e em Viseu, no Teatro Viriato, de 17 a 19 do mesmo mês.

recuperação. Mas, se tivermos de referir um nome da dança colombiana, o desafio é ainda maior. A verdade é que são poucos os ecos que nos chegam dessas paragens, sendo bastante diferentes as realidades na Argentina, Uruguai, México, Colômbia e mesmo Brasil. Para a nossa situação de europeus, que assiste aos seus coreógrafos e bailarinos num constante cruzar de fronteiras, indo em busca das referências ou das condições e técnicas que lhes permitam a fundamentação de um trabalho (chegando inclusive a Nova Iorque), o que se passa na América do Sul permanece um mistério. E não fossem os festivais – como o A Sul, em Faro, que se tem dedicado a trazer coreógrafos do México, Porto Rico, Venezuela ou Brasil (e, em 2004, a Argentina) – e certamente não seria fácil encontrar exemplos mais ou menos reveladores do modo como a dança é pensada e executada por aquelas paragens. A presença em Portugal da companhia colombiana L’Explose, criada em 1991 pelo asturiano Tino Fernández em Paris é, por isso, raro. Raro por aquilo que este cruzamento de realidades distintas supõe, mas raro sobretudo pela adesão que encontrou junto de um público também ele particular, o de Almada. Foi precisamente em Almada, durante a edição de 2005 do Festival conduzido por Joaquim Benite que a companhia L’Explose recebeu, de surpresa, o prémio de Espectáculo de Honra, com La Mirada del Avestruz, de 2001, parábola sobre a realidade da Colômbia a partir de his-

tórias individuais de exclusão, solidão e sobrevivência. O espectáculo voltou a ser apresentado na edição seguinte. A 18 de Março passado, o Teatro Azul, em Almada, do mesmo Benite, mostrou uma peça anterior, Por Quién Lloran Mis Amores?, criada para celebrar os dez anos da companhia. É curioso verificar que se a peça pouco dirá a um público habituado a ver mais aprofundamento na estruturação do movimento e na manipulação de uma dramaturgia e de uma narratividade, poderá cativar pelo lado emotivo – diria mesmo trágico – com que se desenvolve. Uma emoção que provém de um discurso feito de impulsos, de códigos femininos, dependente de uma entrega quase visceral. Ou melhor, religiosa. Isto não é um despropósito porque, precisamente, sendo a Colômbia um país com 95 por cento de católicos é natural encontrar num espectáculo onde o corpo toma o centro da acção uma reflexão sobre o poder da religião. O caso de Por Quién Lloran Mis Amores? é curioso já que parece evocar uma certa dimensão evocativa e ascética, onde a mulher, virgem e sacrificada, se entrega a um poder maior que aquele que deseja e controla. A coreografia vive, aliás, de uma ideia de dependência do corpo em relação ao objecto: quatrocentos copos de vidro dispostos como se de um tabuleiro de xadrez se tratasse. Depressa se percebe que estarão em causa relações e jogos de equilíbrio, risco e força. A força e a pujança dos seus movimentos, que acabam por fazer desmanchar a organizada cenografia, são rituais de exorcismo, aliás referenciados na folha de sala. Mas a peça nunca chega a ir para lá da deslocação para os copos de uma suposta violência exercida no corpo semi-despido da bailarina, incluindo uma torre feita de copos empilhados, que ela adora (um totem, logo, um falo?). A banda-sonora, que combina uma batida electrónica com a world music de discoteca, não ajuda. E o movimento, entre o moderno e a suposta reminiscência bacantiana, também não. Redunda tudo num facilitismo e evidência pouco estimulantes, por mais interessante que pudesse ser a construção de uma metáfora sobre a permanência da dúvida do meio cheio ou meio vazio. No fim ficamos sem saber porque choram os amores dela. Sabemos apenas que ela sofre muito com isso. E com ela, os copos.

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Por Quién Lloran Mis Amores?, de Tino Fernández, apresentou-se no Teatro Azul, em Almada, a 18 de Março.

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DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS

CARTA DE PARIS

que são as coisas de uma vez só, de uma noite só, coisas irrepetíveis. Ouvi, de repente, quase com sobressalto, What’ll I Do, pela família Wainwright e, como sempre que se fala em “uma só vez”, lembrei-me de Rufus e de Judy Garland, a cantar Do It Again. Il Dissoluto Punito Ossia il Don Giovanni, na encenação de Michael Haneke, foi apresentada na Opéra Bastille, em Paris, em Fevereiro. Rufus Wainwright apresentou o espectáculo Dedicated to Judy Garland no Olympia, em Paris, dia 20 de Fevereiro de 2007.

João Carneiro A ideia era ir a Paris ver o espectáculo do Rufus Wainwright. Tinha lido as críticas sobre a estreia, em Nova Iorque, em Junho de 2006, e tinha ficado cheio de pena de não ter estado no Carnegie Hall. Quando soube que o rapaz ia fazer a mesma coisa em Londres e Paris, em Fevereiro, saltei como uma mola e marquei bilhetes para o Olympia; dia 20 de Fevereiro, entre os dois concertos no Palladium em Londres. Já em Paris, uns dias antes do concerto, um amigo insistiu para que fosse assistir à última representação do Don Giovanni, de Mozart, na Opera Bastille, dia 17 de Fevereiro. Não resistindo a convite tão amável e a lugares tão bons, lá fui. A encenação era de Michael Haneke, realizador de quem não tinha visto um único filme, mas de quem esperava, com alguma reserva, confesso, uma versão actualizada da ópera de Mozart, coisa de que me habituei a esperar o pior. Lá estava o cenário, uma espécie de hall de um edifício moderno, sede de multinacional ou coisa semelhante, talvez em Nova Iorque, mas podia ser noutra cidade qualquer. A abertura soou bem, e tentei memorizar o nome do maestro, Michael Gütler. Para minha grande satisfação, o resto também correu bem. Os cantores eram bons, nomeadamente o Don Giovanni de Peter Mattei, mas principalmente o Leporello e o Masetto, de Luca Pisaroni e de David Bisic. Shawn Mathey foi um bom Don Ottavio. A Zerlina de Aleksandra Zamojska era totalmente insignificante, mas a Elvira de Arpiné Rahdjian tinha uma bela voz, e cantava competentemente. Christine Schäffer era a Donna Anna. Começo sempre por achar que ela é irritantemente insignificante, para depois se revelar uma cantora realmente competente, inteligente, à altura das dificuldades. Mas a grande revelação foi a encenação. Michael Haneke conseguiu a proeza de colocar a acção no nosso tempo presente de maneira convincente, construindo uma nova biografia para cada personagem; Giovanni é director geral de uma empresa, Leporello é seu assistente, Elvira foi sua colega, mas não subiu tanto, o casal Zerlina e Masetto são empregados de limpeza. Donna Anna é a sua rival, filha de uma grande patrão, o Comendador. O que está em jogo é o poder de Giovanni, ligado ao dinheiro e à sua capacidade de atracção sexual. Quem está abaixo dele ou tem medo dele – Leporello, os empregados da limpeza – ou está cego de paixão, dependência emocional e física, como Elvira. Anna é o grande problema da ópera, figura ambígua na sua relação com o poder, a sexualidade e a noção das conveniências, e aqui tudo se passa tal e qual como está escrito. Não importa que haja elevadores, ou que Giovanni e Leporello encomendem o jantar no Fauchon; a estruturação dramatúrgica da encenação funciona e a ópera remete-nos para um presente em que divertimento e inquietação andam de mãos de 56

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COROAS DE ESPINHOS DESEJADA Dedicated to Judy Garland © Thimothy Greenfield-Sanders

Tiago Bartolomeu Costa

dadas, tal qual como no século dezoito, ou noutros séculos, e tal como suspeitamos sempre que ouvimos a obra de Mozart. E no dia 20, com bilhetes esgotados há duas semanas, Rufus fez em Paris a sua homenagem a Judy Garland, repetindo nota por nota o concerto de 1961, no Carnegie Hall, quando a cantora fez um come back para muitos inesperado. Com uma orquestra dirigida por Stephen Ormus, que recriava na perfeição os arranjos originais de 1961, Rufus, num fato dourado de Viktor & Rolf, apresentou um espectáculo memorável. Não repetiu as piadas da cantora, mas falou para dizer que estava constipado, o que fazia parte da “tradição” Garland. Depois da irresistível abertura, atacou um extraordinário When You’re Smiling que pôs logo em evidência algumas das suas melhores características: a justeza musical das frases, a utilização de uma voz só aparentemente monocórdica, a extraordinária noção de ritmo. Foi este ritmo, aliás, que percorreu todo o espectáculo, de You Go To My Head a Who Cares, de Puttin’ on The Ritz a Just You, Just Me, de That’s Entertainment a Swanee, passando por San Francisco e por Chicago. Do It Again, cantado na tessitura original de Judy Garland, foi um momento de invulgar requinte interpretativo, tal como I Can’t Give You Anything But Love, na segunda parte, já com a voz a caminhar irremediavelmente para a afonia, mas com o talento intacto. Lorna Luft, filha da cantora, irrompeu como um vulcão num extraordinário After You’ve Gone e Martha Wainwright, irmã de Rufus, cantou um Stormy Weather memorável. Para terminar: escrevo esta carta de Paris já em Lisboa, e entretanto assisti a One Night Only, uma rádio-conferência de André Murraças, no Teatro Maria Matos. Em menos de uma hora, o artista falou de si e da sua rua, da sua casa, das noites e dos vizinhos. Por virtude do seu discurso, a minha memória vagueou até ao concerto de Rufus Wainwright, umas semanas antes em Paris. Revivi emoções, refiz lembranças, misturei coisas estritamente pessoais com coisas menos pessoais. E lembrei-me deste texto que ainda não tinha escrito, e do

Que se saiba, Santa Teresa d’Ávila nunca foi mãe. Mas é dela, ou das suas palavras, que me recordo quando penso naquela Maria, interpretada por Maria João Luís na peça Stabat Mater. “Toda me entreguei, sem fim, / e de tal sorte hei trocado, / que é meu Amado para mim, / e eu sou para meu Amado”*, sentiu Teresa, mulher de um Deus só. Mas palavras que Maria, mulher de um homem só, assinaria, se tempo tivesse para assinar o que fosse. Maria, amante de João, procura o filho que aquele lhe fez e ao qual ela se agarra, porque mais nada lhe sobra. Talvez um relógio que o pai lhe trouxe das campanhas de África, e ela guarda religiosamente porque “se um Omega diz que são dez horas é porque são dez horas”. E Maria está à espera. Primeiro de João, o que está casado com aquela que cheira “a pipa de chulé” e de que a família, pai, tios, primos e irmãos se serviu “pela frente e por detrás”. Depois pelo filho, que ninguém sabe onde pára, só “a puta da Madalena que o viciou em Nutela”. Mas essa também não aparece e o juiz, “paneleiro”, não lhe conta de que crimes acusam o filho. Maria espera naquela espécie de “sinagoga sinistra” feita de cartão (cenário de Rita Lopes Alves), fria, vazia, abandonada. Mais do que o texto – nem sempre consequente, mas apenas veículo para provar que não há metáfora que vença a matriz religiosa –, é a encenação de Jorge Silva Melo, discreta e apenas pontuando a presença da actriz, que activa os fantasmas de Roberto Rossellini e de Bertolt Brecht. Do primeiro, não tanto por a peça ser de um italiano – Antonio Tarantino –, mas porque foi naquelas mulheres, como Silvana Mangano, Gina Lollobrigida, Sophia Loren e Anna Magnani, que aprendemos a gostar do travo amargo da descrença. “Da vida sei eu, dos perigos da vida sei eu”, cospe-nos esta Maria. Do segundo, porque aquela mulher resiste, tal como a Mãe Coragem, epicamente, apesar do que sobre ela se abate. Mas insiste e levanta-se a cada derrota. Com ela não há engodos. “Não tenho escrito na testa vinhos e petiscos”, avisa. E só por isso somos capazes de lhe perdoar qualquer traço mais despótico. Ela ofende os outros, chama-lhes nomes, escarra-lhes e despreza-os. Fala sozinha mas dirige-se a todos: bran-

cos, marroquinos, paneleiros e burguesas, padres, putas, juízes, traficantes, chulos e amantes. Só defende o filho. Porque esse tinha “uma cabeça” e “quem tem uma cabeça tem tudo”. Maria João Luís, actriz rara, é Maria, “tudo aquilo que Cristo odeia”. E é-o mais do que enquanto actriz. É um exemplo de entrega absoluta ao qual nos rendemos, pasmando, mas agradecendo, a raridade do bem. Pasmando porque escasseiam momentos assim. Agradecendo, porque quando aparecem dão novo sentido, e alento, a este ramerrame de nomes e caras e textos e personagens. Reside nos seus silêncios, tão longos que incomodam, no seu olhar, fixado em todos os pontos, nas suas mãos, nervosas e calejadas, todo um programa de representação despojado, sem pressas, sem cedências

© Artistas Unidos

fáceis. Maria João Luís entrega-se àquele texto, de peito aberto e alma exposta, sem esperar pela “ressurreição”. Como Maria, segue o conselho do Padre Alt “não acredite em nada, o mundo levanta-se cedo”. Acautela-se porque “a política mandou Cristo para a cadeia” E se com esse foi assim... Stabat Mater é a denúncia de um estado de alma no qual a inteligência nada pode. Revela a podridão de um sistema de classes falhado. Provoca o rasgar insano de fronteiras, limites e resistências e a coragem de viver porque se deu à luz aquele filho, “aquela cabeça”. E não deve nada ao existencialismo. Estamos para lá de quaisquer teorizações. Estamos no domínio do amor, visceral e eterno. Como o de Santa Teresa, tão louca e tão cega como esta Maria. Abençoada seja!

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*Excerto do poema Sobre Aquelas Palavras – Dilectus Meus Mihi, Seta de Fogo, tradução de José Bento (Assírio & Alvim).

Stabat Mater, encenação de Jorge Silva Melo, esteve em cena no Convento das Mónicas durante o mês de Março e apresenta-se na ACE / Teatro do Bolhão, Porto, dias 2 e 6 de Junho.

