Obscena #11/12 - Abril/Maio 2008

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QUEREMOS VIVER. Quando começámos a preparar o dossier sobre o Maio de 68 francês, com o qual abrimos este número, achámos que devíamos fazer uma reflexão sobre os efeitos dessa manifestação na criação artística, sobretudo no que respeita a Portugal. Sabíamos que a tarefa era ambiciosa, mas tínhamos como guia a frase-chave: sejam realistas, peçam o impossível. Queríamos fazê-lo porque nos vamos dando conta de que alguns dos-siers que poderiam parecer mais extemporâneos numa revista que se subintitula de artes performativas – como é o caso do dossier sobre o ensino artístico (número 4), as políticas culturais (números 6, 7, 8 e 10), ou o debate sobre o HIV/Sida e a arte (número 8) –, têm sido recebidos com bastante entusiasmo da parte dos leitores, muitas vezes surpreendendo-nos as respostas que acusam a novidade e agradecem o inusitado da proposta. Queríamos fazê-lo porque sabemos que houve vários artistas portugueses, nas mais diversas áreas, que estiveram em Paris, alguns exilados, outros movidos pelo espírito libertário que ali se concentrava, e nos deram canções, poemas, filmes, livros, textos, quadros, esperança. Queríamos resgatar essa memória e dá-la a conhecer a quem não a tem (e na redacção da OBSCENA somos praticamente todos – por isso este dossier era, em primeiro lugar, uma pergunta pessoal). O resultado final é menos sobre o que tínhamos internamente proposto e mais um mapeamento do que ficou, sobretudo no plano social e humanista. Parece-me haver duas explicações para o facto. A primeira é que muitos dos nomes contactados estranharam o convite e, não o tendo necessariamente recusado, deram à manifestação francesa um lugar de importância circunstancial, achando que queríamos embarcar numa nostalgia embrulhada em desconhecimento. A segunda é que, nesta recusa, existe também uma alienação e uma circunscrição da vida em gavetas que insistem em não se quererem articuladas. Deveríamos reflectir sobre essa dificuldade em lidar com o passado de forma desabrida, sobre a dificuldade em concebermos a História como evolutiva e feita de influências, sobre o medo que temos de entender o acto político como um acto social. Por isso, a nossa resposta ao que não conseguimos que fosse o dos-sier sobre o Maio de 68 (e, no entanto, o resultado final orgulha-nos tanto ou mais do que a ideia que ficou por concretizar), é o dossier que dedicamos ao Alkantara Festival. Mais do que um catálogo equilibrado sobre os espectáculos, decidimos assumir uma posição sobre as posições dos outros. Se esta edição do Alkantara é a mais politica de todas, então a nossa abordagem traça linhas que são subjectivas e especulativas. Entend(em)o(s), e já o repeti(mos) várias vezes, que a intervenção critica é um acto de inscrição no terreno. É um acto politico. “Para colocar em causa a sociedade onde vivemos, é preciso sermos capazes de nos colocarmos primeiro em causa”, escreveu-se nas paredes de 68. Para nós, essas palavras continuam a fazer todo o sentido.

EDITORIAL

Director Tiago Bartolomeu Costa | tiago.bartolomeu@revistaobscena.com Sub-director Francisco Valente | francisco.valente@revistaobscena.com Colaboram neste número Aleksei Wechter, Alexa Wilson, André Dourado, António Pinto Ribeiro, Arnd Wessemann, Bandeira, Boubakeur Sekini, Bruno Tackels, Cristina Peres, David Sanson, David Tushingham, Debra Craine, Diana Simmonds, Elisabete França, Elisabeth Zimmer, Eugénia Vasques, Florent Delval, Gwénola David, Isabel Alves Costa, Jaime Conde-Salazar Peréz, Jean-Baptiste Veyret-Logerias, Jean-Marc Adolphe, Jérôme Provençal, João Fiadeiro, João Mendes Ribeiro, José Luís Neves, José Maria Vieira Mendes, Luís Jerónimo, Marc’O, Maria José Fazenda, Martim Ramos, Miguel Magalhães, Mónica Guerreiro, Pascal Bély, Paulo Raposo, Pedro Relógio Fernandes, Quing Quing, Raquel Freire, Ricardo Lopes, Thomas Ferrand, Tommy Noonan, Vanda Piteira, Vasanthi Sankaranarayanan, Virgínia Mata, Zeynep Gunsur Direcção de Arte Pixel Reply | www.pixelreply.com Logotipo MERC Publicidade Jorge Reis | publicidade@revistaobscena.com / jorge.reis.pub@gmail.com Agradecimentos Alceu Bett/Spectaculum, Alison M. Friedman, Angharad Wynne-Jones / Lift – London International Festival of Theatre, Canal 83 Bobigny, Carlos Laruça, Cláudia Abreu / Campo das Letras, Cristina de Jesus / Companhia Nacional de Bailado, Cristina Peixoto, Culture Publique, Escola Superior de Teatro e Cinema, Estudo Base, Francisco Frazão / Culturgest, Gabriel Fonseca, Isabel Dourado, João Vieira / Fundação Calouste Gulbenkian, John Smythe / Theatreview – The New Zealand Performing Arts Review & Directory, Jorge Bragada, Katelijn Verstraete, Leonetta Bentivoglio, Marie Mignot, Monica Gillete, Museu de Serralves, Notro Filmes, Pedro Rodrigues, Re.Al, Sofia Campos, Vasco de Castro, Xu Feng Com a colaboração do Clube Português de Artes e Ideias Assinaturas e informações obscena@revistaobscena.com As informações devem ser enviadas até dia 8 de cada mês A OBSCENA-revista de artes performativas é uma revista de periodicidade com distribuição electrónica gratuita através da Internet. A OBSCENA aceita propostas de colaborações de leitores. Os materiais publicados são da responsabilidade dos respectivos autores, estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial. www.revistaobscena.com A OBSCENA – revista de artes performativas é membro da TEAM Network (Transdisciplinary European Art Magazines) | www.team-network.eu A OBSCENA – revista de artes performativas é uma co-edição OBSCENA – Associação e Pixel Reply Lda.

Depósito Legal 274919/08

ICS

Tiragem 5000 exemplares Periodicidade Mensal Impressão Sogapal – Estrada das Palmeiras, Barcarena

Tiago Bartolomeu Costa

ABRIL / MAIO .08

ISSN 1646-9658


PÁG.10

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PÁG.12

ALAIN OLLIVIER

entrevista Francisco Valente PÁG.14

TEREMOS SEMPRE PARIS Florent Delval Jean-Baptiste Veyret-Lojerias Jérôme Provençal PÁG.16

PÁG.03

MEU 68 João Fiadeiro José Maria Vieira Mendes Raquel Freire

QUEREMOS VIVER

Tiago Bartolomeu Costa

PÁG.18

MEMÓRIA ACTIVA: RELATOS DE QUEM LÁ ESTAVA Vasco de Castro Isabel Alves Costa PÁG.20

FRANÇOIS CUSSET entrevista Bruno Tackels e Gwénola David

ARRITMIA

OPINIÃO

MAIS DO QUE UMA MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL Tiago Bartolomeu Costa

PÁG.32

PÁG.08

COXIA

PÁG.09

DIÁRIO DE RUA

OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO

Bandeira

Elisabete França PÁG.34

O MAIO DE 68 NA IMPRENSA NACIONAL Pedro Relógio Fernandes

PÁG.24

CAMAROTE PAR

PÁG.30

Mónica Guerreiro

PONTO CRÍTICO

André Dourado

PÁG.36

O CASO BÉJART: AZEREDO PERDIGÃO DIZ ADEUS A SALAZAR José Medeiros Ferreira PÁG.38

FIM DE CINEMA, FIM DE REVOLUÇÃO Francisco Valente PÁG.39

O MAIO DE 68 EM MÚSICA David Sanson

Eugénia Vasques

A REVOLUÇÃO EM IMAGEM Francisco Valente PÁG.40

ECOS CELEBRATÓRIOS Elisabete França

PÁG.112

EDITORIAL

PÁG.26

A FACE OCULTA António Pinto Ribeiro

PÁG.43

LUÍS JERÓNIMO E MIGUEL MAGALHÃES Elisabete França PÁG.44

BIBLIOGRAFIA

Selecção de Luís Jerónimo e Miguel Magalhães


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ÍNDICE

PÁG.62

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PÁG.46

PÁG.64

"EU SOU O SISTEMA"

PÁG.48

CLÁUDIA DIAS PEDRO CARRACA CLÁUDIA GAIOLAS CLARA ANDERMATT TEATRO PRAGA FILIPA FRANCISCO TIAGO GUEDES MIGUEL PEREIRA TIAGO RODRIGUES VERA MANTERO

AS QUESTÕES DE PINA BAUSCH Arnd Wesseman PÁG.50

AS CIDADES REDESENHADAS António Pinto Ribeiro PÁG.52

LISBOA MORNA Cristina Peres PÁG.53

PÁG.78

TURKISH DELIGHT

ABRIR AS JANELAS DO VOSSO CORAÇÃO

Virgínia Mata

DINOZORD

PÁG.54

DE FAUSTIN LINYEKULA

CAFÉ MÜLLER

NINE FINGER

Leonetta Bentivoglio

Cristina Peres PÁG.56

COSMOGONIA

OLGA RORIZ

Maria José Fazenda

PÁG.58 João Mendes Ribeiro

DIAS DO JUÍZO

LISBON PIECE

BLEIB OPUS #3

CARTA BRANCA

PERSPECTIVAS

PÁG.55

DE FUMIYO IKEDA, BENJAMIN VERDONCK, ALAIN PLATEL DE MICHEL SCHWEIZER

CHÁCARA PARAÍSO DE STEFAN KAEGI e LOLA ARIAS

NO DICE DE NATURE THEATRE OF OKLAHOMA

SPEAKING DANCE DE JONATHAN BURROWS e MATTEO FARGION

PÁG.98

DE PERTO NINGUÉM É NORMAL BAHOK DE AKRAM KHAN

PUSHED DE PADMINI CHETTUR

CHINA DE WILLIAM YANG

TEMPEST II DE LEMI PONIFASIO

UN AN APRÈS ... DE NACERA BELAZA

HARS DE AYDIN TEKER

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OPINIテグ

COXIA

Bandeira

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OPINIÃO

OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO Mónica Guerreiro

PENDURADOS NA TATE, POIS

Se a globalização tem um retrato, ele é duplo. São dois. O mundo todo está no desenho das escarpas e no contorno das estradas, nas rugas daquele senhor barbudo e nas linhas do entrançado das cestas que levam especiarias, na intensidade do trabalho mineiro e na composição abstracta de um microchip. Está tudo lá. Hoje, é um bocadinho aterrador perceber isso. As efemérides têm destas coisas: trazem à luz realidades que o tempo engoliu, que a gente esqueceu ou não conheceu e que assim, como que revivificadas, parecem recuperar e actualizar a sua importância. Se a conjuntura for certa, o anacronismo permite comparações interessantes entre a produção cultural de uma determinada época e a sua recepção, digamos, uma geração mais tarde. O facto de se completarem em 2008, respectivamente, o 25º e o 20º aniversários de Koyaanisqatsi e Powaqquatsi, os reveladores filmes de Godfrey Reggio (realização), Philip Glass (música) e Ron Fricke (fotografia), verdadeiros monumentos visuais e sonoros que cunharam uma forma de interpretar artisticamente as enormes alterações que o mundo atravessa, é apenas um pretexto para voltar a ver e a ouvir estes trabalhos. Koyaanisqatsi (Life Out of Balance) e Powaqquatsi (Life in Transformation) são como os dois lados de uma moeda, ou do globo, pois o primeiro dedica-se ao hemisfério norte e o segundo ao hemisfério sul. Os títulos são propositadamente na língua Hopi, já que a intenção era desprover absolutamente estas obras de sentidos fechados, como aqueles que as palavras veiculam. Aqui, não há narrativa, nem diálogos, nem actores, sem significados anunciados. É a música – bandas sonoras conceituais, de ambição épica, cujas melodias se tornariam marcas dos anos 1980 – que gera diálogos com as imagens, interpreta-as, acrescenta-lhes sentidos, numa relação que Philip Glass explica bem: “o texto, a imagem e a música são a base de toda a arte interdisciplinar, seja ópera, cinema ou dança”. À sua maneira, e embora seguindo circuitos e contextos próprios (os filmes foram produzidos por Francis Ford Coppola e George Lucas), estas obras são contemporâneas de uma forma de expressão emergente que, com o cinema experimental e a evolução das artes plásticas, adquiria estatuto particular: a videoarte. E, hoje, seriam certamente categorizados dessa forma, não obstante as limitações dos formatos de apresentação (projecções avulsas em festivais, más condições de exibição em galerias e museus, fraca visibilidade no res-

trito sistema da distribuição cinematográfica...). É isso que se quer dizer quando se reproduz, na capa da edição em DVD, a seguinte citação do The Times: “This ought to be hung in the Tate”. Ou seja, a intencionalidade inequivocamente artística destes filmes, que visam proporcionar experiências estéticas, permanece estimulante e provocadora, ainda que com a reserva que o tempo nos exige, potenciando reflexões sobre o progresso das sociedades enquanto agentes de reordenação ambiental num planeta que vive dividido, entre a necessidade de evoluir e a urgência de desacelerar. Compacto de uma viagem pelo mundo, documentário social e económico, tese sobre a natureza e a industrialização, estes filmes são uma espécie de sinal dos tempos, reportagem jornalística e lição de história ao mesmo tempo, mas sem didactismo, sem objectividade, sem efabulação e sem miserabilismo. A sua apetência não é informativa, mas sugestiva; e por isso são peças tão opinativas, cuja recepção não foi pacífica, apesar dos muitos prémios. Por exemplo: em Koyaanisquatsi, Reggio acentuou a velocidade própria da sociedade industrial (que se prepara para ser sociedade da informação) apresentando muitas sequências em fast forward, com sabor futurista, na sua celebração da tecnologia; já em Powaqqatsi, caracterização das sociedades em vias de desenvolvimento, abundam imagens em câmara lenta, que lhe valeram acusações de estar a embelezar e a glorificar a pobreza. Efectivamente, as condições de vida, de habitação, de trabalho, de transporte, de alimentação, de lazer, de cuidados de saúde, são brutalmente dissonantes, mas não há diferença na dignidade e na compaixão com que a câmara no-las mostra. Há tanta sensibilidade na longa sequência que mostra o desenho cambiante das nuvens reflectidas em espelhados arranha-céus como naquela que acompanha o caminhar de um carregador de palha, emoldurado pelo azul celeste de um dia que ainda não nasceu.

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ARRITMIA

MAIO DE 68

Quarenta anos depois daquela que foi uma das maiores manifestações de protesto na Europa do pós-guerra, perguntamo-nos sobre o valor de uma agitação e das suas reivindicações, da força das suas imagens e das ideias que nos deixou. Interrogamo-nos sobre como um movimento nascido do meio universitário se estendeu para as outras esferas da sociedade: os trabalhadores, os intelectuais, os artistas, a população; e assim validou a sua forma de protesto, colocando um país em crise existencial e obrigando-o a reinterpretar as suas relações e a imagem que tinha de si próprio. Como, no fundo, uma sociedade presa aos valores de um mundo ao qual já não pertencia se encontrou num movimento de protesto que guarda tanto de poético como de realista, que fascinou intelectuais e artistas e foi objecto de uma luta política por milhões de trabalhadores desejosos de um progresso real nas suas condições de vida. Qual foi e qual é a relevância do Maio de 68, o seu papel na vida prática e na inspiração de todos, onde fica o seu lugar e o que formam os seus contornos? Por outras palavras, por onde influi o movimento nos tempos políticos e artísticos dos nossos dias, e sobretudo, estará a sua forma de existir e de protesto ainda hoje presente num mundo que se tende a afastar vertiginosamente do seu passado imediato, onde a informação e a validade das suas imagens e a relevância temporal das suas ideias diminui drasticamente? Pegámos no desafio em busca de respostas, tarefa com a sua quota de utopia. E assim, lançamos um debate aberto, consciente e livre, sem nostalgia, como uma manifestação que vive da rua, palco do seu diálogo e das suas ideias.

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ALAIN OLLIVIER

entrevista Francisco Valente PÁG.14

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O MAIO DE 68 NA IMPRENSA NACIONAL Pedro Relógio Fernandes PÁG.36

TEREMOS SEMPRE PARIS

O CASO BÉJART:

Florent Delval Jean-Baptiste Veyret-Lojerias Jérôme Provençal

José Medeiros Ferreira

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MEU 68

AZEREDO PERDIGÃO DIZ ADEUS A SALAZAR PÁG.38

FIM DE CINEMA, FIM DE REVOLUÇÃO Francisco Valente

João Fiadeiro José Maria Vieira Mendes Raquel Freire

O MAIO DE 68 EM MÚSICA

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David Sanson

MEMÓRIA ACTIVA: RELATOS DE QUEM LÁ ESTAVA Vasco de Castro Isabel Alves Costa PÁG.20

FRANÇOIS CUSSET

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A REVOLUÇÃO EM IMAGEM Francisco Valente PÁG.40

ECOS CELEBRATÓRIOS Elisabete França PÁG.43

entrevista Bruno Tackels e Gwénola David

LUÍS JERÓNIMO E MIGUEL MAGALHÃES

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Elisabete França

MAIS DO QUE UMA MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL Tiago Bartolomeu Costa

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BIBLIOGRAFIA Selecção de Luís Jerónimo e Miguel Magalhães

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DIÁRIO DE RUA Elisabete França

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ARRITMIA

MAIO DE 68

Alain Ollivier

“Havia uma parte fantasma no Maio de 68”

entrevista Francisco Valente

Alain Ollivier, actor e encenador francês, foi director do Teatro Gérard Philipe de Saint-Denis, em Paris, entre 2002 e 2007. Nos anos 60, no início da sua actividade artística, acompanhou os tumultos do Maio de 68. Actualmente a preparar a sua encenação de O Marinheiro de Fernando Pessoa no Teatro de Almada, traça-nos um retrato directo e realista do movimento e dos seus efeitos sociais e artísticos.

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Tinha trinta anos no Maio de 68. Seguiu as manifestações de perto? Nunca estive ligado à vida universitária. Quando vi as primeiras manifestações dos estudantes e a violência urbana, vi tudo isso com um grande cepticismo. Tinha estado na Argélia dez anos antes, e conheci lá um mês de Maio onde a História era bem mais perceptível. As armas estavam na rua. Em 68, não acreditava, de todo, num movimento revolucionário. Mas os motins eram impressionantes, muitos carros foram incendiados, os passeios levantados, foram montadas barricadas, houve confrontos muito violentos que provocaram muitos feridos. Ao se presenciar tudo isso, interrogávamo-nos sobre o seu sentido e o seu futuro. Não era um passeante indiferente, mas não conseguia encontrar um ponto de adesão a esse movimento. Mas quanto mais se organizava a repressão, mais nos tornávamos solidários com o movimento. Perguntamo-nos sobre os efeitos do movimento na criação artística. Será que foram encontradas novas direcções ou respostas? Depois do verão, em Setembro de 68, as inquietudes, as interrogações e as incertezas eram muito grandes sobre o sentido que deveríamos dar à vida cénica em França. Interrogávamo-nos com muita angústia porque não tínhamos muitas respostas. No teatro, não creio que o Maio de 68 tenha produzido coisas muito notáveis ou interessantes. O Festival de Avignon nunca mais foi o mesmo depois do Maio de 68. Disseram-se muitas asneiras e fizeram-se muitas coisas aberrantes. Nestes movimentos, há sempre um movimento original, e depois temos as derivas. E quando chegámos a Julho de 68 a Avignon, eram as derivas do Maio de 68, enganaram-se completamente no alvo. Jean Vilar dizia, o que quer que aconteça, actuamos, talvez gratuitamente, mas actuamos. Não se confunde actuar no palco do teatro com uma cadeia de produção industrial. Os que andavam a gritar nas ruas de Avignon – “Vilar, Béjart, Salazar” – eram idiotas e ignorantes. Na minha opinião, o evento mais sério foram os encontros de Villeurbanne, organizados pelo Théâtre de la Cité, que era dirigido por Roger Planchon. Sentia-se também uma falta de liberdade na criação artística. Lembramo-nos, por exemplo, da censura de A religiosa de Jacques Rivette, um filme muito polémico e que roça bastante o lado sexual. Com certeza. Todo esse estado de espírito pesava muito na vida intelectual francesa, as manifestações e os protestos dos estudantes eram uma das expressões do que muitos dos franceses sentiam na altura. A ocupação do Théâtre de l’Odéon foi um acontecimento forte, de repente, vimos espectadores a tornarem-se em actores... A história da ocupação do Théâtre de l’Odéon é um pouco idiota. Havia uma representação nessa noite, se bem me lembro, dentro do Théâtre de l’Europe, em Odéon. Jean-Jacques Lebel, alguém ligado a um grupo surrealista, esperou pelo fim do espectáculo com outras pessoas. Abriram-se as portas para a saída dos espectadores e eles entraram e ocuparam o teatro, que se tornou, mais tarde, num fórum. Havia muitos fóruns em Paris, mas o Odéon era um ponto de concentração devido à sua situação em Paris e à sua posição institucional. As tomadas e as trocas de palavra... apesar de tudo, era preciso ter muita paciência para poder ouvir tudo isso durante duas ou três horas, era bastante delirante! Mas era isso que era interessante: a liberdade de expressão. Toda a gente se exprimia publicamente e todos se falavam na rua espontaneamente. Era extremamente caloroso

e muito libertador. Houve pessoas que passaram dias sem dormir, semanas inteiras a dormir muito pouco... Vi muitas pessoas que nunca mais voltaram a ser o que eram, e nem sempre de um ponto de vista positivo. Alguns de nós não suportaram a ruptura das convenções sociais em que vivíamos na altura. Em Setembro, existiam grupos que se diziam maoístas e que eram perseguidos pela polícia, todas as noites procuravam um sítio diferente para dormir. Havia uma parte fantasma nisto tudo. Recentemente, a televisão pública francesa passou uma série de entrevistas com Daniel Cohn-Bendit, em que ele dizia que a sua sorte, no fundo, tinha sido de ser expulso do território francês, e foi na Alemanha que ele se pode reorganizar-se socialmente, e com muito esforço. Ele pergunta-se sobre o que teria sido dele caso tivesse ficado em França. Terá sido, o fim do Maio de 68, o fim de uma cena onde as pessoas podiam encarnar essa liberdade, pessoas que, de repente, se tornavam em actores ou oradores? Sabe, quando eu cheguei ao conservatório em Paris, havia muitos jovens num estado de angústia terrível, porque diziam-lhes que tudo o que tinham feito e aprendido nos últimos dois ou três anos não era a verdade. Perguntavam-se sobre como poderiam estruturar o seu caminho, como se poderiam libertar e crescer. Um dia, um destes jovens actores apercebeu-se da presença de Jean Genet e de Roger Blin. Então perguntou: “senhor Genet, o que é para si um actor revolucionário? O que nos poderá dizer para nos ajudar a tornarmo-nos em actores revolucionários?”. E Genet respondeu-lhe: “sabe, estou-me perfeitamente nas tintas.” O período pós-Maio de 68 foi duro. Pensa que ainda permanece um sentimento de fim e de derrota (vindo da vitória de De Gaulle nas eleições seguintes) na criação artística e na sociedade? Não, percebemos todos que o Maio de 68 foi um extraordinário movimento de libertação dos costumes e também de progresso social. Os responsáveis pelo movimento operário foram, na altura, de uma grande habilidade política. Politicamente, foram eles os vencedores do Maio de 68. Um dos momentos mais importantes do movimento foi a entrada de Jean-Paul Sartre na Sorbonne e o seu apoio aos estudantes. Mas também quando Louis Aragon decidiu ir ao encontro dos estudantes e foi apupado, para não dizer pior, por representar o Comité Central do Partido Comunista. Os estudantes não queriam uma figura emblemática como ele. Por fim, o encontro no estádio Charléty, onde a esquerda institucional tentou tomar o controlo da situação com figuras como Mendès-France e Mitterrand. Foi uma catástrofe para estes homens, não conseguiram dizer uma palavra. Nessa altura, acreditávamos verdadeiramente que uma figura como Mitterrand estava “acabada”, que nunca mais regressaria à cena política. Assim, o que foi muito poderoso em 68 foi este movimento de contestação às autoridades no poder, sejam elas universitárias, políticas ou institucionais. O que pensa do regresso da autoridade e da moral no discurso presidencial, onde se diz que se deve eliminar a herança do Maio de 68? O que caracteriza muitas vezes o discurso do Presidente Sarkozy é uma falta de cultura. A política de imprensa cor-de-rosa é uma maneira infantil de encarar a História, uma demagogia de pele nova. O Maio de 68 sobreviveu, não há nada a erradicar. É tarde demais. Leia em www.revistaobscena.com a entrevista na íntegra, onde Alain Ollivier fala da sua abordagem a Fernando Pessoa na peça O Marinheiro, em cena até 18 de Maio no Teatro Municipal de Almada.

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ARRITMIA

MAIO DE 68

Teremos sempre Paris

May 68 is not dead…

texto Florent Delval

Florent Delval (performer e crítico), Jean-Baptiste Veyret-Logerias (coreógrafo) e Jérôme Provençal (crítico), relatam-nos as suas imagens e ideias de 68, com um olhar lançado na criação e na política do presente.

Comemorar o Maio de 68 parece um oxímoro. Essa data marcou a história da França. Foram alguns meses que acertaram os pêndulos à hora certa. Não se tratava de deitar abaixo um regime fascista, mas de se livrar de uma envolvência paternalista do gaulismo que já tinha tido o seu tempo e que foi talvez necessária, mas numa época já fechada. Em 68, não queríamos mais olhar para o retrato do General e guardar um minuto de silêncio para uma França hierática, de rosto levantado e de mão sobre o coração. Deveríamos agora ajoelharmo-nos de punho levantado perante os slogans usados pelos nossos pais? Algo me escapa. Como todos os atavismos, já não sei bem porque me conformo com isso. Parece que existia, antes desta ruptura, uma época onde a homossexualidade era uma tara. As mulheres, dependentes dos seus maridos, eram infantilizadas… É difícil imaginar isso agora. Mas outras coisas já me parecem mais óbvias. Quando vejo que Sarkozy controla todos os media sem qualquer pudor, como esse velho General, olhando mesmo do canto do olho para a Igreja; quando vejo que a França pede mais do mesmo, como os grandes sucessos populares como o ranço do “cinéma de (grand) papa” (Os coristas, por exemplo), vejo-me muito bem no mundo anterior ao Ano 01. Primeiras memórias: “olha, o Pai Natal trouxe-me um tractor; não meu querido, o Pai Natal não existe, é uma invenção capitalista para fazer vender” (verídico). Por outro lado, os camponeses chineses tinham mesmo ar de se divertirem nos livros de cores vivas e ornadas de ideogramas exóticos. Tudo bem, os meus pais eram um pouco maoístas, são um pouco um caso à parte. Mas mesmo assim… O Maio de 68 tornou-se num mito veiculado pela família e pelos media. Deveria estar no liceu. A minha primeira greve. Andamos lado a lado na rua. Gritamos, cantamos. Bloqueamos uma estrada nacional. Subimos a uma ponte… Aí estava, já tinha o meu Maio de 68. Era jovem, mas às vezes ainda tenho imagens que me sobem à cabeça. Em 2006, estou perto da Sorbonne. Os CRS trazem os muros anti-motim. Os vidros são partidos, a rua desaparece num fumo branco, o bairro encontra-se bloqueado. A Sorbonne está barricada. Fico com a impressão de estar numa reconstituição, de ser um figurante em Os Sonhadores de Bertolucci. Não muito brilhante, mas sexy… A primeira crítica que se fez a este movimento foi a de se colar de maneira demasiadamente literal à herança das vanguardas históricas, tendo a tábua rasa como único horizonte. Pasolini, progressista e de direita, via aí um passo em direcção à barbárie (os Escritos Corsários), mas seguramente que também tinha em mente os odores nauseantes do futurismo. Quarenta anos mais tarde, já não restam grandes preocupações desse lado; passámos, de facto, para o outro lado do espectro: pelo que respeitamos e criticamos, o Maio de 68 tornou-se em história oficial. Como um punk meio vagabundo, já tornado inofensivo pela vinhaça, e que teve a paciência de decorar os seus trapos com um “punk is not dead”. O cadáver, naturalmente, apresenta-se melhor: está embalsamado. Cohn-Bendit declara no último número de Télérama: “esqueçamos o Maio de 68”. Com todo o respeito que os mais velhos merecem, Dany, devo aceitar.

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Andante

O GRITO

texto Jean-Baptiste Veyret-Lojerias

texto Jérôme Provençal

Hotel Meurice, 28 de Fevereiro de 2008, 15h00: estou a montar um espectáculo num grande hotel parisiense que acolhe performances para um festival. Não estou na praça do Palais Royal, onde vários artistas se reuniram para reagir aos grandes cortes do governo no orçamento da cultura. Estou pronto para actuar enquanto alguns reclamam por meios para continuar a trabalhar. Actuo num lugar luxuoso quando a dança contemporânea está na rua. Sinto um sabor a déjà vu. Lembro-me, em 2003, do cancelamento do festival Montpellier Danse e do festival de Avignon em solidariedade com as acções dos artistas e trabalhadores intermitentes do espectáculo face à reforma do subsídio de desemprego. Lembro-me desta dolorosa questão: será preciso cancelar representações; não existirão outros meios de nos fazermos ouvir, estaremos obrigados a nos dar um tiro no pé? Lembro-me de Março de 2006, era estudante no CNDC de Angers, decidimos anular o primeiro dia de abertura pública dos nossos trabalhos para lutar contra a precariedade do CPE (o primeiro contrato de emprego), proposto pelo governo de então; de Loïc Touzé a começar na manifestação das “massas”, onde os indivíduos se aproximam e se seguram uns contra os outros para deitarem o seu peso, juntos, no chão. Como uma resposta em corpo a um projecto de sociedade onde os indigentes se contentariam de revestir os seus uniformes intercambiáveis, estendidos por grandes oligarcas a brincar com Playmobile. A regressão está em marcha em França. E vemos os efeitos do que se monta há alguns anos na cultura, o espectáculo de se ver pessoas a abandonarem a sua profissão todos os dias. A operação de erradicação do “há artistas a mais em França” funciona. Diríamos o mesmo em relação à saúde, à educação, à pesquisa. E sentimos o regresso de um paternalismo estático que procura dividir para melhor reinar. O que fazer? Um Maio de 2008 depois de 68? Calha bem, são os quarenta anos do movimento, mas se sinto a sua herança, já não faz sentido para mim. Nasci em 1977, dois anos depois da despenalização do aborto, quatro anos antes da abolição da pena de morte em França. Cada época tem as suas questões, cada geração tem as suas referências. Mas desse tempo em que não era nascido, retenho ainda um verdadeiro contra-poder que reside na transversalidade das reivindicações intergeracionais, interprofissionais e interpessoais, para alimentar o número de opositores, sendo que agora tudo se diz por números. Assim, abrirmo-nos ao exterior e olhar para fora, fazer circular a informação e aproveitar a que os outros nos dão. Faço parte de uma geração muitas vezes descrita como despolitizada, mas sintome empenhado em procurar uma maneira de lutar contra a anemia em que nos quereriam ver.

Não vi nada do Maio de 68. Enquanto a Sorbonne vacilava e o Panteão tremia, eu esperava – sem uma impaciência excessiva – a minha vinda ao mundo. Desses dias de agitação, apenas acabei por conhecer a espuma, tal como era transmitida pelas histórias, mais ou menos lendárias, daqueles que foram os iniciadores, os actores e as testemunhas. Aos poucos, fui reconhecendo os meus também. Assim, tenho em mim a explosão do Maio de 68, por exemplo, nas páginas de Rose poussière de Jean-Jacques Schuhl, ou no brilho dos olhos incandescentes de Alexandre (Jean-Pierre Léaud) em La maman et la putain. Foi ainda este brilho, tal como na luz de faróis, que vi a coragem de Amour anarchie, esse disco de um extraordinário lirismo de Léo Ferré. “Le vers est libre, enfin” [“o verso é livre, por fim”], mas o ser humano, esse, ainda não o é. Corre atrás da sua liberdade como um cão atrás da sua bola, voltando sempre, e a cada vez, ao seu dono. Na Europa, a infelicidade é uma velha ideia. A marca mais profunda que me provocou o Maio de 68 vem de… Junho de 68 – mais precisamente, a 10 de Junho de 1968. Numa França lentamente (mas seguramente) posta em ordem pelos acordos de Grenelle, esse dia marca o regresso do trabalho às fábricas Wonder em Saint-Ouen, nos arredores de Paris. Nessa manhã triste, dois estudantes do IDHEC (Institut Des Hautes Etudes Cinématographiques – Instituto Superior de Estudos Cinematográficos) decidem imortalizar o momento com uma câmara ao ombro. Daí resulta um (curto) filme – o mais importante, em termos simbólicos, desde 1985 e La sortie des usines Lumière – cujo poder ontológico se condensa num grito, dado por uma jovem operária, indiferente aos argumentos dos delegados sindicais que a rodeiam (“é uma vitória, estás a ouvir?”). “Não, não entrarei. Nunca mais porei os meus pés neste sítio”. Este grito, que carrega consigo a esperança perdida dos dias que precederam e o orgulho reencontrado nas noites que se seguirão, exprime, para mim, a essência de 68 – tudo o resto era apenas literatura. Poderemos ouvir esse grito na França de hoje, mumificada e dobrada em si? Poderá ele ainda acordar as consciências de uma V República em agonia, feria pelo mercantilismo e pelo populismo? Poderá ele ainda sobressair do fundo da nossa obscuridade? Em Berlim, onde vivo desde o mês de Janeiro, ouço por vezes esse grito, numa cidade onde muitas ruas são pavimentadas e o solo arenoso – e se ela esteve aqui tão perto, essa praia tão desejada?

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ARRITMIA

MAIO DE 68

O meu 68 O Maio de 68 é também de quem não o viveu? Olhares diversos e dispersos sobre uma manifestação.