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DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS

DIAS LIMITADOS Mónica Guerreiro Há uma série de paradigmas para o exercício crítico que somos amiúde levados a equacionar e a praticar, sem que seja possível escolher apenas um para toda a vida e todos os espectáculos. Alguns defendem que, antes de se assistir a dado espectáculo, é imprescindível reunir sobre ele a maior quantidade possível de informação: ler a peça, se existente, coligir o que quer que os jornais tenham publicado sobre o assunto, consultar a fortuna crítica da carreira do espectáculo, caso não se trate de uma estreia. Outros críticos julgam que não é forma de proceder: que a única maneira de “julgar” um acontecimento artístico é visioná-lo na sua integridade, na natureza de objecto totalizador que reúne, necessariamente, toda a informação relevante. Nos casos de peças inéditas, por exemplo, acreditam que a leitura prévia subtrai irremediavelmente ao espectador a possibilidade de “ver” aquele texto nas suas qualidades cénicas, plásticas, cinésicas, rítmicas, elocutórias. Como acima escrevi, não pode haver um paradigma único, porque cada nova produção impõe desafios outros; creio, aliás, que tão pouco exista proposta acerca do que deverá um crítico fazer quando confrontado com um espectáculo anunciado “a partir de” um objecto artístico de natureza fílmica, a saber, de um documentário. Vê-lo antes proporcionará vantagens diferentes daquelas invocadas por quem opta por ver depois do espectáculo, ou não ver de todo. Face a Keepsake, o título enigmático do trabalho de Gonçalo Ferreira de Almeida e Maria Duarte a partir do filme Grey Gardens (1975), dos Irmãos Maysles, essa escolha coloca-se de forma ainda mais determinante, dado que os artistas, por manifestamente recusarem “acrescentar” discursivamente seja o que for àquilo que apresentam em palco, fornecem um mínimo de informação (e mesmo essa, distorcida) sobre as suas intenções. Da folha de sala constam, assim, por esta ordem: uma fotografia de João Rodrigues (também autor do espaço cénico e da luz) que parece corresponder a uma intervenção sobre um fotograma ou uma imagem de promoção do referido documentário; a ficha artística; um glossário que identifica as personagens, a localização da “cena” e alguns outros elementos considerados importantes (nomes de amigos e empregados da família, escritores e músicos mencionados; uma listagem das canções citadas, devidamente creditadas; três fotografias adicionais, da mansão, dos jardins, e uma última que, novamente, corresponde a um still, desta vez do filme que é projectado em cena ao longo do espectáculo. De novo, quase nenhum destes dados

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Keepsake © João Rodrigues

tem qualquer legibilidade para o espectador antes do visionamento do espectáculo. Tendo optado por não assistir a cópia do documentário, munida de uma folha de sala pouco esclarecedora e tendo previamente lido um artigo no Expresso, no qual Maria Duarte explica apenas que Keepsake “não é uma versão cénica do filme, uma mimesis, mas uma leitura-tradução que é completamente reformulada por nós”, avancei para a Culturgest, onde o espectáculo se apresentou seis dias. Sobre um estrado que, subtilmente, deixava à vista parte do seu interior, acentuando tratarem-se aquelas de verdadeiras “tábuas” e assinalando o carácter eminentemente meta-teatral do exercício (a presença exposta do ponto, se primeiramente funcional, servia também como sinal disso), desenvolvia-se uma relação difícil, tensional, entre uma mãe e uma filha. O ponto de partida – a visita à mansão de dois documentaristas, que imaginamos situados na posição ora ocupada pela plateia – leva as anfitriãs a atalhar um desvio relativamente à “naturalidade” das suas vidas (realidade cruel que, porém, não levarão muito tempo a deixar revelar). Começam por rever fotografias, tomadas de entusiasmo, seguido de amargura; recordam melodias saídas da rádio ou das suas memórias, o que carrega consigo toda uma frustração por não terem perseguido (quer uma quer outra) uma ambicionada carreira artística; num constante refigurar de si mesma frente às câmaras, Edie-filha despe-se e veste-se e canta e dança numa sofreguidão de representação, imaginando aqueles dias como um pequeno resgate de uma vida sem utilidade, sem diversão e sem amor (situações de que sistematicamente culpa a mãe). “I think my days at Grey Gardens are limited”, queixa-se, mergulhada no “sea of leaves” que é o cerrado jardim que rodeia a decadente mansão. Gonçalo Ferreira de Almeida e Maria Duarte são corpo às duas personagens com uma disponibilidade física

irrepreensível, assegurada em primeira instância pela (suposta?) fidelidade ao objecto de origem: uma matriarca superior e emotiva, de gestualidade limitada e elegante, que escolhe ignorar os lamentos da filha e fingir que a harmonia impera; uma filha que viu a vida passar por si, que não ultrapassa a angústia de não se ter realizado, mas cujo enorme sorriso e voz cristalina não denunciam por um instante a tristeza por que está tomada. Atrás das duas mulheres, uma superfície de projecção faz as vezes de janela que filtra o sol poente que bate numa parede branca, captado por um plano fixo que deixa ver não mais que uns insectos, num certeiro sinalizar da passagem do tempo sobre aquela casa e aquelas pessoas, um tempo pesado e lento, que é também sintoma da inércia a que elas, por conservadorismo, não conseguem escapar. “Representando” – “performando” seria um termo melhor – uma série de diálogos que são eles próprios actuações pensadas para assim dar às câmaras uma “representação”, a dupla de artistas consegue acrescentar camadas significantes a um objecto cuja fragilidade é deliberada e cuja força nasce precisamente da modéstia do fazer teatral que aqui assumem. Enquanto pesquisa em torno das possibilidade de representação sobre um exercício de representação (um espectáculo teatral que assume como “guião” um filme documentário, onde a vida se mostra não exactamente como é mas como se deseja ver representada), se assim foi como o pensaram os seus autores, Keepsake não deixa de ser uma proposta conseguida. Mas o alcance do jogo fica sempre por perceber para quem desconhece o objecto originário: a preservação da língua inglesa, por exemplo, parece indiciar um esforço de fidelidade a Grey Gardens. Mas como articular isto (as impressões deixadas pela experiência do espectáculo) com as afirmação dos autores de que este trabalho corresponde a “uma leitura-tradução”, “completamente reformulada por nós”? Apesar de potencialmente estimulante, o projecto deixa por esclarecer ao que vem. E a isso, não há paradigmas que resistam.

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Keepsake, de Gonçalo Ferreira de Almeida e Maria Duarte, apresentou-se de 19 a 24 de Março, na Culturgest, Lisboa, e está em cena no Teatro Viriato, em Viseu, dias 27 e 28 de Abril.


DIAS DO JUÍZO / LIVROS

PERVERSAMENTE PLURAL Francesca Rayner

Em 1998, vi Noite de Reis no Teatro Nacional São João. Saí do teatro impressionada com a maturidade da leitura do texto e a beleza da encenação. Lembro ainda as cores dos figurinos, a leveza dos movimentos, o rigor no dizer do texto traduzido, também ele excelente. Parecia-me um Shakespeare contemporâneo e português sem as conotações pomposas de universalidade que estes termos às vezes evocam. Saboreei também os pequenos toques queer na encenação, onde o género e a sexualidade figuravam como locais de metamorfoses imprevisíveis. A inovação de Ricardo Pais residia nas interligações construídas entre os vários elementos da encenação, desde os figurinos à música, até à cenografia de modo a criar no palco um série de encontros e desencontros amorosos e sem hierarquias entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Em 2002, voltei a ver Shakespeare no São João, desta vez Hamlet. Assisti a uma encenação parada, onde a sombra de um clássico

pesava sobre tudo que acontecia em palco. Era palpável a falta de confiança dos actores. Contra a misoginia de Hamlet, algo ridículo na sua expressão física, Ofélia, coitada, nem se podia mexer na sua cadeira de praia, tão fortes os laços que a seguravam. Um Hamlet a Mais (2003) incorporou em si uma auto-crítica deste primeiro Hamlet e a produção foi em muito melhorada. No material crítico que acompanhava esta produção, a misoginia do texto era explicitamente identificada como um problema, exemplo raro no panorama português, testemunho de que a encenação contemporânea pode intervir activamente na reconfiguração das políticas sexuais do texto. De semelhantes paradoxos de percurso e da reflexão crítica sobre eles, é construído Ricardo Pais: Actos e Variedades. A escolha de Pais como tema de um livro é certamente feliz. A sua exploração das relações possíveis entre diversas linguagens de cena e possibilidades tecnológicas é feita com um rigor artístico invulgar. A diversidade de lugares que ocupou, bem como a sua abertura a distintas colaborações, permite subverter a lógica insular de muitos livros sobre figuras das artes do espectáculo. A obra contribui também para uma visão mais ampla de tendências e indivíduos que marcaram as artes do palco nos últimos anos. No entanto, como o próprio autor reconhece, há factores que dificultam a escrita de um livro sobre Pais. Tentar transcrever em palavras os seus espectáculos e reflectir sobre o que os une corre o risco, por um lado, de unidimensionalizar uma experiência pluridimensional e, por outro, de uniformizar uma tra-

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jectória caracterizada pela pluralidade. Neste sentido a organização deste livro revela-se bastante inteligente. Recusando uma estrutura linear, o livro adopta uma estratégia prismática que permite uma constante mudança de perspectiva em relação ao trabalho de Pais através de capítulos individuais sobre textualidades, direcção de actores, cenografia, música e gestão cultural. Em cada capítulo, o livro entretece ágil e fluentemente comentários descritivos e analíticos do autor, afirmações do próprio Pais (importa referir, como aliás faz o autor, a perspicácia e prazer na natureza provocatória que estas comportam) e outras reflexões críticas. As referências bibliográficas são organizadas de maneira a não interromper a leitura do livro e a qualidade das fotografias é, em geral, excelente. A visão de Pais que sobressai do livro é a de um homem inquieto, exigente, quixotesco, excessivo, enriquecido pelo diálogo com os seus colaboradores. Contudo, a tentativa de fixar uma identidade é constantemente subvertida pelo humor. Na capa do livro, as imagens de Pais a fazer caretas sugerem mesmo algo de ridículo no esforço de elucidar o leitor sobre a sua figura e ajudam a desconstruir qualquer mitificação da sua personalidade. Quanto ao seu trabalho artístico, o livro evita afirmações generalistas e, através de um sistema de ecos interiores, revisita certas “obsessões” de Pais ao longo do seu percurso plural. Isto permite ao leitor do livro na sua totalidade uma visão multifacetada, mas também coerente da obra de Pais. É inevitável, mesmo num livro tão exaustivo e inteligentemente escri-

to, existirem pequenas irregularidades. O capítulo sobre a direcção de actores sublinha o grande investimento do encenador nesta área e contraria o sentimento expresso pelo próprio Pais de que este investimento é minimizado pelos críticos. No entanto, não senti que percebesse melhor depois da sua leitura como é que Pais constrói as suas cumplicidades artísticas na prática. O capítulo sobre a música é algo repetitivo e não capta a intensidade da paixão de Pais pela música e pelo uso do som. Existem outras áreas de interesse que o livro podia ter abordado, por exemplo as implicações de uma reconsideração de papéis de género da parte de Pais e dos seus colaboradores num mundo fortemente dominado por homens, ou as interligações entre o pós-moderno, o europeu e o sexualmente diferente nas suas encenações dos anos 90. Mas o que importa neste livro não é se os leitores concordam com tudo o que está lá escrito, mas se ressoa com as nossas impressões ou ideias, concorrendo assim para o seu enriquecimento. Inquestionavelmente, o livro faz isto. De certa forma, os pontos fortes do livro são os do próprio Ricardo Pais: inteligência, humor, abertura e a consciência da necessidade de um público bem informado. Trata-se de um livro rico e precioso sobre um homem que, por mais que proteste ter uma relação ambígua com o teatro, é certamente um homem apaixonado pelo que faz (Edição Campo das Letras, 2006, €42).

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DIAS DO JUÍZO / LIVROS

MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE A DIRECÇÃO DE ACTORES Carlos Pimenta

Esta obra, resultante da publicação da tese de doutoramento de Sophie Proust, orientada por Patrice Pavis, analisa ao longo de mais de 500 páginas as relações entre encenadores e actores e os seus diversos processos de abordagem à criação de um espectáculo. Sophie Proust, que se formou como actriz no Conservatório de Grenoble, encetou actividade docente depois da publicação da sua tese de doutoramento, na Universidade de Nice, na Universidade de Lille III e na Universidade de Paris III e Paris VIII, onde é responsável pelo Curso de Estudos Teatrais. Fundou em 2005 a sua própria companhia teatral, Le Cri du Temps. Tendo acompanhado ao longo de mais de dois anos o trabalho de encenadores como Bob Wilson, Mathias Langhoff, Denis Merleau e Yves Beaunesne, Sophie Proust procura nesta publicação uma exposição dos processos de trabalho de encenadores com os quais trabalhou enquanto assistente ou estagiária. Em complemento da sua participação efectiva no processo de construção dos espectáculos, Sophie Proust entrevistou outros encenadores e acto-

res, de entre os quais se destacam Stéphane Braunschweig, Luca Ronconi, Claude Régy, Philippe Caubére, André Benedetto e Ferruccio Soleri. Não pretendendo o estabelecimento de uma teoria ou um método relativo ao trabalho de direcção de autores, esta publicação releva, de uma forma bastante pormenorizada e activamente vivida pela autora, as diversas fases subjacentes à criação de um espectáculo, com as particularidades inerentes à diversidade dos processos criativos de encenadores e actores, evidenciando os seus contrastes e pontos de vista, como o ilustram os dois excertos seguintes: “Aquilo que descobrimos no trabalho de mesa e no contacto entre nós é um tesouro que não podemos perder quando passamos para o palco. É preciso primeiro escutar e escutarmo-nos. É preciso começar pelo silêncio, pela ausência de movimento e ouvir as vozes secretas do texto, procurando estar disponível para todas as sensibilidades que se manifestam a partir da escrita” (Claude Régy) “O meu trabalho consiste em estar no palco para aprender a ler. O actor e o encenador estão no palco porque não sabem ler. Assim, à custa de gestos repetidos, à custa da experimentação e do jogo, eles acabam por ler” (Alain Ollivier)

A estas duas abordagens antagónicas poderemos ainda acrescentar a praticada por Bob Wilson, para o qual é fundamental que o actor “imprima” o seu corpo no espaço e deixe que as palavras apareçam. No teatro, como noutras artes performativas, o processo criativo é, tão-somente, o resultado da implicação de um determinado conjunto de pessoas, num determinado momento espacio-temporal, em função de um determinado propó-

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sito. Para Sophie Proust o objectivo da direcção de actores consiste em guiar os actores através de um objecto – textual ou não – para realizar um espectáculo, ou seja, obter um resultado cénico concreto da expressão semântica, sensorial e plástica dos intérpretes e da sua “partitura”. Ao negar, ao longo de toda a obra, a existência de uma única metodologia generalizável, a autora permite-nos observar actores e encenadores em acção, cabendo-nos a extrapolação das diferentes aproximações, conceitos e abordagens. Foca o retrato-tipo do director e da direcção de actores, analisa a especificidade dos ensaios e da manifestação de uma linguagem própria, procura ultrapassar a relação binária encenador/actor para abordar uma “relação triangular”, que se alarga ao objecto artístico, e fecha com uma proposta de análise do discurso do director de actores, que hesita entre o fortuito e o intencional. Haverá, contudo, um método para dirigir actores? Claude Régy diz que não: “Nós não sabemos o que fazemos quando ensaiamos. Não sabemos mesmo o que fazemos”. Será que não sabemos? Ou somente julgamos não saber, porque lidamos com novas circunstâncias? Não obstante o seu elevado interesse documental e o evidente rigor enquanto trabalho de investigação, talvez a grande vantagem da obra de Sophie Proust esteja na possibilidade que também nos dá de participarmos num diálogo crítico entre variados protagonistas de uma mesma profissão. La Direction d’acteurs dans la mise en scène théâtrale contemporaine pode ser encomendado em www.lekti-ecriture.com/editeurs/Ladirection-d-acteurs.html (edição L’Entretemps, 2006, €30).