Setembro de 68

texto João Fiadeiro

O Maio de 68 é uma história que me contaram. Que acredito por ser tão bela, com slogans como “sous les pavés, la plage”, “soyez réalistes, demandez l’impossible” ou “on ne revendiquera rien, on ne demandera rien. On prendra, on occupera”. Mas para mim, o Maio de 68 não é mais do que isso mesmo: um slogan. O Maio de 68 estará para mim como o 25 de Abril estará para o meu irmão Pedro, que tem agora 27 anos e nasceu em 1979. Para ele, o 25 de Abril é algo que conhece pelos relatos que vai recebendo e pelo que se diz (que disse). O mesmo se passa comigo e o Maio de 68. Já Setembro de 68 é outra história. Essa sim, é uma data que me diz qualquer coisa, mesmo que indirectamente. Foi em Setembro de 1968 que Marcello Caetano foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em substituição de Oliveira Salazar. E é esse 68, e não o outro, que tem uma influência directa na minha vida. Embora, como se sabe, o “nosso” 68 não teria existido sem as contestações à guerra colonial que, por sua vez, apanharam boleia das contestações à guerra do Vietname ou à Primavera de Praga, eventos que também criaram as condições para o Maio de 68. Está tudo ligado a tudo, mas para não me perder na espuma da história, é do dia 27 de Setembro de 68 que me importa falar, lembrar e não esquecer. Os meus pais saíram de Paris (cidade onde estávamos exilados e onde nasci em 65) um ano antes do Maio de 68. Fomos para Argélia, onde se encontrava o Fernando Pitteira Santos, padrasto e padrinho da minha mãe. Dali fomos para o Brasil e voltámos para Portugal quatro anos depois, em Novembro de 72, iludidos pela “evolução em continuidade” marcelista. Essa viagem “antes de tempo” fez com que a minha mãe fosse presa mal pôs os pés na Portela. Só teve tempo para nos avisar, a mim e à minha irmã, que se tinha esquecido das malas em São Paulo e que tinha que lá voltar. Acreditei nessa versão até ser um jovem adulto. Esse momento em que pisámos Portugal (gosto desta imagem), inaugurou a minha postura e posicionamento político, cívico e mesmo

artístico. Tivéssemos voltado, como toda a gente, em 74, e estaria agora a falar do Maio de 68. Mas voltámos dois anos antes, os suficientes para sentir na pele aquilo que se veio a confirmar como “modus operandi” bem português: a política de fachada. Penso que pior do que a coisa concreta (e atroz) que foi o fascismo, foi a falsa ideia de abertura que se viveu entre 68 e 74 e que colocou toda a gente em suspensão, na esperança de algo que nunca chegou a acontecer. Ou, no caso, até aconteceu, mas tarde de mais. E é sempre assim… acaba sempre por acontecer (não se pode ir contra a natureza das coisas) mas sempre tarde de mais. Não sou historiador e não tenho a certeza se existe muita coisa pensada e escrita sobre essa fase da história de Portugal, mas a sensação que tenho é que essa forma de fazer política, de não se aceitar e adiar a evidência, de atirar areia para os olhos do “povão” (ele é capitais da cultura, ele é estádios de futebol, ele é “the west coast of Portugal”…), é ainda uma estratégia comum e actual. Nada é, tudo parece. Nada fica, tudo passa. Como se não tivesse acontecido. Às vezes pergunto-me se “acontecemos”… Será que estamos aqui? Dizem-me que sim, mas como posso ter a certeza se tudo me soa a falso? E não, não penso que o Maio de 68 tenha cá chegado. Como já disse, não sou desse tempo, mas estive em França em 2002/3, nos anos em que se contestou as mudanças do regime dos intermitentes do espectáculo conquistado nos anos 80 (conceito de que o governo de Portugal se apropria agora de uma forma viciada e manipulada), e pasmei com a forma como as AG se organizavam espontaneamente, nos halls dos teatros, na rua, e se discutia abertamente o que se pensava sobre as políticas governamentais. Também por lá passei em 2005 quando os estudantes se revoltaram pelas faltas de condições e mais recentemente, vi na TV os motins dos subúrbios provocados pela contestação às medidas Sarkozianas. Qualquer semelhança com a nossa realidade é pura ficção. Coreógrafo

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1968 texto José Maria Vieira Mendes Pedem-me do Maio de 68 e eu rebusco na arca, vou às memórias de infância e as primeiras que tenho já era o 68 ido e digerido. De facto é assunto que nada me diz, filho de pós-76, data que também nada diz por já tudo se ter passado, democracia instalada, país a caminhar para a Europa. Se me acharem criminoso por ignorar a história, respondo que penso mais na da primeira metade do mesmo século, a de Duchamp, Gordon Craig, Meyerhold, Brecht, e mais tarde Beckett, tantas vezes esquecidos ou de outro modo lidos por quem insiste noutras datas. E sem conflito com essa geração que fez 68, vejo-me sem conversa, sem discussão possível, em monólogo de surdos. Na infância admito que os invejei porque queria lá ter estado, eu que

me achava crescido num tempo morno e sem pai a abater. Mas confesso que hoje, depois de escrever três peças em que me vi forçado a inventar pais tiranos em nome do conflito narrativo, esta inveja descambou num sentimento de orfandade e afundou-se na consciência de que a luta a travar é contra aqueles deste só meu tempo, aqueles que como eu não sabem como era dantes, ou que entretanto disso se esqueceram (quem é que ainda se lembra? e de que valerá senão em nome da nostalgia?), aqueles para quem no fundo sempre foi assim e que assim se deixam ir, sem se darem conta de que agora é que vai começar. Dramaturgo

A herança texto Raquel Freire

Sou uma exagerada. “Exagérer, voilà l’arme”. Dei por mim a escrever antes de entrar para a escola. A minha mãe esteve em Paris em 1968. Em Setembro regressou a Portugal, a Coimbra, e lá fez a revolução, conheceu o meu pai, apaixonaram-se, muito sangue depois nasci eu. “La poésie est dans la rue”. Eu sou uma filha da revolução. Identifico-me. Esse sentimento de liberdade, liberdade de ser, de criar, de sonhar, de fazer, de falhar, de fazer e falhar de novo; de me construir e reconstruir, a favor ou contra as regras estabelecidas; a convicção de que quero e posso andar sozinha, de que sou livre para escolher o meu caminho, sem ser obrigada, perseguida ou mesmo guiada; a alegria de viver sem medo, sem medo das pessoas, sem medo do ridículo, sem medo do desconhecido, sem medo do futuro, sem medo da travessia do deserto; sem receio de me confrontar com os outros, sem receio de me expressar como ser humano, em público, sem receio do julgamento social, sem receio de avançar sozinha no meio dos lobos, de me atirar aos lobos; o gozo da vertigem, do êxtase e do delírio, do prazer, o puro prazer, do gozo porque sim; o meu olhar, a vontade de ver atentamente o mundo e sobretudo as outras pessoas, conhecê-las; a minha acção, amá-las, odiá-las, questioná-las, recriá-las, imaginá-las, escrever sobre elas, filmá-las, imaginar novos mundos, criar mesmo quando é impossível, sobretudo quando é impossível, essa vontade – identifica-me. “Nous voulons vivre”. O mais importante é a forma como estamos uns com os outros. “Nous voulons une musique sauvage et éphémère”. Todo o acto criativo é um acto subversivo, um acto de fé no ser humano, nas pessoas, na liberdade, na partilha, no amor, no amor no

sentido mais absoluto. Sou um ser político. Vivo e quero viver com as pessoas. A minha vontade incontrolável de conhecer as pessoas – trouxe-me até aqui. “Soyez réalistes, demandez l’impossible”. Como é que se faz? Como é que eu conheço as pessoas? Criando. Chamando-as até mim. Convidando-as a vir comigo. Quero saber quais são os meus limites e os daquela pessoa e da outra. “Nous sommes rassurés: 2 + 2 ne font plus 4”. Quero saber se o outro está triste ou alegre. Quero saber o que faz feliz o outro e o que o deprime. “Ouvrez les fenêtres de votre coeur”. Quero sentir que é possível viver e não apenas sobreviver. “Autogestion de la vie quotidienne”. Temos de viver melhor, temos de viver melhor, é a frase que ecoa dentro do meu corpo em constante mutação. Sou mutante. Não somos todos? “De perto ninguém é normal” Sou radical. Radical é ir à raiz. À raiz de mim e das outras pessoas. Não quero viver sozinha. Quero viver com os outros. Não por medo da solidão. Encanta-me a minha solidão. “The army of myself”. Estou bem em mim. “Le bonheur est une idée neuve”. Há momentos como agora em que vos escrevo que sinto até uma leve euforia. Euforia de mim. Sinto uma alegria insólita por escrever. Por criar. Sou uma filha do Maio de 68. “Pour mettre en question la société où l’on vit, il faut d’abord être capable de se mettre en question soi-même”. “Os sonhos são só sonhos se nos enganarmos”. Mas cabe perguntar: como é que nós estamos? Realizadora

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MAIO DE 68

Memória Activa

relatos de quem lá estava

A rua e a teoria

texto Vasco de Castro

No dia 2 de Maio de 1968, Roland Barthes publicava no Nouvel Observateur um artigo, de página inteira, sobre o último romance de Phillipe Sollers e abria com uma frase soberba: “L’idée revolutionnaire est morte en Occident. Elle est désormais ailleurs”. Preparava-me para ler pausadamente o Obs. a uma mesa do Select, muito provavelmente a digerir um café-crème com um maço de Gauloises bleus à mão, e jornais, o Le Monde, de certeza, e ainda O Século que comprara no quiosque ao lado com dois dias de atraso, a 50 cêntimos. Num jeito irreprimível, garatujei ao lado da frase de Barthes, no espaço branco da página, um insolente “ora merda!”, em português, e continuei a leitura. Com a sensação de instantânea evidência, há momentos assim… de ser uma ocasião rara aquela leitura de Barthes no Nouvel Observateur, nunca mais a esqueci nem perdi a página que guardo ainda, que escrever é como o vinho, a carga dos anos ou o melhoram ou o azedam… Deixara o quarto alugado no Hôtel du Dannemark, na rue Vavin, e vivia a quinhentos metros dos cafés de Montparnasse, na Rue de Assas, em casa de Annia, morena pied-noir que dava aulas num liceu. Encontrava-me entre duas águas, a largar uma pele com rugas de tanto uso e abuso. Da Austrália recebia cartas de A., cada vez mais deprimidas e deprimentes, mas o ciclo fechara-se, e tanto o sabia que anotava com raiva no meu diário, a 22 de Março, basta de amourpassion! E os dias tornavam-se duplos ou triplos… O affaire Langlois-Cinemateca passara, chegavam aos ouvidos outros rumores nervosos da Faculdade de Nanterre e nos jornais já se referira o nome de Cohn-Bendit; ouvira Krivine, em reunião secreta com alemães do SDS (estudantes socialistas revolucionários), num apartamento da Contrescarpe; as salas da Joie de Lire, de Maspero, abarrotavam de malta nova a folhear as publicações inúmeras de grupos e grupúsculos trotskistas, maoístas, etc., de vários cantos do mundo, e as paredes anunciavam todas as semanas manifes, meetings, apelos, e como palco e tribuna comum, os Comités Vietname convocavam,

denunciavam e meio mundo aí soltava, mais que uma guerrilha verbal anti-americana, um crispado tremor interior, como Vesúvio face à solene, distraída Pompeia. A crosta da terra que conhecíamos estaria prestes a estalar. Jean-Paul Sartre era o maître-à-penser, não diria o Sartre literário de Les Mots, ou das Situações, mas o bonhomme Sartre, director radical dos Temps Modernes e tão burguesíssimo de gostos, nos gostos tomados pelos burgueses, que amava as mulheres, os bons vinhos, os bons pratos, a conversa à volta de um copo… e recusava com escândalo o Nobel, as honrarias e o dinheiro, como também apertar a mão a De Gaulle, e dava a cara no apoio público aos miseráveis, aos perseguidos, os danados da terra… Lia-se Lefèvre e Althusser… mas os olhos viam Sartre. Em Maio, Sartre foi levado ao anfiteatro febril da Sorbonne como mestre venerado e único. Não fui, nem podia. Estava já aboletado com mais trinta galfarros na Casa de Portugal, na Cidade Universitária, desde a noite de 22 de Maio, revolucionariamente… Na tarde desse dia, entre as seis e as sete, desembarcámos, de cinco ou seis carros, no boulevard Jourdan, ao lado do portão próximo da Casa de Portugal, e no palco do anfiteatro, alguns minutos depois, foi lida pelo Tó “Operário” a proclamação, em francês, que redigira uma hora antes, numa sala da Sorbonne… absolutamente conforme o estilo da função, como não podia deixar de ser… “Camaradas: o Comité de Ligação Operários-Estudantes da Sorbonne (Secção Portuguesa) declara ocupada e aberta livremente a todos os estudantes e trabalhadores a Casa de Portugal da Cidade Universitária. Esta ocupação é um acto de luta antifascista e anticolonialista contra o regime burguês e imperialista português no quadro do movimento revolucionário em curso. Morte a Salazar, abaixo o imperialismo, abaixo o fascismo, viva a Revolução – 22 de Maio de 1968”. Poderia referir aqui como os factos da rua criticam cruelmente pensamentos teoricamente brilhantes, e não apenas o citado B. Texto incluído em Montparnasse – até ao esgotamento das horas (Campo das Letras, €13,97), gentilmente cedido pelo autor e editora.

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Maio de 1968 – a grande reviravolta

texto Isabel Alves Costa

Nos finais de 1967, o nosso grupo de amigos tinha-se tornado bastante restrito. Havia o Sérgio Godinho, também ele a dar os primeiros passos na canção, e que depois de uma curta estadia na Holanda, tinha chegado a Paris e se tinha instalado em nossa casa onde permaneceu ainda alguns meses; havia o Hélder Costa acabado de chegar com o vírus do teatro no corpo e um projecto de revolução na cabeça, a quem eu não me cansava de pedir para me contar as “histórias de Coimbra”; havia o José Barrias, um dos meus amigos da adolescência, que sonhava com o estatuto de pintor (o que veio a conseguir com bastante êxito) e o Manel Areias, encenador no desemprego e único sobrevivente do nosso grupo de teatro. Juntos, vivemos bastantes aventuras sobretudo em torno de “canções, copos e engates” (dos quais resultaria o primeiro casamento do Hélder...) acabando mesmo por alugarmos um apartamento em comum – uma espécie de “república” – onde eu e o Zé Mário mantínhamos um quarto para dormir quando não tínhamos vontade de regressar à nossa periferia! O Sérgio e o Manel Areias foram durante esse tempo os meus companheiros inseparáveis acabando por virem a ser os padrinhos do meu filho João que nasceu no dia 1 de Julho de 1968, quando a Festa estava quase no fim. Maio de 68 acabaria por nos separar pouco a pouco. O José Barrias, depois de ter participado activamente na ocupação da Casa de Portugal na Cidade Universitária, viu-se obrigado a fugir repentinamente para Milão para não ser entregue às autoridades portuguesas; o Hélder foi ocupar-se mais activamente da revolução e do “Teatro Operário”, grupo que fundou e dirigiu ainda durante bastante tempo; o Manel Areias “desapareceu” para os lados da Suíça e o Sérgio, depois de ter participado nas barricadas de Maio, veio a integrar a equipa de actores/cantores que apresentou Hair! com um imenso sucesso, encontrou a Sheila com quem partiu primeiro para a Holanda e depois para o Brasil para trabalharem com o Living Theatre, que lá se encontrava instalado. Evoluindo no meio disto tudo, havia o Luís Cília que, tendo nascido em Angola, era o único a possuir à chegada o estatuto de “cantor da resistência” e que, graças a isso, tinha já bastantes contactos com o meio artístico francês. As canções tinham-nos aproximado. Quando rebentaram os acontecimentos de Maio de 68, o Luís Cília pôs o Zé Mário em contacto com o Pierre Debauche, que era na altura o director do Théâtre des Amandiers em Nanterre, para que ele integrasse as equipas de animação que aí se estavam a organizar para fazerem o circuito das fábricas em greve. Quase sempre acompanhava o Zé Mário quando ele ia cantar e tenho desses dias passados nas fábricas ocupadas pelos operários, recordações muito comoventes. Era como se estivesse a viver “a sério” o preâmbulo da Revolução sonhada na minha adolescência ... Entretanto eu tinha uma particular atracção pelo Quartier Latin e sempre que podia, estava lá caída. Lembro-me do dia em que resolvi ir à Sorbonne ver o que lá se passava – e passava-se sempre tanta coisa 24 horas sobre 24! – levando comigo o meu filho Pedro que tinha então três anos. Com imensa dificuldade dada a multidão que lá se encontrava, consegui deixá-lo no infantário que os estudantes tinham organizado e andei a ouvir os discursos pelos diferentes anfiteatros. Também me lembro do dia em que resolvi participar numa

manifestação Boulevard St. Michel acima, que acabou com uma forte carga policial da qual só escapei porque o Zé Mário, com medo que me acontecesse alguma coisa – é preciso lembrar que estava grávida de sete meses! –, ia-me seguindo, pelo passeio, com o nosso carro e conseguiu fazer-me entrar nele rapidamente, in extremis ... De facto, era sobretudo com os estudantes que eu me sentia solidária. Havia ali um tal impulso de generosidade, de dom e também de festa, que me faziam lembrar os acontecimentos que tinha vivido em Portugal durante a Crise Académica de 62. Se Maio de 68 representou, como veremos, o fim do nosso isolamento em Paris, ele foi para mim o embrião (com uma longa gestação...) da minha própria libertação. Efectivamente foi só um começo! Numa dessas animações nas fábricas ocupadas, conhecemos o Jean Sommer, jovem cantor que tinha acabado de receber o prémio Charles Cros pelo seu primeiro disco 45 rotações – [Bonjour!... José Mário Branco, chanteur portugais en exil – Bonjour!... Jean Sommer, chanteur français en difficultés...]. Depois deste encontro, uma

grande amizade e cumplicidade (ainda hoje intactas apesar da distância que nos separa) nasceram entre nós. O Jean passou a ser o nosso “hóspede das quartas-feiras”, ritual que se manteve inalterável até ao seu casamento. Éramos como irmãos e fui muitas vezes a sua confidente. Para além disso ele viria a ser o “pivot” da grande reviravolta que aconteceu na nossa vida. Ou seja, ajudou-nos a quebrar o nosso isolamento de sobrevivência – boulot, metro, dodo – abrindo-nos as portas para um certo meio cultural francês do qual estávamos arredados até então. 30 anos volvidos, já no Teatro Rivoli, queria inaugurar um novo ciclo, “Cumplicidades”, cujo conceito era juntar artistas (de qualquer área artística) que, a nosso convite, propusessem um formato de espectáculo. E o desejo de reunir o José Mário e o Jean Sommer no mesmo palco, era antigo. Tinha-os acompanhado em Maio de 68 nas fábricas ocupadas pelos trabalhadores onde eles (e muitos outros artistas) actuavam. Tinha-os acompanhado em casa, onde ambos compunham músicas um para o outro. Sabia que mantinham, apesar da distância e dos raríssimos contactos havidos ao longo desses 30 anos, uma notável sintonia de gosto e que a identificação de fundo se mantivera inabalável. Admirava-os muito enquanto artistas e uma grande amizade entre nós permaneceu daqueles tempos... Decidi arriscar, sem saber se aceitariam o meu convite, assim, tantos anos depois. Aceitaram e até viriam mais tarde a gravar um disco. Foi, para mim, uma sessão muito comovente. Quando no final, o Jean Sommer começou a cantar, com a música do “Soldadinho”, a história de “um e dois e três amigos” e me chamou ao palco, foi uma enorme emoção, que extravasou do palco para o público que, de pé, aplaudia comovido! 40 anos depois o que ficou? Um lema para a vida: Soyez réalistes,

demandez l’impossible!

Uma primeira versão deste texto pode ser lida em O desejo de teatro, auto-biografia da autora (Edições Afrontamento, €11).

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François Cusset

O sonho dos anos 80: da festa ao pesadelo

entrevista Bruno Tackels e Gwénola David

Com La décennie, le cauchemar des années 80 (Editions La Découverte, 2006) o filósofo François Cusset assina um ensaio decisivo para compreender a situação actual. Ao desvendar minuciosamente, ano após ano, os eventos que formaram e desenharam os anos 80, consegue explicar, de forma rigorosa e esclarecedora, de que maneira a festa se transformou violentamente num pesadelo, como o sonho de uma nova sociedade se tornou numa visão fatalista e cínica de defesa consensual das leis do mercado mundial. Das utopias do Maio de 68 a uma redefinição da noção de “precaridade”, dos herdeiros de 68 ao potencial crítico dos jovens de hoje, passando ainda pela “geração rasca” [“bof génération”]: no seu ensaio, François Cusset dedica-se a uma análise certeira dos deslizes políticos, sociais e culturais dos anos 80. Nesta entrevista, François Cusset retomou as suas análises fundadoras, nomeadamente sobre o lugar e o papel dos intelectuais, prolongando-as até aos nossos dias. Um olhar elucidativo. Porquê o “pesadelo” dos anos 80? O que aconteceu? A década de 80 marca um período de contra-revolução, não num sentido marxista, pois esta não se opõe a uma revolução precedente, mas num sentido histórico menos rigoroso, ou seja, uma reacção pendular sobre os “excessos” dos esquerdismos e das vanguardas dos anos 60 e 70. Sucede uma agitação no campo intelectual e cultural, que passa da militância e da contestação radical a um consenso relativo sobre a democracia liberal, o mercado e a indústria cultural. A singularidade desta inversão relativamente aos anos de 1820 – que fundam o modelo teórico da reacção – refere-se ao discurso que é então avançado: desta vez, o deslize efectua-se não por um ódio ao modernismo, mas em nome de um imperativo de modernização, juntamente com toda a argumentação de uma mitologia do progresso técnico, das leis “naturais” da economia e das ideias de uma esquerda moderna, disposta a fazer esquecer os seus “erros de juventude” anti-capitalistas. Este “pesadelo”, de forma mais alargada, toma os contornos de uma festa, de um grande espectáculo que celebra a modernidade e que esconde uma visão fatalista e reaccionária da ordem social, política e cultural.

Quais são as componentes deste “folhetim ideológico”? Emprego esta expressão para evitar uma visão monovalente e marxista de uma França meramente reconciliada com o mercado, visto que a realidade é mais complexa. Existe uma certeza curiosa e geral de uma “morte das ideologias” que se eleva ela mesma a ideologia reinante da década. O mito do fim do político entra em declínio de diversas maneiras, nomeadamente no economicismo generalizado que consagra as condições do mercado internacional como único factor determinante das escolhas das políticas públicas, e que justifica, essencialmente, a viragem monetária da esquerda em 1983. Encontramo-lo também na muito fantasmagórica tese do “fim da história” de Francis Fukuyama sobre o fim do sujeito colectivo, do sujeito crítico e da possibilidade de se mudar as coisas. A mudança despolitiza-se, “naturaliza-se”, na medida em que resulta de um processo inevitável e não de um projecto e de uma vontade política. A classe social desaparece dos discursos para dar lugar a um determinismo quase natural e ao que os peritos definem como “estilos de consumo”.

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Podemos, de facto, dizer com Bourdieu que o fim das ideologias é, evidentemente, ela mesma uma ideologia, assim apoiada pela chegada concomitante da era dos peritos, o segundo ingrediente deste folheto. De facto, o saber especializado impõe-se neste momento e em todos os domínios, mas mais particularmente nos media, que são dinamizados pelo desenvolvimento da televisão, e na política, que é levada por uma inflação da comunicação eleitoral e pela aparição da política de imagens. Psicólogos e sociólogos de empresas ou dos media põem-se ao serviço da ordem económica e cultural para quantificar o mercado e cartografar a sociedade com a ajuda dos intelectuais de serviço. Esta figura do perito substitui-se no debate público à do intelectual crítico, precisamente desqualificada em nome da inanidade e do perigo da crítica. O anti-totalitarismo de então, que se impôs sobre a revelação dos crimes do regime soviético, conduz-nos, de facto, e por um curioso atalho silogístico, a assimilar in fine toda a forma crítica ao comunismo e todo o comunismo ao gulag. Daí a imperiosa necessidade de se regressar a uma neutralidade, ela também mistificada, que seria incarnada por esses mesmos peritos. Na verdade, dois arquétipos de intelectuais vão dominar os anos 80: o perito e o moralista, sendo este último incarnado pelos “novos filósofos” e ensaístas de sucesso, tais como Bernard-Henri Lévy, Bruckner, Finkielkraut, etc. As duas figuras completam-se muito bem: o perito produz um saber que é directamente útil ao poder, permitindo-o ser concreto, eficaz e trabalhador; o moralista garante o ambiente ideológico geral, explicando ainda os perigos da crítica e transportando todo o debate para a urgência humanitária e as ditaduras sangrentas, mais de esquerda do que de direita, naturalmente. Mostra-nos que a ideologia deslizante emprega não só os espíritos mas traduz-se também por uma tomada de conta dos corpos, uma dimensão que é geralmente ocultada. De que maneira funciona? Quando Foucault emprega o conceito da biopolítica, ele associa-o ao desenvolvimento do liberalismo. Pois este não se resume a um governo minimal que se apaga para deixar o mercado funcionar. Pretende também uma forma indirecta mas muito clara de produção da vida. O Estado ocupa-se dos nossos corpos desde há muito tempo, através das políticas públicas que favorecem a natalidade, a segurança social, a medicina… Aparece uma nova dimensão com o desenvolvimento das indústria da saúde e do desporto, com a tomada de conta da sexualidade, que se torna então no assunto dos debates televisivos e das novas terapias farmacêuticas e sexuais. Paradoxalmente, enquanto que as normas burguesas ou cristãs soltaram-se da sua presa e que a liberdade sexual explode, os corpos são apanhados por todo um conjunto de novos dispositivos mercantis, técnicos e especiais para gozar ao máximo, cuidar da beleza e prevenir todos os riscos. Não estará isso ligado à celebração do espírito de empresa, algo próprio a essa década? Esta quarta componente do “folheto” ideológico dos anos 80, sem dúvida a chave do sistema, remete-nos para o mito da empresa, para a reconciliação com o mercado, para a meritocracia e o boom dos inovadores, e, de uma maneira mais alargada, para uma lógica economicista que se impõe em todas as dimensões da existência. Com as instituições colectivas em declínio, o indivíduo é forçado a apreender os seus amores, a sua vida profissional, mas também pessoal, tal como uma empresa, numa aplicação de estratégias e num investimento que traga retorno. Contudo, a operação do espírito liberal não se

deu bem em França, onde o anti-capitalismo radical e bem pensante permanece vivo. Sem dúvida que foi imposta com demasiada força: o grotesco das emissões de Bernard Tapie contrasta demasiado com uma tradição francesa mais regulamentada. Neste contexto, como evolui o campo cultural, onde se celebram também os criadores? A criação artística, associada há muito a uma margem vanguardista e a um enclave pessimista marcado pelo absoluto, torna-se, de repente, no agente central da festa. Sobre a égide de Jack Lang, que obtém uma útil duplicação do orçamento cultural em 1981, ela estende-se assim às práticas ou outras formas de arte, como a banda desenhada, o rap, a cozinha, etc., gerindo um nivelamento da perspectiva para que coabitem, de forma pacífica, as obras académicas e vanguardistas, e o artesanato e as indústrias culturais em plena efervescência. A política cultural constitui-se num dos pilares do “mitterrandismo”, na medida em que colocou em destaque alguns valores menores do socialismo francês (a cultura, a criatividade, a juventude), de forma a deixarem passar as decepções e as renegações dos domínios económicos e sociais. Tomou a forma de um ambiente, de maneira a se criar um consentimento positivo. Esta política defende, apesar de tudo, uma visão da cultura como factor de dispersão e de criatividade em todos os campos da actividade humana… As teorias formadas nos anos 70, por pensadores como Michel de Certeau, atribuíam à política cultural pública o papel de suster a autonomização social como meio de se recriar o sujeito colectivo, precisamente onde os sindicatos, os partidos e as grandes instituições perderam terreno. Dez anos mais tarde, caímos numa concepção da cultura como suporte para a inovação individual e para o desenvolvimento social por iniciativa. Como não poderá substituir as estruturas colectivas que estão em declínio, a cultura será utilizada para estimular a criatividade, para “mobilizar” cada um dos elementos da máquina económica francesa. Segundo a retórica “languiana”, a cultura é a principal vantagem da França na batalha económica mundial. Diz que o esquerdismo se tornou cultural. Ou seja? Muitas pessoas da geração do Maio de 68 que passaram pelo esquerdismo (mesmo que por pouco tempo) tornaram-se actores desta reviragem dos anos 80. Esta mudança, mesmo quando ligada a ambições pessoais, apenas se realizou por uma cisão entre duas dimensões do esquerdismo: a política e a cultural. Encontramos aí toda a história do Maio de 68, que nasceu da convergência entra estas duas contestações. A herança separou-se durante as comemorações: o político foi atirado para o inferno do comunismo, assimilou-se ao gulag; o cultural foi conservado para garantir o ambiente, com as provocações do Actuel, do Globe, da Radio Nova, em seguida do Canal +… As pessoas desta geração conservaram uma liberdade de espírito autêntica, mas limitaram-na aos campos mediáticos e culturais, bruscamente despolitizando o seu propósito inicial. Daí a tornarem-se nos rostos do liberalismo… Esse processo inscreve-se numa convergência do tipo libertário-liberal mais profunda, que se foi formando no Ocidente desde os anos 60. Em França, resulta também na “guerra” aberta (onde 68 foi o principal campo de batalha) entre os comunistas marxistas, de obediência soviética ou maoísta, e os diversos esquerdismos, numa tradição li-

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bertária anarquista que desconfia de qualquer estrutura burocrática. Depois, os libertários elaboraram outras formas de inovação, de independência e de autonomia da criação graças a uma explosão do mercado que dinamita as normas da velha sociedade. Alguns intelectuais, contudo, permanecem críticos. Porque não se fazem ouvir? A presença da esquerda no poder coloca-os numa situação de duplo constrangimento que os paralisa. Criticá-la seria uma traição, ou pelo menos uma prova de falta de solidariedade. Tratam, portanto, de serem pacientes e de se calarem. Assegurá-la em toda a linha, face às sucessivas renegações, também é impensável. Assim, falam de outras coisas. Deleuze, por exemplo, interessa-se pela literatura, pelo cinema, pela pintura, seguindo uma actividade crítica na estética, pois considera que as questões da sensação, da percepção e das formas de expressão convocam questões directamente políticas. Como o mostra Jacques Rancière, os poetas podem ser frontalmente mais críticos que os ensaístas porque a radicalidade da sua forma questiona a nossa fenomenologia espontânea do mundo e a nossa relação geral com o real, mais do que qualquer outra obra que trate directamente do político. Acredito que, em certos períodos, o pensamento crítico deve encontrar outros terrenos. Hoje, vivemos num desses momentos em que deveríamos procurar a política nas formas de expressão, mais do que no campo da ficção. Não será também porque o espaço crítico reduziu-se durante a década de 80? O ambiente ideológico está, então, centrado na urgência moral e na diabolização imediata do ponto de vista crítico que lembra demasiado as anteriores posições vanguardistas ou marxistas. Mais concretamente, a crítica exprime-se nas revistas especializadas, muito mais do que nas colunas do Le Monde ou do Nouvel Observateur. E mesmo assim, porque desaparecem, uma a uma, quase todas as publicações contestatárias que tinham florescido nos anos 70. O esquerdismo dissolve-se a ele mesmo. Os grandes media que aparecem dedicam-se ao divertimento, ao lazer, vendem muito melhor a ironia ou a nostalgia do que a subversão. Por outro lado, as próprias instituições que permitiam a produção de pensamento crítico desfazem-se. Os enclaves que surgiam nas universidades são travados com a supressão de Vincennes em 1979. A sociologia e a história são mais boudonianas, ou conservadoras, do que bourdieusianas. Como explicar o acordar virulento das forças críticas, manifestado através do movimento social de 1995 contra as reformas do governo Juppé? Esse movimento, o mais importante desde 1968, que surpreende e desconcerta os ideólogos oficiais, provoca uma cisão no campo intelectual. O campo crítico encontra-se de novo motivado pelo ambiente quase insurreccional contra os conservadores. A efervescência cresce em várias universidades, nomeadamente nas de ciências sociais, onde os jovens investigadores formam um verdadeiro trabalho crítico. Por outro lado, surgem novas formas de militância ligadas às causas e aos combates minoritários. As associações de luta contra a Sida, Act Up e Aides, inspiram-se nos métodos americanos, radicais nos seus propósitos e objectivos, mas pragmáticos nos seus meios, não hesitando em utilizar os media ou a contactar laboratórios farmacêuticos. Quando três militantes do Act Up se deitam nas ruas de Paris ou bloqueiam um bairro inteiro, mostram também como a

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fragilidade absoluta dos seus corpos, seropositivos e condenados à morte, se pode tornar num poder colectivo. Até à altura, este modo de acção era ignorado porque a França sempre teve um ideal republicano esmagador: tudo passava exclusivamente pelos grandes partidos oficiais, dentro dos quais o partido comunista, pouco afectado por este tipo de reivindicações. As minorias surgem de repente, transformando as suas fraquezas estruturais em forças políticas, até fundadoras. Daí a emergência pós-1995 do militantismo dos homossexuais, dos sem-papéis, dos sem-abrigo, dos imigrantes... E daí o nascimento do altermundialismo francês. Enfim, surge toda uma constelação de energias, mas dentro de uma grande dispersão e sem representação eleitoral. O que torna a crítica audível nesta altura? Os media e o campo cultural, de uma forma geral, seguem a regra do mercado (que quer que o que seja maioritário venda), assim como a impaciência ressentida depois de dez anos de socialismo desnaturado. Por outro lado, o contexto internacional mudou, e muito depressa. Depois da efémera euforia da queda do comunismo e do triunfalismo das ideologias liberais, a Europa de Leste torna-se num caldo de lutas internas, o anti-semitismo volta a acordar. A Jugoslávia põe-se em brasa e explode. A guerra, na verdade, tem um regresso geral e mundial nos anos 90, de África aos Balcãs, passando pelo Golfo e pelo Médio-Oriente. Uma mudança de gerações faz-nos sair das questões franco-francesas e coloca-nos os problemas de um ponto de vista global. O efeito do uso da palavra junta-se à mundialização dos discursos. Por fim, o surgimento da Internet muda as regras, na medida em que permite a criação de um espaço público alternativo e de redes de prescrição paralelas. Quais são os espaços críticos que vê desenharem-se hoje em dia? Está-se a desenvolver um espaço crítico forte à volta das lutas minoritárias e do altermundialismo. Contudo, a fecundidade política destas reivindicações permanece problemática, de tal maneira diferem os objectivos perseguidos por estas duas tendências. Os anticapitalistas acusam as minorias de fazer o jogo do mercado, que os transformariam em cubículos comerciais (o militantismo homossexual como inspiração, por exemplo, para os agentes de viagens gay-friendly). Por outro lado, o inconsciente republicano francês desperta-se, inclusivamente na extrema-esquerda. A questão identitária encontra-se limitada à do particularismo, ou do “identitarismo”, e associa-se a um discurso da natureza e dos valores da direita. Ora, dez anos passados nos Estados Unidos mostraram-me que as lutas identitárias e minoritárias são sobretudo tácticas. Fazem da identidade uma situação, muito mais do que uma essência. Existe uma categoria no plano político porque ela partilha uma situação: os homossexuais existem enquanto categoria a partir do momento em que a Sida os atinge prioritariamente e provoca a sua estigmatização, pois são necessárias terapias específicas para conter a doença, etc. Esta concepção da minoria como uma situação em si, uma situação táctica bem para além de uma essência, faz uma ponte entre a esquerda francesa radical, anticapitalista, e as causas minoritárias.

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O processo enganador posto em prática durante a década de 80 mostra o papel essencial que teve a geração de 68, cujas renegações foram, paradoxalmente, a maneira de poderem permanecer na linha da frente. Apesar de mostrar uma desconfiança instintiva por esta ideia, acaba por recorrer a ela e falar de um “narcisismo geracional”. Que impacto tem ela? De facto, reduzir a análise a uma leitura geracional que se apoiaria no naturalismo e numa data de nascimento apresenta perigos. Mesmo ultrapassando esta lógica de estado civil, somos forçados a reparar na promiscuidade demográfica daqueles que tomaram o poder nos anos 80 e que ainda o detêm. A geração de 68 teve o mérito único de permanecer na linha da frente enquanto referência social mais visível desde a sua primeira juventude, na altura em que montavam barricadas, até hoje em dia, onde ainda ocupam todos os postos e animam o espaço público e ideológico em França. De tal maneira se encontram em forma que possuem uma energia desesperada, do género “depois de mim, o dilúvio”, que os faz querer enterrar tudo aquilo por que lutaram, com a glória, apesar de tudo, de serem os heróis desta velha história. Como se não quisessem ver a geração seguinte a testemunhar as suas derrotas. É o síndrome do último herói! A geração de 68 tende a desqualificar e a desvalorizar os combates dos seus cadetes, remetidos a uma compaixão humanitária televisiva (o Téléthon, etc.). Não deixaram de tomar a iniciativa ideológica nem de escrever a história em todos os pontos de vista: quebraram o silêncio dos seus pais e revelaram a dimensão do genocídio judeu, por exemplo. Quanto à geração que se seguiu imediatamente, a minha, descrita como “geração rasca” [“bof génération”] pelo Nouvel Observateur em 1978, foi simplesmente sacrificada, chegando cedo ou tarde demais. Tínhamos vinte anos quando o Muro de Berlim caiu. Chegamos à maturidade no fim de uma época, e cedo demais para estarmos totalmente no mundo virtual, na Internet, nas novas formas de sociabilização e do mundialismo radiante. Esta geração “entre-duas” conhece um mal-estar profundo porque fica submetida, na verdade, ao poder cultural e político dos seus ascendentes, permanecendo a uma boa distância dos mais jovens. As pesquisas das pirâmides das idades confirmam um envelhecimento das estruturas do poder. O sociólogo Louis Chauvel (1) apontava recentemente o problema central da transmissão, do legado colectivo e político de um sistema social e democrático onde as novas gerações se encontram, na verdade, excluídas. Estará a surgir uma nova cisão geracional, suplantando assim a luta de classes? A questão das gerações é muito delicada porque ameaça sempre a armadilha do determinismo natural. Ouvia recentemente um debate entre Rama Yade, do UMP, e Razzye Hammadi, o presidente do Movimento dos Jovens Socialistas, ambos pertencentes às “minorias visíveis”. Com as suas auras e novas linguagens, de aparência jovem e moderna, comportavam-se como os cães de guarda ideológicos das respectivas linhas de cada partido, logo, dos seus patrões mais directos que têm vinte ou trinta anos a mais. Uma nova geração, certamente, mas ventríloqua...

Uma clivagem entre gerações, portanto, mas sem lutas nem emancipação. É por isso que, no terreno social, as formas de organização são primordiais, permitem canalizar o sentimento crítico necessário a cada geração. Deste ponto de vista, o meio associativo mostra-se muito activo, mesmo se privilegia muitas vezes o humanitarismo. O militantismo, mesmo que menos desenvolvido, permanece forte nos 20-25 anos. Para esta geração, tal como para a nossa, e ao contrário da de 68, a anomia e o individualismo obrigam cada um a tomar conta das coisas, a enrijar a sua pele, a lutar contra a precariedade, a escapar ao desemprego e à dessocialização. Se os quadragenários lutaram para encontrar o seu lugar, embatendo na monopolização do poder (tanto económica como moral e intelectual) dos mais velhos, os jovens de hoje arriscam-se a não encontrar nenhum lugar sequer. Para eles, não se trata de se oporem ou contestarem, mas de procurarem existir por si mesmos, com uma precariedade galopante por detrás. Podemos ver que a precariedade conheceu ela mesma um retrocesso semântico. Nos anos 70, ela é um argumento militante e representa uma escolha assumida, ao contrário da actual precariedade generalizada dos novos ingressos no mercado do trabalho, que exerce uma pressão terrível e que rapidamente desintegra todos os que se submetem a ela. Por outro lado, a noção de geração deve também estender-se à ideia “daquilo que nos faz contemporâneos”, ou seja, aos eventos dos quais somos testemunhas, que entram da mesma maneira no nosso itinerário pessoal enquanto fractura histórica que cimenta um olhar comum. Para a geração de 68, é naturalmente 1968, para a nossa, é a greve de 1986 contra as leis Devaquet, ou 1989 e a queda do Muro, e para os jovens é o 11 de Setembro de 2001. Os atentados de 11 de Setembro permitiram repolarizar o campo político e acordar um pouco o pensamento crítico graças ao efeito que tiveram sobre o campo reaccionário, radicalizado em nome da civilização em perigo, do perigo islâmico e da “democracia” ameaçada. Os que festejam, neste momento, os seus 20 anos, têm talvez uma oportunidade para se abrirem a outras maneiras de pensar a sua época e a sua nova desordem mundial, de uma maneira diferente da de Samuel Huntington. E isso é um acontecimento que carrega de um verdadeiro potencial crítico. (1) Louis Chauvel, “Attention, Assemblée grisonnante”, em Le Monde, 21 de Junho 2007. Texto publicado em colaboração com a revista Mouvement

François Cusset, 38 anos, aluno da École Normale Supérieure, antigo responsável do Bureau du livre français em Nova Iorque, ensina História Intelectual no Instituto de Ciência Política e em Reid Hall, delegação parisiense da Universidade de Columbia. Publicou Queer Critics (PUF, 2002), French Theory (La Découverte, 2003) e La décennie, le grand cauchemar des années 80 (La Découverte, 2006).

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CAMAROTE PAR André Dourado

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Declaração prévia de (des)interesses: nascido em 1966 no Minho, de uma família conservadora e com pais que já há muito tinham deixado para trás a sua fase estudantil, nunca o Maio de 68 foi um mito familiar. Se bem me lembro, o primeiro contacto que tive com ele foi no fim dos anos 70, através das Paris Match da década precedente que, guardadas pelo meu avô, ainda hoje constituem uma apreciável enciclopédia visual dos anos 60. Nessa altura, ver à distância eventos confusos que se desenrolavam sob o estático olhar, ainda fixado nos futuros cantantes, de Marx, Lenine, Trostski, Mao e Guevara não era de molde a suscitar-me qualquer entusiasmo pré-adolescente. Por crescimento de razão e conhecimento, com o passar do tempo nunca vieram a fazê-lo. No entanto, pertencendo talvez à última geração (se é que isso existe) plenamente francófona, o Maio de 68 acabou por vir ter comigo de diversas formas, mais ou menos literárias, deixando uma sensação de desconcerto em relação à sua herança e ao destino de tantos dos seus protagonistas, que passaram rapidamente do granito das ruas aos mármores do palácios da République. O último desses encontros literários tem a ver com François Cusset, entrevistado neste número da OBSCENA, através de um seu livro de 2006, agora reeditado, que apesar de se dedicar a um tempo posterior tem, no seu coração, o Maio de 68. La decénnie. Le grand cauchemar des années 1980 é um livro culto, “engagé” e bem francês nas obsessões. Em treze etapas que nos levam de 1976 a 2005, com fontes ecléticas e exemplos de várias áreas, Cusset transporta-nos através de um “pesadelo” posterior a 68, aparentando lamentar não ter participado nesse “rêve” comum de trabalhadores e estudantes, mas dedicando-se, em seguida, a demolir os seus actores conhecidos: serão a sua traição, o seu compromisso e desejo de poder que vão ajudar a gerar o alegado pesadelo dos anos oitenta – incluindo o miterrandismo, com o “ministério festivo” de Lang, a generalização despolitizada e inconsciente das práticas culturais, a afirmação do mercado, etc. – donde sairão todos os males (mesmo todos, leia-se o epílogo) do nosso tempo. O autor fala em “reapropriação do tempo colectivo”, condena a “privatização da existência”, parece até tentar discretamente uma recuperação do comunismo que diz não se confundir com as suas práticas estatais (sem que se perceba o que resta), e ataca toda a intelectualidade por uma razão ou outra, salvando-se apenas Foucault, Deleuze e Bourdieu. No fim, “reste la culture – c’est à dire tout”, e a esse império da cultura atribui a morte do político e o adormecimento da consciência crítica. A valorização da cultura não é para ele deplorável em termos morais, em nome de uma qualquer concepção de cultura pura indemne do mercado, mas deve ser considerada numa perspectiva sociopolítica, ao abolir o seu poder crítico e o seu carácter de experiência singular. Ou seja, o drama é a cultura tornar-se a inteligência do poder, o elemento de conexão, o discurso por excelência daquele. Da leitura do livro fica-nos uma dúvida: se é a França cultural que está mal ou o seu autor, e se a cultura só pode existir como contra-cultura, ou com carácter ancilar da política. Mas o livro também nos fala de realidades novas, como são a multiplicação e precarização do emprego cultural, e condena com razão histórica a redução de Maio de 68 a um movimento estudantil, atendendo a que a força principal que ocupou as ruas foi operária. O que ele não diz é que essa conjunção se tornou rapidamente dissonante. Se do lado estudantil não havia qualquer unidade, ainda hoje reflectida na extrema esquerda francesa, a contestação operária surgiu de movimentos espontâneos de trabalhadores que até o forte

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sindicalismo francês teve dificuldade em enquadrar. O movimento não teve contra si, ao contrário do que muitos pensam, apenas o poder gaulista e a França conservadora, e o Partido Comunista Francês combateu-o abertamente: o Humanité escrevia “certos ‘grupusculos’ (…) compostos, em geral, de filhos de grandes burgueses (…) tentam impedir o funcionamento normal da faculdade” e Georges Marchais dizia que tudo era um “complot gaulista”. De resto, com as suas componentes anarquista, trotskista e maoísta, o efectivo anti-sovietismo de Maio de 68 abalou alguns alicerces do domínio cultural comunista: “Aragon, tu as du sang dans tes cheveux blancs”, gritava Daniel CohnBendit. É daqui que nasce a crítica convergente de uma esquerda que vê no Maio de 68 o coveiro do ideal comunista e percursor do liberalismo dos anos de 90, e de uma direita que lhe atribui a perda do valor da autoridade e da tradição. E depois há os mitos, como o da violência extrema: nem Cohn-Bendit atiçou as barricadas, nem o Prefeito Grimaud deu mão livre aos seus polícias, o que explica a inexistência de mortes. A Comuna que alguns sonharam e outros ainda hoje projectam foi, de alguma forma, a anti-Comuna, por muito que o mito CRS=SS alimente os resistentes de café. E esquecem-se também os movimentos estudantis que, com razões diversas, o precederam noutros países (o Japão em Janeiro, a Itália e o Brasil em Março) ou lhe sucederam (o México em Julho) e não raramente se abusa na ligação feita com a Primavera de Praga (na realidade em Agosto), que inicia uma luta anti-totalitária a leste que só cessará com a queda do Muro de Berlim em 1989, e o desfazer da União Soviética dois anos mais tarde. De mitos e provocações trata outra das leituras recentes relativas a este tema, o “Maio de 68 explicado a Nicolas Sarkozy” dos Glucksmann pai e filho. O livro, feito de perguntas e respostas, coloca frente a frente duas gerações, a de Maio e a que lhe sucede, fortemente crítica da primeira. O pai, André, um dos principais actores do movimento (também zurzido por Cusset no seu livro), lança uma tese provocadora: a de que o melhor herdeiro do Maio de 68, apesar da condenação pública que dele faz, é precisamente Nicolas Sarkozy, pelo seu ‘franc-parler’ e pela forma como pretende desbloquear a sociedade francesa, pondo em causa os privilégios de classes profissionais, o domínio das elites, a burocracia, etc. Para além de dizer que é a Maio de 68 que se deve a evolução social, cultural e económica da sociedade francesa nos anos 70, defende-se da acusação de irresponsabilidade e ligeireza do movimento afirmando que a sua intenção era levantar problemas e não tanto dar-lhes respostas, e que a ausência de soluções não invalida a crítica fundamentada. O interessante das comemorações é a forma como, não raramente, acabam a pôr em causa os mitos que pretendem perpetuar. O interessante da evocação de Maio de 68 é, pela primeira vez, fazer-se com a distância mínima necessária à sua análise, e num momento em que os seus protagonistas começam a pensar no seu lugar na História para além do evento que os projectou. De uma certa maneira, será o regresso à política e ao seu primado, e a ultrapassagem da visão estritamente cultural de 68.

BIBLIOGRAFIA François Cusset, La décennie.Le grand Cauchemar des années 1980, La Découverte André e Raphaël Glucksman, Mai 68 expliqué à Nicolas Sarkozy, Denoël

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texto Tiago Bartolomeu Costa

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O propósito do encontro não podia ser mais claro, quer no seu carácter provocatório quer na sua evidência. E juntar Adolfo Mesquita Nunes – 30 anos, advogado, dirigente do CDS/PP, fundador da Ala Liberal do partido, conotado com posições que se afastam da matriz democrata cristã do CDS e o aproximam do liberalismo, como seja, por exemplo, o seu apoio à abolição das proibições estaduais ao casamento entre pessoas do mesmo sexo –, com José Moura Soeiro – 23 anos, sociólogo com um trabalho junto de populações rurais, nomeadamente recuperando as teses de Augusto Boal e o seu Teatro do Oprimido e, desde Dezembro, o mais novo deputado à Assembleia da República, eleito pelas listas do Bloco de Esquerda –, para debater a herança do Maio de 68 revelou-se, afinal, um estimulante confronto de ideias que não estavam, na sua maioria, muito distantes umas das outras. Ou como várias vezes referiu Mesquita Nunes: “queremos a mesma coisa, mas chegamos lá de forma diferente”. Com os ecos da manifestação que juntou cem mil professores ainda a ressoarem, não tardou muito para que numa conversa sobre as movimentações sociais francesas de há quarenta anos atrás se pudessem entender reflexões sobre a sociedade actual. Esta contaminação natural esteve na base de uma reflexão comum sobre o poder da rua e as apropriações indevidas dos desejos individuais e colectivos.

Protagonizar a História É Adolfo Mesquita Nunes quem primeiro avança, esclarecendo que “as movimentações de rua não permitem o debate, porque a massa cria uma identidade própria, torna-se uma turba que não deixa compreender as múltiplas motivações”. “A rua abafa e uniformiza o que se passa na própria rua, permitindo apropriações equívocas”, para logo em seguida alertar que “podemos hoje estar a tentar criar justificações para compreender o Maio de 68, que é um fenómeno extremamente interessante, mas criamos conhecendo já o resultado de tudo, conjugando as nossas ideias e expectativas. E inclusivamente os acontecimentos políticos que se lhe seguiram são contraditórios com aquilo que seria expectável de um movimento como este”. Abrindo as hostilidades, sublinha que “o Maio de 68 ofereceu à esquerda uma alternativa que não o comunismo estalinista”. José Soeiro começa por fazer notar que “reduzir o Maio de 68 à revolta estudantil e circunscrita a Paris [é] uma visão distorcida do que aconteceu” porque “à esquerda surgiram muitos grupos e [o Maio de 68] sai[u] da alçada e do controlo da esquerda estalinista [para fazer convergir] muitas lutas”. E elenca, referindo que é “este movimento de rua muito crítico da uniformização” que junta os que lutam contra “a guerra colonial [na Argélia], os movimentos operários que se dividiam entre o novo e o velho proletariado ou os direitos dos negros e das minorias”. Meses depois, recorde-se, dois atletas negros, Tommie Smith e John Carlos, protestariam na sessão de entrega de medalhas pelas vitórias em provas de atletismo nos Jogos Olímpicos que decorreram, em Outubro, na Cidade do México, momento que ficou conhecido para a História como a Saudação Olímpica ao Poder Negro. “As pessoas aprendem a viver com a diversidade e querem provar que podemos protagonizar a História”, diz o deputado do BE, que lembra

ainda que slogans usados na altura exigiam “a saída dos Estados Unidos do Vietname e dos russos da Checoslováquia”. Era, afirma, “um movimento muito crítico do estalinismo e do capitalismo” que “explode pelos estudantes mas vem de sítios diferentes e articula duas dimensões: a crítica social, das injustiças, do capitalismo enquanto modo de produção e a crítica expressiva, do capitalismo enquanto modo de vida, crítica da alienação da vida quotidiana, etc.”. O que aconteceu depois foi que o poder “abandonou a crítica social para ficar a revolução expressiva” que teria ecos na “contra-revolução liberal que se seguiu nos anos 70 e 80”. São essas contradições que Mesquita Nunes quer também salientar: “Existia uma crise de crescimento. Um país que criou desigualdades numa fase pós-guerra [vivíamos em plena Guerra Fria] e os estudantes surgiram como o novo proletariado”, a quem, lembra o advogado, o Partido Comunista Francês [que desencorajou a manifestação] chamou de “filhos do papá”. E acrescenta: “o PCF sentiu ali um abastardamento do comunismo estalinista [no qual o PFC se revia]. E a verdade é que parte destes manifestantes, mais tarde conhecidos como baby boomers, tinham um fascínio por Fidel [que desde 1962 sofriam um bloqueio económico por parte dos EUA], pela Revolução Cultural Chinesa [iniciada por Mao Tse Tung em 1966], pelo anti-imperialismo, e pela Hungria [cujo governo implementara um programa de liberalização sem precedentes no Leste Europeu e que levaria, em Agosto, à ocupação soviética que terminaria com o “socialismo com face humana” que foi a Primavera de Praga]. “Surgiu um caldo político possível de ser instrumentalizado”, ao ponto de, refere, “terem surgido leituras de textos de juventude de Marx” numa tentativa de tornar estes jovens herdeiros do verdadeiro comunismo.

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Do jovem Marx ao liberalismo Recusando ambos a ideia de geração, José Soeiro porque “a própria ideia de geração é complicada porque nem todos viveram a mesma experiência histórica”, Adolfo Mesquita Nunes porque “não vemos projectos próprios, nem uma geração que os tenha criado”, refere. No caso do Maio de 68, diz Mesquita Nunes: o “choque efectivo - mas não político - entre duas gerações” dá-se porque “de um lado estão os traumatizados de guerra que conhecem as limitações económicas, [são uma população] muito moralizada, habituada à autoridade, [que acredita] num Estado centralista, e do outro uma nova geração que tem acesso à cultura, tem uma outra forma de vida e aspira mais. [Reconhece-se] o tédio de uma geração que não quer viver com os espartilhos da geração anterior”. Aquilo que este dirigente do CDS-PP não encontra no Maio de 68 é “a negação de um regime capitalista do qual aliás a França nunca se libertou” e foi isso, acredita, que faz com que a manifestação “seja um momento de rua que só pode acontecer num país que estava a enriquecer”. “É aliás essa rua que meses mais tarde vai dar a vitória ao partido do governo, do General De Gaulle [de direita]. Aliás, momentos como o Maio de 68, se acaso se eternizam, derivam sempre em ditadura, porque um estado não consegue cristalizar permanentemente essas reivindicações, e [estas] quando se colam a um regime, morrem, confundindo-se com ele e perdendo a sua razão de ser”. Mesquita Nunes quer saber se “a vitória de De Gaulle não é a derrota do Maio de 68?”. Soeiro discorda e, antes de dizer que a “ideia de derrota voltou com Sarkozy, que quer enterrar um equívoco pessoal”, diz que “mesmo quando esse movimento não tem uma expressão política clara, há sempre uma evolução. A expressão eleitoral é uma mediação da vontade popular mas não é o único método [de aferição] porque [pode] distorcer a vontade popular”. E continua: “dada a falência dos regimes estalinistas, o Maio de

68 mostra que não há luta pela igualdade sem luta pela diversidade. [Mostra-nos] o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza, e a sermos diferentes quando a igualdade nos anula”. “A esquerda que reclama a herança de 68 não abdica da crítica social, não se confina ao espaço público, mas bate-se pela democratização de todos os espaços de vida”. “O Maio de 68 deixou uma herança cultural importante”, diz o dirigente do BE, citando Marx: “a liberdade de todos é a condição para a liberdade de todos”. Aquilo que representa é “a revolta das esperanças revolucionárias que as pessoas tinham”, admite. Adolfo Mesquita Nunes discorda, afirmando que a “desvalorização da expressão eleitoral nesses termos permite a atribuição a uns do poder de decidir, afinal, o que é que interessa aferir dos votos de todos”, embora salienta que admite que “a democracia é um meio, não pode ser um fim, de tal sorte que há evidentemente um núcleo de liberdades que não pode estar na disposição de outros que não os próprios indivíduos”, antes de lançar uma questão a José Soeiro: “não era o Maio de 68 um movimento repressivo contra a sociedade?”. Resposta do sociólogo: “há revoluções que geram repressões, como a russa, mas a repressão vem sempre do poder”. Contra-argumento do liberal: “podemos dar-lhe o nome que quisermos, podem ocorrer ocupações de fábricas com justificações individualizadas, mas [as manifestações] falham sempre por causa de quem as lidera, que se apropria de reivindicações e lhes confere um programa próprio, que os manifestantes já não controlam, e colectivizam aquilo que começou por ser individual”. A prova disso está, diz-nos, “na queda do Muro de Berlim [em 1989], que diagnostica a falência das experiências colectivas”. E diz mesmo: “não conheço nenhum exemplo colectivista que tenha resultado numa melhoria das condições [de vida] das pessoas”. José Soeiro contrapõe, dizendo que não conhece “nenhuma experiên-

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cia capitalista que tenha dado certo, porque não é possível defender o direito ao individualismo sem trabalhar no campo da igualdade, deixando [esta] de ser retórica e passando a ser real”. Vai mais longe: “o neo-liberalismo é o discurso económico dos conservadores porque representa um acréscimo de Estado na sua vertente mais repressiva”. E dá um exemplo: “defende um Estado forte na polícia”. Mesquita Nunes diz que essa é uma posição que denota “o relativismo moral” que as apropriações do Maio de 68 quiseram imprimir na sociedade, já que “se confunde liberdade com um Estado neutro e asséptico”. E também ele dá um exemplo: “um socialista num sistema liberal pode fazer uma cooperativa, mas um liberal não pode gozar a plenitude das suas liberdades negativas num regime socialista”. Soeiro afirma: “A ideia de que o compromisso entre o capitalismo e a democracia dá origem ao Estado Social [tem em si mesma uma] lógica antagónica”. “Eu não preciso que o Estado me reconheça o direito a expressar-me, ele é anterior à existência estadual”, diz Mesquita Nunes, contraposto por Soeiro com o exemplo existente da figura desobediência civil. “O Estado Social é fruto da má consciência dos socialistas ao perceberem que o socialismo não resulta e há que mescla-lo com uma abertura, nem que seja aparente, ao liberalismo”. Soeiro riposta: “associar a libertação com a redução do individualismo nas outras esferas da vida é perverso. É preciso fazer a crítica da desigualdade e da alienação num projecto de liberdade real [que promova] a democratização em todas as esferas da vida”.

Ilustração Pixel Reply a partir de fotografias de arquivo pessoal e de Pedro Ferrari. Adolfo Mesquita Nunes à esquerda e José Soeiro à direita

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PONTO CRÍTICO

Eugénia Vasques

MEMÓRIAS SOIXANTE-HUITARDES OU AFINS

1. Para a minha geração provinciana, que então terminava o Liceu ou se iniciava na Academia, o Maio de 68 foi um fenómeno distante sem impacto no seu imediato quotidiano. Já o mesmo se não pode afirmar do Abril de 69 que eclodiu em Coimbra, pois foi graças aos embates universitários com a Guarda Republicana e o Estado e às subsequentes perseguições da PIDE com as respectivas alas de marcha para a Guerra Colonial que muitos partiram, como eu, de acompanhante, para a cidade de Paris. Não sem antes ouvir falar ou participar da rebeldia teatral do CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), grupo iconoclasta onde pontificava, antes de ser preso pela PIDE e expulso do país, o encenador argentino Juan Carlos Oviedo (O Sonho de Uma Noite de Verão; Macbeth – Que se Passa na Tua Cabeça? ). E porquê Paris? Porque era um dos escoadouros da imigração mais próximos de casa, com redes de “passadores” bem organizadas, com uma língua que se aprendia ao longo do curso liceal, e, nesse sentido, tornava-se bem mais fácil a mancebos e prevaricadores encontrar, nas relações familiares e de amizade, orientações e fundos para a necessária fuga para terras de liberdade. A nossa ida foi “a salto” e dela guardo relevantes (para mim) memórias e uma lição bem triste: a ideia de um “bom povo português” é uma ficção sem fundamento. Chegados a Paris, em vão se procurariam traços da “intifada”. A cidade-metrópole processara há muito os desacatos e na memória do cidadão comum era nefasta a recordação das greves, geral e outras, que tinham paralisado o burgo. Os portugueses – e sobretudo “les portugaises”, nome pelo qual eram conhecidos um marisco e os buracos dos ouvidos (“Oh, j’ai les portugaises ensablées” ouvi eu durante anos como blague amistosa) – constituíam a emigração pobre de entre os pobres e só era mais paternalmente considerada do que os “árabes” ou os “pretos” por ser “branca”, não ter consciência de classe, não faltar ao trabalho, viver em bidonvilles e ser, classicamente, eles, ouvriers spécialisés (quer dizer, sem especialização nenhuma!) e, vá lá, manouevre e, elas, femmes de ménage et concierges de confiança. E foi, exactamente, o que eu fui, o que nós fomos – com o apoio solidário de muitos como a Julieta Gonçalves (sobrinha do lendário comunista Alex), o Bernardes ou a Clara e o seu marido músico, o Paulo Valente (Pereira?) – mas numa variante nova: a de ser, simultaneamente, uma estudante universitária (Université de Vincennes) e pôr aos berros no nosso cubículo do rés-do chão L’ Internationnale e a Colette Magny!

2. O Maio de 68 deixara, no ar, um rasto libertário. Porém, refém da sobrevivência e da conquista da legalidade, a nossa geração de ex-estudantes dividia-se, em Paris, claramente em dois grupos distintos: os que, filiados previamente, prosseguiam uma militância organizada – o caso do Luisinho (do PC), um dos desertores políticos universitários que aterrou numa violenta unidade fabril (na Renaud?), oriundo também da Universidade de Coimbra, se a memória me não falha, como o bom gigante do Bártolo, esse, de Espinho, sem filiação, que, devido ao peso, sofria com varizes por trabalhar à la chaîne e cuja mãe, para o nosso primeiro Natal fora de casa, nos enviou uma receita de bolo-rei (que saiu queimado) que ainda hoje guardo religiosamente – e aqueles, a maioria, que procuravam a sua via de integração política. Esta podia começar nos Comités, que o PC abria em frentismo popular, mas divergia para os vários ramos m-l cujos dirigentes eram acessíveis. A um, o ideólogo H.C., conheci eu no La Source, do Boulevard Saint Michel, o primeiro local onde exerci profissão assalariada com direito a farda cor de laranja com crista e tudo! E foi graças a esse contacto que entrámos, eu por simples arrasto, no mais reaccionário universo marxista-leninista que imaginar se poderá. E o teatro? E a rebeldia? E as palavras-de ordem libertárias do Maio de 68? Para além das canções revolucionárias de tónica operária, das acções de agit-prop nas usinas e lugares de associação, das manifs reivindicativas e de espectáculos francamente de intervenção – como a magnífica trilogia sobre a Revolução Francesa apresentado na Cartoucherie de Vincennes pela Companhia de Arianne Mnoushkine –, a nós, recém conquistados pela moral operária do Camarada Mao Tse Tung, só nos restava o Teatro Operário que se realizava para fins de doutrinação. Era como se a “revolução” cultural que se vivia desde 1967 na Europa e na América democráticas nunca tivesse tido lugar. 3. Mas o Maio de 68 foi plenamente vivido por outros estudantes-desertores portugueses que já residiam em Paris na altura. Vejam-se as memórias de Fernando Pereira Marques (A Praia Sob a Calçada: Maio de 68 e a “Geração de 60”, Lisboa, Âncora, 2005 e de João Freire (Pessoa Comum no Seu Tempo: Memórias de um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX, Lisboa, Afrontamento, 2007), de tónica socialista e anarquista, respectivamente, para já não mencionar o clássico Maio e a Crise da Civilização Burguesa do veterano intelectual António José Saraiva (Lisboa, Gradiva, 2005). Verificar-se-á que, tal como há-de acontecer em Portugal durante o 25 de Abril, a festa está nas ruas e raras são as referências a espectáculos e actividades culturais nestas narrações dos acontecimentos. 4.Há, porém, um livro de uma testemunha eventual, o actor, encenador e dramaturgo António Costa Ferreira (n.1918), intitulado Uma Vida em Cinco Dias (Lisboa, Europa América, 1971), onde aqueles dias da Primavera de 1968 são relatados, na primeira pessoa, com olhar deslumbrado. Para além das suas aventuras pessoais, relata o papel de uma querida veterana, a escritora Maria Lamas (1893-1983), do modo que se segue: “Maria Lamas, através de todas as lutas da sua vida, mantivera sempre uma alegria sã de existir, uma fé no progresso humano, que a tornavam uma excelente espectadora da tragédia humana... [E]u sabia que ela estava com os estudantes, que tinha passado noites sem dormir, à janela, a deitar água para a rua, para ajudar os outros a suportarem os gases, tentando levar o melhor que podia o

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ar necessário aos pulmões alheios. “Contou-me ... como atravessara as barricadas na primeira noite de luta, em que fora surpreendida num jantar nos arredores de Paris e regressara tarde ao hotel [Saint Michel]. Sublinhou a galanteria dos estudantes, a dureza da polícia, que lhe exigira a apresentação dos seus documentos, o pormenor humano dos clochards que dormiam sobre os respiradouros do metropolitano e rematou: ‘Como escritora, ofereço-lhe este pormenor da minha observação’”. (p. 213) 5. Na vizinha Bélgica, para o jovem exilado João Brites (que liderará mais tarde um projecto, O Bando, pautado pela crença comunitária e ecológica), os ecos do Maio de 68 vivem-se na descoberta de novas fronteiras para uma liberdade activa. Afirma em entrevista na net: “Eu, que vinha deste país fascista, fechado, pequenino, onde eu fazia coisas que apesar de tudo eram perigosas, para mim aquelas novas possibilidades de transgressão, ali em Bruxelas, eram incríveis. Ocupámos a escola, e ficávamos lá a dormir, nessa escola de artes onde fazíamos pintura, gravura, tipografia e fotografia. É claro que em Bruxelas, o Maio de 68 não teve o mesmo impacto que teve em Paris, mas seja como for houve algumas iniciativas e alguns movimentos que se criaram. E nós naquela escola sustentávamos uma série desses movimentos, com os cartazes que fazíamos, e assim foi até sermos expulsos pela polícia que entrou por ali adentro como todas as polícias, não usando as portas, como um ataque, determinados a correr connosco dali para fora. A polícia vasculhou a escola toda e nós fomo-nos esconder na biblioteca, e eles ainda andaram uns vinte minutos ou mais muito intrigados por não nos encontrarem, a partir vidros e a rebentar portas… Mas ainda por lá ficámos umas duas ou três semanas… pois, éramos uns okupas. Estive oito anos sem vir a Portugal, era refugiado político, com estatuto da ONU. Visitava os meus pais em Espanha ou em França.” (sublinhado meu) 6. A influência do Maio de 68 no teatro português só poderia ter sido nula. O Maio de 68 foi uma revolta cultural que se desenrolou num país apesar de tudo democrático que, ao contrário de Portugal e dos Estados Unidos, não perdia os seus mancebos na Guerra Colonial. Se algum reflexo o Maio de 68 proto-anarquista teve no nosso país foi... nos anos 70 e sobretudo depois do 25 de Abril! No primeiro espectáculo de Os Bonecreiros, O Circo Imaginário do Super Basílio, de 1971, não por acaso uma peça infantil (da autoria da franco-romena Béatrice Tanaka), dirigida pelo actor João Mota – recém-chegado da sua experiência brookiana e estreante (quase absoluto) na matéria encenatória profissional –, brande-se a palavra de ordem “imaginação ao poder” inspirada num slogan das barricadas parisienses. Não é ainda um texto colectivo com encenação colectiva em espaços alternativos, como serão os espectáculos-programa da primeira fase da

Comuna, o mais libertário dos grupos teatrais portugueses, fundado no ano seguinte (Para Onde Is?, Brincadeiras, Feliciano e as Batatas [na imagem], A Ceia I, etc.). 7. O teatro português só nos anos 2000 conheceria a sua libertação. Pena é que esta abertura esteja desamparada dando azo aos mais “dissolventes” oportunismos.

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Diário de rua

texto Elisabete França

Maio foi so o mês sobre o qual tudo gravitou. Mas a historia tem um antes e um depois que o ajudam a compreender. Viagem pelos factos, praticamente dia a dia.

O ano de 1968 foi marcado por múltiplos acontecimentos relevantes, dos assassínios de Luther King e Robert Kennedy ao esmagamento da Primavera de Praga pelos tanques do Pacto de Varsóvia, da queda do ditador Salazar à primeira conferência internacional sobre a Guerra do Vietname (iniciada em 1964), às movimentações estudantis – do Japão aos EUA, do Brasil ao México, da Polónia à Alemanha e à Itália. Em nenhum caso, porém, comparáveis às que abalaram Paris em particular e a França em geral, culminando no mês de Maio, com acções estudantis e operárias simultâneas, paralisando o país. Tudo atravessado por correntes ideológicas contraditórias – libertárias, trotskistas, maoistas (variante “mao spontex”). Depois, a vida nunca mais foi a mesma. A agitação estudantil germinou numa visita do ministro da Juventude e dos Desportos, em Janeiro, ao pólo universitário de Nanterre (periferia parisiense). Interpelado pelo estudante Daniel CohnBendit (filho de imigrantes judeus alemães, o hoje deputado verde alemão desempenharia um papel central nos acontecimentos), por ignorar a sexualidade no seu Livro Branco da Juventude, o ministro aconselhava-lhe um banho na piscina, sem sonhar quanto a sugestão de arrefecimento aqueceria os ânimos. A seguir, os estudantes das universidades de Nanterre e de Antony reivindicavam livre circulação entre os dormitórios de rapazes e de raparigas. Era o ar do tempo em que os hippies popularizaram o “make love not war”; em França, no final de 1967 – isto anda tudo ligado –, fora legalizada a contracepção e, enfim, comercializada a pílula (condenada embora

pelo papa Paulo VI); às livrarias, chegaram duas obras situacionistas capitais: La Société du Spectacle de Guy Debord e Traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations de Raoul Vaneigem. Esse ar do tempo, a soprar de vários quadrantes, envolvia contestação da autoridade, do(s) poder(es) instituído(s), do sistema. Sinal disso, em Paris, foi também “l’affaire Langlois”, em Fevereiro. A França, estivesse ou não entediada – conforme a crónica de Pierre Viansson no Le Monde de 15 de Março –, animava-se contra o tédio, a burocracia, o cinzentismo, já nessa vitoriosa luta contra a prepotência representada pelo ministro da cultura, André Malraux, o ex-revolucionário mumificado que impusera um director para a Cinemateca, a substituir o carismático Henri Langlois. Cinéfilos e personalidades do meio e, entre estas, os cineastas da Nouvelle Vague (Godard, Truffaut, etc.), lideraram os protestos junto à Cinemateca, impondo recondução de Langlois, como, em Maio, encabeçariam ocupação dos locais do Festival de Cannes, fazendo suspendê-lo. Ou como, alguns destes e muitos outros, artistas e técnicos, reuniriam os Estados Gerais do Cinema, a partir de 13 de Maio, visando subverter modos de produção, realização, distribuição. A 22 de Março, incidentes na Faculdade de Letras de Nanterre levaram à greve com ocupação e à criação do Movimento de 22 de Março, liderado por Cohn-Bendit. As aulas recomeçam a 1 de Abril mas esse líder é preso no dia 27. Os estudantes instalam-se na Sorbonne, cujo reitor chama a polícia para evacuar a universidade, a 3

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de Maio, fazendo a agitação transbordar para as ruas, nos primeiros confrontos entre jovens e polícia no Quartier Latin. Saldo: mais de 500 prisões e de 100 feridos, aulas suspensas dia 4. A 6, dezenas de milhar de estudantes desfilam até ao centro de Paris (Place de l’Étoile); à noite, no Quartier Latin, escaramuças, mais umas centenas de prisões e de estudantes feridos – mas os CRS (polícia de choque) também levam a sua conta, os paralelepípedos vão sendo arrancados da calçada, sob a qual se quer a praia. O movimento alarga-se à maioria das cidades universitárias, o ministro da Educação, Alain Peyrefitte, suspende as aulas. Dia 8, um grupo de intelectuais, entre eles Sartre e Simone de Beauvoir, protesta contra a repressão. Mobilizam-se os estudantes dos liceus na província. No Quartier Latin feito campo de batalha, a noite de 10 foi a Noite das Barricadas, que a polícia tomou de assalto, fazendo centenas de prisões mas contando, entre os seus, com a maioria dos quase 400 feridos graves hospitalizados. Dia 13, os sindicatos apelam à greve geral de protesto contra a repressão, os estudantes ocupam a Sorbonne, realizam-se gigantescas manifestações, na província como na capital – aqui, um milhão de pessoas na rua, segundo estimativas. Dia 14, é incendiada a Bolsa de Paris. A 15, mais de 2 mil estudantes ocupam o Teatro de l’Odéon. Até 18, quando é suspenso o Festival de Cannes, multiplicam-se greves com ocupação, em destaque a da Renault-Billancourt; dia 20, a economia nacional paralisa, com grevistas entre 8 e 10 milhões. A 22, enquanto as centrais sindicais se dispõem a negociar, Cohn-Bendit é exilado,

o que motiva logo manifestação em Paris, sob a palavra de ordem “Somos todos judeus alemães”. A 24, as escaramuças atingem um pico de violência, dia e noite em Paris – mais centenas de feridos e um morto; outro morto em Lyon, comissário de polícia, alvo dum camião lançado pelos estudantes. Viragem da opinião pública contra estes. A 25, a ORTF (rádio e televisão estatal) entra em greve. No dia 27, confederações sindicais, patronais e governo assinam os acordos de Grenelle: aumentos salariais, redução do tempo de trabalho e da idade da reforma, formação profissional, direitos sindicais, regalias várias. O movimento operário, com grande peso do PCF na principal central sindical, CGT, “deixa cair” os estudantes e as suas malvistas proclamações libertárias, “Sejamos realistas, exijamos o impossível”, “A imaginação ao poder”, “É proibido proibir”... Dia 29, o Presidente da República, general De Gaulle, deixa Paris. A 30, dissolução da Assembleia Nacional; grande manifestação de direita percorre os Campos Elísios em apoio ao general e seu regime, que sai reforçado das eleições de Junho mas se retira em menos dum ano. Dos confrontos, a que se seguiram repressões e incidentes vários (por exemplo, no Festival de Avignon, em Julho), ia surgir uma vida nova, para estudantes que ousaram querer tudo e para quantos(as) beneficiaram dessa ousadia. Mesmo se a imaginação não tomou o poder e uns tantos se acomodaram, a escola, a família, a sociedade perderam formalismo e ganharam democracia, uma segunda vaga feminista emergiu, abriram-se espaços de criatividade. E, sim, os dormitórios das cidades universitárias deixaram de estar vedados ao outro sexo.