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DIAS DO JUÍZO / LIVROS

VANITAS Luís Rodrigues

Quando, pela primeira vez, li o conto Vanitas 51, Avenue d’Iéna de Almeida Faria, publicado na revista Colóquio/Letras em 1996, identifiquei nele um elogio a Calouste Gulbenkian. Hoje, volvidos mais de dez anos, mantenho essa mesma ideia e acrescento que se trata de um encómio não só do colecciona-

tas, tópico que evoca o verso que emoldura o Eclesiastes (1, 2): “Vanitas vanitatum, et omnia vanitas” (Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade). No texto bíblico, o rei de Jerusalém chega à conclusão de que a sabedoria, o prazer, os trabalhos que empreendeu e as coisas que adquiriu, “tudo é vaida-

do para a posteridade um legado que os manterá vivos na memória dos outros, vencendo o gesto indomável da morte. A morte, porém, é a mudança da fortuna. E a fortuna muda, porque da vida se tem a concepção vulnerável, sujeita à força que o homem não domina. Na tentativa de adiar

efemeridade da vida (rosas), a certeza da morte (caveiras) e a futilidade do prazer (garrafa): os três postulados maiores da vanitas. Por fim, no terceiro painel, o mais significativo no que ao tópico da vanitas diz respeito, uma mulher com um olhar severo, segurando uma foice na mão, encarna a morte naquela

(lembra-te que vais morrer), na iminência de tudo se perder de repente, sem se dar o devido valor àquilo que verdadeiramente interessa. Contudo, este universo feminino da pintura de Paula Rego (de mulheres que encarnam determinados papéis que poderiam ser autoretratos da própria pintora, dos

possibilitam a reedificação do templo da felicidade a que o coleccionador tem direito, sempre que lhe apeteça deleitar-se na contemplação das suas obras de arte. Para Gulbenkian, a arte é superior aos artistas, porque estes perecem na poalha do tempo e aquela permanece intocável, como uma concubi-

dor arménio em particular, mas sobretudo do coleccionador de obras de arte em geral. A partir deste texto, agora revisto e aumentado, a pintora Paula Rego, a pedido da Fundação Gulbenkian por ocasião do seu 50º aniversário, ilustrou um tríptico ao qual intitulou Vanitas. Quem lê o conto e depois observa a pintura, questiona-se sobre as semelhanças que existem entre ambos. A meu ver, o único elemento unificador e suficientemente abrangente para relacionar duas obras bastante diferentes é a vani-

de e vento que passa”. Consciente de que a vida é um sopro breve, o homem confere à memória os benefícios da máquina do tempo, voltando ao passado como espectador consciente da mortalidade do corpo e da possível imortalidade da obra. Assim o fazem Calouste Gulbenkian, como personagem do conto de Almeida Faria, e Paula Rego na sua própria pintura. Um e outro entretecem os fios da memória que pintarão os seus auto-retratos com os traços que os distinguiram, o primeiro como coleccionador e a segunda como pintora, deixan-

este encontro inevitável com a morte, Paula Rego coloca, no painel central, uma mulher sentada, de braços cruzados e com um ar revoltado, que pôs por detrás da cortina cinzenta a mesa que vemos nos outros painéis, onde se encontram todos os emblemas da morte, sobretudo o da direita, para onde se direcciona o seu olhar insubmisso. No painel da esquerda, uma mulher, reclinada sobre a mesa, parece ter sucumbido sob o efeito do álcool e emergido num sono que a fará acarear a morte. Ao seu redor, elementos há que lembram a

imagem clássica da Negra Ceifeira. A seu lado, surgem as insígnias da passagem do tempo (relógio), da brevidade da vida (rosa, guitarra), da tentação (serpente), da rapidez da morte (caveira) e um elemento da cultura portuguesa, a marafona, uma boneca com trajes tradicionais feita numa cruz que denuncia o sofrimento que se incrusta na vida humana. Os outros elementos como a máscara, o boneco, o ratinho e o macaco, afiguram-se como recordações do passado. Todos estes elementos servem para convocar e fixar esse “memento mori”

seus mais profundos pensamentos, sonhos e desejos) contrasta com o mundo masculino do conto de Almeida Faria que narra o encontro com o fantasma de Gulbenkian, antigo proprietário do “quase-palacete” de Paris, onde passou algumas noites. Quase todo o texto é preenchido por um longo monólogo do coleccionador que expõe as motivações que o levaram a adquirir algumas obras de arte, sobretudo naturezas-mortas, onde se plasma a noção de vanitas que se conjuga com as rugas do tempo e emerge da memória, cujas ruínas

na no harém de um “sultão” que a protege. Mas este encontro com o espectro do Gulbenkian mais não é do que, em última análise, um encontro com a própria morte, perante a qual o narrador nada ousa dizer em sinal de anuência ou reprovação. E o que dizer perante o poder inibidor da morte? (Edição Fundação Calouste Gulbenkian, €12,50).

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AgitPop / Rui Monteiro

O SOM DA FILIGRANA

A música dos Garoto é uma descoberta. Digamos antes: um continente de sensações a que a crítica deu pouca importância, o mercado abandonou ao seu destino e o povo ignorou. A padronização e a sua irmã gémea, a falta de curiosidade,

por um lado; a insistência dos média, do público e do comércio da música no já conhecido, por outro, são com certeza os responsáveis pelo desamparo a que estas canções têm sido votadas. No entanto, ouvir o trabalho desta banda em disco, ou assistir a um dos seus concertos é como ver construir uma delicada filigrana. Há uma voz que se insinua como cetim sobre a pele e um conjunto de intérpretes que, como artífices, serena e pacientemente, através de uma astuciosa conjugação de instrumentos e de sons, criam um ambiente propício ao abandono dos sentidos, isto é, um caminho para o prazer. O território que o quarteto constituído por Irene Caracol (voz), Jorge Rivotti (guitarras), Filipe Simões (percussão) e Marco Torre (tuba) percorre nem é de

ÍNDICE PERSPECTIVA

todo desconhecido. A maneira como o faz, porém, evita os caminhos comuns, procura novos carreiros e, assim, ilumina paisagens escondidas dos olhares e dos sentimentos, ao mesmo tempo que encontra a sua vocação na vontade de desbravar novos lugares. Talvez a razão dos Garoto serem assim se encontre na sua história movimentada. Começou, esta história, em Madrid, numa fantasia de estudantes que, mais tarde, assentou ali para os lados da Basílica da Estrela, em Lisboa, mesmo no final do século passado, ainda como uma ideia por cristalizar. Regressou a Espanha, para uma temporada no circuito de bares da capital, até o percurso dos então protagonistas os espalhar por outros destinos e interesses. Depois, de mão dada a Irene Caracol, voltou a Lisboa, onde, nos últimos anos, realmente cresceu e, com a ajuda de Jorge Rivotti, Filipe Simões e Marco Torre, formou a sua personalidade musical antes de se dar a conhecer, ainda em 2005, na primeira parte dos concertos de Rodrigo Leão e em mais alguns espectáculos a solo. É essa personalidade única, aliás, que permite aos Garoto viver e criar sem as balizas que o tempo, a geografia, a língua, a moda, o comércio, ou mesmo o gosto costumam impor. Ouça-se Denim, ou Duermo, ou Goteiras. O que se encontra é uma música de sentimentos que podia existir em qualquer momento e em qualquer lugar. Uma música 66

universal, cosmopolita, tão simples que se fortalece criando canções despojadas de todos os enfeites. As letras são despidas ao seu essencial, sem uma palavra supérflua, e da música estão ausentes redundâncias, ou sequer uma nota a mais. Pode até dizer-se que é uma música frágil, mas é fácil verificar que essa fragilidade nasce da maturidade, da memória de muitas outras músicas e principalmente do desejo de construir autonomamente a identidade dos Garoto numa época de padronização.

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O álbum Garoto foi publicado em Portugal em Maio de 2006 e na Itália poucos meses depois.

CNB/ 30 ANOS

A DANÇA DE SÍSIFO (70)

PORTEFÓLIO CNB (72)

texto de Elisabete França

OPART: O DEBATE QUE FALTOU

texto de Miguel-Pedro Quadrio

ANA PEREIRA CALDAS: CNB NÃO FOI CONVIDADA A DISCUTIR OPART (92)

COMISSÃO DE TRABALHADORES DA CNB EXPECTANTE MAS APREENSIVA (96)

OLGA RORIZ: “DIRECÇÃO DA CNB FOI ABANDONADA” (97)

JORGE SALAVISA: “OPART É UM DISPARATE” (98)

LUÍSA TAVEIRA: “A CNB NÃO PODE SER O PARENTE POBRE DESTA FUSÃO” (99)

OPART, A INCÓGNITA CONVENIENTE (106)

OPART COM PINAMONTI EM FUNDO (107)

PINAMONTI, ALVO A ABATER (108)

por João Gonçalves

por Eduardo Pitta

por Henrique Silveira

ÓPERA E DANÇA: FUSÃO OU CONFUSÃO? (88)

MARK DEPUTTER: “OS TEMPOS EM QUE A ÓPERA FAZIA PARTE DO BAILADO ACABARAM” (100) entrevista de Tiago Bartolomeu Costa

OPINIÃO

HISTÓRIA DE UM OPART EM CITAÇÕES (112)

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PERSPECTIVA

A 5 DE DEZEMBRO DE 1977 NASCIA NO PORTO A COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO. O SEGUNDO ACTO DO LAGO DOS CISNES TORNAVA-SE A PRIMEIRA DE TRINTA ANOS DE COREOGRAFIAS. É TEMPO DE COMEMORAR, DE VOLTAR A OLHAR PARA ALGUNS DOS MOMENTOS QUE FIZERAM A HISTÓRIA DESTA COMPANHIA, MAS SOBRETUDO DE PENSAR O FUTURO, AGORA QUE O SEU DESTINO APARECE TRAÇADO EM AMBÍGUOS CONTORNOS, QUE PASSAM PELA FUSÃO COM O TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS. DOSSIER ESPECIAL COM REPORTAGEM, ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS E UMA RECOLHA DO QUE FOI SENDO ESCRITO E DITO, AMPLAMENTE ILUSTRADO COM FOTOGRAFIAS RECUPERADAS DO ESPÓLIO DA CNB.

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Lisbon Piece, Anne Teresa de Keersmaeker, 1998, foto: Rodrigo César

CNB


PERSPECTIVA CNB 30 ANOS

ADANÇADE SÍSIFO texto

Elisabete França

Faz 30 anos em Junho, ainda a cultura institucional não tinha ministério, quando o poeta David Mourão-Ferreira – um raro secretário de Estado cosmopolita e de formação humanista – determinou a criação da Companhia Nacional de Bailado (CNB). Para aí transitaram bailarinos(as) mais clássicos(as) afirmados(as) no Ballet Gulbenkian (Isabel Santa Rosa, Maria José Branco, Carlos Trincheiras, João Miranda...), a quem se iriam juntando um Miguel Lyzarro, uma Cristina Maciel, uma Adeline Charpentier, gente recém-formada no exterior. Como Armando Jorge, que passara dos Grands Ballets Canadiens ao ensino e à direcção do Ballet Jazz de Montréal e ao estágio de direcção artística com Béjart, no Ballet du XX.e Siècle belga. Foi esse coreógrafo o inicial e mais duradouro director artístico da CNB – em equipa com Luna Andermatt, Vera Varela Cid e Pedro Risques Pereira –, também primeiro responsável pelo alto nível técnico e artístico atingido em poucos anos. Havia todo um público potencial – cujas referências, para além do BG, criado em 1965, eram sobretudo clássicas – que, pouco depois, esgotaria lotações, noites seguidas, no São Carlos e no Coliseu, a aplaudir o Royal Ballet londrino, com Margot Fonteyn e Nureyev; que acorria ao Coliseu a ver inovações de Béjart (1972), embora nenhuma tão excitante quanto a sua mensagem contra a guerra colonial, a valer-lhe expulsão do país; que se extasiava, no mesmo Coliseu, já depois de 1974, ante uma Plissetskaya feita cisne palpitante a fenecer. A criação da CNB – estreia nacional em fins de 77, no Rivoli do Porto, aí voltando logo em 78 – veio separar águas e contribuir para que um híbrido Ballet

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Gulbenkian se redefinisse, em sentido mais moderno e contemporâneo, ao gosto da direcção artística de Jorge Salavisa. Isto é, moderadamente contemporâneo. Tão moderadamente que o seu público rejeitava o génio de Merce Cunningham, outra vez vaiado em Lisboa, no grande auditório da Avenida de Berna, já em 1981 mas ainda a meia dúzia de anos da educação artística intensiva para a contemporaneidade, devida a Madalena Perdigão, sobretudo com os Encontros Acarte: Lisboa’94 acolheu o artista com público cultivado à altura. Naqueles primeiros anos 80, porém, na parte que lhe cabia, a CNB – que deu espectáculos no São Luiz e no São Carlos, andou muito em digressão e, na então recente sede da Rua Vitor Cordon, criou um Centro de Formação (activo até 1995) – fazia reportório clássico com rasgo estético, deixando a anos-luz a produção do que, na canónica Rússia, era tido por primeira companhia de ballet (já não a do Bolshoi de Moscovo, mas a do Kirov de Leningrad, hoje de novo São Petersburgo). A CNB acolheria, por sinal, uma estrela de primeira linha do Ballet Kirov, o entretanto convidado Anatoli Grigoriev (do elenco dum Dom Quixote de Minkus/Petipa, que me calhara ver no Teatro Marinsky). A competência da companhia alcançava êxitos de público e crítica nas digressões internacionais – como voltaria a acontecer mais recentemente e ainda há pouco em Madrid, com O Lago dos Cisnes. Recorde-se a apresentação de espectáculos memoráveis, logo naqueles primeiros anos. Por exemplo, a coreografia de Armando Jorge para os Carmina Burana no São Luiz, ou a de Carlos Trincheiras para Sagração da Primavera, em noites do Verão de 1984 no Cabo