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O Maio de 68

na imprensa portuguesa A OBSCENA traça um retrato do acompanhamento que os jornais portugueses fizeram do Maio de 68. texto Pedro Relógio Fernandes

O mês de Maio de 1968 começa, na imprensa portuguesa, com constantes referências ao Vietname, à corrida às presidenciais americanas, aos modernos transplantes de coração ou às crescentes desordens em universidades um pouco por todo o mundo. Apesar de tudo, nada na imprensa nacional poderia fazer prever o grandioso e, para o ideário nacional, incompreensível movimento que entrava em estado de ebulição. No dia 3 dão-se as primeiras desordens de grande gravidade no Quartier Latin, em Paris, e a imprensa portuguesa, ainda que fiscalizada pela censura, tem nos dois jornais de maior consumo, Diário de Notícias e O Século, informações diárias sobre o assunto. Apenas alguns dias mais tarde outros jornais de referência se juntarão, como o Diário de Lisboa ou o República. “Campo de Batalha no Boulevard Saint-Michel” diz a capa do Diário de Notícias (DN ) de Sábado, dia 4, na sequência do encerramento “sine die” da Faculdade de Letras de Nanterre e paralisação das aulas na Sorbonne, acontecimentos justificados pelo periódico (em artigo assinado com a sigla F.P.R e pela agência noticiosa ANI) com o “mal-estar que os meios dos estudantes atravessam – em França como em tantos outros países –, mal-estar de que os incidentes de Nanterre não são mais do que um sintoma”. Granadas de gás lacrimogéneo, pedras a voar e barricadas a multiplicar-se pelo Quartier Latin. O mundo não mais será igual e Portugal observa estupefacto. “A continuação dos incidentes parece demonstrar origens profundas”, determina o artigo do DN. O artigo d’O Século dedicado ao tema é em tudo semelhante (também é assinado por F.P.R., ANI, como serão todos os artigos destes dois jornais), mas nenhum dos periódicos dá contas da verdadeira razão de ser dos conflitos. É no dia 6 que o Diário de Lisboa se refere pela primeira vez ao assunto, com o título “Vedado o bairro da Sorbonne”. A abordagem é, contudo, um pouco diferente do que até aqui se encontrava nos restantes periódicos, apesar de a assinatura (F.P.) levar a crer que o redactor é o mesmo. O artigo termina da seguinte forma: “Em Nanterre, o denominado “Movimento de 22 de Março” chama a população a manifestar-se contra a repressão policial de que os estudantes são objecto”. No dia 7, num artigo bastante extenso, o DN torna a focar o tema, voltando a utilizar o termo “batalha”. É neste dia que o Diário de Lisboa e O Século dão, pela primeira vez, honras de capa ao assunto: “Luta violenta no Bairro Latino entre estudantes e polícias: muitos

feridos de parte a parte” (O Século) e “A universidade deve modernizar-se”, palavras de Charles De Gaulle (Diário de Lisboa). Continua o DN: “durante todo o dia de ontem, polícias e estudantes lutaram duramente contando-se os feridos por muitas dezenas”, informando que se multiplicam as “lutas de excepcional violência”, bem como as barricadas que, à medida que são desfeitas pela polícia, se refazem noutros locais. No mesmo artigo, é também referido contágio, cada vez mais notório, a outras partes do país: estudantes de Montpellier, Lyon, Bordéus e Saint-Étienne começam a juntar-se ao movimento, que se revelará demolidor. Apenas no dia 11 dá o República honras de capa à crise francesa, contando incidentes que compreendem a destruição de automóveis e vários outros desacatos entre grupos de milhares de estudantes e as forças da ordem. Este diário, cujos artigos sobre o assunto são assinados com a inicial R., diz ainda que “o Governo vai ouvir os estudantes”, depois dos “violentos recontros que transformaram o Bairro Latino num campo de batalha, e originaram numerosos feridos e várias prisões”. No dia 12, o DN compara o problema parisiense a uma guerra, comentando a “táctica de guerrilhas nas manifestações estudantis”, e contabilizando “367 feridos, 468 pessoas interrogadas e 60 automóveis destruídos”. E é feito o anúncio da reabertura da Sorbonne para o dia seguinte. Ao mesmo tempo, De Gaulle prepara-se para partir para a Roménia em visita oficial e é anunciada, para o dia seguinte, uma reunião de emergência da Assembleia Nacional “para debater os sangrentos recontros entre os estudantes e a Polícia”. O República do dia 13 volta a falar em “greve geral em apoio das exigências estudantis”. Quanto às negociações com operários e estudantes, o periódico refere a greve de “10 milhões de operários” e a marcha planeada para este dia: “uma manifestação maciça”. Ao mesmo tempo, iniciam-se na capital francesa as negociações de paz entre os governos envolvidos na guerra do Vietname. O DN do mesmo dia destaca que: “voltou a calma ao Quartier Latin”. Georges Pompidou, primeiro-ministro francês, afirma no seu discurso proferido um dia antes que a Sorbonne será reaberta e refere-se aos “agitadores profissionais” (como Daniel Cohn-Bendit), apelando à defesa da comunidade universitária das “provocações” daqueles. “Pouco mais tarde”, noticia o DN, “cerca de seis mil estudantes tentaram de novo marchar sobre a Sorbonne”. Dia 14, capa do DN: “Ontem, sob a Internacional e sob bandeiras ver-

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melhas e negras, greve geral – Centenas de milhares de trabalhadores e estudantes num desfile-monstro através de Paris durante cinco horas e meia”. E continua: “Em toda a França, milhões de trabalhadores não compareceram nos empregos e provocaram faltas de energia eléctrica e de transportes, em obediência à greve geral ordenada por alguns dos sindicatos nacionais de solidariedade com o movimento estudantil”. Em O Século há a reter as palavras de CohnBendit que, em plena manifestação, apela à multidão que o rodeia, deixando o aviso: “Isto apenas começa… a luta continuará com outras barricadas se for necessário. Estamos em guerra com o regime capitalista”. No dia 15, o DN diz que “Pompidou acusou uma “organização internacional com poderosos meios financeiros” de aproveitar os meios estudantis para “criar a subversão nos países ocidentais”. Informa ainda que “a oposição apresentou uma moção de censura ao Governo”. Para além do mais foram pedidas as demissões dos ministros do Interior e da Educação Nacional por parte de deputados da oposição (liderados por François Mitterrand). O artigo prossegue comparando o movimento dos estudantes franceses à revolução cultural chinesa, “pondo em causa todo o sistema universitário”. No mesmo dia, o República dá uma imagem bem distinta da situação: “Milhares de estudantes […] estão a utilizar as suas universidades como foros livres para a discussão de problemas educacionais e sociais” e “na Sorbonne foram hasteadas bandeiras vermelhas quando pianistas de jazz e oradores académicos se apresentaram em audiências públicas”. O DN de dia 17 fala em “fábricas ocupadas em várias cidades por operários” e enfatiza o apelo de Pompidou: “franceses e francesas, tendes que dizer não à anarquia”. Na mesma edição diz-se que “no meio de toda a agitação continua a desconhecer-se o que, na realidade, pretendem os estudantes com a sua pretensa “revolução cultural”. O Século volta a referir-se a Daniel Cohn-Bendit: “Tratados de “crápulas estalinistas” pelo “leader” estudantil […], os comunistas parecem inquietos com o movimento que escapa à sua direcção”. No dia 18, o DN refere-se a Cohn-Bendit como alguém que, estando matriculado há quatro anos na Sorbonne, não fez mais do que distinguir-se “pela sua actividade revolucionária”, tendo conseguido apenas uma nota desde que entrou na Universidade, um autêntico “agitador em missão”. A dia 19, destaca o regresso antecipado de De Gaulle da visita de estado à Roménia “em consequência da agitação académica e operária em França”. É noticiado, nesse mesmo dia, o cancelamento do festival de Cannes, bem como a greve dos controladores aéreos em Paris, a paralisia do tráfego ferroviário e a ocupação de mais de cem fábricas pelos operários franceses. No DN, um dos mais ilustres membros do júri do festival de Cannes, Roman Polanski, refere-se à crise francesa: “a situação recorda-me o meu país [Polónia] na época estalinista”. Continuam as manifestações de esquerda e de direita com algumas “escaramuças” pelo meio, mas De Gaulle “chegou sorridente a Paris”. Na Sorbonne, onde várias reuniões entre os estudantes têm lugar, diz o DN que “os oradores são frequentemente interrompidos e, na atmosfera desta assembleia-geral, não há possibilidade de qualquer debate de fundo”.

Dia 23, o DN comunica que “a França aguarda a palavra de De Gaulle”, que falará à nação na televisão no dia seguinte. Depois de rejeitada a moção de censura da oposição (‘liderada’ por Mitterrand), o Governo prepara reformas para controlar a crise. Quanto a Cohn-Bendit, o “indesejável foi proibido de voltar à França” por ser “animador de um grupo de estudantes anarquistas”. O líder do Movimento 22 de Março “declara-se pronto a desencadear a agitação mesmo para lá da “cortina de ferro”. N’O Século é enfatizado o discurso de Pompidou: “não se podem ignorar as organizações sindicais quando estas são seguidas pelas massas operárias”. Na edição do DN do dia 24, o jornalista que assina com a sigla F.P. compara Paris a “um homem que não se barbeia há uma semana… e não se lava”. Na capa do República pode ler-se que “a nação [está] dividida pela discórdia, paralisada por greves economicamente suicidas e sofrendo uma nova vaga de violência”, à espera que o presidente “faça regressar o país à ordem”. Dia 26, capa d’O Século: “mil feridos em Paris nas manifestações de rua” e “atear a guerra civil era o objectivo das manifestações no Bairro Latino de Paris – disse o primeiro-ministro Pompidou”. Paris como autêntico cenário de guerra. A imagem ilustrativa do texto acima citado dá uma ideia aterradora da capital francesa. Na legenda pode ler-se que “Paris já está a arder”. Dia 29, Allain Peyrefitte demite-se do cargo de Ministro da Educação Nacional. “Pompidou classificou a acção do seu ministro como de “colaboração na tarefa de apaziguamento”, informa o DN. Pompidou é peremptório: “o trabalho tem de recomeçar”. Dia 30, capa do DN: “Horas de expectativa. Ignorou-se o paradeiro do General De Gaulle durante seis horas. Mas ao fim da tarde foi assinalada a sua chegada” para “presidir a um conselho de ministros”. O artigo prossegue: “pensa-se que perante uma situação interna muito grave o General quis tomar distância e meditar nas suas decisões. De resto tem sido assim que tem feito em todas as grandes ocasiões da sua vida”. O República anuncia na capa que “De Gaulle regressa a Paris para tomar uma grave decisão” e pergunta “Pompidou tenciona demitir-se?”. No dia 31 de Maio, sexta-feira, chega às páginas dos jornais portugueses a espectacular reviravolta que, em alguns dias, reporá a calma nas ruas de Paris: “De Gaulle dissolveu a Assembleia Nacional e anunciou novas eleições gerais declarando que lutará contra a ameaça de uma ditadura comunista em França”, informa o DN, contando que “um milhão de pessoas cantando A Marselhesa desfilou ontem nos Campos Elísios vitoriando De Gaulle”. N’O Século, De Gaulle afirma: “Não me retirarei. Não mudarei o primeiro-ministro. Dissolvi a Assembleia Nacional”, e na Assembleia, “cenas de pandemónio”, com os deputados “degaulistas” a irromper num “estrondoso aplauso” e a cantar A Marselhesa à saída. Quanto aos comunistas, “mantiveram-se no seu lugar”. O assunto vai gradualmente abandonando as capas dos jornais e Portugal demora algum tempo a digerir o movimento francês. No início do ano lectivo seguinte começam a verificar-se algumas situações de revolta explícita em universidades nacionais, até se desencadear, por fim, a crise académica de 1969.

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O “caso Béjart”:

Azeredo Perdigão diz adeus a Salazar

texto José Medeiros Ferreira

A 6 de Junho de 1968, no Coliseu dos Recreios em Lisboa, em plena crise de Maio francês e da ocupação da Casa dos Estudantes Portugueses em Paris, durante o espectáculo do grupo Le Ballet du XXième Siècle do Théâtre Royal de la Monnaie de Bruxelas, Romeu e Julieta, o seu director artístico Maurice Béjart proferiu uma breve alocução no final em que condenava o assassinato, ocorrido nesse dia, de Robert Kennedy, e se insurgia contra a violência e o fascismo. O autor destas linhas encontrava-se entre a assistência que enchia completamente o Coliseu e que aplaudiu estrondosamente as palavras do coreógrafo. As palavras foram proferidas em francês, e recolhidas pelos serviços da Fundação na sua disputa sobre o seu significado com as autoridades do regime político: “Robert Kennedy a été assassiné aujourd’hui, victime de la violence et du fascisme. Contre toutes formes de violence et de dictature, en sa mémoire, je vous demande une minute de silence”(1). Nos dias seguintes, o Secretariado Nacional de Informação (SNI) emitiu uma Nota Oficial, e Maurice Béjart foi expulso de Portugal, tendo sido cancelados os outros espectáculos previstos. Estes acontecimentos geraram a maior crise de sempre nas relações entre a Fundação Gulbenkian e o regime do Estado Novo (...). A Nota do SNI que merecerá a reacção forte de Azeredo Perdigão foi publicada a 8 e 9 de Junho de 1968 nos seguintes termos: “Durante o espectáculo de uma companhia estrangeira, realizado na noite de 6 do corrente, foram dirigidas à juventude exortações derrotistas e toma das atitudes de especulação política inteiramente estranhas ao próprio espectáculo. Perante a luta que temos de manter em defesa da integridade nacional, não pode consentir-se que uma companhia estrangeira aproveite, abusivamente, um palco português para contrariar objectivos nacionais. As autoridades foram, assim, forçadas a impedir a permanência em território português do súbdito estrangeiro responsável por aquele espectáculo(2)”. [Em] carta a Américo Tomás, Azeredo Perdigão começa por dizer que “o que se fez, o que não se fez, o que se disse e o que oficialmente se publicou acerca das palavras de Maurice Béjart […] causou-me um dos maiores choques morais que na minha vida tenho sofrido”(3). (...) Será no entanto em carta para o presidente do Conselho que Azeredo Perdigão chega ao ponto de considerar a sua demissão de presidente da Fundação Gulbenkian por causa do “caso Béjart” (...)(4). (...) Azeredo Perdigão fornece o essencial do guião a Salazar, citava Béjart quando este diz que tentou “casar o romantismo do jovem Hector Berlioz, cujos arrebatamentos e generosidade não deixam de ser um

tanto ingénuos, com a magia e a crueza de Shakespeare”. Assim, o coreógrafo concebeu um epílogo condenando a violência entre indivíduos e famílias e “no plano mais vasto da humanidade”. Segundo Azeredo Perdigão, nessa carta a Salazar, “Epílogo é, em resumo, a revolta contra as forças que subvertem a paz no Mundo, é o triunfo do amor sobre o ódio” em que o grito que sintetizava a última cena do bailado make love not war não era depois concretizado para nenhum país, com a excepção do Vietname, “e portanto, sem qualquer referência a Portugal e à luta de defesa, e não de agressão que estamos a sustentar em África”(5). (...) Havia ainda algo que amargurava Azeredo Perdigão (...) a expulsão de Béjart desenvolveu-se sem dela se ter dado conhecimento à Fundação e enquanto decorria um episódio de “exame prévio” do espectáculo bem revelador dos costumes censórios da época. Assim, na tarde do dia seguinte ao episódio do Coliseu, Azeredo Perdigão é procurado, na sede da Fundação, pelo inspector-chefe dos Espectáculos (...) encarregado de ouvir a parte falada da fita sonora do bailado Romeu e Julieta, para, eventualmente, ordenar o corte de uma ou duas frases, e que entretanto ordenou a suspensão do “visto” para o espectáculo daquela noite 7 de Junho(6). (...) [A]pós terem ouvido a parte falada da fita, o censor mandou cortar somente três frases: Make love, not war, Faites l’amour pas la guerre, e uma terceira em que um locutor invisível, falando português à maneira do Brasil, referia sem indicar o lugar onde, uma revolta de estudantes reprimida com muitas mortes, entre outras notícias imaginárias, ditas em diversas línguas, que preparavam o epílogo do bailado, consistente no triunfo do amor sobre a violência”(7). (...). Entretanto, nessa mesma tarde do dia 7, Maurice Béjart havia sido chamado à PIDE e notificado de que deveria abandonar imediatamente o País, sem que a Fundação Gulbenkian o soubesse. Os membros da Companhia de Ballet, ao tomarem conhecimento da medida de expulsão do seu director artístico, fizeram saber que se encontravam incapazes de dançar, pelo que os espectáculos previstos para os dias 7 e 8 foram anulados. Era, porém, do próprio Salazar de quem Azeredo Perdigão esperava a palavra final. (...) E é Salazar quem baptiza o episódio: “Recebi a carta de V. E.ª de 12 em que explica o que chamaremos, para simplificar, o caso Béjart, visto pela Fundação Gulbenkian”(8). E aponta-lhe a politização do caso: “Quando V. Ex.ª em Outubro de 1967 apreciou em Bruxelas Romeu e Julieta, o bailado já era o que era; mas entre essa data e a apresentação em Lisboa verificaram-se em França acontecimentos graves de todos conhecidos. E deu-se o caso estranho de

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que a ocupação da Sorbonne pela massa estudantil foi precisamente feita durante muitos dias ao som do estribilho – faites l’amour, pas la guerre –; e as nossas informações são de que, com a insistente repetição do mesmo estribilho, foi também ocupada e pilhada a Residência com que a Fundação Gulbenkian generosamente presenteou a Universidade de Paris”. A 19 de Junho, o presidente da Fundação responde a Salazar. É um Azeredo Perdigão que se tem multiplicado por várias frentes na gestão da conduta a adoptar perante contextos políticos tão complexos como os que deram origem à ocupação, em Paris, da Casa dos Estudantes Portugueses em França entre 22 de Maio e 12 de Junho, e o próprio “caso Béjart” no Coliseu de Lisboa a 6 deste último mês. (...) Azeredo Perdigão releva o desafio de Salazar nesse ponto particular e, coerentemente com todo o seu comportamento durante a ocupação da Casa dos Estudantes Portugueses em Paris, separa-se de qualquer confusão entre a Fundação e a contestação ao regime político em Portugal e evita qualquer sinal de solidariedade para com este. Assim, Azeredo Perdigão, depois de citar a passagem da missiva de Salazar em que este se refere aos acontecimentos de Maio de 1968 na Sorbonne e declara ter sido ao som insistente e repetitivo do estribilho Faites l’amour, pas la guerre que a MEP (Maison des Étudiants Portugais) fora ocupada e pilhada, afirma categoricamente, contrariando as “informações” do presidente do Conselho: “Salvo o devido respeito, V. Ex.ª está mal informado, como posso demonstrar-lhe com provas irrefutáveis no que toca à ocupação da Residência; ora, o que se passou nesta foi, com a mesma gravidade, o que se passou na Sorbonne. Não foi aos gritos Faites l’amour, pas la guerre, que os invasores dos referidos edifícios os ocuparam e destruíram, ou roubaram o melhor do seu recheio. (...) As palavras que inspiraram os revoltosos – estudantes e operários, nacionais e estrangeiros, onde não faltavam emigrados políticos portugueses – e que eles, associados no mesmo movimento, gritavam quando enfrentavam as forças da ordem, deixaram escritas por toda a parte nos edifícios que ocuparam e pilharam, e se liam em cartazes que afixaram profusamente nas respectivas paredes, não foram Faites l’amour, pas la guerre, mas outros estribilhos, outras máximas, não de paz e amor, mas de guerra total, proclamados pelos corifeus do comunismo, como Che Guevara, Mao-Tse-Tung, Lenine e tantos outros(9)”. Não contente com essa descrição, em tudo contrária à amalgama que Salazar insinuara entre o espírito da juventude que ocupou a MEP em Paris e a frase “derrotista” no bailado Romeu e Julieta de Maurice Béjart, Azeredo Perdigão, para desmentir as afirmações de Salazar, aproveita as fotografias que a Fundação mandara tirar por alguém que depois, com o desprazer manifesto do seu presidente, as publicará no jornal conservador francês L’Aurore e no português Diário de Notícias, com evidentes propósitos de escândalo (...). E entre as pichagens e slogans lá estão muitas frases particularmente dirigidas pelos ocupantes da MEP contra o regime de Salazar como esta que

Perdigão transcreve na lista que apresenta por carta a Salazar: “Hoje, 22 de Maio de 1968, nós, trabalhadores e estudantes revolucionários, declaramos esta Casa primeiro território livre de Portugal(10)”. (...) Um dos ocupantes da Maison des Étudiants Portugais (MEP) que a Gulbenkian havia construído e custeado para albergar estudantes na cidade universitária de Paris, sita ao Boulevard Jourdan, como uma das contrapartidas para a completa transferência das obras de arte de Calouste Gulbenkian para Portugal, escreverá mais tarde um livro de memórias em que relata o acontecimento num sentido muito próximo do que Azeredo Perdigão entendeu na altura estar a passar-se: “[…] decidimos ocupar, por nosso lado, a Casa de Portugal. É verdade que esta não era propriedade do Estado Português, mas sim da Fundação Calouste Gulbenkian que, evidentemente, ninguém pretendia hostilizar. Todavia, naquele contexto, era a Casa de Portugal que tínhamos, fosse ela de quem fosse, e o simbolismo da nossa acção parecia-nos unívoco: era o regime que visávamos (11).” E Azeredo Perdigão, que jamais pretendera atiçar a repressão sobre os ocupantes da Casa, apesar de toda uma série de relatórios que vão nesse sentido, inclusive com propostas de retirada de bolsas e subsídios aos estudantes mais favoráveis aos ocupantes, dá-se por satisfeito com a evacuação das instalações que ocorrerá a 12 de Junho, praticamente em cima das sequelas do “caso Béjart”. Em ambas as situações Azeredo Perdigão não se quer confundir com o comportamento das autoridades salazaristas. (...) O “caso Béjart” terá ficado por aqui em termos da esgrima entre estas duas figuras determinantes da sociedade portuguesa da época, que se entenderam especialmente durante a fase genética da Fundação Gulbenkian. Entre Oliveira Salazar e Azeredo Perdigão a admiração e o respeito mútuos eram genuínos, mas também implicavam um pacto de não-agressão entre ambos. O modo como as autoridades salazaristas lidaram expeditivamente com o “caso Béjart”, quer ao expulsarem o coreógrafo quer ao publicarem a Nota do SNI, acusando a Fundação indirectamente de patrocinar espectáculos de índole “derrotista” num país em plena guerra colonial, quebrou esse pacto. (...) Nenhum sabia que esse seria o último diálogo entre dois beirões singulares que se impuseram, cada um à sua maneira, em Lisboa, em Portugal e no estrangeiro. Três meses depois Salazar cairia da cadeira no forte de Santo António, em S. João do Estoril. Já será com Marcelo Caetano como presidente do Conselho que o episódio Béjart voltará ao Conselho de Administração da Fundação Gulbenkian, sendo que depois do 25 de Abril o Ballet du XXième Siècle voltará a Portugal para a continuação dos aplausos interrompidos em Junho de 1968.

José Medeiros Ferreira in Fundação Calouste Gulbenkian. Cinquenta Anos, 1956-2006. António Barreto (org). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007 (pp. 119 – 131)

(1) Carta de Azeredo Perdigão a Oliveira Salazar, datada de 12 de Junho de 1968. IAN/TT, AOS/CP-211, 6.1.4./13, fls. 362. (2) Nota do SNI tornada pública pela rádio e televisão no dia 8 de Junho de 1968, e pelos jornais no dia 9. (3) A carta, datada de 9 de Junho, encontra-se transcrita na Acta n.º 92 700 do Conselho de Administração, de 12 de Junho 1968 – Arquivo da Fundação Calouste Gulbenkian, Actas do Conselho de Administração, 1968. (4) Carta de Azeredo Perdigão datada de 12 de Junho de 1968, também transcrita na Acta do Conselho de Administração da Fundação n.º 92 700. cfr. AOS/ CP-211, 6.1.4./13 e Arquivo da Fundação Calouste Gulbenkian, Actas do Conselho de Administração, 1968. (5) Idem. (6) Arquivo da Fundação Calouste Gulbenkian, Livro de Actas do Conselho de Administração, Acta n.º 93100 de 25 de Junho de 1968. (7) Idem. (8) Carta de Salazar dirigida a Azeredo Perdigão; datada, com rasura. Lisboa, 15 de Junho de 1968. (9) (127) Carta de Azeredo Perdigão ao presidente do Conselho Oliveira Salazar, 19 de Junho de 1968, IAN/TT, AOS/CP-211. (10) Idem. (11) Fernando Pereira Marques, A Praia sob a Calçada — Maio de 68 e a Geração de 60. Lisboa, Âncora Editores, 2005, p. 119.

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Fim de cinema, fim de revolução texto Francisco Valente

O amor de 68 e a desconstrução de um sentimento: no cinema de um movimento ainda por definir, Jean-Luc Godard antecipou-se, de novo, ao seu próprio tempo, juntando as ideias e as imagens que iriam anunciar, um ano antes, o Maio de 68, com La Chinoise e Weekend. Se ainda hoje olhamos para nós e nos perguntamos o que ficou do Maio de 68, olhamos para o cinema actual e fazêmo-lo ainda mais. Onde colocamos um cinema interventivo, uma reflexão em grupo de espírito libertário, entregue a si própria e ao seu desejo de existir por imagens e rostos políticos (ou politizados)? O cinema de autor, defendido pelos cinefilhos da Nouvelle Vague, e a imposição das imagens do seu cineasta-indivíduo, compactuariam com a abdicação do seu egoísmo formal para uma nova vida, agora construída para os outros? No surgimento dessa ideia, uns abordaram-na, outros usaram-na sem querer vesti-la, não ousando, no fim, passar da ficção para a realidade. A própria Nouvelle Vague, os seus caminhos e consequentes produtos seriam, talvez, a primeira tentativa e paradoxo do trabalho de um grupo a favor dos desejos individuais. Na ficção de um amor e no fim da sua festa em L’Amour Fou (1969) de Jacques Rivette, a sua permanente teatralização da vida e o retrato dos seus dias como palco para um ideal (o amor, a sua violência muda e sem compromisso); na prostituição egocêntrica a uma terrível indiferença em La Maman et la Putain (1973) de Jean Eustache, o seu vómito final como aceitação de um individualismo perdido (como nos falhamos a nós próprios depois de amar todos os outros); ou ainda, mais tarde, por Les Amants Réguliers (2005) de Vincent Garrel, última e recente prova do desabar de uma paixão que foi 68, da luta que foi vivê-la entre o amor a um grupo e o desejo de se seguir um próprio caminho, afastando-nos invariavelmente de tudo o que projectávamos ser, deixando a vida dessas imagens para a permanência do nosso cinema. Contudo, poucos a estudaram e, sobretudo, intuiram o seu (próprio) falhanço, apesar de seduzidos, com a mesma frontalidade que caracteriza, afinal, a postura de um certo autor: Jean-Luc Godard. Um ano antes de Maio, já Godard tinha mudado o seu cinema para o terreno: os subúrbios de Paris, bairros operários e centros de produção, vivendo lado a lado com o ponto de partida para 68 – a Universidade de Nanterre e os seus núcleos de filosofia e ciências humanas. Godard entra nos grupos, participa nas reflexões, vive entre jovens e operários, entre os quais a estudante de filosofia Anne Wia-

zemsky, sua actriz e futura mulher, e num gesto rosselliniano, coloca a sua câmara entre os dois, criando o cinema de uma reflexão, um making-of permanente, idealista e falhado de uma revolução em construção – La Chinoise. Um gesto que anuncia a explosão que foi 68: a juventude, a marginalização e a separação tanto emocional como laboral de uma sociedade, o desejo de recomeçar e fazer tábua-rasa de um país em crise de identidade (“a França, em 67, parece-se um pouco com talheres por lavar”, ouve-se nos diálogos), de juntar as ideias vagas de uma discussão às imagens claras do cinema, e assim passar do teatro da reflexão para o ano zero de uma vida revolucionária. No fim, o abandono da casa-cenário do filme para um Verão que se anuncia, uma porta aberta pelos jovens, o novo proletariado, mas já ocupada e repintada por estranhos burgueses, sinal de uma impossibilidade já defendida nas palavras de Francis Jeanson, anunciando o fracasso de uma revolução sem povo. Ainda em 67, surge Weekend e um dos seus filmes mais pessimistas – “fim de cinema”, como se anuncia no seu final, retrato falso e sempre desconstruído (“fauxtographie”) de uma sociedade em ruptura, absolutamente individualista e entregue ao artifício. Um casal assassino, como todos os outros, que se entrega à estrada para uma viagem sem rumo, passando por carros destruídos pelo fogo, corpos manchados de sangue, gritos de salvação por uma mala Hermès, um abismo retratado pelos restos de uma sociedade. A câmara de Godard abandona o que restava do seu idealismo e deixa de filmar – destrói a própria imagem; avança pela estrada como que abandonando a França Gaulista, dedicando leituras e discursos às lutas revolucionárias e seus guerrilheiros estrangeiros (o árabe e o africano, o Vietname e as colónias). Um filme “encontrado na sucata”, anunciando o fim de um cinema e o princípio de uma nova reflexão política para Godard, já assumidamente marxista-leninista, rejeitando produtores, o capital e o seu nome internacionalmente reconhecido, para criar o grupo Vertov e assim fugir à sua própria identidade. Tarefa impossível, idealista, visionária e absolutamente contraditória, tal como Maio, tal como Godard. Uma ideia de cinema e sociedade, como uma ficção que nos aproxima da realidade.

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O Maio de 68 em música

A revolução em imagem

texto David Sanson

texto Francisco Valente

“69, année érotique”, cantavam maliciosamente Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Que poderiam ter dito de 68: ano utópico, ano político? Também no domínio musical, é certo que o Maio de 68 coincide com uma série de acontecimentos que irão deitar abaixo os códigos que vigoram na época. Na música erudita, trata-se da época em que compositores como Luigi Nono, na Itália – com o seu famoso Musica Manifesto n.° 1, fresco electro-acústico sobre os estudantes de Maio de 68 – ou Hans Werner Henze, na Alemanha, radicalizam as suas posições e aproximam-se dos movimentos revolucionários: o primeiro ao apresentar-se em fábricas com os seus cúmplices Claudio Abbado ou Maurizio Pollini; o segundo ao ligar-se ao comunismo, indo depois compor obras para a glória do regime de Fidel Castro, ou ainda criar, nos anos 70, o Festival de Montepulciano, onde encena óperas junto da população desta vila da Toscânia… Para os compositores “eruditos”, paradoxalmente, o período do Maio de 68 coincide com um outro de libertação na linguagem musical. Neste domínio, a revolução já tinha acontecido nos anos 50: a década seguinte verá, desta forma, alguns criadores emanciparem-se do dogma proferido pela vanguarda de Darmstadt: com Stimmung, Stockhausen traça um regresso à tonalidade, enquanto que Berio (com Sinfonia) ou Ligeti (com Continuum) vêem a sua inspiração evoluir em profundidade. Ao mesmo tempo, e do outro lado do Atlântico, La Monte Young, Terry Riley, Steve Reich e Philip Glass estão a criar as bases do que se chamará o minimalismo: é de 1968 que data a criação de Glass do seu conjunto de orquestra com instrumentos amplificados. É ainda a época, no domínio do jazz, onde Albert Ayler, Ornette Coleman e Sun Ra se libertam das sintaxes conhecidas… Mas é sobretudo na cena da música popular que estes movimentos são mais fortes: um ano antes de Woodstock, músicos como Jimi Hendrix, Janis Joplin, os Beatles (com o famoso White Album), os Rolling Stones, Frank Zappa ou os Led Zeppelin vão dar-nos a banda sonora ideal para estes anos, uma música que oscila entre o sonho e a realidade, entre a reivindicação política e as fugas psicadélicas. Hoje em dia, é sobretudo nas cenas rap e slam que se deve procurar, em França, a herança destes movimentos contestatários. O slam, em especial, posto em destaque pelo Canal 93, a dinâmica sala de espectáculos de Bobigny. Com as noites “On l’ouvre on slam”, organizado nas salas do Museu do Louvre, o Canal 93 propõe, a 17 de Abril, uma noite de concertos sobre o tema “insurreição” (à volta do quadro epónimo de Eugène Delacroix); depois, em Abril e Maio, ainda em Bobigny, uma criação do guitarrista e compositor Marc Ducret, assim como temas compostos por grupos de Seine-Saint-Denis sobre o Maio de 68 que virão rebentar com a maneira como, 40 anos depois, essa herança ainda permanece viva. Em colaboração com o Canal 93, propomos ouvir no site www.canal93.net e na nossa página do Myspace (www.myspace.com/revistaobscena) uma playlist que retraça a banda sonora do ano de 68, assim como algumas contribuições deste ciclo de acontecimentos (tendo ainda como parte um colóquio organizado pela University of London in Paris).

Para se sentir 68, as imagens do mês de Maio revelam-se essenciais: Paris em estado de sítio, milhares de pessoas nas ruas entoando os jovens slogans libertários, por vezes políticos, por vezes poéticos, os rostos da velha guarda passiva e dos seus filhos e netos que constroem a sua geração. Em 2008, uma pesquisa por traços documentais das ruas de Paris leva-nos aos arquivos da Internet, onde se juntam memórias, cartazes, fotografias e vídeos de época (ou as tradicionais montagens do Youtube), que por vezes pouco nos dão para além de uma amostra desvirtuada desses dias. Assim, o diário francês Libération e o Instituto Nacional do Audiovisual Francês (INA) juntaram-se para criar “Mai 68, la révolution en images” (http://mai68.ina.fr), sítio que parte das imagens do arquivo nacional de França para uma análise construtiva do movimento social e político que mudou o país, assim como do seu contexto internacional e dos vários focos de mudança do mundo na época. Aqui as imagens de 68 dividem-se em quatro grandes secções: “Chroniques”, onde se espalham reportagens, comentários e análises à imprensa da época (entre acções de propaganda gaulista e modestas peças sobre as movimentações políticas internacionais: os residentes “pacíficos” de Nanterre, a vida “comum” dos CRS, Robert Kennedy e as agitações de Praga); “Sélections”, focada no tratamento das imagens e notícias em montagens cinematográficas (feitas para os folhetins noticiosos antes da projecção dos filmes nas salas parisienses), demonstrador do crescimento da agitação local mas sem a objectividade que lança o olho crítico; “Dossiers”, uma inserção do Maio de 68 num contexto internacional, lançando-o para os dois grandes pólos da Guerra Fria – o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos da América e os ventos de liberdade que se ouvem na Praga Soviética; e por fim “Découverte”, o Maio de 68 francês despido e dissecado em todos os seus pontos – a paralização do país, a gestão do conflito pelo governo, o uso da televisão pelo poder, as grandes figuras sindicais, estudantis (o ultra-carismático Daniel Cohn-Bendit e suas entusiastas intervenções) e políticas (notando-se a ausência fotográfica – e quase política – do Presidente De Gaulle), a divisão das esquerdas (Pierre Mendès-France, o já presente François Mitterrand), as suas inúmeras manifestações (tanto de esquerda como de direita), e a janela que abriu para o mundo. No fundo, imagens que nos expõem, finalmente, os vários cenários de 68, entrando pelos seus bastidores, tocando nos seus pontos de maior fricção (e da possível viragem revolucionária), descriptando as suas tendências ideológicas, sindicais, e o choque final da vitória gaulista, também de curto prazo. Um olhar inteligente, transparente e crítico de uma época, no fundo, profundamente inspirada, essencial para se compreender, nos dias de hoje, as lutas políticas e pessoas de 68, ainda hoje assentes em manobras políticas e audiovisuais bem contemporâneas. Uma imagem do que foi, do que teria sido, do que ficará sempre por se mostrar, invertendo o olhar da televisão e virando-a para si própria.

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Ecos celebratórios

ARRITMIA

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texto Elisabete França

Também em Portugal, mais precisamente em Lisboa, são evocados os acontecimentos do Maio francês de há 40 anos, numa série de iniciativas, incluindo colóquios e filmes, promovidas em conjunto pelo Instituto Franco-Português (IFP), o Instituto de História Contemporânea e Le Monde Diplomatique (edição portuguesa). A efeméride é ainda contemplada, lateralmente, no âmbito dum grande ciclo de cinema dos anos 60 – a década em que proliferaram as novas vagas, os então chamados cinemas novos, do Brasil ao Japão, de Portugal à Alemanha, sob impulso da Nouvelle Vague francesa –, programado pela Cinemateca (8 de Maio a 31 de Julho), com edição do catálogo respectivo. As comemorações entre nós já arrancaram, aliás, com a realização dum colóquio internacional no IFP, nos passados dias 11 e 12, “para detecção do que persiste do Maio de 68 na actualidade”, como fora esclarecido em conferência de imprensa no local. Além deste colóquio – para o qual se anunciava, ao fecharmos esta edição, a presença de especialistas participantes como Anselm Jappe, Judith Revel e Yann Boutang, ou Fernando Rosas e Manuel Villaverde Cabral pelo lado português. As mesmas entidades promoverão um outro colóquio subordinado ao Maio de 68 – e Portugal? - na Fundação Mário Soares (28 de Maio, às 10.00), cenário igualmente duma exposição de cartazes (22 de Abril a 29 de Maio, das 14.30 às 19.30). Maio de 68 no Cinema, o ciclo organizado pelo IFP, a decorrer na semana de 5 a 9 de Maio, inclui uma dúzia de títulos (alguns de visionamento muito raro e quase todos inéditos entre nós), a exibir em duas sessões diárias no auditório do instituto (às 19.00 e 21.30). A ideia é proporcionar «a descoberta de filmes realizados em 68 ou que oferecem um olhar pertinente sobre a época», segundo foi sublinhado pelos organizadores. A cafetaria do IFP associa-se aos festejos com pratos franceses rebaptizados por slogans de Maio 68, tais como “Faites l’amour et recommencez”. A programação abrange ainda um concerto pela Kronstandt Big Band, na tenda da Fábrica de Braço de Prata, em Lisboa (17 de Maio, às 22.30).

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No mundo que foi 68, cruzam-se intervenientes de várias esferas, gerações e classes sociais: no activismo, na política, nas artes, na filosofia. O Maio de 68 também gerou uma forte e militante inspiração artística, seguindo a discussão de ideias e o choque sobre as visões do mundo que lançou o movimento. Luís Jerónimo e Miguel Magalhães sugerem um guia de pensamento.

Selecção de Luís Jerónimo e Miguel Magalhães

um esquema do Maio de 68

A possibilidade de uma ilha

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1. Les Héritiers, les étudiants et la culture, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Les Éditions de Minuit, 1964 2. La Societè du Spectacle, Guy Debord, Gallimard, 1967,1996 3. La révolution introuvable – réflexions sur les évènements de mai, Raymond Aron, Fayard, 1968 4. Memórias, Raymond Aron, Guerra e Paz, 2007 (cap. 18) 5. Critique de la raison dialectique, Jean-Paul Sartre, Gallimmard, 1960,1985 6. Capitalisme et schizophrénie. L’anti-Oedipe, Gilles Deleuze et Felix Guattari, Editions de Minuit, 1972 7. Sorbonne 1968 Graffiti, Editions Verticales, 2008 8. Le Mouvement de mai ou le communisme utopique, Alain Touraine, Paris, Éd. du Seuil (“L’Histoire immediate”), 1968. 9. Lettres à une étudiante, Alain Touraine, Seuil-Points, 1974 10. Le pouvoir est dans la rue, Danielle Tartakowsky, aubier, 1998 11. Sophisticated Rebels: The Political Culture of European Dissent, Stuart Hughes, 1968-1987 (Studies in Cultural History) 12. Revolutionaries, E. J. Hobsbawn, Meridian, 1973 (cap. 24) 13. 1968 Magnum Throughout the World, E. J. Hobsbawn, Distributed Art Publishers, February 1998 14. La Sorbonne par elle-même: Mai-Juin 1968, Jean-Claude Perrot, Michelle Perrot, Madeleine Rebérioux e Jean Maitron (orgs.), Editions Ouvrières, 1968 15. Guy Debord and the Situationist International: Texts and Documents, “http://www.amazon.com/exec/obidos/search-handle-url?%5Fencoding=UTF8&searchtype=ss&index=books&field-author=Tom%20McDonough” Tom McDonough (October Books), The MIT Press, April 1, 2004) 16. Sous les pavés, la répression, Maurice Rajsfus, Cherches Midi, 1998 17. Le gauchisme remède à la maladie sénile du communisme, Daniel Cohn-Bendit et Gabriel Cohn-Bendit, Editions Seuil, 1968 18. Le Grand Bazar, Daniel Cohn-Bendit, Pierre Belfond, 1975 19. 1968-2008: Faut-il liquider L’esprit de Mai?, Daniel Cohn-Bendit, Monde en Cours, 2008 20. Baden 68 - Souvenirs d’une fidélité gaulliste, Général Massu, Plon, 1983 21. May 68 and Film Culture, Sylvia Harvey, BFI Publishing, 1980 22. The Zanzibar Films and the Dandies of May 1968, Sally Shafto (www.cine-memento.fr/sallyshafto-a-149708.html) 23. May 68: Coming of Age, D.L. Hanley, A.P. Kerr, MacMillan, 1989 24. Paris ‘68: Graffiti, Posters, Newspapers and Poems of the May, Marc Rohan, Impact Books Ltd, 1988 25. Interdit d’interdire! Slogans et affiches, Mai 68, L’esprit frappeur, 2005 26. La Littérature et le mouvement de mai 68, Patrick Combes, Seghers, 1984 27. When Poetry Ruled the Streets, Andrew Feenberg, SUNY Press, 2001 28. La Pensée 68. Essai sur l’anti-humanisme contemporain, Luc Ferry, Alain Renaut, Gallimard, 1988. 29. Logics of Failed Revolt: French Theory After May ‘68. Peter Starr Stanford University Press, 1995 30. May ‘68 and Its Afterlives. Kristin Ross University of Chicago Press, 2002 31. Prelude to Revolution: France in May 1968 (Radical Sixties). Daniel Singer. South End Press, U.S.; 2nd Edition, 2003 32. Beneath the Paving Stones. Situationists and the Beach, May ‘68: Situations and the Street, May 1968, Dark Collective AK Press, 2001 33. The Situationist City, Simon Sadler, MIT Press, 1999 34. The Beginning of the End: France, May 1968, What Happened, Why it Happened, Angelo Quattrocchi, Tom Nairn, Verso Books, 1998 35. From Revolution to Ethics: May 1968 and Contemporary French Thought, Julian Bourg, McGill-Queen’s University Press, 2007 36. 1968: The Year That Rocked the World, Mark Kurlansky Vintage; New Ed edition, 2005 37. The Year of the Barricades: a Journey Through 1968, David Caute, HarperCollins; 1st edition, 1990

O epíteto de psicodrama atribuído por Raymond Aron aos acontecimentos de Maio de 68 contrasta com as entradas de Miguel Torga no seu diário (“O cataclismo, agora, é sísmico. O que dantes acontecia em superfície, processa-se no presente em profundidade. A juventude não pretende melhorar, acrescentar ou superar o que está; quer destruí-lo, simplesmente, e começar de novo. Total demolição e total disponibilidade. O que só dá esperança”; entrada de 30 de Maio de 1968, Diário X ). É um contraste que ilustra bem a divisão provocada por esses acontecimentos e que perdura até hoje, como o comprovam recentes afirmações do dramaturgo Tom Stoppard ou de Nicolas Sarkozy. Para melhor compreender estes acontecimentos há dezenas de obras que, pela antecipação teórica, pela descrição ou análise dos factos ocorridos ou que espelhando as consequências teórico-filosóficas, sociais e políticas cobrem praticamente todas as dimensões do Maio de 68. Há também inúmeros arquivos digitais consultáveis online.

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Bibliografia. Maio de 68 Selecção de Luís Jerónimo e Miguel Magalhães

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Filmes 1. Jean-Luc Godard, Alphaville. Une étrange aventure de Lenny Caution (1965) 2. Jean-Luc Godard, Masculin Féminin: 15 faits précis (1966) 3. Jean-Luc Godard, La Chinoise (1967) 4. Jean-Luc Godard, Weekend (1967) 5. William Klein, Qui êtes-vous, Polly Magoo? (1966) 6. William Klein, Grands soirs et petits matins: 1968-78 (1978) 7. Alain Robbe-Grillet, Trans-Europ-Express (1966) 8. Eric Rohmer La Collectionneuse (1967) 9. Dziga Vertov – grupo fundado em 1968 por Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. Filmes atribuídos ao Dziga Vertov Group: Un Film comme les autres (1968), British Sounds/See You At Mao (1969), Pravda (1969), Le Vent d’est (1969), Luttes en Italie (1969), Jusqu’à la victoire (1970), Vladimir et Rosa (1971), Tout va bien (1972), Letter to Jane (1972) 10. Zanzibar Group – entre 1968 e 1970 um grupo de realizadores, técnicos e actores formaram o Zanzibar Group filmando 13 filmes, muitos dos quais já não existem, hoje sob o patrocínio da mecenas Sylvina Boissonnas. O grupo incluía Philippe Garrel, Serge Bard, Patrick Deval, entre outros. 11. Guy Debord, La Societè du Spectacle (1973) 12. Bernardo Bertolucci, The Dreamers (2003) 13. Philippe Garrel, Les Amants Regulières (2005) 14. Jorge Durán, Proibido Proibir (2007)

Recursos on-line 1. Marxists Internet Archive sobre o Maio de 1968 com extractos de jornais, manifestos, entre outros. “http://www.marxists.org/history/france/may-1968/index.htm” http://www. marxists.org/history/france/may-1968/index.htm 2. Arquivo da Simon Fraser University, Canada “http://edocs.lib.sfu.ca/projects/mai68/” http://edocs.lib.sfu.ca/projects/mai68/ 3. A colecção da SFU, por tipo de documento “http://www.lib.sfu.ca/cgi-bin/edocs/Mai68?BrowseBy=Category” http://www.lib.sfu.ca/cgi-bin/edocs/Mai68?BrowseBy=Category 4. A colecção da SFU, por autor “http://www.lib.sfu.ca/cgi-bin/edocs/Mai68?BrowseBy=Author” http://www.lib.sfu.ca/cgi-bin/edocs/Mai68?BrowseBy=Author 5. Arquivo do movimento comunista em França 68-72 “http://archivescommunistes.chez-alice.fr/gp/gp.html” http://archivescommunistes.chez-alice.fr/gp/gp.html 6. Arquivo da Internacional Situacionista “http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/situ.html” http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/situ.html

38. Mai 68 expliqué à Nicolas Sarkozy, André Glucksmann et Raphael Glucksmann Denoël, 2008 39. Mai 68, l’heritage impossible. Jean Pierre Le Goff, François Geze, Editions La Découverte, 2002 40. Mai 1968: La révolte en images, Laurent Chollet, Michel Le Bris, Hors Collection, 2007 41. La France en 1968, Jean-Louis Marzorati, Serge July, Hoëbeke, 2007 42. Joyeux anniversaire! The May 68 industry, Keith Reader Modern and Contemporary France, vol. 8, no. 2, 2000 43. Mai 1968: Révolution ou psychodrame? Claude Fohlen, Presses Universitaires de France, 1973 44. Les Années orphelines 1968-1978, Jean-Claude Guillebaud, Seuil, 1978 45. Mai 68 à l’usage des moins de 20 ans, Babel, 1998 46. Une révolution du XXe siècle. Les journées de Mai 1968, Jean Bloch-Michel, Laffont, 1968 47. Mai 68 ou l’imagination au pouvoir, Bruno Barbey, Editions de Différence,1998 48. Chroniques de Mai 68, Mavis Gallant, Rivages, 1998 49. La Révolution par elle-même: Tracts révolutionnaires de la crise de mai à l’affaire tchécoslovaque, Simon, Jean-Pierre (éd.). Paris, Albin Michel, 1968, 230 p. 50. Les Communistes ont peur de la révolution: Le “j’accuse” de Jean-Paul Sartre, Sartre, Jean-Paul, Paris, John Didier, coll. “Controverse”, Paris, 1968, 64 p. 51. Quid: Les Dossiers de l’histoire, Nanterre, la révolte étudiante, Les barricades, Les grèves ouvrières, De Gaulle dissout l’assemblée, Grenelle bilans, n° 1, 1968 (rééd. Quid, 1987, 360 p.) 52. Mai 68, un souvenir de bonheur, André Comte-Sponville, Psychologies Magazine, Mai 1998 53. Les Jeunes et la contestation (avec un entretien avec Herbert Marcuse), Paris, Robert Laffont-Grammont, coll. “Les grands themes”, 1976, 144 p. 54. Diário X, Miguel Torga, Coimbra Editora, 1968

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apresenta frequenusch a Portugal, onde se Ba a Pin de so res reg eógrafa ter ala mais um dez anos depois de a cor Este mês de Maio assin rre oco ch us Ba a Pin al amente, este Festiv dossier que explora temente – mas, simbolic a sua companhia. Num com a, bo Lis de e ad cid se torno da ssa peça, mas também criado Masurca Fogo, em recorda-se a recepção de es, ad cid as ra com pa to mã tex ale nos de pre a relação da coreógrafa har. Pina Bausch servesen de a a raf eóg cor a er ek es estará Anne Teresa de Keersma reflecte sobre que cidad que a coreógrafa belga os an z de há m Lisbon bé e Th tam amou-se marcar dois eventos: foi panhia que não a sua. Ch com tra ou a um ra pa ça . Ainda, publi, uma pe nca mais se apresentou criou, pela primeira vez nu e do ila Ba de l na cio a Companhia Na toria da nossa Piece, foi concebida para im, de Olga Roriz, da au Alv & io sír As la pe o, içã confrontou recente ed guesa que por vezes se camos uma recensão à rtu po a raf eóg cor da erreiro, a biografia suas relações com a colaboradora Mónica Gu ch. Três coreógrafas e as us Ba de ra ob la pe da assombra com a acusação de ser cidade de Lisboa.

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texto Arnd Wesseman fotografia Alceu Bett

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“Afinal porque é que dançamos?” Esta questão está no início do fenómeno a que os alemães chamam Tanztheater (teatro-dança). A representante maior deste fenómeno chama-se Pina Bausch. Depois de dois anos em Nova Iorque, então uma arrebatadora sílfide lírica e uma dançarina elegante, o seu interesse na altura, finais de 60 na Alemanha, já não é a combinação de passos bem construída, nem a realização virtuosa, ainda que ela própria tenha começado pela dança clássica. Na revolta geral, mesmo contra o ballet, Pina Bausch prefere saber porque se faz este ou aquele movimento e o que é que ele pode transmitir. Então regressa ao essencial, como o seu professor Kurt Joss, com quem ela estudara na Escola Folkwang no estado de Essen. Um palco. Em frente o público, que ela de bom grado quer incluir também. Os dançarinos conversam com os espectadores, andam pelas filas de cadeiras e oferecem chá e café. Esta é a sua (e também americana) Re-Visão (Revue-Vision) de um teatro que comunica. Que não dança apenas, mas também canta, fala, ri, grita e conta piadas – algo que Kurt Joss também desejava; em 1969 ela assume a direcção do Folkwang Ballet, para depois, a partir de 1973 e até aos nossos dias, dirigir o Wuppertaler Tanztheater.

“O que é o teatro-dança?” A questão põe-se-lhe quando chega a Wuppertal. A partir daí alarga-se a todo o mundo. A resposta é simples. É dança no teatro. É dança que não existe para a música nem para a tradição clássica da Dance d’école, que não segue qualquer fim absoluto neo-clássico, mas que é aquilo que o teatro deve, sobretudo, ser: a arte do instante. É agora, aqui e algo que provém destes corpos, destas pessoas que estão ali à frente, espalhadas pelo palco. Dançarinos como pessoas – esta foi a sua maior revolução. Lendários são os seus ensaios em que coloca milhares de perguntas aos dançarinos, algumas mesmo muito pessoais, às quais se seguem centenas de propostas de improvisação de forma a trazer os próprios dançarinos para a peça. Ela quer o coração deles, as suas personalidades fortes, reduzindo o seu próprio espaço a uma instância estética de regulação última. Mas o Teatro-dançado não é um aparente laissez-faire, antes pelo contrário, ele é a força da personalidade dos dançarinos – a auto-afirmação do dançarino contra os actores, os músicos, os palhaços, as vedetas e também os comissários, os políticos e todos os que de bom grado apenas se digladiam por um lugar no palco.

“De que se faz o mundo?” Uma boa questão que sempre interessou Pina Bausch. E com a qual ela sempre se enerva um pouco. No tempo da emancipação feminina não havia peça alguma que não gravitasse sempre à volta da mesma problemática homem-mulher. Nestes tempos da globalização são poucos os países que esta patriota filha de um estalajadeiro de Solingen não visitou: Hungria, Brasil, Turquia e ultimamente Índia e China – por todo o lado recolhe imagens, gestos e usos com que depois nos encanta através da sua técnica muito própria, semelhante à montagem de um filme. Assim vai produzindo, ano após ano, peça após peça, um cosmos da agitação humana, do seu movimento, sempre com a sua postura pessoal na voz: “O que me move não é saber como é que o Homem se move, mas o que faz mover o Homem”. Tradução do alemão: Gabriel Fonseca

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Masurca Fogo - Maarten vanden Abeele漏

texto Ant贸nio Pinto Ribeiro

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As cidades de Pina Bausch nunca são realistas, nunca são exclusivamente sobre o mapa da cidade mas contemplam sempre o que pode haver também de universal na singularidade de cada cidade. A História da Dança alemã do século XX está indissociavelmente ligada à história do espaço, do urbanismo, das indústrias e, nomeadamente, das cidades. Isso aconteceu com Mary Wigman, Oscar Schlemmer, Rudolf von Laban – que nos deixou uma notação coreográfica onde a análise e entendimento do espaço é de uma clareza invulgar –, com Susanne Linke, Pina Bausch, etc. Haverá razões históricas: a reconstrução das cidades, a componente de referências urbanas da alta cultura alemã deste século, as vanguardas cinematográficas, da arquitectura, do design, das artes plásticas, e as suas relações privilegiadas e muito focadas na cidade e nas relações entre estas e os seus habitantes. Pina Bausch é o exemplo da coreógrafa que, desde o início do seu trabalho, sempre considerou o espaço da sua criação o espaço urbano por excelência. Mesmo Sagração da Primavera (1975), obra de referência lírica que tinha habitualmente como lugar preferencial da acção o espaço rural, foi com Pina Bausch tomada como obra de tensões sexuais e expressão erótica num espaço que era tudo menos de uma ruralidade óbvia. A partir de então, aquilo que podemos considerar como espaço de eleição para as dramaturgias coreográficas de Pina Bauch e como lugar das suas danças está intimamente ligado à cidade, primeiro em espaços de concentração, focados sobre parte fundamental da vida urbana, depois como que alargando o foco de acção à cidade, às cidades. Para o primeiro caso o exemplo mais notável é Café Müller (1978). Realizada a partir de memórias da sua infância, Café Müller é uma obra configurada ao espírito das danças macabras, de ritos em que a agonia e a proximidade da morte estão presentes. As cadeiras – que se tornam ícones da sua obra – as mesas de café remetem para a iconografia dos cemitérios, para o espaço fúnebre preenchido por uma dança de desalento, por uma dança de apelo, de expressão de perda num espaço social mas onde o encontro é fugaz, temporário, descrente. As interpretações de então, da própria Pina Bauch e de Dominique Mercy, tornaram-se célebres pela capacidade única

de expressão deste desalento num espaço que à partida seria de vocação social e de encontro: o Café. Depois desta obra e intimamente ligada à criação coreográfica para as cidades Pina Bausch criou: Viktor (Roma/1986), Palermo, Palermo (Palermo/1989), Tanzabend II (Madrid/1991), Ein Trauerspiel (Viena de Áustria/1994), Nur Du (Califórnia/1996), Der Fensterputzer (Hong Kong/1997), Masurca Fogo (Lisboa/1998), Wiesenland (Budapeste/2000), Água (São Paulo/2001), Nefés (Istambul/2003) e Rough Cut (Seul/ 2005). É claro que da parte dos encomendadores destas peças há uma vontade de verem as suas cidades serem dançadas pela Companhia desta coreógrafa – hoje aclamada em todo o mundo – embora esteja em crer que na maioria dos casos as obras têm surpreendido esses mesmos encomendadores. Para a coreógrafa este tipo de encomendas é uma forma de assegurar a continuidade de novas produções para uma companhia de dança cujo orçamento anual é elevadíssimo. Mas é para esta coreógrafa, sempre curiosa pela natureza do comportamento humano, sempre atenta aos lugares por onde passa – é uma das criadoras que mais consegue visitar as cidades nos curtos intervalos de tempo (normalmente três semanas) que lhe deixam os ensaios e as entrevistas durante as tournées – um estímulo e matéria das suas dramaturgias coreográficas. Parte da estranheza com que os encomendadores e os públicos das cidades “eleitas” sentem provêm do facto da coreógrafa e os seus colaboradores – o cenógrafo Peter Pabst, os seus bailarinos e o criador da banda sonora – olharem a cidade de um ponto de vista que é diferente para cada cidade e que é sempre particular, singular em consequência do olhar e da teoria privada da coreógrafa sobre o mundo e sobre a dança. O que faz as pessoas mexer, pergunta-se ela permanentemente (neste caso mexer em cada uma das cidades). Os seus espectáculos sobre as cidades nunca são realistas, nunca são exclusivamente sobre o mapa da cidade mas contemplam sempre o que pode haver também de universal na singularidade de cada cidade. Em Lisboa com Masurca Fogo Pina Bausch anteviu, muitos anos antes da actual vaga de atenção ao fenómeno das imigrações, uma cidade multicultural, musical, com fortes traços tropicais, uma cidade afirmativa num espectáculo solar que, para muitos espectadores de então causou perplexidade e, porventura, decepção porque a coreógrafa não lhes oferecia um espectáculo de narrativas angustiantes, porventura para alguns destes espectadores, o ideal para retratar Lisboa triste e fadista. No caso de Nefés, dedicada a Istambul, Bausch continua com um trabalho que associa as acções mais antigas da sua linguagem como a interpelação do público pelos bailarinos, o relato de episódios absurdos, a representação também de outros episódios absurdos e repetitivos – o homem oferece a uma mulher uma bebida e acende-lhe um cigarro, depois deita uma garrafa de água na cara da mulher, e depois repete quatro, cinco vezes esta acção – com acções encontradas ou fabricadas em louvor desta cidade. A cena do banho turco é uma cena de óbvia referência a Istambul, uma chave de entrada mas ver-se-á poucos minutos depois que as portas que a chave abre será para muitas outras cidades, talvez para todas aquelas que existem em cada um dos espectadores.

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Masurca Fogo - Ulli Weiss©

s

texto Cristina Pere

Quando chegou o momento de Lisboa ter o Tanztheater Wuppertal em residência artística com vista a uma criação de Pina Bausch já aqui víramos algumas peças com esse formato de criação. Será que demos por isso? A oportunidade era o Festival Mergulho no Futuro da Expo 98 e Pina Bausch já regressava a uma espécie de “casa”. Depois da primeira vez que pisou um palco português, o da Fundação Calouste Gulbenkian, nos Encontros Acarte de 1989, com a peça Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört, de 1984, a companhia de Pina Bausch foi convidada pela cidade, em Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura, para uma mostra do seu trabalho. O reportório incluía Viktor, o resultado de uma residência na Sicília que, a par de A Sagração da Primavera, de 1975, sublinhava a densidade e dramatismo que podiam, na altura, ser tomados pela principal “marca” da companhia. Mas nada mudara, como nada mudou na “marca”, ainda que hoje em dia se comente a leveza e a respiração que as obras da coreógrafa alemã adquiriram como uma espécie de tendência anémica. Um juízo muito inadequado. A pergunta que se deve fazer é se alguma vez o público menos avisado foi sensível às “cidades” de Pina Bausch, ao modo como a autora organizou as leituras desses elementos difusos que constroem as fortíssimas imagens que a sua dança nos devolve. Na verdade, o método de trabalho não é diferente, apenas é passível de ser impregnado mais directamente pelos elementos dos lugares de residência. De resto, ficará sempre como uma verdade que Der Fenster Putzer, o espectáculo que resultou da residência em Hong Kong, tinha mais

A Lisboa que Bausch viu é maior que a Lisboa que queriamos ter mostrado fado que Masurka Fogo, a peça de Lisboa, ainda que no início dos anos 90 o fado não fosse ainda uma aquisição da world music e gozasse ainda de um cariz local. Qual seria a razão da contrariedade que teve a recepção desta “peça de Lisboa” pelo público de há dez anos? A leitura feita por um estrangeiro desenha-se sempre a partir de uma distância que os indígenas não têm. E Pina Bausch olhou. Olhou para as pessoas, mexeu-se na cidade fora dos “túneis” privados dos seus habitantes que cegam naturalmente para aquilo que não lhes interessa ver fora dos seus movimentos quotidianos. A Lisboa de Pina Bausch é africana e os lisboetas, ou os portugueses, não foram muito disponíveis para reconhecer na profusão de alguidares de plástico coloridos que são manuseados e carregados à cabeça pelos bailarinos – um sinal civilizacional de grande evidência. Ficaram um bocadinho mal dispostos com a imagem de alegre desordem (como se fôssemos organizados!). E nem perceberam por que razão o intervalo do espectáculo estava mergulhado numa festa de mornas cabo-verdianas dançada no ecrã por jovens pares que eram “reproduzidos” por pares de bailarinos distribuídos pelas escadarias do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Aquilo a que um espectáculo sobre “a nossa casa” fica sujeito é a um escrutínio mais apertado por parte de quem tem uma visão parcial de si. Claro que, quando não se reconhece a leitura do outro, o engano é-lhe atribuído porque é mais simples pensar que quem está do lado de fora corre o risco de “não perceber nada”. Pina Bausch percebeu sempre tão bem, ia lá enganar-se com as gentes de Lisboa… Masurca Fogo apresenta-se no CCB dias 7, 8 e 9 de Maio às 21h.

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texto Virgínia Mata

Nefes, a peça que Pina Bausch criou a partir de Istambul, quer evitar o discurso habitual sobre a cidade

Nefes, que em turco significa “sopro”, foi a resposta de Pina Bausch ao que presenciou em Istambul, cidade onde residiu por três semanas em 2002 a convite do Festival Internacional de Teatro. Estreado no ano seguinte, seria a sua nona criação a partir de uma cidade feita de “imagens enigmáticas e inesquecíveis”, como diz Deborah Jowitt no Village Voice. Não faltam as visitas aos hammams, a imponência de Hagia Sophia ou o azul turquesa do Bósforo. A visão “privilegiada” é a de “uma cultura amigável e calma, sem intrusões de tensões políticas ou religiosas”, sublinha a crítica norte-americana. Pina Bausch “prefere a coreografia à dramaturgia, devolvendo-nos a um lugar onde o sopro é expresso através do corpo em vez de pelas cordas vocais dos bailarinos há muito sem fôlego, e onde a dinâmica cinética não se socorre de elementos exteriores à dança”, escreve-se no sítio Dance Insider. “Bausch não está interessada em explorar as relações entre os diferentes meios mas, principalmente, entre um homem e uma mulher através da sensualidade e do movimento”, continua Paul Ben-Itzak.

Já Tobi Tobias, outra crítica nova-iorquina, refere-se à peça como “uma extravagância de Bausch” onde “se procede a uma série de acontecimentos – muitas vezes breves – dos quais está ausente a narrativa, sem personagens (excepto aqueles directamente relacionados com o temperamento dos intérpretes) e uma mensagem clara. Presumivelmente o ponto de ligação é um tema enorme e elástico: como podem homens e mulheres desenvolver uma sedução mútua”. No texto que publicou na página do Bloomberg News, Tobias chega mesmo a falar de contradições na estrutura da peça, que a comprometem. Como em todas as peças de Pina Bausch, sobretudo nestas que se ligam a uma cidade particular, os desejos e expectativas dos espectadores sobrepõem-se ao que a coreógrafa procura. “A sua dança, por mais superficial que seja, surge sempre de algum sítio”, lê-se no blogue Salpetriere. A peça deu origem a um documentário, A Breath with Pina Bausch (Pina Bausch’la Bir Nefes, no original), da autoria de Huseyin Karabey. Escreve-se na sinopse (na qual se pode, aliás, reconhecer Lissabon Wuppertal Lisboa, de Fernando Lopes): “enquanto pares de bailarinos dançam aparentes momentos de improvisação, Bausch escreve no seu caderno e fuma. Intercalado com momentos de ensaio estão cenas da peça, cheias de imagens assombrosamente poéticas que só poderiam ser possíveis em dança. O filme é um tributo justo às semelhanças entre os ensaios e o espectáculo que formam as vidas de bailarinos e coreógrafos”. Nefes apresenta-se no CCB dias 2 e 3 de Maio às 21h.

Daphnis Kokkinos and Ensemble - Ursula Kaufmman ©

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Café Müller - Maarten vanden Abeele ©

ta texto Leonet

Bentivoglio

A história de Café Müller é a história de uma excepção: 40 minutos de duração e seis intérpretes, entre os quais a própria Pina Bausch, que só no Café Müller decide aparecer e dançar em cena. Considerando a longa duração dos espectáculos, o número habitual de bailarinos e, sobretudo, a presença emblemática, protagonística e carismática da própria autora no palco, Café Müller é um trabalho algo insólito no repertório do Wuppertaler Tanztheater. A sua própria génese constitui uma excepção: concebida com grande rapidez, no final de um ano particularmente trabalhoso para Pina Bausch, que nos onze meses antecedentes tinha já elaborado três criações de grande envergadura (Komm tanz mit mir em Maio de 1977, Renate wandert aus em Dezembro do mesmo ano, Er nimmt sie na der Hand… em Abril de 1978), esta obra sintética e fulgurante, destinada a transformar-se futuramente num dos cavalos de batalha do Wuppertaler Tanztheater, nasceu quase ocasionalmente por exigências de cartaz, quando o mesmo bailado foi encomendado a quatro coreógrafos: além de Pina Bausch, Hans Pop (seu assistente), Gerhard Bohner, e o romeno Gigi Caciuleanu. Cada um destes criadores devia inspirar-se numa única cenografia realizada propositadamente por Rolf Borzik, e cada uma das quatro peças propostas tinha o mesmo título: Café Müller. A cena – uma divisão cinzenta com painéis de vidro transparentes e uma grande porta giratória de lado, ao fundo – podia modificar-se segundo o desenvolvimento de cada coreografia. O Café Müller de Pina Bausch era o último da noite: a cena enchia-se de cadeiras e mesinhas escuras, só para este trabalho. Rolf Borzik participava directamente na acção, desviando incessantemente as cadeiras e as mesas que povoavam o palco, retalhando assim espaços livres para as avançadas cegas dos bailarinos. Nos anos que se seguiram à morte de Borzik, este papel foi confiado ao bailarino marroquino Jean-Laurent Sasportes.