Espichel, com gigantescas esculturas de José Pedro Croft por cenário (só em 94 foi feita a versão de Nijinsky). Até que, em 85, era nomeada uma comissão instaladora da CNB no Teatro Nacional São Carlos, do qual passou a depender financeiramente, para uma anunciada minimização de custos. O poder proclamava garantias de autonomia artística – como agora faz o secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, de costas voltadas para a direcção artística das duas instituições e, sendo preciso, com a senhora ministra a reiterar, exibindo às câmaras a cabecinha ornada pelas inconfundíveis madeixas, estilo “négligé chic”, potencial adereço para a fantasia da OPART (O Fantasma da Ópera em enviesado “remake” performativo?). Meia dúzia de anos de dependência passados sobre a fusão, vivia a CNB entre presente indefinido e futuro nebuloso, em impasse total. Nunca se ouviu discutir tanto o estatuto profissional – reivindicado o de profissão de desgaste rápido –, mas nem isso foi alcançado. Em 1992, devido à extinção do São Carlos como empresa pública, era “recriada” a CNB sob presidência do director-geral dos Espectáculos e das Artes, com o director artístico Armando Jorge por vogal (despacho do SEC Santana Lopes). Seguiu-se indescritível trapalhada, com criação dum Instituto do Bailado e da Dança, ficando as funções directivas duplicadas, entre Armando Jorge e Isabel Santa Rosa. No trânsito dos anos 80 para meados de 90, a CNB sofreu desgaste tal que as imagens de burocracia e de trica sobrelevariam as de criação. Até que voltou a haver uma ideia de política cultural na

esfera governativa e, com Manuel Maria Carrilho como ministro, Jorge Salavisa assumiria a direcção da CNB, pouco depois de sair da Gulbenkian. Foi em 1996, com a companhia a recuperar autonomia. Salavisa, actualmente no São Luiz, ficou como director-geral da CNB até 2001, com direcção artística de Luísa Taveira (hoje programa a dança no CCB). Outra década passada, com a responsabilidade administrativa estabilizada em Ana Pereira Caldas, Mehmet Balkan na direcção artística (em que sucedeu a Mark Jonkers) e o Teatro Camões como centro de espectáculos – para os quais veio sendo criada uma corrente de público –, a CNB recuperou de um desgaste quase mortal; como que renasceu, com recurso tanto a bailarinos(as) mais jovens quanto a coreógrafos(as) convidados(as). O seu Programa Primavera – coreografias de Forsythe, Bigonzetti, Gagik Ismailian e Olga Roriz, refazendo uma criação emblemática dos anos 80 na Gulbenkian, Treze Gestos de um Corpo – reforça experiências pontuais anteriores e como que herda o hibridismo do BG no seu melhor, opção justificada pela extinção deste. E então... parece estar-se quase, quase mesmo a ver o pedregulho de Sísifo da CNB rolar, de volta à estaca zero da reintegração no São Carlos. E o inventor da OPART a reinar sobre os destroços, amontoados com os do desastre provocado no São Carlos... Se não for destituído a tempo – e duvida-se que o seja, em Governo liderado por um técnico, apenas dado à cultura física, que se saiba.

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Pedro e Inês, Olga Roriz, 2003, foto: Amir Sfair Filho Cantoluso, Rui Lopes Graça, David Fielding e Armando Maciel, 1997, foto: Alice Costa

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Canções de murmúrio e morte, Norman Walker, 1986, foto: DR Petruchka, John Auld segundo M. Fokine, 1989, foto: Eduardo Saraiva A Mesa Verde, Kurt Joss, 1984, foto: Rodrigo César

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DeSete, Rui Lopes Graรงa, 1997, foto: Eduardo Saraiva Concerto, Katarzyna Gdaniec e Marco Cantalupo, 2003, foto: Amir Sfair Filho Raymonda, Terry Westmoreland segundo Marius Petipa, 1982 (versรฃo integral), foto: Eduardo Gageiro


Tocatta, Lawrence Gradus, 1979, foto: Eduardo Gageiro Coreographic Offering, Jos茅 Lim贸n, 1987, foto: Ricardo Ferreira Seascape, Judith Marcuse, 1986, foto: Miguel Madeira

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Prelúdios, Oscar Araiz, 1983, foto: Eduardo Gageiro Quatro Canções para um coro feminino, Heinz Spoerli, 1983, foto: Eduardo Gageiro

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A Dama das CamĂŠlias, Mehmet Balkan, 2002, foto: Alceu Bett As Troianas, Olga Roriz, 1985, foto: Rodrigo CĂŠsar

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La Fille Mal Gardée, Georges Garcia segundo M. Mordkin e B. Nijinska, 1995, foto: Rodrigo César There is a time, José Limón, 1985, foto: Rodrigo César Concerto Barroco, George Balanchine, 1984, foto: Rodrigo César

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

ÓPERAE DANÇA: FUSÃO OU CONFUSÃO? texto

Miguel-Pedro Quadrio

Por decisão do Ministério da Cultura (MC), o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) e a Companhia Nacional de Bailado (CNB) serão objecto, em breve, de mais uma alteração estatutária, integrando-se ambos no OPART, Organismo de Produção Artística, E.P.E.. Já se sabia que a ideia estava a ser trabalhada desde o último trimestre de 2006, mas o Conselho de Ministros apenas aprovou o respectivo decreto-lei a 1 de Fevereiro passado, aguardando-se ainda a sua promulgação pelo Presidente da República e posterior publicação em Diário da República, prevista para Abril, segundo fonte do MC. O OPART funcionará como uma superstrutura administrativa, regida por um conselho de três elementos, que nomeará os directores artísticos do TNSC e da CNB. Na discussão do anteprojecto, Ana Pereira Caldas e Paolo Pinamonti – respectivamente directores da CNB e TNSC – levantaram reservas a um modelo de fusão que consideram lesivo do bom funcionamento da casa que encabeça desde há alguns anos. Numa entrevista ao jornal Público (15 de Fevereiro), Pinamonti aventou ter sido esta divergência pública que, já em Novembro de 2006, levou Mário Vieira de Carvalho, secretário de Estado da Cultura [SEC], a

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inviabilizar a sua participação e a da Paula Teixeira da Cruz, advogada do TNSC, na comissão conjunta dos ministérios da Cultura e das Finanças que debateu do OPART (o SEC preferiu nomear Carlos Vargas e Nuno Pólvora, vogais do Conselho Directivo do TNSC, sendo que este último é também subdirector da CNB). O novo modelo surgiu no âmbito do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado, como tentativa de reduzir os organismos tutelados pelo MC. Significativamente afastado desta reflexão, a Paolo Pinamonti seria ainda vaticinada a perda do lugar, no jornal Público de 19 de Janeiro passado, por um despeitado Emmanuel Nunes (o compositor que exigia ao director do TNSC data de estreia para uma ópera inacabada): “… o São Carlos mudará de política brevemente” (ver a propósito “A hermenêutica da pré-compreensão”, OBSCENA 2, Fevereiro de 2007). A 13 de Março, a 18 dias do término do seu mandato, o MC informou Pinamonti por carta que o mesmo não seria renovado (pouco minutos depois, o SEC anunciou em conferência de imprensa que Christoph Dammann o substituiria, apenas como director artístico dum TNSC entretanto “opartizado”). Desconhecendo-se a data em

que entrará em vigor o OPART, decorre do contrato de Pinamonti que, na ausência de um novo responsável, o actual director deverá permanecer em funções de gestão nos três meses subsequentes – condição relembrada à OBSCENA por fonte oficial do MC. Ao Diário de Notícias, de 14 de Março, Pinamonti sublinhou: “Tudo o que tenho de concreto é esta carta [de demissão]. Logo, no dia 1de Abril já não pertenço ao São Carlos”. Mas na última semana de Março voltou atrás e solicitou um novo contrato à tutela para garantir a permanência até ao fim da temporada, que foi recusado. Entretanto, Ana Pereira Caldas e a CNB optaram por uma posição bastante mais discreta (afinal, a implementação do OPART pressuporá o queda de todos os responsáveis de ambas as estruturas, além de que a actual directora da CNB terminará o seu mandato nos primeiros dias do próximo mês de Maio). Os depoimentos que prestou à OBSCENA, bem como os dados que os acompanham são, por isso, as suas primeiras declarações públicas sobre o OPART. O SEC, em entrevista ao Diário de Notícias, comentou a sua reacção e a de Pinamonti: “Depois de o projecto estar inscrito na lei orgânica, recebi o director do TNSC e a directora da CNB, que manifestaram a sua discordância em relação

ao OPART. Ao contrário do que aconteceu depois com os sindicatos, com os corpos artísticos e com os mecenas, que não levantaram quaisquer objecções. O fenómeno da resistência por parte dos directores de um instituto que vai ser alterado é comum a todas as transformações deste tipo na Administração Central. Há sempre resistências à mudança, mesmo não havendo menorização da responsabilidade das direcções artísticas. Trata-se do problema hermenêutico da pré-compreensão”. Pretendendo contribuir para deslindar mais uma das confusões deste MC, que apesar do seu magro orçamento não pára de agitar as águas político-culturais, a OBSCENA recolheu alguns testemunhos, onde personalidades que vêm acompanhando o trabalho do TNSC e da CNB reflectem sobre as consequências práticas e artísticas da fusão e das manobras pouco claras que a vem prenunciando. Têm a voz, então, Mark Deputter, programador do Teatro Camões, a coreógrafa Olga Roriz, Jorge Salavisa e Luísa Taveira, ex-directores da CNB, a Comissão de Trabalhadores da mesma CNB, o escritor e crítico Eduardo Pitta, o crítico Henrique Silveira e João Gonçalves, ex-vogal com o Pelouro Financeiro do TNSC.

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© José Luís Neves


PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

ANA PEREIRA CALDAS:

CNB NÃO FOI CONVIDADA

A DISCUTIR OPART A situação de Ana Pereira Caldas no quadro da anunciada OPART poderá ser resolvida por um golpe de secretaria, que se traduza na sua demissão, explica a ainda directora da Companhia Nacional de Bailado (CNB), visivelmente incomodada pelo silêncio a que se vem remetendo o Ministério da Cultura (MC). Os diplomas publicados nos últimos dias de Março em Diário da República, que oficializam a extinção, fusão e reconfiguração dos organismos do MC, bem como o facto de Ana Pereira Caldas ter assumido através de carta, junto da tutela, “receios e dúvidas” em relação ao OPART – tal como Paolo Pinamonti, entretanto demitido de director do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) – levamna a crer que o seu futuro próximo não passa pela permanência à frente da Companhia. Ao contrário do “contratado” Pinamonti, Ana Pereira Caldas tem vínculo à Administração Pública e está em regime de comissão de serviço, destacada da Escola de Dança do Conservatório Nacional (da qual foi presidente). O destacamento, que cessa efeitos a 2 de Maio, deveria ser confirmado pela tutela com uma antecedência de 60 dias, situação que até agora não se verificou. Afastada do grupo de discussão sobre o OPART, para o qual, ao contrário de Pinamonti, nunca chegou a ser convidada “ou mesmo a apresentar nomes”, Ana Pereira Caldas sabe apenas que esse grupo foi constituído por despacho de 27 de Novembro de 2006. Assinado pelo Secretário de Estado da Cultura (SEC), 92

o despacho, a que a OBSCENA teve acesso, indica os nomes de Lobélia Ventura, assessora principal da Secretaria-Geral do MC – nome que a Visão (7/12) apresenta como “nome provável para dirigir a OPART” –, Daniela Monteiro, assessora do SEC, e os dois vogais do TNSC, Carlos Vargas e Nuno Pólvora. Pinamonti disse ao Público (15/03) que Vargas e Pólvora foram impostos pelo SEC, como resposta à sua sugestão, que consistia nele próprio e na advogada do Teatro, Paula Teixeira da Cruz. Desde Outubro do ano passado, Nuno Pólvora acumula o cargo de vogal do TNSC com a subdirecção da CNB, em substituição de Adelina Antunes, que se reformara – após ter em 2004 substituído Carlos Vargas, convidado para vogal do Conselho Directivo do TNSC, ocupando o lugar de Isabel Trigo de Morais, que havia sido nomeada por Maria João Bustorff para a administração do CCB. A OBSCENA sabe, entretanto, que esse grupo de trabalho deixou funções passado um mês. A 1 de Fevereiro o Conselho de Ministros fez aprovar a lei orgânica do OPART, que juntará a CNB e o TNSC num único organismo. Tal situação implica uma definição dos quadros dirigentes a nomear ou a reconduzir. A publicação da lei está, segundo fonte do MC, dependente de promulgação do Presidente da República, “situação que se espera ver resolvida no princípio de Abril”. Durante o período de aplicação do regulamento, a directora da CNB poderá ver-se obrigada a permanecer em

funções, conforme a lei. Mas explica: “por uma questão de funcionalidade e respeito, nunca deixaria a casa numa situação de total abandono”. O mesmo não sucederá no TNSC, já que Pinamonti viu recusado um novo contrato, de carácter extraordinário, para assegurar a direcção do Teatro até ao fim da temporada. A indefinição toma, assim, conta do TNSC, que se encontra numa situação de vazio legal: são necessárias duas assinaturas para a prossecução da gestão corrente e, terminado o contrato de Pinamonti, mesmo detendo os vogais poderes executivos, necessitam sempre de uma assinatura do director. Prevendo-se a entrada em funções do novo director, Christoph Dammann, apenas para 2008, é possível que a tutela entenda chamar a si a gestão da casa. Situação igualmente complexa se vive na gestão artística da CNB: Mehmet Balkan, há poucos meses instado pela tutela a apresentar uma proposta de programação para 2008, termina contrato em Agosto. Dado que o regulamento do OPART inclui a nomeação política de um director artístico em representação da CNB, o que pode acontecer dentro de dias, tal deverá significar a existência de dois directores artísticos para a mesma casa. Tutela foi avisada da eminência de fecho da CNB A 22 de Fevereiro de 2007, num relatório entregue à Ministra da Cultura e ao mecenas da CNB, a EDP, Ana Pereira Caldas refere ter alertado “diversas vezes as várias tutelas para o facto de que a execução orçamental de um instituto de produção artística não se coaduna com a legislação aplicável na Administração Pública. A falta de autonomia financeira, por um lado, e a ausência de legislação e de regulamentação da sua lei orgânica, por outro, torna muito difícil a gestão” da CNB. No relatório, a directora esclarecia ainda que “a sub-orçamentação sistemática e agravada a que a CNB esteve sujeita tornou quase impossível cumprir os procedimentos legais exigidos pela Administração. A serem cumpridos, inviabilizar-se-ia a continuação da CNB”. Este foi apenas um dos vários ofícios alertando para o fim, ou estagnação, da CNB. Nunca recebeu qualquer resposta. Nesse relatório Ana Pereira Caldas voltou a recordar a tutela do passivo de mais de 100.000 euros “referente a encargos do Teatro Camões”. Apesar de não ter sido atribuído “qualquer reforço orçamental”, lê-se, a direc-