PERSPECTIVAS

PINA BAUSCH

A acção é despojada e cortante. Na floresta de cadeiras vazias e gastas, pesa a angústia de uma solidão remota. Pina Bausch recorta-se ao fundo, ligeira e espectral, com uma túnica de tom claro. O passo é curto e incerto, os olhos estão fechados, as mãos estendidas para a frente: vidente sonâmbula, fantasma da consciência de si própria. Levada pelo som dilacerante das árias de Purcell, Malou Airaudo dança movimentos entrecortados, de circularidade suave, e as mesmas sequências são retomadas pela coreógrafa, que faz o papel de duplo, mas com um tempo sempre desfasado: circula às cegas na selva de mesinhas e de cadeiras, que vão sendo retiradas por Borzik, assim traçando o seu percurso. O encontro impossível entre Malou Airaudo (que, após ter-se retirado do Wuppertaler Tanztheater, será substituída por Beatrice Libonati) e o loiro Dominique Mercy permanece um caminho de perseguições e de fugas, de tensões instáveis e abatimentos repentinos. Quando chega a altura do abraço, forte e apertado, intervém o vigoroso Minarik, que separa minuciosamente os dois corpos, que a cada reencontro se separam de novo, numa sequência obsessivamente coerciva, repetida várias vezes num ritmo gradualmente mais veloz. Depois, Dominique e Malou, durante toda a peça, repetirão sempre os mesmos passos, os mesmos movimentos, a mesma fuga infinita de loucas correrias, até atingir uma tensão de extrema violência estereotipada, lançando-se ambos contra uma das altíssimas paredes cinzentas laterais. Pina Bausch permanece a um canto, abatida e distante, num cone de sombra, girando às cegas de vez em quando, ou tropeçando dentro de uma porta giratória. Esporadicamente, uma terceira mulher, Meryl Tankard, com escarpins vermelhos, peruca de caracóis ruivos e vestido azul, único sinal vivo de cor num mundo de larvas, excluída do cinzentismo dominante, entra, alheada, e olha à sua volta: em vão procura comunicar, negoceia inutilmente uma cumplicidade afectiva. Na última parte do espectáculo, o longo casacão escuro de corte masculino, que Meryl Tankard traz pendurado nos ombros, vai passar repentinamente para Pina Bausch, assim como a peruca vermelha irá enfiar-se na sua cabeça: sinais taciturnos e simultaneamente jocosos de uma identidade reencontrada. Café Müller é uma lamentação de amor, uma metáfora doce e inquieta sobre a impossibilidade de um contacto profundo. É um trabalho estruturalmente simples e emocionalmente flagelante, que impressiona pela sua pureza e coerência. A desolação ambiental, o langor fúnebre, a violência da tipificação do relacionamento do casal, constituem todos os elementos de verdade, de absoluta sinceridade expressiva – para além de psicologias ou simbologias e de qualquer tentativa de “realismo”. Todo o significado é confiado ao movimento: aos gestos e à dança. Nesta linguagem interiorizada e vivida, que vem do corpo e aí respira, sem automatismos nem artifícios tecnicistas, Pina Bausch celebra a sua problemática identidade de autora. Café Müller não é apenas uma obra sobre a mortalidade do amor. É também – e sobretudo – a confissão extrema de um estado de crise criativa: Café Müller consagra uma passagem, dramatizando uma tensão de pesquisa que se coloca no plano da interrogação. “Com Café Müller, Pina Bausch também criou o seu Oito e Meio”, foi o comentário de Federico Fellini após ter visto o espectáculo. in O Teatro de Pina Bausch, de Leonetta Bentivoglio, pp. 98-99, Edição Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. Tradução do italiano por Maria José Casal-Ribeiro. Texto gentilmente cedido pela autora e pela Fundação Calouste Gulbenkian

Café Müller estreou a 20 de Maio de 1978 em Wuppertal e apresentou-se, pela primeira vez em Portugal, a 6 e 7 de Setembro de 1994, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito da 8ª edição dos Encontros ACARTE. Em Maio próximo, no São Luiz – Teatro Municipal, peça mostra-se dias 4 e 5 (21h) e 8 e 9 de Maio (18h).

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PERSPECTIVAS

PINA BAUSCH

texto Cristina Peres

Praticamente na mesma altura em que Pina Bausch trabalhava sobre Lisboa, uma outra peça, nunca mais vista em Portugal, olhava para a cidade. Chamaram-lhe literalmente A Peça de Lisboa, à revelia da coreógrafa, Anne Teresa de Keersmaeker. O título The Lisbon Piece ganhou autonomia e antecipou-se à escolha da sua criadora. Há dez anos, Anne Teresa De Keersmaeker não escondia o desagrado pelo facto de o nome da peça com que fazia a sua estreia absoluta na criação coreográfica com vocabulário clássico ter sido escolhido pela força da naturalidade com que as pessoas começaram a referi-la. “É importante nomear as coisas”, dizia-me em entrevista, em Novembro de 1998, no gabinete da direcção da Companhia Nacional de Bailado (CNB) uma semana antes da estreia, irritada pelo facto de a escolha lhe ter fugido das mãos: “Não escolhi o nome. De repente, já estava impresso nos cartazes…”. Ninguém o terá feito propositadamente, mas é justo que Lisboa tenha ficado associada à estreia absoluta de Anne Teresa na manipulação do vocabulário clássico com a primeira criação que fez para uma companhia de reportório, para uma companhia que não a sua Rosas. Sem a relação de Keersmaeker e da Escola P.A.R.T.S. com o então director da CNB, Jorge Salavisa, que leccionava regularmente naquela escola de Bruxelas, e sem a persistência do próprio Salavisa que, ao longo de dois anos, lhe dirigiu um convite igual ao que a coreógrafa recusara formalmente à direcção artística da Ópera de Paris, Lisboa não teria sido o lugar onde se concentrou na altura a atenção internacional do meio. Pode convencionar-se os dez anos de idade de uma peça coreográfica como a sua carta de alforria. Se tiver aquilo que é preciso para tanto, aos 20 anos pode mesmo transformar-se num fenómeno percursor de invenção. O tempo dá-lhe razão: refiro-me aqui à fórmula de estreia – indissociável da sua memória – que The Lisbon Piece teve como parte de um “triple-bill” estreado no Teatro Nacional S. Carlos com Artifact II e In the Middle Somewhat Elevated, ambas do coreógrafo norte-americano William Forsythe. Este foi um programa único (de uma série limitada) na história da CNB que colocou a companhia num circuito globalmente alargado da modernidade. Tivemos muito recentemente a prova disso ao vermos em Lisboa a remontagem pelo Ballet da Flandres da peça integralIn the Middle Somewhat Elevated de queIn the Middle Somewhat Elevated constitui o segundo acto. Na altura da estreia de The Lisbon Piece, In the Middle… já tinha ganho direito a uma singularidade acrescida, dez anos depois, como dança abstracta virtuosa, rigorosa, exigentíssima, ímpar. Dez anos passados, The Lisbon Piece completa uma década e In the Middle… duas! Impressing the Czar transformou-se entretanto – e sem se lhe ter alterado uma frase – num dos mais extraordinários “clássicos” do reportório contemporâneo. E a peça de Anne Teresa? Tem o seu estatuto de independência garantido por uma resolução original da fórmula fixa da coreógrafa flamenga: “dar forma à energia, organizar o tempo e o espaço, olhar

as pessoas, viver com elas, ser sensível às suas emoções” à qual se junta a constatação da sua familiaridade com o vocabulário clássico em todo o seu treino como bailarina. Como quase sempre acontece, e The Lisbon Piece não foi excepção, Keersmaeker fala mais de música que de dança. Esta peça pertence ao conjunto de coreografias em que Anne Teresa se entrega à escuta da música para a organizar em estruturas de movimento que dêem forma a uma determinada energia. Quase todas são assim, excepção passível de ser citada para Bitches Brew/Tacoma Narrows, peça que toma a estrutura de improvisação da peça homónima de Miles Davis. The Lisbon Piece foi criada para cinco bailarinos porque Keersmaeker assumiu não querer fazer uma peça “maior” que isso. As estratégias de composição foram herdadas da sua criação anterior daquele mesmo ano, Drumming, e a energia da peça foi determinada pela percussão: a coreógrafa sustenta que a dança e a percussão têm uma relação de proximidade e imediatez muito particulares. A percussão era da responsabilidade do seu mais antigo colaborador musical, o igualmente flamengo Thierry De Mey, ao qual se juntou Erich Schleicher. O que vemos hoje quando revemos The Lisbon Piece? Tudo aquilo que uma companhia de reportório clássico rejeita quando quer manter um perfil de reportório de cliché balético. Não faz sentido pensá-la independentemente da CNB ou do contexto de programação refrescante que pôde trazer até uma companhia portuguesa (não há mais nenhuma que possa fazê-lo!) duas peças de William Forsythe com bailarinos muito mais que competentes para as interpretar. De um ponto de vista interno à sua estrutura, o frasear da peça organiza a visualização orgânica das complexas alterações da música alinhando sequências de solos, duetos, trios e coros interpretados pelos cinco bailarinos. Inversões de sentido, braços na direcção oposta das pernas, voltas dadas em sentido inverso, andar lateral e paragens bruscas podem parecer elementos comuns a toda a linguagem de Anne Teresa. The Lisbon Piece experimenta, ainda, a estrutura matemática do ballet. Quanto ao resto, não é de mais lembrar que o contexto morreu, muito infelizmente, sem substituição. Em 1998, a Companhia Nacional de Bailado podia parecer “rivalizar” com o reportório do Ballet Gulbenkian e estava em rampa de lançamento para ganhar um espaço na actualidade coreográfica internacional que estava naquele tempo rapidamente para se confirmar. Uma estreia mundial em Lisboa de uma das coreógrafas mais importantes da sua geração, e determinante para a história da dança contemporânea, como Anne Teresa De Keersmaeker – ainda mais em “triple-bill” com dois Forsythes que só os bailarinos da CNB têm treino para dançar – não estou a imaginar que volte a acontecer.

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PERSPECTIVAS

PINA BAUSCH

texto Maria José Fazenda

MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE A OBRA DA COREÓGRAFA

Olga Roriz, um livro da autoria de Mónica Guerreiro, traça o longo, rico e influente percurso de uma bailarina, coreógrafa e professora. Fá-lo, inserindo a sua actividade, quer como estudante quer como profissional, num contexto histórico, político e artístico; evidenciando a constituição e o desenvolvimento da sua linguagem coreográfica num quadro dinâmico, configurado por contributos dados por vários artistas e por diversas influências estéticas a que a criadora se mostrou mais permeável; e diversificando as visões e perspectivas sobre a mulher e a obra, fazendo cruzar múltiplos depoimentos, de amigos, de colegas, de colaboradores, de programadores e de críticos. A recolha ampla de fontes, nomeadamente a compilação extensiva de testemunhos dos que privaram ou colaboraram directamente com a criadora e de interpretações das obras registadas em fontes escritas, como críticas de dança, a identificação de um percurso artístico, a sua contextualização e a determinação da singularidade de um estilo coreográfico são os passos seguidos por Mónica Guerreiro para se conhecer o que designa por “cosmogonia Olga Roriz” (p. 6). O resultado é um livro rigoroso, com uma escrita clara e fluida, não obstante a extensão das citações e dos depoimentos, e de uma grande qualidade ao nível da produção gráfica, com a chancela da Assírio & Alvim. Mónica Guerreiro usa o termo “cosmogonia” não para enunciar uma tese ou defender uma teoria sobre a criação artística ou o universo estético de um criador, mas para se referir, analogicamente, ao que no trabalho de um criador se pode identificar como a sua forma singular de encontrar um sentido, não necessariamente uma explicação, para o mundo – o seu mundo interior, e o mundo exterior, em que o próprio

artista está contido. Daí que Guerreiro considere que “a obra de Roriz não pode ser dissociada da sua vida. As suas peças revelam, de modo despudorado, as suas opções e obsessões pessoais, aquilo que a perturba e entusiasma, e aquilo que vive” (p. 7). Revelações sobre a forma como Olga Roriz se vê a si própria coincidem com opiniões de amigos e colaboradores, que a vêem como uma mulher determinada, forte, firme, terrena, generosa, sensível, emotiva e extremamente crítica. Assim se auto-retrata a própria: “Olga um pedaço de terra. Terra do norte. Meio século já passado. / […] Nas costas carrego a dor do vizinho. No peito um descompassado coração. / […] Nos olhos… Ai, nos olhos tanta vontade desmedida, tanto mimo. / […] Na mente uma incansável guerreira que por fim me há-de matar” (p. 250). Que seja possível fazer corresponder, acto contínuo, traços de personalidade, gostos ou comportamentos de uma pessoa à sua obra, não é algo que se descubra ou defenda de uma penada. É, pois, importante clarificar que não é isso que Mónica Guerreiro pretende fazer. A sua notória persistência em procurar estabelecer estas relações tem o objectivo de fornecer ao leitor elementos que, sem determinismos nem conclusões precipitadas, lhe permitam, com efeito, encontrar elos entre a vida e a obra da criadora e, desde modo, traçar um retrato o mais completo possível da mulher-artista. Esta publicação surge na sequência da sobreposição de três assinaláveis aniversários: o quinquagésimo aniversário de Olga Roriz, a 8 de Agosto de 2005, os trinta anos de actividade profissional da bailarina e coreógrafa e os dez anos passados sobre a criação da sua companhia de autor. Contudo, e apesar da importância destas datas, sobretudo porque a sua comemoração permite tornar presente a relevância de uma artista, para além das componentes simbólicas que as efemérides comportam, Mónica Guerreiro, quando define os objectivos deste volume, adverte, de imediato, que, não obstante o contexto comemorativo em que surge, o livro “não quer ser um livro comemorativo” (p. 7). Porquê não fazer destas circunstâncias o pretexto explícito para concretizar este projecto? À medida que vamos lendo o livro, vamos percebendo que este distanciamento parece ter o objectivo de posicionar a própria autora, na medida em que a liberta da atitude meramente laudatória que, numa obra deste tipo, dela poderia ser esperada. Pelo contrário, Guerreiro não se furta a confrontar diferentes opiniões e perspectivas sobre alguns momentos do percurso artístico de Roriz e sobre algumas das suas obras. Facto que confere um interesse acrescido à obra escrita e revela generosidade e desprendimento por parte da própria Olga Roriz. Os capítulos estão organizados cronologicamente, e em cada um ressalta uma obra considerada representativa de um determinado momento do percurso, demarcado por orientações estéticas, interesses temáticos ou pelo estabelecimento de colaborações artísticas particulares. São 287 páginas pelas quais estão distribuídas 243 belíssimas fotografias. Texto e imagens complementam-se com o intuito de registar “a história que fazia falta contar, sobre a artista e a mulher Olga Roriz” (p.7). Roriz inicia os seus estudos mais formais no campo da dança no Centro de Estudos de Bailado, no Teatro Nacional de São Carlos, nos anos 1960. Frequenta a Escola de Dança do Conservatório Nacional, na década de 1970. Ingressa, no mesmo decénio, no Ballet Gulbenkian, companhia de que se afastaria no início dos anos 1990 para desenvolver o seu trabalho no seio de estruturas de autor – primeiro, na Companhia de Dança de Lisboa e, depois, na sua própria companhia, a Companhia Olga Roriz.

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Nos anos 1980 revela-se uma coreógrafa com uma linguagem própria. Em Lágrima (1983) expõe um movimento coreográfico novo no contexto português, expressivo da contradição, do conflito, da tensão, um movimento com peso, dirigido para a terra. Explora e desenvolve o seu estilo tanto em obras de grupo, em que os coros adquirem uma força telúrica, de que são exemplos Terra do Norte (1985), As Troianas (1985) ou Treze Gestos de um Corpo (1987), como em solos de grande densidade expressiva, tais como Espaço Vazio (1986), Casta Diva (1986), Situações Goldberg (1990) ou Os Olhos de Gulay Cabbar (2000). Com os seus próprios bailarinos, já fora do Ballet Gulbenkian, constrói obras de grupo em que cada corpo é um solo, dimensão artística de que Propriedade Privada (1996), um drama em coreografia, é um exemplo muitíssimo bem sucedido. Um movimento próprio, o uso da palavra, a construção de personagens, a interferência ao nível da dramaturgia de outros elementos constitutivos de um espectáculo, como os figurinos, os cenários, a música, o desenho de luzes, são características que identificam a natureza do trabalho de Roriz. A evidência de tais traços tem feito com que a sua obra seja frequentemente considerada como fortemente influenciada pela obra de Pina Bausch. É um facto que, nos espectáculos de Roriz, a natureza grotesca de algumas das figurações coreográficas, os cenários ou adereços que interferem no movimento dos bailarinos e o uso da improvisação com os intérpretes enquanto método de construção coreográfica são características que propiciam e facilitam a comparação. E é certo que Roriz não esconde o interesse, dir-se-ia mesmo o fascínio, pelo trabalho de Bausch. Mas quando procuramos tudo o que nos possa esclarecer sobre quem é que Roriz considera terem sido as personalidades que a influenciaram e marcaram, são os exímios coreógrafos e mestres na composição coreográfica Jirí Kylián, Alwin Nikolais e Louis Falco, com quem trabalhou, que se destacam. Para além dos traços que podemos identificar e comparar com a teatralidade de Bausch, com a competência da escrita coreográfica de Kylián, com a fluidez de Falco e com a mestria da composição de Nikolais, os espectáculos de Olga Roriz têm a inconfundível assinatura da criadora. Jorge Salavisa afirma, de modo certeiro, que, para além do que é estritamente singular numa pessoa, e em Olga Roriz em particular, “ […] as influências também são muito importantes para concretizar as maneiras de coreografar. Temos um peso cultural atrás de nós. Acho que ela foi uma mulher inteligente, encontrou a sua forma de estar e de personalizar o seu trabalho” (p. 54). O trabalho de Olga Roriz estende-se para além da composição coreográfica, entendida no seu sentido estrito. Roriz cria movimento para teatro e ópera, expõe os seus trabalhos fotográficos e é uma atenciosa professora. Artista com várias facetas e recorrendo a diversos modos de expressão, o seu trajecto cruza-se com o de muitas pessoas, de várias gerações, que, quer no campo do ensino da dança quer como bailarinos ou coreógrafos, têm sido protagonistas de uma importante parte da história e da contemporaneidade da dança em Portugal. O trabalho de Roriz cruza-se também com o de alguns eminentes figurinistas, cenógrafos, compositores, encenadores e arquitectos, entre outros profissionais, com quem cria obras marcantes. Todas estas dimensões da actividade da criadora podem ser encontradas em Olga Roriz. Aspectos do trabalho de uma artista que são informados por fontes preciosas, muitas delas reveladas em primeira mão, e expostos, discursiva e fotograficamente, de forma correcta, justa e eloquente (Assírio & Alvim, €60) .

“Foi [nas] incursões ao estrangeiro [no início dos anos 1980] que Roriz teve os primeiros contactos com a obra da coreógrafa alemã Pina Bausch, cuja criação seminal viria a perseguir a sua carreira – nas palavras certeiras de Luísa Taveira – como um fantasma. Foi a primeira vez que vi uma peça da Pina Bausch, em vídeo: A Sagração da Primavera. Tinham-me comparado à corrente do expressio-

nismo alemão, por causa da Lágrima. Mas só quando vi a peça é que percebi que a comparação com o expressionismo alemão não tinha nada a ver com a Nina Hagen. E fiquei maravilhada. Aquela primeira comparação, contudo, seria apenas isso: a primeira. O paralelo seria frequentemente traçado durante a carreira de Olga Roriz, invocando-se que o território em que se movia estava já palmilhado, que já estava tomado o lugar da indefectível senhora do teatro-dança europeu. Comummente se referiu que a veia criativa de Roriz, embora muito própria, teria uma linhagem claramente reconhecível. Ainda que seja uma realidade a aproximação das preocupações e dos registos com que são exploradas, não é menos verdade que os percursos autorais se apresentam bem delineados. E os observadores mais abalizados não deixam de lado essa análise. Gil Mendo atribui a identificação às próprias circunstâncias do período em causa, nomeadamente as novidades trazidas pela década de oitenta: a Olga é

talvez a única pessoa em Portugal que é uma representante da dançateatro, uma via que foi tentada por muita gente mas não foi seguida por tantos outros. A influência determinante na Olga, tanto quanto me lembro, não foi de um coreógrafo específico: foi todo um mundo efervescente e novo que a certa altura irrompeu também em Portugal. E sinto que ela tem influência, sem dúvida alguma, da corrente da dança-teatro, de que ela teve conhecimento mais como pessoa interessada e atenta ao mundo do que como intérprete ela própria dessa corrente. De que era, e é ainda, Pina Bausch a figura tutelar. A sua apresentação inaugural em Lisboa, em 1989, foi propiciada pelos Encontros Acarte, responsáveis, ainda nas palavras de Gil Mendo,

por todo um mundo que então se abriu às pessoas, que fez com que elas fossem um bocadinho além daquilo que tinham tido a possibilidade de ver. Luísa Taveira [...] expõe de modo desabrido a sua convicção sobre o assunto: a Olga é dos nossos criadores mais singulares, e tem

sido muitas vezes injustamente considerada… Há um fantasma que persegue a Olga, e é um fantasma chamado Pina Bausch. A Pina é de tal forma marcante na carreira e na descoberta da Olga que aquilo ficou enraizado, faz parte também da própria Olga. Uma vez falava com ela sobre uma obra da Pina e lembro-me de me ter respondido que nem queria ouvir: ‘eu não quero saber, quero ser eu a imaginar’. Ela não queria cair na tentação de inconscientemente estar a repetir coisas que já foram feitas, o que é muitas vezes inevitável. O que acontece é que aquela via também é a via da Olga. Porque ela não copia coisíssima nenhuma da Pina. Tem a ver com o verdadeiro enraizar de uma corrente, de uma maneira de pensar”. in Mónica Guerreiro, Olga Roriz. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008 (pp. 35-37)

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CARTA BRANCA

JOテグ MENDES RIBEIRO

Escada Mecテ「nica no Castelo de Rivoli, Turim, 2002

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Arranha-Céus, de Jacinto Lucas Pires. Encenação Ricardo Pais, Porto, 1999

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O Céu de Sacadura, de Luísa Costa Gomes. Encenação Nuno Carinhas, Porto, 1998

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Propriedade Privada, Coreografia Olga Roriz, Porto, 1996

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DINOZORD FAUSTIN LINYEKULA NINE FINGER FUMIYO IKEDA, BENJAMIN VERDONCK, ALAIN PLATEL BLEIB OPUS #3 MICHEL SCHWEIZER CHÁCARA PARAÍSO STEFAN KAEGI e LOLA ARIAS NO DICE NATURE THEATRE OF OKLAHOMA SPEAKING DANCE JONATHAN BURROWS e MATTEO FARGION PÁG.98

BAHOK AKRAM KHAN PUSHED PADMINI CHETTUR CHINA WILLIAM YANG TEMPEST II LEMI PONIFASIO UN AN APRÈS ... NACERA BELAZA HARS AYDIN TEKER ABRIL / MAIO .08


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Quisemos olhar para a programação proposta pelo Alkantara Festival fazendo-lhe perguntas. Perguntas algumas delas sem resposta e que partem, assumidamente, de dúvidas que queremos ver respondidas e não se relacionam directamente com os espectáculos. Antes partem deles, e a eles regressam, num vaivém discursivo que entende o binómio criaçãoreflexão como motor de um mundo mais actuante, menos conformado, mais empenhado. Olhámos e quisemos sempre perguntar mais: o que é isto que nos caracteriza e encerra numa fronteira geográfica? Poderemos transferir esse limite para uma fronteira artística? E até onde se pode ir com um espectáculo, se o entendermos nessa óptica de actor político? Até onde se pode ir politicamente? E nesse gesto que produzirá consequências, como dialogamos com o outro? Com aquele que olhamos e nos olha, querendo saber porque impomos as regras e os códigos e as normas numa área que vive, fundamentalmente, de partilhas? E depois, como comunicar tudo isto? Isto da arte, isto da política, isto da sociedade, isto da vida, isto do mundo? O mapa que traçamos para este festival que quer fazer do mundo um palco, é só o nosso mapa, esperando que, quem o quiser usar, nos possa ajudar a fazer ainda mais perguntas.

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texto Tiago Bartolomeu Costa ABRIL / MAIORamos/Kameraphoto .08 fotografia Martim


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A metáfora é do coreógrafo Miguel Pereira e serve bem para ilustrar a cena contemporânea nacional: um território selvagem onde foi construída uma cidade e que, com o passar dos anos, está a ser engolida por essa selva. Miguel Pereira, que no Alkantara Festival apresenta, em estreia mundial, a peça Duo (5 a 7 de Junho, Centro Cultural de Belém), sente-se permanentemente em transição entre a inquietação constante de quem cria num território avesso à definição e a necessidade de encontrar uma qualquer acalmia que lhe permita compreender melhor qual o seu lugar no contexto criativo português. Não é que esta seja a sua questão primordial, mas é uma recorrente quando se fala dos criadores portugueses. Há anos que é assim e, de cada vez que alguém tenta ultrapassar a fronteira do reconhecível há sempre uma voz que pergunta: “tu és de Portugal? E lá fazem o quê?”. Cláudia Dias, vestido Nuno Baltazar

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Poderá parecer estranho que mais de vinte anos depois do surgimento da geração que fez a Nova Dança Portuguesa (NDP) e quase dez desde que vários projectos, na altura marginais, ascenderam à categoria de estruturas sustentadas por programas de apoio plurianuais pelo Ministério da Cultura (através do Instituto Português de Artes e Espectáculos, depois Instituto das Artes, agora Direcção-Geral das Artes), ainda se sinta a necessidade de travar a selva. Programadores, criadores, crítica e público não se entendem no que pode ser já uma instituição, uma novidade, um artista em trânsito, um emergente ou um excluído. “Eu sou o sistema”, resume Pedro Penim, do colectivo Teatro Praga que regressa ao Alkantara com Conservatório (23 a 29 de Maio, Armazém do Hospital Miguel Bombarda).

Pedro Carraca, casaco Diesel, camisa Gant, calças Lee, gravata Gant, ténis com polainas Diesel Cláudia Gaiolas, casaco Nuno Baltazar, sapatos Miguel Vieira

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Esta afirmação, plena de assertividade e devedora de uma frase clara do artista plástico italiano Maurizio Cattellan – “também quero uma fatia do bolo” – assume contornos de statement quando olhamos para os artistas portugueses programados, seja em regime de estreia mundial, nacional, reposição, produção ou co-produção e acolhimento, na edição 2008 do Alkantara. A saber, e por data de apresentação: Teatro Praga, Tiago Rodrigues (27 a 30 de Maio, Yesterday’s Man, Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, trabalho co-assinado com o encenador libanês Rabih Mroué), Cláudia Dias (29 a 31 de Maio, das coisas nascem coisas, Teatro da Politécnica), Filipa Francisco (30 de Maio a 1 de Junho, Íman, co-assinado com o grupo Wonderfull’s Kova M), Patrícia Portela (31 de Maio a 3 de Junho, Banquete, Palácio da Ajuda), Vera Mantero (1 e 2 de Junho, Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza…, Espaço da Mitra), Clara Andermatt (3 e 4 de Junho, Meu Céu, Castelo de São Jorge), Tiago Guedes (5 e 6 de Junho, Coisas Maravilhosas, Culturgest), Miguel Pereira e Projecto Teatral (7 e 8 de Junho, Lion Noir, São Luiz Teatro Municipal). A estes nomes juntam-se os de Pedro Carraca e Cláudia Gaiolas que apresentarão a primeira fase do longo processo de encenação de Crimes Exemplares, de Max Aub, com actores não profissionais residentes no Bairro do Alto da Cova da Moura (onde Filipa Francisco também criou a sua peça). Todos eles são parte integrada do sistema e representam, para o bem e para o mal, uns mais e outros menos, uma das razões pelas quais alguns programadores e críticos contactados pela OBSCENA se deslocarão a Lisboa entre 22 de Maio e 8 de Junho: “vamos ver os portugueses”, disse-nos uma programadora inglesa. Cláudia Dias diz que se irrita com “esta coisa de ser vista como ‘a portuguesa’” porque “há sempre um olhar sobre o exótico”. Esta ideia colou-se, há anos, à criação nacional supostamente colada à imagem de “um país periférico e mais pobre”, diz a coreógrafa que com das coisas nascem coisas assina um dueto, interpretado por Márcia Lança e Rui Silveira. Miguel Pereira conta-nos que, em conversa com amigos bailarinos residentes em Berlim, quando confrontados com a necessidade de desenvolveram essa ideia de “estranheza” causada pela criação nacional, disseram apenas “ser muito própria” e “ter qualquer coisa de diferente”. Tiago Guedes, que no fim de três anos como artista as-sociado de um teatro no norte de França, o Le Vivat, em Armentiéres, perto de Lille, apresentou uma carta branca com artistas nacionais (Vera Mantero, Teatro Praga, Inês Jacques e Projecto Teatral), escolhidos a partir, sublinha, “de laços estético-emotivos”, chega mesmo a dizer que o máximo de diferença que lhe souberam explicar foi “não serem feitos por franceses”. Logo, fora dos esquemas tradicionais e expectáveis para os padrões locais. Mas que significará isso exactamente? Guedes, que no Alkantara faz a estreia nacional da peça Coisas Maravilhosas, estreada em Fevereiro e já apresentada em Paris, diz que “não sabe”. Miguel Pereira fala de “um denominador comum que não utiliza o vocabulário da dança mas outras formas de explorar outras disciplinas”.

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Clara Andermatt, vestido Ricardo Dourado

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Teatro Praga: Cláudia Jardim, vestido Miguel Vieira, colar Hello Kitty, corpete do guarda-roupa da peça Conservatório José Maria Vieira Mendes, calças e écharpe Gant, camisa Henry Cottons, colete e sapatos Diesel Patrícia da Silva, jump suit e sapatos Diesel Pedro Pires, fato e camisa Ricardo Preto, botins Diesel Joana Gusmão, top e calças Nuno Baltazar, sapatos Diesel André e. Teodósio, fraque Ricardo Preto, camisa Gant, sapatos Fly London Pedro Penim, fato e camisa Miguel Vieira, sapatos Fly London Rita


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Já Vera Mantero, que repõe em Lisboa Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza…, peça estreada em 2006 na Culturgest que dividiu público, crítica e colegas de profissão por ir mais longe na afirmação de um discurso sobre o acto de fazer, é de guerra que fala, numa entrevista inédita a Mónica Guerreiro: “Uma vez, o José Gil perguntou-me uma coisa que me marcou imenso: ‘ó Vera, qual foi a sua guerra? Você parece ter passado por alguma guerra’. Isto já foi há muitos anos... E eu dizia-lhe: ‘mas qual guerra?!’, sem perceber. Ele explicou-me: ‘você faz coisas que têm a ver com artistas que pas-saram pelas grandes guerras, você parece ter respostas que estão próximas das respostas dos artistas que trabalharam em reacção a isso’. Nunca mais me esqueci desta sua observação”. Clara Andermatt, que ocupa o Castelo de São Jorge com Meu Céu, criação que estreia a 15 de Maio no Festival Imaginarius, em Santa Maria da Feira, e que reúne idosos, jovens praticantes de parkour, música de João Lucas e Vítor Rua, e interpretações da encenadora e actriz Lúcia Sigalho, e dos bailarinos e coreógrafos Luís Guerra e Tânia Carvalho, percebe-a bem porque, tal como Vera Mantero, esteve lá, na formação do movimento da Nova Dança Portuguesa. Diz: “quando éramos miúdos tivemos que ir para fora [Nova Iorque, Bélgica, França foram alguns dos destinos] e isso deu-nos força para andarmos com a casa às costas”. Mas hoje, confessa, sente-se “presa”. Repetirá várias vezes ao longo da conversa a expressão inglesa stuck. Miguel Pereira também lá esteve, tal como Filipa Francisco, ou porque foi mais tardia a sua revelação como criadores, ou porque nunca se preocuparam em saber a que família deveriam pertencer, integram uma faixa a que Clara Andermatt chama “a geração entalada”. Pereira diz que já “não tem idade ou paciência para o discurso do enfant terrible”, que vários tentaram colar-lhe. Tiago Guedes diz, apesar de tudo, que “é preferível falar em famílias” do que em escola ou herança da Nova Dança Portuguesa. E que essa família pode “muito bem” ser composta por coreógrafos de vários países, ligados por um só espectáculo ou uma associação de ideias que lhes é alheia. Pedro Penim gostaria dessa ideia, ele a quem já lhe começaram a falar, e não especificamente dirigido à realidade nacional, de um “novo teatro”, que significaria “algo que não é feito nos moldes tradicionais, delimitando uma nova fronteira exclusiva”. Não houve para o teatro o que houve para a dança portuguesa. E quando lhe perguntamos se consegue encontrar parceiros, diz que trabalha com eles. O núcleo de colaboradores do Teatro Praga, ao qual se juntou recentemente o dramaturgo José Maria Vieira Mendes, forma aquilo que Penim apelida de “o meu gang”. “Vale a pena escolher, porque temos que excluir, limitar o teu espaço, o teu círculo, o teu público”. Tiago Guedes fala de “famílias sem território”. Pedro Penim quer “ultrapassar as fronteiras geradas para criar menos generalistas e mais exclusivas”. “Deve haver um despudor e devem criar-se coisas elitistas”, assume. E radicaliza: “em nome de uma suposta abertura de espírito, sem quererem excluir, já se cometeram muitas atrocidades artísticas”.

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Filipa Francisco, vestido Amitie, sapatos Diesel

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Tiago Rodrigues, cuja obra Yesterday’s Man integrou um outro projecto do Alkantara, “Sites of Imagination”, que juntou, em Outubro pas-sado, espectáculos produzidos por estruturas sedeadas em Lisboa (Alkantara), Girona, Espanha (L’animal à l’esquena), Marselha, França (l’officina), Cagliari, Itália (Carovana) e Ljubjana, Eslovénia (Bunker), fazia fé, numa entrevista publicada em Julho de 2007 na revista dos Artistas Unidos, a um tecido cultural onde “há uma espécie de colaboração constante, de solidez entre companhias e universos – que pode ser reforçada”. E acrescentava: “Não acho que padeçamos nada de estarmos demasiado fechados no nosso cantinho, não podemos é cair na tentação de sobreviver, de nos acomodarmos ou tentar fazer parte de uma espécie de poder, de quem controla as políticas sociais ou está muito próximo delas”. Pedro Penim refuta esta ideia de aparente marginalidade: “o Teatro Praga é muito engagé e sistémico. Nunca tivemos a pretensão de ser um projecto desalinhado”. Parece – porque é – absolutamente natural que sejam cada vez mais frequentes as co-produções com espaços institucionais que absorvem o que estava nas margens. Nos últimos dois anos o Teatro Praga produziu peças apresentadas no Teatro Nacional D. Maria II (*****), Teatro Nacional S. João e Centro Cultural de Belém (Avarento ou a Última Festa), Culturgest e Festival de Teatro de Almada (Agatha Christie), Alkantara (Discotheater), Maria Matos Teatro Municipal (Hamlet sou eu) e São Luiz Teatro Municipal (Turbo-folk), e será natural perguntar se esta passagem por grandes instituições moldou o discurso da companhia. Resposta pronta: “em alguns espectáculos isso é mais evidente que em outros, por se tratar de uma encomenda [como foi Turbo-folk, do São Luiz]. Entras numa lógica de programação que não é a tua. O que não significa que não tenhamos independência nem que não façamos o que queremos”. Penim diz mesmo que este Conservatório está “a ser pensado especificamente para o Alkantara, mas houve sempre uma reflexão sobre o espaço e o contexto onde o espectáculo seria apresentado”. Para quem achava que Turbo-folk fazia figura de ovni na programação gizada por Jorge Salavisa para pensar o Ano Internacional para o Diálogo Intercultural, que este ano se assinala, Penim responde com “a vontade de criar objectos mais disruptivos em relação a uma ordem estabelecida”. E alerta: “entras no sistema e beneficias dele. Mas também sofres as consequências dos aspectos mais negativos. As coisas estão completamente interligadas”. Um desses aspectos negativos, para Cláudia Dias, é “actuar para burgueses”. Diz, num misto de lamento e resignação: “posso não ser burguesa mas acedo a esse meio. Irrita-me ter um público especializado”. Implicada politicamente – esteve recentemente envolvida, através do Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo, e com o grupo parlamentar do Partido Comunista, a elaborar o projecto de lei para o estatuto do artista, ultrapassado pela proposta desfasada, mas aprovada, do Partido Socialista – foi, aos poucos, consciencializando, por mais ingénuo que possa parecer, que “não [se sente] a mudar o mundo. Aquilo que faço, faço-o por necessidade”. “Durante anos vivi com a ideia de uma dança de intervenção, e de que a arte podia transformar o mundo no tempo imediato, em vez de por ciclos. Mas o teu tempo não corresponde ao tempo da história”.

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A criadores como Cláudia Dias e Tiago Guedes será sempre inevitável um enquadramento sócio-cultural mais lato e que inclua, evidentemente, a relação com a geração anterior. Ambos viram o seu trabalho crescer em visibilidade e condições estruturais através dos trilhos feitos pelos “mais velhos”, no caso, e sobretudo, por João Fiadeiro. Cláudia Dias é, aliás, seguidora do método de Composição em Tempo Real, criado por aquele coreógrafo. Mas nenhum deles faz mais do que reconhecer a importância dos que já cá estavam. Cláudia diz mesmo que “se não fossem estes eram outros”. E Miguel Pereira, que faz parte da “geração entalada”, diz que “há hoje uma coisa identitária, de procura de um caminho que não está dependente da ‘mini-tradição’ [iniciada pela NDP], mas antes a criar o seu próprio percurso”. Tiago Guedes falará mesmo de “perceberes as regras e jogares com isso ou não”. Clara Andermatt confessa que nunca teve um “perfil reivindicativo” e que, com o tempo, descobriu que “o papel que cabe a cada um é a importância de termos consciência de qual pode ser esse nosso papel”. É o mesmo que diz Pedro Penim quando inadvertidamente lhe perguntamos se é feliz a criar em Portugal (pergunta, reconhecemos, que é em si mesma absurda). A resposta demora, o performer respira fundo, reflecte e acaba por confessar: “nessa lógica de posicionamento, a primeira queixa que tenho é de mim próprio. Até chegar ao meu país, tenho que conseguir lidar com o que tenho para oferecer a mim mesmo”. Tiago Guedes, camisa e fato Ricardo Preto, laço Gant, botins Miguel Vieira, anel Hello kitty

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Podemos pensar no caso de Patrícia Portela, que por razões de agenda não pode participar na sessão fotográfica que organizámos para este número. A sua criação, Banquete [leia a crítica na OBSCENA #8], chega a Portugal largos meses depois da sua estreia em Ghent, na Bélgica, onde Patrícia vive há vários anos, tendo sido co-produzida pelo Victoria, o mais importante teatro da parte flamenga do país. Portela sempre se confrontou com a dificuldade de classificação – teatro, dança – dependente dos circuitos que percorria Europa fora. Na verdade, o seu teatro acaba por radicar muito mais numa reflexão sobre a confluência disciplinar – definição muito menos abstracta que a transdisciplinaridade –, do que propriamente centrado numa pesquisa sobre os limites de uma determinada disciplina. Banquete, que envolve um grupo de actores que preparam uma refeição (no que parece, curiosa e provavelmente inconscientemente, um novo filão dramatúrgico), interliga naturalmente o texto de Platão com a performatividade do quotidiano – essa sim uma das temáticas centrais do seu trabalho.

Miguel Pereira, fato Miguel Vieira, pólo Nuno Gama, ténis All Star, pulseira Hello Kitty

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Indefinição é também o que está presente em Íman, poderoso retrato poético que Filipa Francisco assina, humilde e reconhecidamente, com o grupo de intérpretes que constituem as Wonderfull’s Kova M. Mais do que um projecto social e/ou comunitário, Íman ultrapassa os preconceitos que podem surgir em relação a uma peça ancorada num bairro problemático como o do Alto da Cova da Moura, no concelho da Amadora. Filipa, numa conversa que se seguiu à primeira apresentação no bairro – “um presente e um agradecimento”, confes-saram, todas, orgulhosas e com razão para isso –, explicou que lhes deu “margem para trabalhar”, aproveitando (a coreógrafa prefere o termo “organizando”) “o que de melhor têm: serem corpos sem experiência”. Na fase em que vimos a peça, quase dois meses antes da sua apresentação no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, era notório que não estávamos perante um trabalho meramente ocupacional. Nos rostos daquelas oito (sim, dizemo-lo) bailarinas, estava a força da arbitrariedade que caracteriza a criação portuguesa. Como diria Clara Andermatt a propósito da sua peça, também ela feita com

Tiago Rodrigues, blazer e gravata Gant, camisa Ricardo Preto, ténis All Star

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não-profissionais – reflexão que poderíamos estender ao projecto de Pedro Carraca e Cláudia Gaiolas, que só em Novembro terá uma apresentação final – uma conjugação de diversos elementos, plenos de “uma certa espiritualidade [onde] há mais acção e intervenção na aceitação das diferenças”. Regresse-se à metáfora inicial de Miguel Pereira, que serve bem de exemplo para os atalhos pelos quais se foi desenhando a criação nacional. Diz o coreógrafo que “tu constróis o outro a partir de ti próprio”.

Vera Mantero, vestido Pedro Pedro, casaco Miguel Vieira

Fotografia Martim Ramos/Kameraphoto, assistido por Rita Álvares Pereira Styling Ricardo Lopes, assistido por Pedro M M e Melchior Schilling Maquilhagem Jorge Bragada Cabelos Cristina Peixoto

ABRIL / MAIO .08 Festival, Luís Pereira Showroom, Marie Mignot, Re.Al, Agradecimentos Alkantara Rita, Sofia Campos.


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Fotografia: Bleib! Opus 3, de Michel Schweizer

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ABRIR AS JANELAS

DO VOSSO CORACAO

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DINOZORD FAUSTIN LINYEKULA PÁG. 84

NINE FINGER FUMIYO IKEDA, BENJAMIN VERDONCK, ALAIN PLATEL PÁG. 86

BLEIB OPUS #3 MICHEL SCHWEIZER

Numa conversa que decorreu durante a atribuição do Prémio Europa de Teatro em 1990, o encenador italiano Giorgio Strehler disse: “o teatro vive hoje uma realidade negativa. De facto, já não é considerado como um instrumento de massas como foi considerado em 1900. Nessa altura, o teatro dirigia-se a todas as pessoas – e não apenas a uma elite mais ou menos popular – já que não existia alternativa. A pouco e pouco, foi marginalizado pelo cinema, depois pelo cinema sonoro, a seguir pelo cinema a cores, a televisão e assim sucessivamente. […] Mas na vida nada é completamente negativo: e há sempre um aspecto didáctico: o teatro tornou-se uma necessidade e não somente um rito social”. Para nós, as suas palavras res-soam fortemente nas propostas de Faustin Lyniekula, Alain Platel, Stefan Kaegi, Michel Schweizer, Jonathan Burrows e do colectivo Nature Theatre of Oklahoma que, partindo de cantos diferentes do mundo e das disciplinas artísticas, criam outros universos que denunciam, mais do que reflectirem, uma sociedade que insiste em ver no teatro um mero acto de entretenimento.

PÁG. 90

CHÁCARA PARAÍSO STEFAN KAEGI e LOLA ARIAS PÁG. 94

NO DICE NATURE THEATRE OF OKLAHOMA PÁG. 96

SPEAKING DANCE JONATHAN BURROWS e MATTEO FARGION ABRIL / MAIO .08


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DINOZORD: THE DIALOGUE SERIES III

texto Thomas Ferrand

Faustin Linyekula, bailarino e coreógrafo congolês, fala da dificuldade em ser artista no Ex-Zaire, actual República Democrática do Congo. Uma nação cuja história movimentada orienta o seu trabalho. O Congo conheceu várias reviravoltas políticas e económicas, que se aceleraram depois da queda do ditador Mobutu em 1997 até aos dias de hoje, com a actual tomada de poder de Joseph Kabila. Linyekula interroga-se e ironiza sobre esta história violenta e conflituosa, confrontando o individual e o íntimo a contingências políticas que não deixam de lembrar o carácter ubuesco de algumas tragédias históricas de Shakespeare. Com a excepção que, aqui, se trata precisamente de uma realidade que afecta, ainda hoje, todo um povo cujas infra-estruturas e espíritos se encontram em ruínas. Mas Faustin Linyekula não conta os eventos por um modo de narração tradicional. Evoca-os pela dança, pelo conto à maneira dos contadores de histórias africanos, mas também pelo vídeo e pela utilização de documentos sonoros – os discursos de Mobutu ou ainda do seu amigo e testemunha Antoine Vumilia Muhindo, condenado à morte por razões políticas. Com estes materiais, Linyekula renova também a autobiografia e a autoficção, não se tratando apenas da história do seu país que se conta, mas também a sua e a dos seus próximos, tantas são as testemunhas de uma história que parece repetir-se sem fim. Dinozord: The Dialogue Series III, a peça que se apresenta no Alkantara, estreou em 2007 no Festival de Avignon.

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Como apresenta esta peça? Dinozord é a alcunha de um jovem dançarino de hip-hop que encontrei em Kinshasa. Dinozord, porque diz ser “o último da sua raça”. Perguntei-me como deveria ser sentir-se que se é o último da sua raça, e depois pensei num requiem, na última presença em cena, em Molière… Foi assim que tudo começou. Coincidiu com o meu desejo de me reinstalar em Kisangani (a noroeste da República Democrática do Congo), a cidade onde cresci e de onde saí em 1993 para o Quénia. Quando voltei para o Congo em 2001, ainda havia uma guerra, Kisangani era uma zona rebelde, por isso fui a Kinshasa e comecei a perguntar-me sobre o que tinha restado da vida que conhecia, dos meus amigos de então. Com quinze anos, tinhamos formado um bando que sonhava em mudar a literatura e o teatro africano, escrevíamos os nossos primeiros poemas, sobretudo em reacção a um professor de francês que apenas jurava pela sua negritude, Senghor, Césaire, etc. Dizíamo-nos que era preciso dar sangue novo a isso tudo. Era algo pretensioso, mas em que outra altura podemos sonhar em mudar o mundo se não o fizermos com quinze anos? E de todo este grupo, entre os que tinham parado de fazer teatro, os que tinham morrido na prisão, fui o único a ter continuado. Senti-me um pouco como o último da minha raça. Quis fazer uma peça sobre este regresso e pedi ao Dinozord para me acompanhar no diálogo. O leitmotiv do seu trabalho é a história do Congo. Coloca o material político no centro da cena, por vezes de maneira muito bruta, utilizando arquivos sonoros… Gostaria de tê-lo feito de outra maneira, de contar outra coisa. Mas para mim, o Congo tornou-se numa verdadeira obsessão desde o dia em que ouvi na rádio que o Zaire, o país onde tinha crescido, já não existia. Na escola, tínhamos o que chamávamos de “trinta minutos revolucionários”: reuníamo-nos no recreio para cantar a glória do “Zaire eterno” e do seu líder “Pai Mobutu”. Eram as minhas referências. A 17 de Maio de 1997, Laurent Désiré Kabila chegou ao poder, e de um dia para o outro acordava congolês, percebendo de repente a impostura em que tinha crescido. Em 1971, Mobutu decretou a “política do recurso à autenticidade”, que consistia em apagar todos os traços do colonialismo, nomeadamente ao mudar o nome do país que os belgas tinham chamado de Congo. A ironia da história está no facto de “Zaire” vir de uma transcrição errada da palavra genérica que significa “rio” na língua kongo. Quando os primeiros exploradores portugueses chegaram ao desaguamento do rio, perguntaram o seu nome aos habitantes, que responderam “Nzadi”, o que significa “rio”; mas, por um qualquer milagre, a palavra foi transcrita nos manuscritos portugueses como “Zaire”. E foi a palavra que Mobutu escolheu para regressarmos à autenticidade! Em 1972, ele declara num famoso discurso: “neste continente, não podemos mais aceitar sermos os americanos de África, os italianos de África, os belgas de África ou os franceses de África, mas sim africanos autênticos”. Na altura, era impressionante. Decretou que os nomes cristãos, assim como o fato e a gravata, eram contra a lei. Podíamos ser presos se vestíssemos um. Cada um tinha que inventar

um “pós-nome”. O fato foi substituído por algo chamado “abacost”, literalmente “abaixo o fato”, excepto que os abacosts de Mobutu eram feitos por Francesco Smalto… A partir do momento em que o Zaire caiu, a questão do nome tornou-se central para mim. Penso que a minha dança é uma tentativa de me lembrar do meu nome, de modo a entreter uma ligação com a memória e a história, para não a esquecer. Tento compreender o que se passou, clarificar o meu lugar e intervir com as minhas armas. O texto Dinozord foi escrito em parte por Antoine Vumilia Muhindo, cuja voz se ouve durante o espectáculo… Comecei a escrever quando era jovem porque a poesia de Antoine inspirava-me. Foi condenando à morte durante o processo que se seguiu ao assassinato de Laurent Désiré Kabila em 2001 por um dos seus guarda-costas, e ainda se encontra preso em Kinshasa. Vumi trabalhava nos serviços de informação. Tinha seguido o movimento que tinha levado Laurent Désiré Kabila ao poder em 1996. Uma vez chegado a Kinshasa, foi nomeado para o Conselho Nacional de Segurança, cujos escritórios se encontravam a escassos metros do palácio presidencial. Fez parte das pessoas que foram presas. Pedi-lhe um texto depois de lhe ter falado o meu regresso a Kisangani, de Dinozord, do “último da sua raça”. Perguntei-lhe se tinha condenando à morte pessoas que conhecia. Perguntei-lhe onde colocava a poesia no meio disso tudo. Não podia bem responder-me… O que acontece quando um poeta, o bobo do rei, se torna no cão do rei? Numa versão comprida do texto que está a reescrever, acaba por contar como chegou a este estado. Na prisão, tínhamos-lhe dado papel e lápis, assim como um gravador. Por cada representação nossa, damos-lhe um cachet que permite-lhe pagar o “aluguer” da sua cela, mas também a sua comida e deixar um pouco de dinheiro à sua mulher e aos seus filhos. Porquê ter regressado ao Congo? A ideia era construir algo que se inscrevesse no tempo. Vivi seis anos no Quénia mas nunca consegui os papéis que me permitiriam lá viver. Cada vez que tentava obtê-los, diziam-me que o teatro não era uma profissão. Era preciso que me desenrascasse com um visto de turista, que atravessasse regularmente a fronteira para depois voltar. Acho que me fartei de viver no estrangeiro. Impunha-se um regresso ao Congo e a vontade de trabalhar com uma equipa para clarificar uma escrita e um questionamento. A questão era: será ainda possível construir alguma coisa no Ex-Zaire? Neste campo de ruínas? Dito isto, o campo das ruínas está sobretudo nas nossas cabeças. Quando voltei ao Congo em 2001, a situação era extremamente difícil. Agora, ainda há pontos de violência a Este e na fronteira com o Uganda, o Ruanda e o Burundi, que permanecem zonas de insegurança, onde os assassínios e as violações são diárias. Mas a situação, apesar de tudo, está melhor: há um governo central, o país não se encontra ocupado. Logo, os que podem sair já não voltam: preferem a clandestinidade do que viver no Congo.

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O que são os estúdios Kabako? Quais são os seus projectos? Hoje em dia, os estúdios Kabako não têm muros. Não temos local, apenas um escritório no Centro Cultural Francês de Kinshasa desde há alguns anos. Para nós, depois de anos de isolamento, de guerra e de ditadura, o essencial está em inventar espaços nas nossas cabeças: como poderiamos imaginar de outra maneira? Os estúdios Kabako são, primeiro de tudo, este mesmo estado de espírito. Desde o princípio que não quis que que fossem apenas um espaço para as minhas criações pessoais. Quisemos apoiar outros actores e bailarinos. Papy Ebotani faz parte da companhia desde os seus princípios e agora desenvolve o seu próprio trabalho, tal como DjoDjo Kazadi, que criou um duo com a sua avó. Os estúdios Kabako gerem a produção e a difusão das suas criações. Organizamos também ateliers e recebemos, por vezes, artistas franceses. Estamos há pouco tempo em Kisangani, e hoje colocamo-nos questões sobre um local que permita inscrever o meu trabalho e a minha abordagem à escala da cidade. Kinshasa é demasiado grande e difícil no quotidiano: imaginem oito milhões de habitantes numa cidade sem qualquer infra-estrutura, não se consegue gerir. Kisangani é ideal, tem oitocentos mil habitantes num território mais coeso. Mais concretamente, pensamos comprar três terrenos em três comunas diferentes para aí construir centros culturais de proximidade, com teatro, dança, música, mas também um trabalho importante à volta de imagem.

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Existirá, apesar de tudo, uma política cultural na República Democrática do Congo? O Estado apoia os estúdios Kabako, financeira ou moralmente? A primeira preocupação dos políticos é conservar a sua parcela de poder. Não somente o Estado não nos apoia, como nos tira dinheiro: cada vez que um artista sai do seu território, tem que pagar uma autorização ao Ministério da Cultura. Às vezes penso que somos nós a financiar este Ministério. De resto, os estúdios Kabako autofinanciam-se em 80% a partir da difusão e dos direitos de cessão, por vezes de co-produção, no estrangeiro. Estamos no final de Junho [2007] e o orçamento acaba de ser votado no Parlamento. Equivale a dois mil milhões de Euros para um país que tem cinco a seis vezes a superfície da França e que conta com 60 a 70 milhões de habitantes – um número aproximativo pois o último recenseamento data de 1984. Não chega sequer a metade do orçamento para a cidade de Paris! Este país é uma selva. Não há nada, quase nenhuma regra, o que permite também fazer muitas coisas. Assim, não há sítios de “teatro” no Congo. Quando falamos do “teatro” hoje, não passa, muitas vezes, de um corredor, um palco em betão onde arranjamos cadeiras de plástico para os espectadores. Isso é interessante porque traz o teatro de volta ao essential: a questão directa que existe entre os que vêem e os que actuam.

Acha que faltariam, antes de mais, símbolos aos congoleses, de forma a poderem de novo acreditar e provocar uma verdadeira mudança? Não acredito numa revolução como a de 1917: as massas, o povo, “vamos mudar o mundo”. Acredito numa revolução feita a partir dos indivíduos. Acredito que posso fazer mudar as coisas por pequenos actos. Quando alguém está implicado num projecto neste país e ganha dinheiro, há pelo menos vinte outras pessoas que comem por detrás dele. Ao criar este local, poderíamos dar trabalho às pessoas dos bairros, pois precisaríamos de trabalhadores permanentes. Neste país, um médico ganha oficialmente entre 50 e 80 dólares, mas não podemos viver com isso. Não existe serviço público, tudo se negoceia, se não tiveres vinte dólares para te curares de qualquer coisa, podem deixar-te morrer. Queria mostrar que é possível trabalhar, construir projectos e viver decentemente e de forma honesta no Congo. Se hoje em dia se passam poucas coisas, o mais pequeno gesto pode ter um impacto. Algures, não prestamos nenhuma atenção à arte, o mais importante é acreditar em qualquer coisa e abrir janelas...

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DINOZORD: THE DIALOGUE SERIES III DE FAUSTIN LINYEKULA texto Pascal Bély

Vejo Dinozord: the dialogue series III e penso em Raimund Hoghe e no seu Meinwärts, onde se associa, durante mais de noventa minutos, a história da Alemanha Nazi aos mortos da Sida. Um trabalho sobre o luto, um luto que Raimund Hoghe restitui com distância e emoção. O coreógrafo e autor congolês ainda não está pronto, mas o seu trabalho sobre o luto segue os passos de Raimund Hoghe. Para já, cria a partir de uma desordem onde tudo se pousa, onde a dança se junta ao texto e ao vídeo com Mozart e um cantor lírico haute-contre. Tudo vale para se exprimir a dor, a cólera e a inquietude perante o futuro de um país. Mas poderá o espectador tudo receber directamente, sem um mínimo de articulação? Faustin está triste, um rosto branco de palhaço sem o seu nariz encarnado. Kabako, seu amigo desaparecido durante a ditadura (no Ex-Zaire), foi enterrado com desconhecidos (“Mozart também foi”, responde-lhe o encenador Peter Sellars). Alguns anos mais tarde, regressa a Kizangani para lhe dar uma sepultura digna. É para este ritual que somos convidados, juntamente com quatro bailarinos, um actor e um contratenor. Tal como uma procissão, os corpos formam a marcha onde, saídos da terra e alinhados uns com os outros, se vão metamorfosear para darem um tempo de reabilitar os mortos e assim permitir o dever da memória. Trata-se de pensar o presente para imaginar o futuro. Os rituais do luto abrutalham a coreografia (cartas escondidas que saem de uma mala, a música de Mozart para transcender o real), enquanto que o actor actua bruscamente para se queixar do espectáculo junto do público (um salutar distanciamento). Uma reportagem sobre o sonho dos congoleses, uma gravação áudio de um amigo ainda preso e a dança hip-hop de Dinozord juntam-se como peças de um puzzle que associamos com dificuldade. Tal como uma colagem que vive da memória, Dinozord: the dialogue series III cria uma distância demasiadamente grande com o público. Não se hierarquiza o suficiente: Mozart está ao mesmo nível de uma reportagem vídeo (onde as palavras dos habitantes foram já ouvidas muitas outras vezes). As sequências sucedem-se como pequenas pedras que teriam sido colhidas no caminho do luto, e nós caminhamos atrás, a seguir esta procissão. Quero muito deixar-me guiar por ela, pois os actores são bonitos e Faustin está profundamente aplicado (está tanto a controlar o seu computador na sombra como em cena para não se deixar esquecer), mas sinto-me como um observador de uma obra política, enquanto que os ocidentais se sentem directamente preocupados pelo futuro deste país. Tudo se agita como se a arte não nos pudesse ajudar: também esta é refém de um dispositivo cénico demasiadamente sofisticado para contar uma história à flor da pele. O teatro poderia ter sido uma bela escultura para Kabako. Dinozord, de Faustin Linyekula, apresenta-se a 26 e 27 de Maio no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, às 21h

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NINE FINGER

texto Jean-Marc Adolphe

Três criadores – Fumiyo Ikeda, Benjamin Verdonck e Alain Platel –, juntam-se para criarem um espectáculo urgente sobre a crise humanitária do Darfur, inspirado pelas palavras do escritor Uzodinma Iweala e pela ausência da crise nos nossos dias e no nosso imaginário. Desculpem. Preparam-se para, sozinhos ou entre amigos, passar uma bela noite no teatro, ou se calhar já o estão a fazer, confortavelmente instalados numa cadeira encarnada (como o sangue, a tragédia, certo?). Mas primeiro, é preciso falar do Darfur. Sim, fica longe, muito longe. No Sudão, um país que nem sabemos encontrar à primeira num mapa do mundo, mesmo sabendo que é algures em África. O Sudão não é propriamente algo que venda, raramente se fala dele nos jornais, mesmos nos jornais “gratuitos” que nos estendem à porta do metro que não têm nada para vender, e que não vão, apesar de tudo, chatear-nos com problemas complicados que não se podem explicar em vinte e cinco linhas. Porquê o Darfur? Porque a 17 de Janeiro de 2007, dia de criação de Nine finger em Bruxelas, espectáculo de fumiyoikedaalainplatelbenjaminverdonck, as agências humanitárias das Nações Unidas tocaram, de novo, a sirene de alarme, denunciando a “violência inaceitável” encontrada pelos trabalhadores humanitários no Darfur, e explicando que a insegurança é tal que o acesso às populações não é possível enquanto os massacres continuarem: “Ao longo destes últimos seis meses, mais de 250.000 pessoas foram desviadas pelos combates, a maior parte deles fugindo pela segunda ou terceira vez. As aldeias foram incendiadas, pilhadas e bombardeadas de forma arbitrária. As plantações e as colheitas foram destruídas. A violência sexual contra as mulheres atingiu níveis alarmantes”. Etc, etc.

ALGUÉM ESTÁ A MORRER Assim, Nine finger é um espectáculo que fala do que se passa neste momento no Darfur, mesmo se Fumiyo Ikeda, Alain Platel e Benjamin Verdonck nunca falaram do Darfur entre eles. Um paradoxo? Não, se quisermos ouvir estas palavras de Roberto Juarroz, num dos mais belos fragmentos de Poesia vertical (1):

Enquanto fazes qualquer coisa, alguém está morrendo. Enquanto dás lustre aos sapatos, enquanto odeias, enquanto escreves uma carta prolixa ao teu amor único ou não único. E mesmo que pudesses chegar a não fazer nada, alguém estaria morrendo, tratando em vão de juntar todos os restos, tratando em vão de não olhar fixo para a parede. E mesmo que estivesses morrendo, alguém mais estaria morrendo, mau grado o teu legítimo desejo de morrer um minuto com exclusividade. Por isso, se te perguntarem pelo mundo, responde apenas: alguém está morrendo.

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UMA PAISAGEM DEVASTADA Fumiyo Ikeda, Alain Platel e Benjamin Verdonck talvez nunca falaram sobre o Darfur, mas o seu encontro de trabalho estabeleceu-se à volta de alguns documentos, nomeadamente Beasts No Nation, primeiro romance de grande impacto Uzodinma Iweala(2), um jovem escritor americano originário da Nigéria. Nesta obra, propositadamente escrita num inglês rudimentar, Iweala olha para a perversidade da guerra através dos olhos de uma criança-soldado. Directo, desconfortável, arrebatador. Em Nine Finger, são estas palavras, vindas de uma infância de guerra, que brutalizam a carne da linguagem e contorcem as figuras da dança. Conhecemos a magnífica bailarina que Fumiyo Ikeda é, sempre cúmplice das criações de Anne Teresa De Keersmaeker. Dançará ela aqui? Basta dizer que ela é, em presença, trágica e infantil, ou seja, sem pathos. Benjamin Verdonck, ele, é ainda quase desconhecido da cena internacional. Na Bélgica, fez-se notar através de algumas performances beuysianas(3) (por exemplo, na véspera da invasão iminente do Iraque pelos Estados Unidos, passando três dias fechado numa pocilga, acompanhado por um porco, com o título de I like america and america likes me) e outras acções insólitas (entre as quais instalar-se num ninho de pássaro, em cima de uma grua, em pleno centro administrativo de Bruxelas). Descobrimos um actor prodigiosamente transformista, animal e demónio, cuja prestação faz pensar, com toda a honra, nos corpos rejeitados de Erna Omarsdottir ou de Wim Vandekeybus nos famosos solos de Jan Fabre. Mas é Alain Platel que está aqui a guiar este espantoso e intenso encontro que cria com quase nada (um colchão, uma caixa de cartão de mudanças, um microfone) a paisagem devastada do indescritível escândalo vivido, aqui e ali, pela espécie humana(4). Trata-se, como escreve Benjamin Vedonck numa carta a Alain Platel, de “tornar estéticos os acontecimentos que não são feitos para estetizar”.

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OS PÁSSAROS CONTINUAM A CANTAR Nine finger não é um espectáculo triste nem desesperante, até vamos ouvindo o canto dos pássaros, pois estes pouco querem saber da guerra ou dos massacres e continuam a cantar dia e noite para a Terra que, mesmo assassina, sobreviverá a todas as atrocidades que os homens serão capazes de inventar. Mas se quiserem apenas pas-sar uma noite agradável, sozinhos ou entre amigos; se pensam que é mais confortável não ver e saber o que se passa no mundo de hoje; se detestam serem arrebatados por um espectáculo, fica um conselho: sobretudo, não vejam Nine finger de fumiyoikedaalainplatelbenjaminverdonck.

(1) Roberto Juarroz, Poesia Vertical, Campo das Letras, 1998 (tradução de Arnaldo Saraiva). (2) Uzodinma Iweala, Beasts No Nation, Harper Collins, 2005. (3) Em referência a Joseph Beuys. (4) A ler e reler: Robert Antelme, L’Espèce humaine, Gallimard, 1957.

Nine finger, de Fumiyo Ikeda, Benjamin Verdonck e Alain Platel estará a 30 e 31 de Maio, às 21h, no Teatro Maria de Matos

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BLEIB! OPUS 3

texto Thomas Ferrand

Um manguito às mundanidades espectaculares… O coreógrafo enverga, de novo, o seu papel de gestor e tira a dança do palco para lá meter cães.

Depois de Kings (2000) e Scan (2003), Michel Schweizer – que contornavam a estética do marketing e colocavam o espectador numa posição crítica relativamente à sociedade de mercado –, Michel Schweizer propõe Bleib (2006), uma injunção que significa “não se mexam!” na educação canina. Em palco, o filósofo Dany-Robert Dufour e o psiquiatra Jean-Pierre Lebrun estão rodeados por um bailarino, um “não-actor”, seis tratadores de cães e os seus pastores belgas malinois. Entre um pequeno momento de dança, uma parada canina ou um ataque coordenado, os dois pensadores dissertam sobre a “servidão do homem liberto”: Deus, a sua substituição pelo Capital, o igualitarismo social, a ritalina ou o casamento homossexual. Mas a verdadeira questão é: “Se o Homem matou Deus, quem é o seu novo mestre?”. Em On achève bien les hommes, Dany-Robert Dufour tinha fornecido uma explicação para a necessidade humana de se ter um mestre. O humano sofre de neotenia, ou seja, é um ser prematuro que reproduz as suas características juvenis na sua espécie. Para sobreviver, terá desenvolvido técnicas e assim construído uma segunda natureza: a cultura. Mas para organizar a coesão da sua comunidade, terá inventado um macho dominante: Deus. Schweizer, pegando em Dufour, explora o paralelo entre o Homo Sapiens e o cão, que sofre ele mesmo da neotenia do lobo. Se o Homem é o mestre do cão, quem será o mestre do Homem? O fascínio do coreógrafo por este animal não é novo. Em Scan, o bailarino Ben Benaouisse estava mascarado de cão e explicava como tinha trabalhado para Alain Platel, antes de se interrogar sobre o sentido da proposição: “será um árabe mascarado de cão uma metáfora?”. Idem para Kings, onde antes do espectáculo começar, um cão e o seu mestre dão as suas voltas de vigia à volta do teatro, escandalizando os espectadores sobre o futuro securitário do país. O cão é um motivo recorrente, por vezes uma parábola que questiona a sociedade contemporânea de forma crítica.

Mas é também o domínio do espectáculo que Schweizer belisca sistematicamente nos seus dispositivos. “Bleib! Não se mexam!” pode ser ouvido como uma ordem que ironiza sobre a passividade do espectador. Encontra-se fascinado pelas suas capacidades estratégicas, criativas e manipuladoras que se operam no marketing. Dá-lhes a volta, inventa novos slogans (“natureza da falta”, “corpo são, espírito conformista”, “prosperidade, segurança, parceria”) e cria dispositivos que pedem a participação do público-consumidor. Se recorre a estes métodos, é para lembrar que a cultura é um negócio e para obrigar o espectador a ter um ponto de vista. Os espectáculos de Michel Schweizer são experiências. Por vezes, podem não funcionar, dependendo da noite. E é por isso que merecem, mais do que outras, a etiqueta de “espectáculo vivo”. Porque para além do conteúdo e do aspecto formal, o verdadeiro desafio de Bleib está em criar uma comunidade efémera com pessoas que, a priori, não têm nenhum interesse em se reunirem. O que faz aguentar, na cena de um teatro, os profissionais do mundo canino, os pensadores e um homem socialmente marginalizado pelas suas condições financeiras? Qual é a natureza deste enquadramento simbólico? Tudo aqui é frágil, o acidental torna-se provável. É uma careta feita ao divertimento formatado pelas suas normas de segurança e os seus intérpretes cómicos. Bleib levanta questões pelas singularidades que se juntam em cena e que evocam os falhanços liberais, tanto vindas de Friedrich Lauterbach, Gérard Gourdot ou de Andrej Skrha, antigo legionário eslovaco. O único profissional no espectáculo é um bailarino cuja t-shirt leva a palavra “leurre” [artifício]. Para além disso, não justificaria a dança, que não está aqui presente, os próprios apoios que se lhe acordam pela sua própria ausência? As ambiguidades de Schweizer são vertiginosas, políticas.

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DANY-ROBERT DUFOUR e JEAN-PIERRE LEBRUN entrevista Thomas Ferrand

A propósito de Bleib!, última peça de Michel Schweizer, Thomas Ferrand entrevista o filósofo Dany-Robert Dufour e o psicanalista Jean-Pierre Lebrun para uma análise profunda do (in)consciente do Homem do século XX, das suas lutas e dos seus símbolos.