ção da CNB “sabia das enormes dificuldades que iria enfrentar, mas recusar o Camões seria recusar a viabilidade artística e institucional da própria CNB e assim contrariar os objectivos e a missão para as quais tinha sido nomeada”. O passivo acumulado reportava-se a despesas referentes à curta permanência em 2001 e 2002 da Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP) no Camões, primeiro destino do edifício, recusado por falta de condições técnicas. Ana Pereira Caldas afirma não entender a razão pela qual a despesa “não foi afectada ao São Carlos, ou mesmo à Orquestra”. “Cabia à tutela ter resolvido a situação do passivo”, recorda. “Esperava que o governo seguinte tivesse dotado a CNB de reforços, mas isso nunca aconteceu”. A situação foi revista e sanada apenas com o orçamento rectificativo de 2005, mas a retirada de 1 milhão de euros, correspondente às verbas do PIDDAC, fez a Companhia regressar ao ponto inicial, a “sub-orçamentação” referida no relatório. Não obstante, a directora da CNB disponibiliza os números (ver gráfico 1), que mostram a evolução das receitas próprias entre 2001 e o período em que passou a estar à frente da CNB, representando um aumento de 93,18%. Garante, ainda, que a entrega do Camões à CNB representou um “evidente” crescimento de público, na ordem dos 182% (ver gráfico 2). Recorde-se que até 2003 a Companhia apresentava os seus programas noutros espaços, nomeadamente, no CCB, no TNSC ou no Teatro Nacional D. Maria II. A existência de um espaço próprio permitiu-lhe, ainda que reconhecendo “poder por isso ser criticada”, iniciar “uma ideia de serviço público”, através da cedência de espaços a outras companhias, como as de Olga Roriz, Vasco Wellemkamp, Rui Lopes Graça e Benvindo Fonseca. Garante que nunca cobrou às companhias pelo apoio dado, nem “nunca” pediu verbas extra, porque “há coisas que não se pedem, de tão óbvias que são”. Mas confessa que “esperava que a tutela reconhecesse o trabalho desenvolvido”. Ana Pereira Caldas reconhece que, apesar das celebrações dos 30 anos da CNB, das digressões agendadas para Espanha, Macedónia, Brasil e Tailândia, das casas cheias, dos elogios da imprensa internacional e da afirmação do Teatro Camões como “teatro da dança”, a sua cabeça está a prémio. Mas diz que, quando sair, sai de “consciência tranquila” e “sentido de dever cumprido”. “Fiz o que pude com o que tinha. Será pouco?”

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

COMISSÃO DE TRABALHADORES DA CNB EXPECTANTE MAS APREENSIVA

A Comissão de Trabalhadores (CT) da Companhia Nacional de Bailado (CNB) não tem uma posição pública – “nem privada” – sobre a fusão com o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), “porque não temos acesso à informação e o que sabemos é o que vem na imprensa”, disse à OBSCENA fonte da CT. Com o Secretário de Estado da Cultura (SEC), Mário Vieira de Carvalho, reuniram duas vezes, a primeira a 16 de Novembro, a pedido próprio, sendo “muito bem recebidos”. Nesse encontro, quiseram saber de viva voz o que viria a ser a OPART, deram conta de alguns dos problemas que tinham em relação à CNB, sugerindo ainda outros projectos e algumas soluções, como baixar a idade de reforma dos bailarinos para um patamar exequível (dos 55 anos, do regime especial, para 45 anos), o estatuto do artista, a reformulação de carreiras e a criação de um Estúdio de Bailado, para formação final de bailarinos. Na segunda reunião, já no final de 2006, e que, a pedido do SEC, contou com a presença de representantes do TNSC, Vieira de Carvalho assegurou uma transição de estatutos tranquila. Apresentou, então, o organigrama da OPART, dando conta das vantagens que via na fusão e assegurando o interesse em desenvolver alguns dos projectos que a CT apresentara no primeiro encontro, como o Estúdio de Bailado. Desde então nunca mais foram ouvidos “porque a Comissão [nomeada para discutir a fusão] não tinha poderes para receber ninguém”. Garantem confiar no SEC, embora sublinhem algum “desconforto e expectativa” uma vez que “o [seu] futuro passa pelo futuro da casa”. O silêncio e desconhecimento em torno do processo de fusão é algo que os incomoda: “aborrece-nos a falta de informação e a falta de clareza. Lemos os jornais e não

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“DIRECÇÃO DA CNB FOI ABANDONADA” -OLGA RORIZ

sabemos quem diz a verdade”. Afiançam que o seu desejo é que “o processo seja calmo e sem grandes tumultos”. Se é verdade que não veriam com bons olhos serem forçados a participar em corpos de baile nas óperas do TNSC, também reconhecem que não seria uma fusão a implicar essas colaborações: “deviam acontecer, mas muitas vezes não acontecem, porque as casas não se entendem; talvez a fusão as obrigue a entenderem-se”, refere ainda a fonte da CT, apesar de não esconder o “medo” e “a sensação de que as coisas [possam] piorar a nível de programação e de contenção de custos”. E conclui, referindo as más memórias da anterior fusão, terminada em 1985, dalguns dos bailarinos mais antigos: “sentiram-se engolidos pelo TNSC”. Mas reafirmam: “o SEC garantiu-nos que manteríamos a independência artística, e aumentaria a autonomia financeira, uma vez que com a OPART o estatuto seria o de Empresa Pública, ou seja, deixávamos de ficar dependentes do Ministério da Cultura”. Relativamente à direcção da CNB, não esperam grandes esclarecimentos dado que “têm a mesma informação que nós”. Neste momento, o CT considera ter “o papel de acalmar as pessoas” para que “o trabalho possa continuar”. Quanto à eventual passagem de toda a CNB para as instalações do Teatro Camões, “há opiniões favoráveis e desfavoráveis, consoante o que está em jogo a nível particular.” “Não é consensual”, garantem.

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Olga Roriz, coreógrafa, confessa que lhe preocupam problemas internos da CNB, tais como “regulamento interno à espera de aprovação, situação de reforma antecipada para os bailarinos não resolvida e falta de autonomia financeira”. Mas preocupa-a também o facto de a directora, Ana Pereira Caldas, “estar há muito a lutar sozinha”. Diz que Mehmet Balkan, o director artístico cujo contrato acaba no fim de Agosto de 2007 – se a direcção da OPART não o terminar primeiro –, “está esgotado com os constantes problemas políticos de um país que de certo não consegue compreender”, e que Nuno Pólvora, sub-director, que até 31 de Março acumula o cargo com o de sub-director do TNSC, “raramente aparece na Companhia”. Esta visão negativa foi acentuada pelo recente período em que contactou mais diariamente com a CNB em virtude da remontagem de Treze Gestos de um Corpo, incluído no Programa Primavera e que se encontra durante o mês de Abril em digressão pelo país. “A directora não é tida nem achada no que se passa. Tudo isto me parece fechado em quartinhos pouco claros e pouco abertos. Pessoas-chave que fizeram um bom trabalho não são ouvidas num processo de mudanças”. E denuncia: “só pode ser uma estratégia para que não se possa agir em tempo útil. Consumadas as coisas, as pessoas sabem tudo pelos jornais e se quiserem reagir já é tarde”. Por isso classifica a situação actual de “descalabro total” e vai dizendo que, assim,”andamos para trás. È inacreditável não se ouvirem os agentes culturais”. De qualquer forma é consciente de que não há união nos agentes que permitam uma tomada de posição conjunta. O percurso recente de Olga Roriz liga-se ao Teatro

Camões e à CNB – criou a peça Pedro e Inês, pela qual recebeu o Prémio Almada 2003 –, com os quais mantém acordos de colaboração ao nível da cedência de espaço para ensaios. “Com o panorama que se adivinha parece-me que o projecto do Teatro Camões como casa da dança não irá ter futuro. A verdade é que sem os estúdios da Vítor Cordon qualquer intenção de apoio da CNB a outras companhias será inviável”, diz. “Isto é muito sério, não são nem conversas de camarim nem de esquina de teatro. Não se passa por cima das pessoas. A Ministra da Cultura vai às estreias das produções das duas casas, faz elogios, e depois passa por cima das pessoas, como aconteceu com Pinamonti”. A coreógrafa refere ainda que a peça que tinha previsto apresentar no Salão Nobre do TNSC no passado mês de Janeiro teve que ser adiada por questões orçamentais do São Carlos, estando agora prevista a estreia para Leiria, e a apresentação em Lisboa para mais tarde. “Esperemos”.

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

“OPART É UM DISPARATE”

“A CNB NÃO PODE SER O PARENTE POBRE DESTA FUSÃO”

-JORGE SALAVISA

-LUÍSA TAVEIRA

Jorge Salavisa foi director da Companhia Nacional de Bailado entre 1998 e 2001, o período imediatamente posterior à primeira fusão com o São Carlos, revogada em 1992. Na altura era director artístico do Ballet Gulbenkian e recorda-se que a experiência “foi absolutamente um pesadelo. Houve bastantes queixas nas duas casas”. “Não correu bem”, diz, justificando que “são duas actividades completamente diferentes muito difíceis de juntar”. Por isso, quando questionado sobre a intenção de voltar a fundir a CNB com o TNSC diz simplesmente que “é um disparate” feito por “pessoas que não têm experiência nenhuma na direcção de uma casa de ópera e uma casa de dança”. Salavisa, actualmente a dirigir o São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, diz ainda que “sempre se fizeram colaborações entre a CNB e o São Carlos. Quando eu era director da CNB fizemos várias óperas e a Orquestra tocou em vários bailados nossos. Não é preciso uma fusão para que as duas casas colaborem, basta a existência de protocolos e negociações entre as duas direcções. Cada casa deve ter o seu repertório, os objectivos não são os mesmos e as colaborações devem funcionar sempre em regime pontual”. Assim, não hesita em qualificar de “medíocre” a ideia da OPART. E quando questionado sobre a existência de exemplos referidos pela tutela é peremptório: “existem na Alemanha onde cada cidadezinha de província tem a sua companhia de dança que se apresenta de vez em quando independentemente da assistência à ópera.

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Este não é o caso de uma companhia de repertório que se quer internacional como é o caso da CNB”. No que respeita ao papel do Teatro Camões, o actual programador diz que desconhece a situação técnica actual mas imagina que devam “haver problemas”. Recorda que na altura em que dirigia a CNB se verificou a necessidade em rever a permanência da Orquestra Sinfónica (OSP) no Teatro Capitólio, “onde lhes chovia em cima”. Foi decidido, com o acordo do Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, que as obras a executar no Camões seriam para acolhimento de uma orquestra. Mas “por não ter havido acompanhamento do São Carlos”, resultaram deficientes e a OSP acabou por desistir. Então, Jorge Salavisa foi dos primeiros a defender a ida da CNB para o Teatro Camões, “mas sempre sujeitando a obras o edifício que foi criado só para uma orquestra”. Já na altura havia “deficiências para acolher uma companhia de dança”. Agora, o Teatro Camões “nem chega a ser uma coisa híbrida” e “a CNB está num teatro mal preparado”. Ou seja, “houve vontade e houve interesse em reorganizar” mas “não foram dados os passos certos” numa altura em que “ainda só existia o projecto”. O programador lamenta ainda o facto de “pessoas com responsabilidade acharem que podem tomar decisões deste nível sem ouvir os profissionais. É o reino do quero, posso e mando”.

Para Luísa Taveira, ex-primeira bailarina da CNB e sua directora artística entre 1999 e 2000, “é preciso dar-se o benefício da dúvida até se saber o que está aqui em causa”. Não deixa no entanto de apontar que a falta de informação que rodeia a OPART causa alguma apreensão. “É uma pena que assim seja”, lamenta a actual programadora de dança do Centro Cultural de Belém. Quando recorda a primeira experiência de fusão da CNB com o TNSC, de 1985 a 1992, refere que “apesar de na altura não haver um outro cenário”, era inevitável a sensação da CNB ser “o parente pobre do São Carlos. Há sempre alguém que tem esse papel”. Mas os tempos eram outros, refere. “Nós ensaiávamos ali, fazíamos a temporada de ópera, a Orquestra tocava nos nossos bailados. Éramos apenas mais um elemento na estrutura do São Carlos”. Por isso, prefere pensar que “tudo depende das pessoas que vão gerir a OPART. Há que saber gerir questões económicas e artísticas. É preciso saber como podem evoluir artisticamente os dois projectos, porque não é possível que uma seja

esse parente pobre e a outra dê um pulo”. E faz notar que nunca será o São Carlos a ter o papel menor. Luísa Taveira não comenta procedimentos administrativos nem o facto de a OPART poder ter sido feita à margem do conhecimento das direcções da CNB e do TNSC, mas preocupa-se com os tempos de transição entre os diferentes estatutos jurídicos. “Há situações que devem ser acauteladas. Em qualquer casa europeia há um tempo de passagem de testemunho entre direcções onde quem entra assume os compromissos de quem sai. Deve evitar-se cair numa ‘terra de ninguém’ porque isso só traz instabilidade”. E salienta: “sobretudo nos relacionamentos com o exterior”. Também desconhece porque é que a questão tem sido sempre colocada do ponto de vista do TNSC, mas vai alertando para as potencialidades do Teatro Camões, “um teatro fabuloso para a dança cujo papel nesta história não se sabe ainda qual é”.

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

«OS TEMPOS EM QUE O BAILADO FAZIA PARTE DAÓPERA ACABARAM» MARK DEPUTTER Tiago Bartolomeu Costa

PARA O PROGRAMADOR DO TEATRO CAMÕES, É INEQUÍVOCO: A FUSÃO ENTRE A CNB E TNSC É DE “UM REVISIONISMO ATROZ”, “UM RETROCESSO FATAL” E UM RISCO PARA O FUTURO DO TEATRO CAMÕES. NUMA ENTREVISTA ONDE DÁ CONTA DA SUA POSIÇÃO, APONTA AINDA O DEDO AO MINISTÉRIO DA CULTURA POR PROSSEGUIR UM PROJECTO SEM O CONHECIMENTO DOS AGENTES CULTURAIS E CONDENAR O DESENVOLVIMENTO DAQUILO A QUE CHAMA “UM CASO RARO NA EUROPA”, UMA CASA PARA TODA A DANÇA, POSTA EM CAUSA COM A EVENTUAL TRANSFERÊNCIA DE SERVIÇOS DO TNSC PARA A SEDE DA CNB, NO CHIADO.

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© José Luís Neves

entrevista

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

Como vê esta solução de fusão CNB/ TNSC? Parece-me de um revisionismo atroz que não faz sentido nenhum. Os tempos em que o bailado fazia parte da ópera acabaram e as dinâmicas criadas pelo surgimento nos últimos trinta anos de casas de dança e centros coreográficos na Europa estão aí para o provar. A dança e a ópera têm dinâmicas diferentes. Para dar um exemplo, ao nível da dança, o coreógrafo William Forsythe serve bem para mostrar como o bailado e a dança contemporânea não são realidades afastadas. Como entende as intenções do Ministério da Cultura? Ninguém sabe quais são as suas intenções. Não falaram com ninguém, nem connosco nem com os agentes culturais. Desenvolveram um projecto sem falar com as pessoas no terreno. É o mundo ao contrário. Alguém decide que a fusão é necessária e a única razão é de finanças mas nem isso é claro. Ninguém provou que vai ser mais barato. Avançou-se para um modelo que ninguém sabe o que vai ser e que é imposto por cima mas não se sabe porquê ou por quem. Ou seja, percebe-se que foi pensada do ponto de vista financeiro e não artístico. O que não faz qualquer sentido. Artística e culturalmente é um retrocesso fatal porque ao longo da história a ópera e a dança separaram-se e criaram sentidos autónomos. Financeiramente ainda ninguém explicou como é que se vai poupar e em quê. O Ministério da Cultura devia deixar desenvolver o que existe em vez de criar entraves ao desenvolvimento artístico das casas. Será prejudicial para as instituições? Ninguém sabe o que é esta fusão, por isso o risco de se fecharem as portas ao que tinha acabado de abrir existe. O que está a acontecer no Teatro Camões é uma situação inédita que pode deixar de existir para se dar prioridade ao passado. Em Lisboa, com o Teatro Camões, estávamos no início de um projecto que pensava uma casa para a dança que fizesse conviver o bailado clássico e neo-clássico com a dança contemporânea. Não conheço outro projecto em Portugal e na Europa com estas características. Foi um passo decisivo e corajoso da directora, Ana Pereira Caldas quando já não havia muitos recursos para a própria CNB. Criaram-se possibilidades de trabalho e um potencial para o futuro que agora corre o risco de desaparecer.

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Como assim? Recentemente o próprio Secretário de Estado visitou as instalações da Vítor Cordon [sede da CNB] acompanhado de técnicos. Estiveram a ver as condições do espaço, a estudar a possibilidade de instalarem uma plataforma elevatória que levasse os instrumentos para os estúdios. Isto só pode significar que se prevê a transferência para a actual sede da CNB de organismos dependentes do São Carlos, talvez o planeado Estúdio de Ópera. Por consequência imagino que isso signifique a transferência total da CNB para o Teatro Camões. Isso é muito grave porque a acontecer será o fim do projecto do Teatro Camões. Porquê? Porque a CNB precisará de ocupar o Teatro Camões a tempo inteiro. Neste momento já trabalhamos no limite da gestão dos espaços. O Teatro Camões tem dois estúdios e um palco que precisa ser dividido entre os ensaios e espectáculos da CNB, a programação autónoma do Teatro Camões e as cedências de espaços. Até agora com a existência de dois espaços, Vítor Cordon e Teatro Camões, conseguíamos gerir as ocupações. Mas isso deixará de ser possível porque o que existe já é o mínimo das condições para se trabalhar continuamente. Aceitaria trabalhar nessas condições? Com a CNB a ocupar o Teatro Camões a tempo inteiro não haverá espaço físico nem tempo para programar outras artistas ou acolher outros projectos. A minha função tornar-se-ia supérflua. E caso a actual direcção caia com a entrada da OPART? Fui convidado pela directora da CNB para assessorar a programação do Teatro Camões. Esta direcção sai, eu saio também. Não porque o meu contrato assim o refira, mas por uma questão de lealdade e deontologia. É com esta direcção da CNB que eu tenho um contrato. Mas há uma programação assinada por si até ao fim do ano. Não tenciona cumpri-la? Foi-me pedido que fizesse uma programação até ao fim de 2007 mas em Novembro do ano passado a Professora Ana Pereira Caldas foi informada que não poderíamos assinar compromissos para datas posterio-

res a Julho de 2007. Eu escrevi uma carta ao SEC explicando a situação e alertando-o para os compromissos existentes com vários artistas e companhias nacionais e internacionais para a segunda metade do ano. Não posso aceitar cancelamentos, porque os artistas contam com estes espectáculos. Mais uma vez, ao negar a realidade no terreno, criou-se uma situação insustentável que se torna cada vez mais difícil com o passar do tempo. Esta semana recebi uma carta dizendo que o orçamento para 2007 será consolidado com a entrada em vigor da OPART. O SEC alguma vez o chamou para discutir o futuro do Teatro Camões? Não e acho inacreditável que nunca o tenha feito. Como profissional responsável que sou, mesmo que não existam contratos assinados com os artistas e as companhias, a programação feita até ao fim de 2007 são, para mim, compromissos assumidos. Não é assim que se trabalha. As programações são decididas atempadamente. Isto coloca-me numa situação desconfortável mas a única resposta é essa: decisões só com a entrada em funções da OPART. Isso é uma interferência política inaceitável nas questões de gestão e programação de uma casa. Acho muito difícil acreditar que isto esteja a acontecer. O Governo devia criar condições para que as pessoas pudessem trabalhar e não implicar com o seu trabalho. Acha que o MC não tem consciência das implicações desta fusão no papel que o Teatro Camões pode cumprir? Eu não sei se o SEC está preocupado, se dorme de consciência tranquila ou não, mas que ele toma decisões sem consultar o terreno, isso toma. São decisões tomadas antes e para além da realidade do terreno. No caso da dança então é fatal. Devia pedir a nossa opinião. Uma vez que ninguém sabe o que é esta OPART eu até coloco a hipótese da existência do Teatro Camões no seu organigrama. Mas isso será entrar na especulação. O que sei é que os dados que existem apontam para um caminho errado e nada prometedor.

O Teatro Camões ganhou uma vida própria com esta abertura e vontade em fazer conviver diferentes formas de dança. Tornou-se um espaço de presença regular nos hábitos das pessoas, ficou mais fácil encontrar o caminho até lá. Isto mudou o perfil da própria CNB, ficou mais aberta, mais acessível. Mas pode ir-se muito mais longe. É um desafio juntar-se o bailado com a dança contemporânea numa mesma casa. Mais do que uma nova estrutura é preciso mais investimento. O meu orçamento é de 150 mil euros e, deste montante, 50 mil é gasto em contratações pontuais de técnicos, já que os espectáculos de dança contemporânea acontecem normalmente quando a CNB está em digressão e precisa levar os seus técnicos. Isto porque a CNB está proibida de contratar gente para os quadros. E não é um desafio juntar-se a ópera e dança, conceptualmente falando? Mas para isso não é preciso criar-se uma OPART, até porque essas colaborações já existem. Nomeadamente quando as óperas precisam de um corpo de baile ou os bailados de uma orquestra. Depois há projectos de dança contemporânea que incluem ópera. Nada disso depende de uma fusão CNB/TNSC. Para mais, nunca houve uma discussão ao nível dos conteúdos mas sempre ao nível da optimização de recursos. Parece que o próprio MC cria mais fragilidade e incerteza em vez de criar certezas. Tudo é destruído muito facilmente, indo contra todas as evoluções positivas. Há bons profissionais. Parece que por parte do MC faz-se de tudo para dificultar a vida às pessoas que estão a fazer o seu trabalho o melhor que sabem. Como é que se deixa isto ir tão longe que não tem nada a ver com o terreno e o potencial artístico e cultural de Lisboa? São estas coisas que influenciam a imagem de precaridade que transmitimos.

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No caso do São Carlos o SEC falou numa renovação de públicos. Em relação à CNB, que papel teve o Teatro Camões numa eventual captação de novos públicos?

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

OPART, A INCÓGNITA CONVENIENTE texto

João Gonçalves

OPART COM PINAMONTI EM FUNDO texto

Lida a lei orgânica do Ministério da Professora Pires de Lima e do Intendente Vieira de Carvalho, fica-se sem saber ao que vem a OPART, a entidade pública empresarial que vai gerir – fundindo mas preservando as respectivas “autonomias artísticas” (o que é isto?) – o Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado. Quanto à segunda, Ana Pereira Caldas, a directora, não se mostrou favorável à OPART, mas não foi até agora prejudicada por delito de opinião pelo Intendente Carvalho. Pelo contrário, Paolo Pinamonti, até ao final deste mês o director artístico do São Carlos, já foi sumariamente removido por carta. A OPART é um daqueles mistérios próprios de quem, possuindo uma estratégia de dirigismo político-cultural digno da Coreia do Norte – já que aprendido na defunta RDA – precisa de um instrumento adequado, de carácter administrativo-financeiro, para que a dita estratégia funcione. Os nomes contam pouco. Quaisquer serviçais do regime servem e o novo director artístico da única ópera de Lisboa tem o recado bem estudado. Mesmo que, neste momento, os contornos da OPART sejam uma incógnita conveniente e a “experiência Fragateiro”, no D. Maria (ensaio nº 1 da dita estratégia), esteja a soçobrar por todos os lados. Dammann, o homem que vai “preservar” a “autonomia artística” do São Carlos, vem de Colónia e Colónia não é propriamente um lugar indiferente em

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matéria de música contemporânea. Há dias, na Casa da Música, onde passava um trecho de Emmanuel Nunes, ministra, Intendente e o ilustre compositor fecharam-se num gabinete durante o intervalo e ninguém os viu na segunda parte. Nunes, é bom recordá-lo, tinha uma ópera encomendada por Pinamonti para o São Carlos. A instâncias dele, compositor, a entrega da encomenda foi sendo adiada. A dada altura, Emmanuel Nunes deu uma entrevista em que anuncia melhores tempos – para ele, naturalmente – para o São Carlos. Ou seja, Nunes antecipa a saída de Pinamonti antes de o Intendente a consumar. Pierre Boulez, o “patrão” do IRCAM a que pertence Nunes, consta estar farto do português. Mais. O português ensina em Colónia, onde existe o Studio der Neue Musik Köln. Em suma, Nunes “precisa” de um teatro de ópera. Ninguém é ninguém na música contemporânea sem estar ligado à “galáxia” IRCAM, ao referido Studio de Colónia, sem ser “compositor aprovado” no Instituto Internacional de Música de Darmstadt e sem ter obra aceite no Festival de Royan. O Intendente Carvalho sabe da poda. A OPART é apenas o proscénio.

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Ex-vogal do Teatro Nacional de São Carlos

Eduardo Pitta

Perguntam-me o que penso da OPART. Para já, não penso nada. É preciso ver. Avaliar os indícios disponíveis permite pôr ordem no tema. Vejamos. Quem se der ao trabalho de conferir o Orçamento Geral do Estado para 2007, verifica que foram atribuídos 15,6 milhões de euros ao Teatro Nacional de São Carlos e 6,2 milhões à Companhia Nacional de Bailado. Estas verbas incluem receitas próprias e mecenato. Agora, o governo pretende fundir as duas entidades, tomando como modelo próximo as óperas de Londres, Paris e Milão. À partida, bons modelos. Sucede que a realidade portuguesa não coincide com a britânica, a francesa ou a italiana. Mesmo em termos estritos de tesouraria, estamos a falar de coisas diferentes. Aqui chegados, e não tendo poderes de presciência, não posso vaticinar a fortuna da anunciada OPART, ou seja, do Organismo de Produção Artística que resultará da fusão do Teatro Nacional de São Carlos com a Companhia Nacional de Bailado. E, de caminho, ficar a saber que papel está reservado ao Teatro Camões no fim do imbróglio. Para já, uma questão: o orçamento da nova entidade corresponde à soma do orçamento das suas predecessoras? Não corresponde. Andará perto de 19 milhões de euros, o que significa um défice de 2,8 milhões relativamente à gestão que vinha de trás. É um corte significativo. Um gestor sério vê-se obrigado a reconsiderar tudo. Parece ter sido o que fez Pinamonti, quando escreveu à ministra da Cultura, em Setembro de 2006: “Com estas premissas, vejo-me forçado a comunicar a minha indisponibilidade para aceitar o amável convite de continuar na direcção do Teatro depois do término natural do meu contrato” (cf. Expresso, 17 de Março, caderno Actual, p. 22). Havendo muito dinheiro, tudo são lantejoulas. Não

havendo... Num primeiro momento, que podemos situar por altura das entrevistas que Pinamonti deu ao Expresso e ao Diário de Notícias, em Novembro do ano passado, o italiano mostrou-se desagradado com a solução OPART, mas, uma vez aprovado o diploma, considerou que “a polémica tinha chegado ao fim”. Isso mesmo consta de carta enviada à tutela, em 23 de Fevereiro último. Se a polémica chegou ao fim, ou não, é cedo para a prova dos nove. Pelo lado dele chegou com certeza, pois está de partida, mas nada nos garante que não venha a ensombrar o mandato do alemão Christoph Dammann, director da ópera de Colónia, que se mostrou surpreendido com a perspectiva da fusão. Pelos vistos, ninguém o esclareceu antes da conferência de imprensa. (Se fosse na RDA também não o esclareciam.) Que tudo isto aconteça no ano em que a Companhia Nacional de Bailado comemora 30 anos de actividade, efeméride obscurecida pela Fronda dos amigos de Pinamonti, diz muito do país que somos. Que alguns desses amigos andem preocupados com guerras do alecrim e da manjerona, fazendo da Ajuda o seu campo de tiro, ilustra bem a cultura indígena. Ao estalinismo de Estado responde o estalinismo das cliques bairristas (uns e outros detentores do dogma). O que pensam deste alarido o Millennium BCP e a EDP, mecenas do São Carlos e da Companhia Nacional de Bailado, respectivamente? O que pensam disto os jornais, que não investigam, não fazem perguntas incómodas, não apresentam números, não promovem o contraditório? E há tanto por onde pegar...

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Crítico

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PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

PINAMONTI, ALVO A ABATER texto

Henrique Silveira

O Organismo de Produção Artística OPART resulta da reestruturação do Ministério da Cultura (Decreto-Lei n.º 215/2006 de 27 de Outubro), ao abrigo do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE, resolução do Conselho de Ministros n.º 39 de 2006), que levou à instituição de Entidades Públicas Empresariais (EPE’s). O OPART “articula” na mesma Empresa o Teatro Nacional de S. Carlos (TNSC) e a Companhia Nacional de Bailado (CNB). Este OPART aparece inopinadamente sem quaisquer estudos prévios e o secretário de Estado Vieira de Carvalho anuncia o projecto como deus ex machina que virá poupar imenso dinheiro ao Estado. Como o terá imaginado? Não o sabemos, são os mistérios insondáveis da mente de um homem que acusou Paolo Pinamonti de ter um “problema de hermenêutica précompreensão”. Sem estudos, sem discussão com os directores das instituições envolvidas, anuncia-se um facto consumado antes de haver sequer facto. A nova empresa terá cinco administradores no seu conselho, todos nomeados pela tutela, sendo dois, os directores artísticos para o bailado e a ópera, num modelo oposto ao da Casa da Música, em que o director artísti-

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co depende e é nomeado pela direcção local. De onde se pode concluir que a tal “empresarialização” se deveria chamar “governamentalização” do Teatro de Ópera e do Bailado. A figura de director perde autonomia para o conselho de Administração em termos de gestão corrente e perde autonomia relativamente à tutela: os directores passam a depender não só da tutela, mas também de mais uma estrutura burocrática intermédia. Não é líquido que esta nova estrutura poupe dinheiro ao Estado: as estruturas da ópera e da dança mantém-se a funcionar em paralelo, com os seus corpos artísticos distintos: no TNSC são a orquestra, coro e pessoal dirigente artístico, que consomem a grande fatia do orçamento. As estruturas básicas de apoio mantêm-se separadas, as sedes das instituições continuarão a ser no TNSC, no Teatro Camões e nas instalações cedidas pela Câmara de Lisboa, na Rua Vítor Cordon. Será necessário ainda obter uma sede para a nova empresa. Também os novos serviços administrativos terão tarefas duplicadas: os contratos de ambas as estruturas são distintos e específicos, sendo impossível realizar esta gestão com pessoal reduzido face aos actuais quadros. A produção de conteúdos – como programas de sala ou

a promoção de cada entidade – é muito especializada, sendo muito deficitário no TNSC o pessoal desta área. A instalação e organização de uma nova estrutura superveniente às existentes acarretarão enormes custos, que retirarão dinheiros às instituições pré-existentes, como não se cansou de chamar a atenção Paolo Pinamonti nos alertas públicos que acabaram por servir de pretexto à sua não recondução à frente do TNSC (no que aparenta ser uma manobra de baixa política montada para dar ao hermeneuta da Ajuda o poder absoluto para impor o seu modelo: ópera de baixa qualidade a custos reduzidos, para o povo e o turista, com artistas locais e, sobretudo, em português, livrando-se do director italiano que tem ideias próprias, assentes na qualidade e numa visão da ópera como teatro de experimentação e criação). Mas se o dinheiro, que é algo que não abunda na Ajuda, tem sido retirado à cultura de ano para ano – sendo actualmente 0,1 por cento do PIB (o mais baixo valor na Europa) –, também pode ser desperdiçado alegremente contratando um director artístico em part-time para o TNSC, Christoph Dammann, homem que desconhece por inteiro a realidade portuguesa e com currículo con-

troverso em Colónia, acumulando duas direcções artísticas até à rescisão com o teatro alemão em 2008 ou 2009, possibilitando ao sr. da hermenêutica exercer o seu controle directo nas ausências do alemão. Entretanto a Orquestra Sinfónica Portuguesa, que depende do S. Carlos, e que deveria ser uma estrutura autónoma, não tem instalações próprias nem mesmo uma sala de ensaios, exemplo único a nível mundial da miséria a que votamos a nossa sinfónica estatal. É paradoxal que o pouco dinheiro existente seja esbanjado na criação de uma instituição fantasma, que parece ser apenas um pretexto para destruir o que de bem feito existe e para reinventar a pólvora, demitindo-se de caminho e de forma desonrosa quem soube fazer: Paolo Pinamonti, dando provas de uma notável inventividade, numa escandalosa refutação da retórica dos políticos sobre “cultura da meritocracia”.

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Crítico

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© José Luís Neves


PERSPECTIVA OPART CNB/ TNSC

HISTÓRIA DE UM OPART EM CITAÇÕES “A nova lei orgânica do Ministério da Cultura diz que estes OPART contribuirão para o ‘desenvolvimento da cultura musico-teatral’, categoria em si mesma antiquada, que desde logo faz desaparecer o facto coreográfico que constitui a CNB. Recorde-se que quando, em 1946, o Estado assumiu a tutela do S. Carlos declarou que o fazia para ‘estimular e desenvolver a arte lírica e coreográfica em Portugal’, era serôdia já então esta concepção de uma única arte lírico-coreográfica, mas, ao menos, a dança não estava ausente do enunciado, como agora acontece. A verdade é que a dança sempre ocupou pouco espaço na programação do S. Carlos no século XX, e idêntica secundarização se afigura inevitável se uma só gestão se vier a impor sobre os interesses artísticos historicamente contraditórios das duas artes. A dança vem sempre em segundo lugar, salvo quando decide em casa própria. Os equívocos, no entanto, começam logo na decisão de criar esta entidade, sem que qualquer estudo prévio tivesse sido feito sobre o modo melhor de enfrentar os problemas artísticos e administrativos de que pudessem sofrer o Teatro e a Companhia, mas apenas para obedecer aos imperativos do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado, que visa reduzir, indiscriminadamente, o números de directores e de institutos, assim amalgamando o que, pela sua especificidade, o não pode ser. A tutela, aproveitando esta boleia, e sem ouvir os responsáveis directos pela identidade artística das duas casas, satisfez um desejo ideologicamente motivado de subordinar as artes a um modelo tecnico-administrativo, como é bem demonstrado pelo figurino avançado para os OPART em que os directores artísticos seriam súbditos da administração”. José Sasportes, historiador de dança Diário de Notícias, 26 Dezembro 2006 “ACREDITO nas capacidades de gestão, na experiência e nas opiniões de natureza técnica e artística do director do TNSC. Queremos perceber melhor as razões que levam o Governo a adoptar esta medida de fundir o TNSC com a CNB, quando existem sérias reservas sobre as suas consequências”. Tereza Portugal, deputada do PS Público, 18.01.2007

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“ESTÁ dado o tom ao abrandamento da CNB quando comemora 30 anos e se prova, apesar da sub-orçamentação, o aumento de público e de receitas. Uma vez mais o estilo ziguezagueante do MC sobrepõe-se aos objectivos das casas, desconhece o impacto público da decisão e mais do que decapitar direcções (esta é uma opção política fulanizada), anula projectos, como o Teatro Camões, que em conferência de imprensa de 16.11.2005 era elogiado pelo mesmo MC. A CNB gere, em detrimento da sua própria função e com resultados positivos públicos, o futuro do Camões enquanto teatro da dança desde 2003, não se tendo alterado o seu orçamento, apesar da sustentabilidade financeira deste lhe ter sido prometida em OE. Se o défice de 2004 foi coberto pelo OE rectificativo de 2005, em 2006 foi-lhe retirada a verba do PIDDAC de 1 milhão de euros. No total são 4,7 milhões de euros só de despesas fixas e segurança social, incluindo a gestão, programação e manutenção de três espaços – sede na Vítor Cordon, Camões e armazém. Se o MC quer poupar porque não garante a partilha de músicos e bailarinos em vez de programações anunciadas separadamente com sobreposições que levam à contratação de uma nova formação sinfónica para os bailados? Porque não liberta do orçamento da CNB os gastos com a segurança social dos bailarinos inactivos e autoriza que a idade de reforma desça de 65 para 45 anos, tal como os atletas de alta competição, por ser uma profissão de desgaste rápido? Porque não agiliza as autonomias financeiras das duas casas permitindo uma regularização das contas que não necessitem de contornos inevitáveis como reconheceu a recente auditoria às contas de 2004 da CNB? Importa ainda perceber que papel atribui o MC aos mecenas, Millennium BCP (TNSC) e EDP (CNB), já que dificilmente se concebe que um e outro promovam um aumento de despesa. O secretário-geral do Millennium disse ao Expresso (08.12), a propósito de um jantar organizado pelo Ministério, que já davam ‘apoio suficiente’”. Tiago Bartolomeu Costa, crítico Público, 22.01.2007

“JÁ se conhece, pelo que está a acontecer há anos com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, o efeito do downsizing na sua versão anoréxica no âmbito da gestão cultural tutelada pelo Ministério. Por analogia, o exemplo parece confirmar as previsões no que diz respeito à CNB. A indefinição absoluta da OSP enquanto agrupamento deriva-se directamente da sua fusão com o Teatro Nacional de São Carlos. Desapareceu aquele horroroso ‘Orquestra Sinfónica Portuguesa do Teatro Nacional do São Carlos’, mas, mesmo assim, o seu perfil artístico não existe. É aliás de temer que, a seguir, os responsáveis por esta situação, deitando a mão à retórica do mercado, tão à la page, acabem por chegar rapidamente à conclusão de que ter uma orquestra sinfónica é um ‘desperdício’, incongruente numa nova estrutura vocacionada para a ‘produção artística’. Tudo o que pode piorar, piora...” Teresa Cascudo, crítica Blogue Contemporâneas, 22.01.2007 “EM primeiro lugar, é preciso dizer que não se trata de uma fusão. A fusão implicaria a escolha de um único director artístico – algo que não vai acontecer. Para começar, há duas cartas de missão distintas (a inscrever na lei): uma para o TNSC e outra para a CNB. E os dois directores artísticos terão total autonomia. Fundese o suporte técnico, administrativo e financeiro, comum às duas instituições, mas não se funde aquilo que não pode ser fundido. O mundo da ópera tem a sua cultura própria, as suas redes – e o mundo da dança também. Para além disso, os directores artísticos não serão nomeados pelo Conselho de Administração, mas por despacho conjunto do Ministro da Cultura e das Finanças (…) A direcção artística da CNB até sai reforçada. (…) Nós queremos que a CNB continue a afirmar a sua identidade e continue a captar públicos, como aliás tem feito. E que o projecto do Teatro Camões, enquanto Teatro da Dança, continue a perfilar-se com muita força no meio cultural português e no plano internacional. (...) Depois de o projecto estar inscrito na lei orgânica, recebi o director do TNSC e a directora da CNB, que manifestaram a sua discordância em relação ao OPART. Ao contrário do que aconteceu depois com os sindicatos, com os corpos artísticos e com os mecenas, que não levantaram quaisquer objecções. O fenómeno da resistência por parte dos directores de um instituto que vai ser alterado é comum a todas as transformações deste tipo na Administração Central. Há sempre resistências à mudança, mesmo não havendo menorização da responsabilidade das direcções artísticas. Trata-se do problema hermenêutico da pré-compreensão”. Mário Vieira de Carvalho, Secretário de Estado da Cultura Diário de Notícias, 26.01.2007

“ENTRE extinções e fusões, agora muito mais drásticas, criam-se organismos monstruosos e inoperacionais. Como foi patente na entrevista de Vieira de Carvalho ao DN, a criação da OPART, reunindo o TNSC e a CNB, é mais outro passo para o que ele pormenoriza: o poder directamente em São Carlos. Desde apontar comparações com a Ópera de Paris, como se esta não tivesse dois teatros, e sobretudo como se ignorasse que um problema estrutural do TNSC é a falta de sala de ensaios, até dizer que a Tetralogia em curso deverá ir ao Porto ao Coliseu (e por acaso já perguntou ao encenador se concorda, ou acha que Graham Vick é um serviçal?), que lá por ser uma zona de influência do favorito Jorge Vaz de Carvalho, não deixa de ser privado e fora das competências do ministério, nada falta para o golpe estar final: afastar um director artístico como Paolo Pinamonti para que o TNSC seja finalmente conforme ao comissário geral, Mário Vieira de Carvalho”. Augusto M. Seabra, crítico Diário de Notícias, 2.02.2007 “TINHA enviado uma carta à ministra a 23 de Fevereiro – a última, uma de várias, todas sem resposta –, na qual repetia a minha disponibilidade. Na semana seguinte, a ministra chamou-me e tivemos uma conversa muito franca. A ministra, justamente, puxou as orelhas ao director que, se calhar, manifestou de maneira excessivamente fogosa as suas opiniões. Eu disse que não havia nada de pessoal, que eram opiniões técnicas e a ministra disse-me que na semana seguinte me iria chamar. (...) Estava à espera que me chamasse. Ontem [13 de Março] recebi esta carta. Fiquei surpreendido. Que dizer? Se calhar estou a pagar pelas minhas opiniões sobre a OPART. Pensava que manifestava as minhas opiniões divergentes ainda numa fase de definição do projecto, porque estamos a falar de uma coisa que ainda não sabemos o que é. Estamos à espera de Godot – sou sacrificado por uma coisa que ainda não existe. (...) Tinha manifestado preocupações internamente, mas de natureza técnica. Em 2006, quando Vieira de Carvalho propôs a ideia de fundir o Teatro Nacional D. Maria II, o São Carlos e a CNB, eu levantei a mão e disse que estava muito preocupado. Vamos olhar para o conjunto: a Casa da Música é uma entidade única, o São João também... Porquê sacrificar o São Carlos? Porquê entrar assim brutalmente, a política a controlar uma instituição? Manifestei todas estas questões numa carta à ministra em Janeiro. Esta carta não teve resposta, como muitas cartas que mandei... Apresentámos também um calendário para esta transformação. Propusemos transformar o São Carlos em Empresa Pública, depois vermos como era a gestão, e, numa fase seguinte, em 2008, integrarmos a CNB. (...) A proposta de fusão continua a ser nebulosa, não sabemos bem o que vai ser. (...) Há um desenho de tipo político que me parece um modelo antigo, dos anos 50, no qual havia um controlo político dos teatros”. Paolo Pinamonti, ex-director do TNSC Público, 15.03.2007

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ENSAIO

O CORPO

DO CRÍTICO E O TEATRO

DO GYEE

O TEATRO PODE NÃO SER APENAS UMA COLECÇÃO DE SINAIS DE LINGUAGEM E SIGNIFICADOS VAZIOS. TALVEZ PRECISEMOS DE APROXIMAÇÕES FENOMENOLÓGICAS QUE INTERSECTEM SENTIDO E CORPO E NOS ABRAM PARA NOVAS COISAS NO PALCO. OS CRÍTICOS DE TEATRO COREANOS ESTÃO NUMA POSIÇÃO DESEJÁVEL PARA CONDUZIR UMA CRÍTICA “AMIGA DO CORPO” PORQUE ESTÃO FAMILIARIZADOS COM A ENERGIA ESPIRITUAL DO GYEE, UM CONCEITO OU FENÓMENO COMUM AOS NORTEASIÁTICOS.

texto

Bang-Ock Kim

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ENSAIO

Todos queremos ser felizes. Mesmo os críticos de teatro querem ser felizes, isto apesar de muitas vezes não serem propriamente bem-vindos ou apreciados. Será a felicidade possível para os críticos de teatro? Será que podemos relaxar os nossos corpos e mentes o suficiente para comunicar de forma sincera e sentir que estamos vivos no mundo do teatro? Será que podemos fazer isso? A crítica teatral actual é diferente da crítica do passado. Georges Banu afirmou em tempos que preferia os seus próprios sentimentos e história para precisar a análise quando escrevia crítica teatral. Há cinquenta anos, Roland Barthes insistiu que o texto podia ser lido por prazer em vez de conhecimento. Se for esse então o caso, o crítico teatral não é uma excepção, pois nós conseguimos entender o texto que nos é dado e apreciar a peça livre de signos teatrais. No entanto será que podemos ser felizes noutros aspectos? Recentemente têm surgido vários tipos de discurso sobre o corpo. As pessoas gostam cada vez mais de ir ao ginásio, aprender a dançar nas associações locais, e tornar os seus corpos mais atractivos. Este entusiasmo pelo corpo é igual em Seul, Tóquio ou Nova Iorque. Da mesma forma, o “corpo” é de forma recorrente a palavra-chave em debates sobre feminismo, pós-colonialismo, ecologia e estudos culturais. Conhecemos há muito o ”teatro do corpo”, um teatro, como o próprio nome indica, que dá ênfase à questão corporal. Artaud escreveu que “a crueldade não é representativa da vida, mas é sim a vida em si” e tentou colocar em primeiro plano a crueldade para enfatizar o lado físico do teatro. Também para Grotowski e Eugenio Barba o corpo do performer é por si só teatro. O corpo é, obviamente, essencial para a pantomina e body art. Para além desse aspecto, no início dos anos 90, a terra, a água e o fogo foram utilizados largamente como cenário, dando-nos ainda outros “corpos” teatrais. A abundância destes materiais, despejados em cima do palco, sugere um sentido dramático de corpos do teatro. O filósofo coreano, Yong-Ock Kim, que aponta a importância dada pelo ocidente moderno à visão e audição, defende aquilo que designa como sendo “Sentimento de Mohm (corpo)”, insistindo que, para os coreanos, o sentimento visceral é tanto a base da vida como da arte. Para os coreanos o corpo é a fonte a partir da qual o corpo físico e a mente emergem e se unificam. Não tenho a certeza quando teve início, mas alguns críticos de teatro começaram a pensar, em conjunto com o público, que o palco do teatro pode realmente existir. O teatro pode não ser apenas uma colecção de signos vazios em termos de linguagem e significado, como conhecemos através da semiótica. Talvez necessitemos 116

de abordagens fenomenológicas que distraiam os sentidos, e nos predisponham para o objecto ou material que se encontra no palco. Sobre esse mesmo tema, Patrice Pavis, no seu recente livro A Análise dos Espetáculos (2003, edição brasileira), defende que para entender a performance necessitamos da semiotização e do seu oposto, insistindo que utilizamos várias disciplinas, nomeadamente a fenomenologia e antropologia, a par com a semiótica. Segundo Merleau-Ponty, o corpo é percepção, e também um instrumento ou janela que nos guia em direcção ao mundo. Nesse sentido, o corpo do público é tão importante como o corpo do teatro. Podemos dizer que a performance se encontra algures entre o corpo do teatro e o corpo do público. Na realidade, os membros do público participam na performance com os seus corpos, bem como com o seu intelecto, olhos e ouvidos. Estes respondem intensamente ao espaço teatral, e respiram o cheiro característico exalado pelo teatro, reagem a uma performance enfadonha com tosse deliberada, e algumas vezes são surpreendidos pelo movimento brusco de um performer. Suspiram, choram, desfalecem, gritam, chegando até algumas vezes a sentir-se doentes. Nesse caso, onde podemos colocar o corpo do crítico? Obviamente, o corpo do crítico faz parte do público. Ele ou ela é apenas um membro do público ligeiramente mais profissional. Os críticos conseguem sentir o espaço do teatro e o lado físico do tempo, os seus músculos ficam relaxados ou tensos com a performance, sentindo os movimentos interiores e mudança de temperatura do seu corpo. Um encenador perguntou-me um dia de forma irónica “por que razão não respiram os críticos quando estão a assistir a uma performance?” Os encenadores e os perfomers espreitaram para o público e descobriram que os críticos são demasiado tensos e não respiram o suficiente. Se não respirarmos, não podemos comunicar com o mundo, e não podemos sentir a energia, a materialidade, a sensualidade, toda a vitalidade da aura. É claro que o teatro pode não ser um espaço ideal para respirar profundamente. Estaremos então suficientemente vivos para enfrentar a performance? Não sentimos os nossos corpos quando sentimos os corpos dos performers no palco? Os críticos de teatro coreanos encontram-se na situação ideal para efectuar uma crítica com base no corpo, pois estão familiarizados com a energia espiritual conhecida como gyee [“ki”], um conceito que se expandiu por todo o Nordeste Asiático. Gyee significa vida, energia, e a fonte do poder. Este existe entre o nada e o ser. É um espírito puro e material, revelando-se atra117


ENSAIO

vés da utilização do corpo humano como veículo. Esta noção de gyee influenciou a vida e arte tradicionais do Nordeste Asiático em campos tão diversos como as práticas medicinais, comida, pintura, caligrafia e artes marciais. Os coreanos voltaram recentemente a demonstrar interesse pelo gyee, tentando ao mesmo tempo recuperar as tradições coreanas e um estilo de vida mais ecológico a par com a preocupação tradicional coreana pela natureza. O que nos interessa neste caso é que a lógica do gyee apresenta algo relacionado com as tendências da filosofia contemporânea em filósofos como Whitehead ou Deleuze. Por exemplo, alguns académicos coreanos compararam a teoria de Deleuze sobre “becoming” e “corpos sem órgãos” com a materialidade do gyee. As artes performativas, incluindo o teatro, permitem as melhores condições para que o gyee se manifeste de forma efectiva. As artes performativas concretizam o gyee através do corpo, e comunicam com o público através do gyee. A representação em si revela o gyee através do corpo. Na medicina oriental, o gyee, que não pode ser visto ou tocado, é observado através da pulsação, tez, voz, ou postura. Do mesmo modo, este surge nos performers através da respiração abdominal, músculos relaxados, boa circulação, bem como através de uma ligação com o impulso interno e processo criativo psicológico, todos presentes na voz, expressão facial e movimento. O gyee ainda não foi suficientemente inserido na arte da representação coreana, no entanto alguns performers demonstram interesse no desenvolvimento e prática do mesmo. A representação com base no gyee também pode ser encontrada no teatro ocidental. Quando Eugenio Barba falou de “bios cénica” e “presença cénica,” e igualmente de uma energia pouco habitual irradiada por performers experientes durante uma performance, referia-se ao gyee. Phillip Zarrilli, que dirigiu o Grupo Teatral Experimental Ásia, nos EUA e na Grã-Bretanha, encontrou o gyee ao levar a cabo uma investigação sobre a representação Asiática tradicional. De acordo com a sua perspectiva, o gyee no estilo de representação asiático significa uma consciência muito sensível em relação ao corpo, respiração, energia e alma. Durante a performance, o gyee do performer é transmitido directamente ao público. Nesse momento, o corpo do performer e do público é um suporte através do qual o gyee é formado e realizado. Quando um mestre de artes marciais envia um gyee forte em direcção ao seu parceiro que se encontra a uma distância curta, o outro acaba por cair simplesmente devido à pressão da vibração corporal. Por outro lado, o público pode devolver o 118

gyee aos performers após receber o gyee dos mesmos. Muitos performers sentem que estão a responder ao gyee do público, tanto fisicamente como mentalmente. Uma resposta entusiástica por parte do público, cheia de gyee, desafia a mente e corpo do performer e tornaos mais energéticos, ao passo que o tossir constante provoca tensão na garganta do actor e faz com que o corpo se retraia. No teatro tradicional coreano existem muitos exemplos válidos relacionados com esta resposta cheia de gyee, nomeadamente no pansori e talchum, danças tradicionais coreanas com máscaras, onde os membros do público não conseguem suprimir o seu gyee e se juntam de forma agitada à performance, através de gritos e danças. A estética coreana tradicional inclui uma emoção conhecida como heung, que surge quando estamos felizes e cheios de gyee. O heung é aquilo que transborda quando não conseguimos restringir um estado emocional de satisfação, e deixamos os nossos corpos moverem-se através de um ritmo interno. Não é simplesmente um sentimento agradável, é também um estado dinâmico que nos liga e unifica a todos. O teatro moderno coreano, bem como as performances tradicionais coreanas, apresentam estas energias espirituais e materiais, o gyee e o heung, na sua relação com o público. Diz-se muitas vezes que os actores coreanos da actualidade são mais sensíveis à energia de impulso e emoção espontânea do que em relação à análise lógica e ensaio sistemático. Os actores coreanos modernos tendem a estar conscientes do público mesmo quando estão a representar em palco através de um registo realista. O público moderno coreano, por sua vez, é bastante entusiasta em relação a qualquer tipo de performance. Os performers estrangeiros que visitaram Seul não esqueceram certamente a recepção entusiástica por parte desse mesmo público. Para além disso, os teatros coreanos tendem a ser pequenos, tendo aproximadamente cerca de 100 lugares, ambientes ideais para que o público e os performers se posicionem no mesmo patamar de gyee e heung. Essa mesma experiência pode ser vivida quando assistimos a The Beautiful Man por Yoo-Taek Lee, ou à performance solo de Sung-Nyu Kim, ou até mesmo à produção de À Espera de Godot feita por Young-Woong Im. Em todos estes casos, o gyee e o heung apresentam uma energia e força inata para encorajar e partilhar uma comunicação directa entre o assunto e o objecto, ou seja, entre o performer e o público. Dessa forma podemos entender que no gyee e heung do teatro coreano

tanto o corpo do público como do crítico são um elemento essencial da resposta à performance. Actualmente, sonhamos com uma vida livre para perseguirmos a felicidade individual em vez de uma ideologia, para preservar o nosso ambiente natural em vez de o desenvolvermos, para valorizar a vida e uma coexistência pacífica em vez da lei da selva. Neste contexto pósmoderno e pós-colonial, o teatro coreano tem a possibilidade de encontrar um novo significado no teatro com base no corpo, e de se desligar do nosso teatro moderno tautológico. Para tal, os críticos de teatro e o público precisam sentir uma ligação real, a energia e calor da vida. Claro que este tipo de experiência teatral não significa a exclusão da linguagem e significado no palco. A mente e o espírito são partes do corpo e vida, energia e gyee. Não eram os gregos que acreditavam que uma linguagem cuidada elevava a temperatura do corpo? Não era a “verdade interior” de Stanislavsky que fornecia a dor física aos corações do seu público? Apesar da importância da linguagem e texto terem começado a atrair novamente a atenção do público de

teatro, poderá ser impossível regressar ao passado dominado pelos sistemas lógicos abstractos de signos sem corpo. Os críticos podem no entanto responder ao palco com o corpo, e respirar com o público, transformando a atitude fenomenológica num ponto de partida para a crítica. Ao voltar ao corpo, ao gyee, e através da interligação das áreas adjacentes da estética, política, sociologia, ecologia, ciência, e algumas vezes simplesmente através da perda de velhos hábitos, os críticos podem explorar novas formas em direcção a uma crítica teatral mais produtiva. Poderemos então ser felizes, estando ligados às vidas de outros?

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Ensaio apresentado no 50º Congresso Extraordinário da Associação Internacional de Críticos de Teatro que decorreu em Seul, na Coreia do Sul, de 21 a 25 de Outubro de 2006. Tradução do inglês de José Luís Neves. Fotografias do espectáculo Three Beautiful Soulmates, da companhia Coreana Street Theatre Troupe. 119


PUBLICAM NESTE NÚMERO

António Lagarto | Artista plástico, cenógrafo e figurinista. Licenciado em escultura pela St. Martin’s School of Art, frequentou a Faculdade de Arquitectura de Lisboa e é Mestre em Environmental Media pelo Royal College of Art de Londres. Ex-director do Teatro Nacional D. Maria II (2004-05). Bang-Ock Kim | Presidente da Associação Coreana de Críticos de Teatro e professora na Universidade de Dongguk, Seul. Bandeira | Cartunista para o Diário de Notícias e Jornal de Notícias, entre outros periódicos. Também faz BD, área em que conquistou diversos prémios, e ilustração para livros. Publicou Cravo & Ferradura na Gradiva. Autor do blogue Bandeira ao Vento. Bruno Horta | Jornalista freelancer, nasceu em Beja, em 1981. Foi redactor da revista Focus e tem publicado artigos no jornal Público e nas revistas Sábado, Vogue, Zoot e DIF. Elisabete França | Jornalista do Diário de Notícias. Carlos Pimenta | Encenador e actor. Dirigiu, entre outros, os espectáculos: Quando Deus Quis um Filho, Senso, Berenice, Luz / Interior, Estudo para Ricardo III / Um Ensaio sobre o Poder, Moderato Cantabile. Foi membro, entre 1979 e 2001, da Companhia do Teatro Nacional D. Maria II. Foi Coordenador do Departamento de Teatro do IPAE. Foi Presidente da GDA. É consultor do Instituto Camões para a área das artes do espectáculo. Cristina Peres | Jornalista. Redactora do semanário Expresso desde 1992. Crítica de dança e de teatro desde 1989, coordenou a respectiva secção no Expresso de 1998 a 2005. É consultora para as artes performativas do programa semanal da RTP2 Câmara Clara. Don Rubin | Director do Graduate Program em Estudos Teatrais da Universidade de York, Toronto e editor da Enciclopédia Mundial de Teatro Contemporâneo.

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Eugénia Vasques | Ex-crítica no jornal Expresso e docente na Escola Superior de Teatro e Cinema. Francesca Rayner | Master of Arts em História, pela Universidade de Londres, Inglaterra. Professora Auxiliar do Departamento de Estudos Ingleses e Norte-Americanos da Universidade do Minho. Vasta obra publicada na área dos Estudos de Género. Isabel Capeloa Gil | Professora e Directora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. João Carneiro | Crítico de teatro no jornal Expresso. José Luís Neves | Licenciado em Tradução, variante Inglês/Alemão, pelo ISLA Lisboa. É fotógrafo freelancer e colabora regularmente com artistas, críticos e instituições culturais nas vertentes da fotografia de cena e documental.

Susana Nascimento Duarte | Trabalha em vídeo e é docente na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha. É licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Concluiu em 2006, na mesma faculdade, o mestrado em Ciências da Comunicação, na área de Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias. Prepara, neste momento, o projecto de doutoramento na área do Cinema. Tiago Bartolomeu Costa | Especialista em Estudos de Teatro. Crítico de dança no jornal Público e colaborador, entre outras publicações, das revistas Mouvement e Ballet-tanz. Autor do blogue O Melhor Anjo. Membro do Conselho Consultivo Internacional do Festival Divadelná Nitra (Eslováquia). Yun-Cheol Kim | Ph.D., ensina na School of Drama da Korean National University of the Arts e é Vice-Presidente da Associação Internacional de Críticos de Teatro.

Luís Rodrigues | Docente do departamento de Língua e Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lexicógrafo e investigador na área de estudos comparatistas, mitologia e poesia portuguesa contemporânea. Miguel-Pedro Quadrio | Crítico de teatro do Diário de Notícias e docente no curso de Comunicação Social e Cultural, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Integrou diversos júris na área do teatro. Publicou sobre Estudos Literários e Teatrais, em revistas nacionais e internacionais. Mónica Guerreiro | Jornalista e crítica, tem trabalhado também como consultora para diversas instituições, entre as quais o Instituto das Artes (Ministério da Cultura), a Fundação Calouste Gulbenkian ou a Câmara Municipal de Lisboa. Rui Monteiro | Jornalista.

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