Michel Schweizer convidou-os para o seu espectáculo porque se interessavam pela questão da transformação do sujeito nas nossas sociedades… De que maneira isso se transpõe para os vossos respectivos domínios? Jean-Pierre Lebrun: Vejo que, no meu trabalho, as coisas não vão por si e impõem-se muito aos meus colegas. Estão ligadas a uma modificação do sujeito ou a sensibilidades diferentes que têm a ver com as mudanças da sociedade. Penso que a organização “normal” da subjectividade já não se faz do mesmo modo. Anteriormente, a estabilidade do discurso social não nos permitia perceber que o sujeito era tributário em relação à sociedade em que se construía. Um sujeito constrói-se a partir da sua própria história e das capacidades de humanização geneticamente inscritas, mas o discurso social tem também uma grande incidência, nomeadamente através da educação. Tento compreender estas incidências e deslocar o eixo habitual da psicanálise para poder ter em conta a maneira como o discurso social interfere na constituição do sujeito. Identificámos, por exemplo, há cerca de vinte anos, que certos pais já não sabem dizer não aos seus filhos, o que pode ter incidências muito importantes. Vemos também, ainda hoje, um grande aumento dos vícios. Todas estas mudanças clínicas levam ao crescimento do psico-médico-social. Dany-Robert Dufour: De minha parte, parti da hipótese de uma mutação história chamada “pós-modernidade”, e que significa o esgotamento das grandes histórias. Penso que as artes registam algumas mudanças contemporâneas, prevêem-nas, fazendo assim parte de uma clínica social. Beckett foi um dos primeiros a notar o fim das grandes histórias que organizam as grandes economias humanas. À espera de Godot anuncia que nunca mais seremos salvos, o que constitui uma mutação antropológica considerável. Na modernidade e nos períodos pré-modernos, podíamos ser salvos por uma figura central que segurava o conjunto. Na Antiguidade Grega, tratava-se da fusis, a natureza e os seus múltiplos deuses. O sujeito encontra-se perdido porque não sabe o que o Outro deseja. É por isso que é necessário interrogar e praticar a divinização. O que traz configurações complexas, como no caso de Édipo, onde ao fugir ao oráculo, realizamo-lo. É a condição trágica. Em seguida, surge uma nova

figura com os monoteísmos, onde Deus se torna transcendente e se coloca infinitamente longe dos homens. A questão, neste caso, é de saber quais são as relações que posso ter com este Deus que guia a minha existência. Agostinho dá-nos a resposta: há uma voz em mim que fala, e essa voz é a de Deus. É a primeira aparição da noção de pessoa. E depois de Deus, está o Rei, que reclama os seus direitos divinos. Mas ele desceu à terra e começámos a negociar com ele, o que determinou novas formas políticas: o absolutismo e a democracia parlamentar. Na Revolução Francesa, o Povo torna-se, de novo, num Grande Sujeito. Organiza-se com o regime republicano, onde se edificam uma série de templos marcados pelo lema “liberdade, igualdade, fraternidade”. É o lema por onde o soberano abstracto reina. Depois, no século XX, surgem duas novas ocorrências: o proletariado e a raça. Como o proletariado não existe, é preciso que alguém fale no seu lugar: será o estalinismo e os seus desvios. Quanto à raça, se não fizerem parte dela, têm que ser exterminados: trata-se do nazismo. No final desta época histórica, não existe mais um Grande Sujeito que permita ao indivíduo construir-se. É o que caracteriza a pós-modernidade. O sujeito está numa situação totalmente nova: deve-se fundar por si só, sem passar por terceiros. Todas as grandes economias humanas vêem-se afectadas: a economia psíquica; a economia de mercado, que passou de um modelo keynesiano para um modelo liberal, avançando um sujeito que apenas pode funcionar a partir dos seus próprios interesses egoístas; a economia simbólica, porque já não funcionamos relativamente a terceiros mas numa relação directa com o Outro; e a economia semiótica, pois as nossas maneiras de falar e contar as coisas poderão já não ser as mesmas, e que com a ausência de um grande sujeito tenhamos que contar os nossos pequenos feitos pessoais, como podemos constatar na literatura contemporânea. Pensam que a estrutura psíquica dos indivíduos, hoje em dia, possa ser radicalmente transformada pelo seu ambiente, assim como pelas consequências de uma economia liberal? J-P. L.: Não acredito que assistamos a uma nova economia psíquica que seja totalmente diferente da precedente, mas não ficaremos intactos perante os novos processos sociais. A novidade consiste,

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talvez, em adaptar os processos da estrutura psíquica. A importância que tem para uma criança, por exemplo, ter uma mãe que assegure os primeiros cuidados, um pai como extensão para se passar para o campo social, dava-nos uma trajectória bastante clara para um sujeito: deixar a relação de proximidade com o primeiro Outro, que é a mãe, para tomar o nosso lugar no corpo social. Mas eis que, devido ao desabamento do patriarcado, as estruturas sociais de ontem se encontram quase reduzidas a zero. Vemos também, hoje em dia, uma grande dificuldade dos homens que se tornam pais para encontrar uma legitimidade em apoiar a criança no seu esforço de deixar a mãe. Esta personagem encontra uma nova via. Creio que o génio de Freud está justamente em ter mostrado que existe uma necessidade de perda onde o homem se humaniza, e que mete em prática a linguagem. É o processo da humanização em si. Com o patriarcado caído, o sistema propõe que seja o Mercado a substitui-lo. O constrangimento de deixar a mãe pelo sistema de educação já não funciona. Peguemos num exemplo: em certas creches, as câmaras de vídeo permitem às mulheres, hoje em dia, seguir os seus filhos. Enquanto que a creche é o primeiro sítio onde se deixa a mãe, fornecemos agora meios para nunca a deixar. Levará isto a uma nova economia psíquica? Não creio, mas julgo que vai influir consideravelmente sobre as estruturas que funcionaram durante séculos. Kant lembra que o Homem é o único animal obrigado a ser educado. Não nascemos um Homem, temos que nos tornar num. A perda, representada pelo Grande Sujeito, era aceite por todos. Hoje, ela é suspeita. Mas pôr o nosso ego em primeiro, como gostaríamos de fazer hoje, consiste em fazer acreditar que a perda já não é necessária. Ora, se esta perda já não é assumida pelo sujeito, já não há desejo possível; permanecerá colada ao gozo. É o que mostra a irredutibilidade da estrutura psíquica: toda uma sociedade convence-se que o que importa é ter à disposição o objecto que nos falta para sermos felizes, e isso é uma verdadeira contravenção às leis da humanização. Não é a mesma coisa dizer “deverão viver com essa radicalidade da perda que é parte da condição humana e social” que dizer “terão sempre os meios de evitar a perda e de vos distrair da vossa procura de um objecto que vos será dado pelo consumo”. Noutros tempos, teríamos apenas pessoas em dificuldade com os seus desejos, enquanto que agora temos pacientes que nos dizem “está tudo bem, mas nada está bem. Já não sinto desejo.”. E ficamos com o sentimento que isso tem uma ligação com a sociedade que nos engana sobre os riscos do que deveria ser um sujeito desejante. Muitos trabalhos sustentam a importância do simbólico, tais como os de Bernard Stiegler, que nos fala de uma deficiência do simbólico que não está isento de consequências nas nossas sociedades… D.-R. D.: A questão antropológica do enquadramento simbólico do vivo é decisiva, pois os homens não são apenas uma espécie viva, mas também falante. Se apenas fôssemos vivos, teríamos na nossa biologia um instinto que nos permitiria uma “vivência conjunta”, como uma manada de lobos. Mas o Homem não é uma espécie “conduzida por natureza”, precisa de um enquadramento simbólico que sus-

tenha a comunidade. Com o liberalismo, surge na História uma nova modalidade do enquadramento simbólico. A ruptura aparece com o liberalismo inglês do século XVII, onde a palavra de ordem foi a liberalização das paixões: “deixar fazer, as paixões auto-regular-se-ão, não se deve intervir”. A difusão desta ideia levou-nos à libertação dos egoísmos e dos vícios privados, onde cada um deve procurar o seu interesse. A partir daí, dizemo-nos que já não precisamos de terceiros, já que o jogo múltiplo das paixões irá equilibrar-se para regular o conjunto. O mercado funciona, desta maneira, como Grande Sujeito. Mas este funciona como uma rede de trocas sem limite, onde as pessoas se ligam e se separam quando quiserem, ainda que isso deixe os indivíduos órfãos das suas questões de origem, que ainda existem como tormento: onde estamos, de onde viemos, para onde vamos? A questão da finalidade é posta de lado porque vivemos num presente generalizado. Esta tentativa de nova organização conduz-nos a derrapagens, nomeadamente no não-reconhecimento daquilo que devemos renunciar para nos constituirmos. Antigamente, pensávamos que seria preciso renunciar a uma liberdade original para aceder a uma liberdade crítica. Era o imperativo kantiano. Mas não é mais necessária uma liberdade crítica, logo, já não é preciso pensar. Creio que estamos no centro de uma nova regra quando dizemos, em Bleib: “Parem de pensar, despendam!” Mas poderá o Capital tomar o papel de um Grande Sujeito? J.-P. L.: O discurso que temos no espectáculo sobre as incidências subjectivas e colectivas desta mutação poderá fazer pensar que assistimos a uma liquefacção generalizada. Ora, a nossa posição é apenas não ceder sobre o que é irredutível. Mas também é preciso as-sumir o facto que esta mutação quer levar em conta os impasses do patriarcado, que é outro sistema simbólico e que nos levou, nomeadamente, às catástrofes do século XX. Estas questões atravessam as gerações do pós-guerra, como mostra o romance As Benevolentes de Jonathan Littell, mas que teríamos nós feito na época da Segunda Guerra Mundial? A questão já não é de saber se eu teria resistido ou não, mas se eu teria tido a possibilidade de desobedecer civilmente. Não se trata de ser uma espécie de pureza, mas de saber qual é a via a manter para não destruirmos as possibilidades da nossa própria existência… Porque participamos todos, de maneira singular e colectiva, nas mutações extraordinárias das nossas sociedades.

Dany-Robert Dufour é filósofo, um especialista do pós-modernismo. Publicou On achève bien les hommes (Denoël, colecção “Médiations”), uma reflexão sobre a existência de Deus, assim como L’Art de réduire les têtes. Jean-Pierre Lebrun é psiquiatra e psicanalista. Interessa-se pelas consequências da organização social no psiquismo. É o autor de Un monde sans limite, essai pour une clinique psychanalytique du social (Erès) e de L’Homme sans gravité. Entretiens avec Charles Melman (Denoël). Textos publicados em colaboração com a revista Mouvement.

bLEIB opus #3, de Michel Schweizer, apresenta-se a 5 e 6 de Junho, às 21h, no Teatro Maria de Matos

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CHÁCARA PARAÍSO

texto Paulo Raposo

O teatro de Stefan Kaegi e do colectivo Rimini Protokoll parte do quotidiano para criar um outro universo onde ficção e realidade se confundem. O sociólogo Paulo Raposo traça o perfil desta companhia quando o Alkantara recebe a peça Chácara Paraíso.

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A relação da antropologia com as artes performativas é algo que me fascina desde há muito tempo. Em boa verdade, George Gurvitch ou Erving Goffman já haviam nos anos 1950-60 enunciado os princípios do chamado modelo dramatúrgico para a análise da vida social quotidiana; tudo o que fazemos nas nossas vidas seria legível pela linguagem teatral; e na expressão dessa linguagem teatral surgem as noções de actor social, papel social, interacção social, bastidores, palco, fachada… A partir dos anos 80, a antropologia da performance começou a esboçar novos contornos para este diálogo entre ciências sociais e artes (performativas, em especial), em particular com a contribuição de autores como Victor Turner e Richard Schechner. Agora, o eixo deslocar-se-ia dos modelos centrados nas gramáticas culturais (competências), para os centrados nas performances (desempenhos). Acresce ainda a ideia de que a antropologia da performance poderia justamente estudar uma espécie de “contrateatro” da vida quotidiana, ou seja compreender a vida social a partir de momentos de suspensão dos papéis sociais, por exemplo em rituais, em eventos ou em performances culturais – designações exploradas nesta abordagem. No limite, a vida quotidiana poderia ser legível como uma espécie de metateatro. O teatro documental de Stefan Kaegi, um dos criativos do interessantíssimo projecto Rimini Protokoll, composto Helgard Haug (1969), Stefan Kaegi (1971) e Daniel Wetzel (1969) é talvez uma espécie de dupla inversão deste enfoque: por um lado, é assumidamente a vida quotidiana que é transportada para o palco; mas por outro, o metadiscurso teatral - texto, não é talvez a melhor expressão no caso do teatro de Stefan Kaegi - torna-se uma mixagem, um quase um pastiche reflexivo dos discursos, das narrativas, das estórias sobre as “vidas reais” dos actores-pessoas, ou dos “especialistas da vida quotidiana”, como sugere Stefan Kaegi. Este modelo de teatro documental – com amplos cruzamentos de linguagens que vão do vídeo-art à instalação, do documentário à performance, do texto ao improviso, etc. – coloca-me para já uma primeira questão: em que medida estes actores-testemunhas são em última instância, uma espécie de super-marionetas (no sentido de sugerido por Edward Gordon Craig) ou talvez melhor ainda, a performance de não-actores que actuam num enorme cenário integrador? Em Mnemopark [apresentado na Culturgest de 12 a 14 de Abril 2007], a cena é ela própria um modelo de (outras) cenas e estes “não-actores” transmutam-se sob efeito de alterações paradoxais e fluidas de escalas – de um mundo liliputiano para um gigantismo hiper-realista. Esta proposta evoca-me frequentemente uma expressão cara por exemplo ao teatro de João Brites e do Bando com as suas máquinas de cena, em que tudo se condensa nelas próprias – texto, actores e contexto de actuação. ESPECIALISTAS DO QUOTIDIANO Stefan Kaegi prefere falar em pedestal, altifalante, lupa…estaremos a pensar numa espécie de poesia visual em que o actor tradicional ou mesmo o performer perturba? Será, finalmente, esta proposta teatral de Stefan Kaegi um metateatro do quotidiano? De facto, quando assisti a Mnemopark senti, repetidamente, uma espécie de desmontagem do D-effect brechtiano, mas um efeito de estranhamento do quotidiano que era ele próprio produzido por “especialistas do quotidiano” e não pelo actor que se descola do papel para se dirigir ao público, instalando nesse momento uma representação

na terceira pessoa. Kaegi transporta, tele-transporta também por efeitos videográficos, sequências experienciais de sujeitos situados, com quotidianos particulares, para dentro do palco. Camionistas na Bulgária [Cargo Sofia- X, A Bulgarian truck-ride through European cities, 2007], polícias no Brasil [Chacará Paraíso, 2007], modelistas e amantes de comboios na Suíça [Mnemopark, 2005] ou empregados e call-centers na Índia [Call cuta in a box, 2008, estreou a 2 de Abril em Berlim, leia na próxima OBSCENA a crítica], e suas histórias de vida assumem por instantes a categoria de “especialistas do quotidiano” neste teatro documental. Teatralizar vidas, trazê-las para palco, contar histórias é não apenas um acto de mnésis (recordação) mas também de performance. As palavras/histórias verbalizadas – enquanto texto dramático – tornam-se elas próprias, acções, actos. Tal como os antropólogos, depois de John Austin, perceberam que certas elocuções como “eu prometo” ou “eu desafio” ou “eu aceito” não apenas descreviam mas faziam coisas, no teatro de Kaegi estas vidas narradas em palco, re-fabricadas e re-visitadas, não apenas descrevem coisas mas fazem coisas. Duplamente, uma vez mais, porque para além de relatarem fragmentos, eventos, histórias são expostas/performadas para serem apreendidas/vividas pelo público. A textualidade neste teatro documental é necessariamente performativa, mas será reflexiva? Será um teatro empenhado, comprometido, um teatro de intervenção, digamos com ironia, pós–pós-moderno? Efectivamente, a exposição de temáticas sociais resultantes de tensões conflituosas, e por vezes o conflito teatral decorre do conflito social – vejam-se exemplos no teatro de Kaegi: polícia/favela; agricultura/indústria e urbanidade; tradição/modernidade; parlamento 1/ parlamento 2, etc. –, podem ser objectiva e neutralmente discutidas, apresentadas, reveladas no palco com alguns dos seus protagonistas. Mas que neutralidade documental se procura? Ela existe ou é subtilmente contornada? Eventualmente, a crueza da exposição sem demorados requintes (embora com retoques) investidos de exclusiva natureza estética poderá tornar invisível um posicionamento explícito, um investimento ético e ideológico ou uma postura implicada (com a “realidade” re-apresentada). A minha formação antropológica compele-me de algum modo a pensar na sua experiência etnográfica enquanto uma gestão de modos de percepção e de compreensão da realidade que se localizam entre uma vivência sensorial (sobretudo, visual e acústica) e uma vivência reflexiva mediada (o escrever – notas de campo e ensaios – ou o filmar). Todavia, ambos os dispositivos são mecanismos de percepção e de reflexão cognitiva. Ver significa necessariamente manipular categorias cognitivas, porque vemos com grelhas sociais e culturais (para além das biológicas) que condicionam a percepção ainda que, simultaneamente, os sentidos permitam construir formas de pensamento. Ou seja, sentimos a partir de categorias do pensamento, mas também pensamos com os sentidos. Um conceito de um filósofo alemão, Wilhelm Dilthey (1833-1911) – erlebniss (experiência vivida, tradução possível) – pode ser aqui evocado. Este foi definido como uma experiência que acontece ao nível da percepção, que pode ser evocada, revivida emocionalmente, colocando passado e presente numa “relação musical”, de acordo com a analogia de Dilthey, descobrindo significados e revelando-se finalmente numa forma de expressão (performance). A experiência vivida de Dilthey é algo que se completa e realiza inteiramente no momento da expressão performativa. Permito-me pensar, neste sentido, o tea-tro de Stefan Kaegi como uma experiência vivida, absolutamente

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performativa uma vez que completa, realiza, exprime experiências reevocadas, restauradas e re-apresentadas em palco. Mas talvez seja algo mais que isso, uma vez que essa experiência vivida é duplicada no acto performativo para os actores que a performam/exprimem, e em certo sentido, para a audiência que se sente a participar também de uma experiência vivida. Perguntemo-nos então que consciência reflexiva traz aos actores, aos “especialistas da vida quotidiana” esta performatividade dos (seus) quotidianos? E aos públicos? Há impactos nos seus participantes que tornem este teatro, um teatro causador de efeitos semelhantes ou próximos aos do chamado teatro comunitário? No espectáculo Chácara Paraíso parece bem evidente a tentativa de expor uma latejante tensão que existe entre estado policial e favela que permitiu de certa forma multiplicar olhares, pontos de vista, ângulos e até atitudes entre estes diferentes e tensionais protagonistas. ETNOGRAFAR E REVELAR A arte permite muitas vezes a exposição no limite do possível…e até para lá dele. Recordo aqui o recente e muito polémico acto criativo que um artista costa-riquenho, Guillermo Habacuc Vargas, protagonizou deixando morrer um cão (vadio) numa galeria de arte. A arte possibilita a ilusão, o abismo, a desconstrução social e moral dos sujeitos retratados, intromete-se na cenografia e na maquilhagem do real. A ciência, mais aprumada certamente e eventualmente mais tradicional, imagina-se como eticamente responsável entre o anonimato credível e a revelação tácita, cúmplice. A ciência contemporânea reclama e suspira por princípios éticos para interpretar o real, mesmo que o recrie sistematicamente. Mas as fronteiras destas linguagens não são intocáveis, intangíveis. As ciências sociais, que melhor conheço, e a antropologia em particular, de que sou seu executante, têm produzido ligações instáveis mas fervilhantes com os discursos artísticos. Etnografar – que é aquilo que fazem os antropólogos – para além de ser uma experiência vivida pelo antropólogo, é também um exposição, uma revelação de experiências vividas, ou seja, em certo sentido, uma lupa, um altifalante, um pedestal. Muitos etnógrafos sentem-se compelidos a discutir os efeitos do uso do seu conhecimento, os movimentos de vai-e-vem entre a produção de saber e o consumo reapropriado desses saberes, por isso fervilham em debates acerca de uma certa ética possível, uma ética do compromisso entre agentes inter-actuantes (antropólogo e os seus “nativos”); obviamente, nem sempre resolvidos. E na arte? E no palco, nos ensaios, nas selecções de excertos, na montagem, na direcção do script? Quais os compromissos éticos? A exposição destes “especialistas da realidade” vai até onde? Finalmente, até que ponto é que esta exposição do “outro” (actor-pessoa, ou testemunha ou o não-actor) é uma forma de camuflagem do “eu” (encenador-pessoa)? Para Craig, o actor super-marioneta permitia dizer o que o discurso cenográfico representava, e aqui, no teatro documental de Kaegi, onde mora o discurso do encenadorpessoa?

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CHÁCARA PARAÍSO

www.chacaraparaiso.org

texto Francisco Valente

texto Vanda Piteira

Chácara Paraíso é o ponto de choque entre arte e realidade, onde a

Chácara Paraíso é uma instalação dirigida por Lola Arias e Stefan Kaegi, que une o registo documental ao universo ficcional e que acontece em São Paulo, no 14.º andar do SESC da Avenida Paulista. Chácara Paraíso é o nome do maior centro de formação de soldados da Polícia Militar da América Latina, no bairro de Pirituba, São Paulo, onde diariamente polícias simulam situações reais. A instalação parte da experiência obtida por Lola Arias e Stefan Kaegi nesta “escola de polícia”, e apresenta biografias de policias, ex-polícias e familiares de polícias, de pessoas que em algum momento da sua vida se envolveram no universo policial. No espectáculo não há actores, mas personagens reais que, seleccionadas a partir de anúncios de jornal, reconstroem cenas da sua própria vida perante um público organizado por grupos de 1 a 6 pessoas. A entrada do website [http://www.chacaraparaiso.org/] ilustra a planta de um apartamento, o 14.º andar da Avenida Paulista. É neste o cenário, composto por 20 divisões, que o público é convido a percorrer ao longo do espectáculo, das quais fazem parte os 13 quartos ocupados por cada uma das personagens da peça. No website trilingue (português, alemão e inglês) o utilizador/espectador é convidado a entrar nos quartos e a conhecer as personagens. Estas desvendam as suas histórias. Por aqui podemos ver que a projectada sala de reuniões do 14.º andar foi agora transformada no canil desta comunidade policial, ou que, a antiga sala de reuniões é agora a sala de um Inspector. Chacaraparaíso.org dá-nos ainda conta do processo de construção da instalação, elucidando o público sobre a sua concepção e fornecendo-lhe pistas para o seu melhor entendimento, através da definição de carácter de cada personagem, da descodificação da linguagem técnica utilizada pela polícia, da descrição dos objectos cenográficos utilizados e das coreografias recriadas.

fronteira entre a vida e a sua representação se dilui num ponto tão imperceptível quanto violento. Assim, um ponto onde abdicamos, por ventura, da nossa própria singularidade para cairmos na abstracção (ou realidade) de uma representação treinada, uma amostra de nós próprios, agora já transformados em símbolo de uma estrutura ou de uma ideia, seja ela artística, de sociedade, ou de convivência entre os homens. Assim, Chácara Paraíso começa por ser, antes de mais, a maior academia de formação policial da América Latina, baseada em São Paulo, e que acolhe mais de dois mil soldados, seguidores de um treino rígido, sensorial e obsessivo, na vontade física de nos dar um novo modelo comportamental, como um novo papel de um actor que sabe que nunca poderá falhar, no fundo, como um polícia. A argentina Lola Árias e o alemão Stefan Kaegi juntam-se pela primeira vez para ir ao fundo desse treino, dessa opção de vida e da marca que deixará no futuro “real” ou “fingido” das pessoas que o seguiram, tanto recrutas, familiares, profissionais de carreira ou simples indivíduos que aí chegaram, como que por acaso, no teatro das suas vidas. Após a visita a centros de formação, o estudo do seu seguimento psicológico e da audição de relatos de anónimos e identificados que por lá passaram – actores e vítimas das suas profissões e vidas –, formou-se a instalação-performance que nos chega de São Paulo. Após a publicação de um anúncio de jornal a convidar qualquer pessoa que tenha tido contacto com a actividade policial, tanto por experiência pessoal como profissional, e depois da escolha dos “voluntários”, criou-se o percurso agora existente de cada um deles, biografia e arte inspirada na intervenção do crime e da segurança pública nas suas vidas. Histórias de formação e treino, de sobrevivência e de morte, relatadas pelos próprios, entre o documentário e a ficção, que chocam com o público que percorre as várias salas da instalação, e que assim entra na recriação das suas vidas. Saímos como suspeitos, tal como se observam outros no início da instalação, reconhecendo o palco de um percurso que se estende para rua, local de encenação do nosso perigo e segurança. Chácara Paraíso apresenta-se de 23 a 26 no Palácio de Santa Catarina, junto ao Largo do Adamastor.

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texto Elizabeth Zimmer

“Lutamos para criar ao vivo uma situação perturbante e que exija a presença total de todas as pessoas que estejam na sala”, diz-nos a descrição oficial do Nature Theatre of Oklahoma [NTO]. “Usamos objectos readymade que estão à nossa volta, o espaço que encontramos, as palavras que vamos ouvindo e os gestos que observamos; e através de uma manipulação extremamente formal e de um esforço sobre-humano, fazemos, dentro do nosso trabalho, uma viragem na percepção da realidade quotidiana que vai para além do local da performance, entrando ainda no mundo em que vivemos.” Embora um dos seus fundadores, o director eslovaco Pavol Liska, tenha vivido em Oklahoma, um Estado do Sudoeste, o NTO está, na verdade, baseado em Nova Iorque. Liska, de 34 anos, e Kelly Copper, sua cônjuge um pouco mais velha e co-directora da companhia, vivem juntos há catorze anos num estúdio minúsculo em East Village. Conheceram-se na faculdade há mais de uma década, e tiraram o nome do grupo de Amerika, o romance inacabado de Franz Kafka. Liska diz-nos que, na verdade, é um jogador de hóquei, e que o seu pai era treinador de hóquei. O seu processo de trabalho aproxima-se mais do desenvolvimento de uma equipa ganhadora do que dos hábitos teatrais convencionais. Abundam as metáforas desportivas no seu discurso. “Lido com ensaios como se lidasse com treinos de hóquei. Nunca diríamos a um bom jogador de hóquei algo como: vai patinar pelo lado direito do campo. Treinamos os jogadores para lidarem com qualquer situação que se apresente, trabalhando com o que se encontra exactamente na sala.” De 4 a 7 de Junho, Lisboa verá o NTO em No Dice, uma “peça de jantar” de quatro horas que reproduziram pelos Estados Unidos e pela Holanda, Áustria, Alemanha, Bélgica, Islândia, Noruega e Itália desde o princípio de 2007.

“O teatro de jantar é o kabuki da América”, diz Liska. Os espectadores devem chegar com fome; o preço do bilhete inclui uma refeição simples de Dr. Pepper com uma sanduíche mista ou de manteiga de amendoim e geleia que é servida antes da peça começar. A refeição mantém-se de país para país, incluindo os M&Ms que vêm no intervalo. “Tivemos que andar à procura de Dr. Pepper e de M&Ms”, diz Cooper, “mas encontramo-los em todo o lado.” Liska arranja o seu cabelo fino com um penteado à Tintim; encontramo-lo no seu estúdio de ensaio vestido de preto e com ténis dourados. As tranças longas de Cooper assentam na sua cabeça num estilo antiquado que condizem com a sua pequena beleza. “Percebemos que decorar o texto é a parte menos interessante de ser actor”, diz Liska. Assim, o guião para o espectáculo, condensado por Cooper de cem horas de gravações de conversas telefónicas com amigos e parentes do casal, está gravado em iPods que os actores usam na performance, fornecendo-lhes as suas falas. “Para nós, era importante preservar a forma real e o timing de uma conversa”, diz Liska. O desafio deles estava em tentar descobrir “como tornar o acto de conversar em algo estranho.” Como ensaiam o espectáculo quando os actores não têm que decorar as suas falas? “Eu não dirijo”, diz Liska. “Eu treino. Os actores não ensaiam, treinam”. O NTO quer tornar os seus membros “mais atentos, superhumanos, capazes de pegar no que se está a dizer e exteriorizá-lo de forma perspicaz”, Querem produzir “um homem-modelo que consiga captar a maior quantidade de informação humanamente possível.” “Estamos a reconsiderar tudo o que o teatro dá por garantido”, diz Liska. “Porque funciona ele se pusermos um bigode a alguém? Ou uma cortina à volta do espaço, alguém de surpreendente, pessoas com um sotaque estrangeiro, ou uma cabeleira? Quais são as ca-

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pacidades que as pessoas apreciam no teatro? O que faz o teatro ser teatro? Nós não somos autores; as palavras vêm de outras pessoas. Não somos encenadores, não somos coreógrafos, e os actores não são actores.” “Se pusermos uma pessoa atrás de outra, porque é que isso é inerentemente dramático?”, pergunta-se Cooper. Liska veio para os Estados Unidos quando era adolescente. Em Dartmouth College, Hanover, New Hampshire, conheceu Cooper; o casal passou basicamente a comandar o pequeno departamento de teatro escolar como se fosse o seu próprio recreio. Depois da licenciatura, Cooper, que cresceu a Oeste, foi estudar com Mac Wellman no Brooklyn College, enquanto Liska entrou no curso superior de encenação da Universidade de Columbia em Nova Iorque. Diz o encenador Brian Kulick, que dirige o Classic Stage Company de Manhattan: “Pavol foi aluno de Anne Bogart e também meu aluno em Columbia, mas já estava totalmente formado. É um artista extraordinário. Adoro a sua tenacidade. Passou todos os dias de um Verão inteiro na livraria da NYU a estudar Tchékhov porque ia encenar As três irmãs. É um estudante sério. Ele e a Kelly empenham-se a fundo em tudo o que desejam dedicar-se”. Kulick pediu aos seus estudantes para encenar um coro grego. “Pavol fez o seu no metropolitano; fez os actores irem para lá e escrever tudo o que as pessoas faziam enquanto esperavam pelo metro. Era deslumbrante, lindo, tocante. As mostras do Pavol enchiam-se completamente de pessoas. Sabíamos imediatamente que se tratava de um jovem artista muito importante, uma coisa séria. Aprendi mais com ele nos três anos em que esteve em Columbia do que ele alguma vez aprendeu comigo”. Liska aprecia um processo de longa gestação, nota Kulick; o título No Dice significa, segundo pensa, em “não participo neste jogo americano”. “Começámos do zero”, diz Liska. “O que é encenar? É mover as pessoas no tempo e no espaço. O teatro mais primitivo era baseado na tradição oral. Não fazia sentido o teatro ser gerado por um autor que não participa no processo. Queríamos encontrar uma maneira de desenvolver o texto de forma pública – o que acabaria por ser feito por telefone.” Assim, na Primavera e no Verão de 2006, enquanto os vários actores trabalhavam nos seus “trabalhos de dia”, começou a gravar as suas conversas de telefone, que passariam depois para o guião de No Dice. Procuram espaços alternativos para fazer o espectáculo. “Quando as pessoas entram na sala”, diz Cooper, “não sabem em que pensar. Vêm para ter uma experiência em vez de terem uma ‘experiência de teatro’.” Com o guião já escrito, juntam os blocos e os gestos como um baralho de cartas (sem dados!). Cada parte representa um grupo diferente de treze movimentos. Segundo Liska, “existem treze pares de posições. Não existem bloqueios, mas sim regras. O seu objectivo é criar oportunidades para os seus colegas actores. Aplicam-se constantemente num presente em contínuo.” As roupas foram simplesmente encontradas no espaço de teatro de crianças onde o grupo trabalha. O cenário inclui um relógio, sempre em posição central, e uma peça rudimentar de cortina que se prende acima do espaço performativo. “O tempo é a nossa principal preocupação”, diz Liska. “Esculpimos o tempo. Não quero que as pessoas saiam depois de vinte minutos. Sou responsável pelas horas que quero que estejam lá.” O Nature Theatre of Oklahoma apresenta No dice entre 4 e 7 de Junho, às 20h, no Espaço da Escola Politécnica

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Se a dança de Jonathan Burrows nos levanta muitas questões, estava na altura de alguém lhe responder. Lançámos o desafio ao coreógrafo e bailarino norte-americano Tommy Noonan que escreveu uma carta aberta com novas perguntas, naturalmente. Caro Jonathan, As suas danças têm um significado? Significam alguma coisa? Será que as pessoas dizem: “o Jonathan está a trabalhar com símbolos”, ou “ocupa-se com semióticas”? Ou abstracção? Simplicidade? Humanidade sobressaída do virtuosismo, acção complexa? Dirão as pessoas: “quero ser como o Jonathan quando for grande, ele é tão simpático”? Será que lhe dizem na rua, no campo de golfe, numa sala: “físico, conceptual, físico, conceptual!”. Estará a comentar? Terá alguém que comentar sobre si antes que os seus comentários sobre alguém sejam compreendidos? Estará a reagir? Será um produto das circunstâncias? Será genuinamente pós-irónico, ou simplesmente genuíno? Estará no fim de alguma coisa ou apenas a começar? Será que se fechou num canto? Darão os cantos uma protecção estratégica e segurança contra o ataque em pelo menos duas direcções? Terá limpado o seu percurso? Precisará este de ser sujo, pode-se limpar um percurso já por si limpo? Como temos a certeza que estamos todos a limpar o mesmo? Será o seu trabalho misterioso? As pessoas olham para o seu trabalho e perguntam: “Jonathan, o suspense da complexidade estrutural combinada com a abstracção formal evoca um certo e intangível je ne sais quoi presente nos grandes trabalhos”. As suas danças são políticas? O Jonathan é político? Podemos deixar de ter opiniões neste momento? As pessoas gostam do seu trabalho na Grã-Bretanha? Será que dizem: “credo, este trabalho é mesmo britânico! Eu sou britânico! Este momento no tempo, esta experiência é indubitavelmente britânica na sua quintessência!”. Quanto se senta na sua cadeira, as pessoas dizem baixinho do seu balcão: “olha, ele teve treino clássico! Dá para ver pela maneira como os seus polegares se mexem”. De que maneira as suas últimas três danças usam The cannon? As suas danças criticam as de Jérôme Bel? Estará este confundido pela incumbência de Gordon Brown? Porque fala pela dança? Um discurso de dança seria suficiente? Seria isso subversivo ou mais inteligente? O que considera a ferramenta mais importante do génio contemporâneo? Serão os génios melhores artistas que nós? O Jonathan é corajoso? Diz a si mesmo de manhã: “sou tão corajoso, sou mais corajoso que a maior parte das pessoas que não criam arte e apenas passam o dia inteiro no parque”? Tem medo que as pessoas lhe digam: “Jonathan, quando levantou aquela placa que dizia GALINHA, vi a luz do destino atravessar o campo da minha juventude”? Porque cria danças na sua sala em vez salvar crianças? Não será isso mais importante? Será que cria danças na sua sala porque não há nada mais divertido para fazer quando está no estúdio, e assim vai para casa e para a sua sala, o que acaba por ser mais divertido porque tem Internet, dvd’s e livros? Quanto é que um espaço de ensaio custa na Inglaterra? Para onde se vai daqui? Será ainda razoável tornar-se cada vez mais simples? Porque será

que precisamos de ver simplicidade, transparência e presença, mais do que ilusão, virtuosidade e ficção? Porque não faz uma peça sobre racismo? Ainda vai a aulas de dança? Aquece os seus dedos com uma pequena dança de dedos, fingindo que são duas pequenas pernas a fazer a rotina de um movimento de refrão? O que será que a oligarquia pensa do seu trabalho? Alguma vez fez peças a pensar na oligarquia? E em relação à elite militar? Porque é a honestidade melhor que a desonestidade quando actua para a Rainha? Confia no governo? Alguma vez transcende-se, só pela piada? Acredita que, no futuro, irá existir um comprimido que nos fará sentir que tivemos a mais bonita e tocante experiência teatral das nossas vidas recentes – uma que também nos tenha confrontado com uma série de desafios políticos e intelectuais profundamente relevantes, sem mencionar o facto de nos deixar com uma sensação dolorosa de inquietação pessoal e existencial? O Jonathan e o Matteo alguma vez gritam alternadamente com o director técnico que se recusa a colocar a garrafa de Perrier daquela maneira? Precisa de uma árvore de bambu no seu quarto de hotel cada vez que faz uma digressão do seu trabalho? Quando não há uma árvore de bambu, chora até que a empregada venha colocar uma toalha fresca na sua testa? Será que se dizem um ao outro: “olha, Matteo/Jonathan, hoje em dia a pintura está péssima. Viste a exposição do Lucien Freud? Respeito mesmo o facto de ele ainda pintar pessoas num estilo académico quando a tendência geral está na arte conceptual e minimalista. Já ninguém pinta pessoas feias e gordas daquela maneira”. Gostou de ver O diabo veste Prada, com a Meryl Streep e a Anne Hathaway? Pensa que elas têm uma boa química de ecrã? Está preocupado com o número de pessoas que estão sempre a culpar os seus problemas no mercado? Acredita que as democracias são naturalmente pacíficas entre elas? O que acha de colectivos? E utopias? E que tal dinotupias (que são utopias, excepto para os dinossauros)? O que acha dos desenvolvimentos mais recentes sobre a situação na escola de dança? Ou sobre o novo director que costumava ser interessante mas que depois ficou esquisito no final dos anos noventa, e agora a sua programação é tão segura que está apenas a tentar fazer parte de um circuito internacional de festivais e meu deus, isso vê-se tanto? Tem um armário especial cheio de fatos iguais, pendurados uns ao lado dos outros, tal como um super-herói? Quanto dinheiro é que faz? Gosta do trabalho de Hajime Fujita? A lei dos dois pés aplica-se às pessoas com apenas um ou a pessoas sem pés? Porque temos que ser críticos mais uma vez? O que acontece se formos radicalmente acríticos? Alguma vez teve a ideia de criar danças na sua sala, mas depois fazer um grande cenário de palco com uma réplica da sua sala, e levantar o seu punho assertivamente sobre a falsa mesa na

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sua falsa sala e dizer: “A CASA DE UM HOMEM É O SEU CASTELO”! Acredita que temos todos que concordar com o que acabou de acontecer – ou seja: “bom, isto e aquilo aconteceram mesmo agora, certo?

Ainda bem que concordamos. Teve uma experiência subjectiva? Eu também não. Ainda bem.” Qual é a diferença entre falar sobre dança e articular dança?

texto Virgínia Mata

Irão as suas danças ser lembradas como um momento que define qualquer coisa em particular? Um momento particularmente definidor? Tem medo de querer dizer alguma coisa que não seja aquilo que quer mesmo dizer? O que gostaria de ver no teatro? Alguma vez faz truques mágicos para os seus sobrinhos, todos juntos, numa festa na piscina? O miúdo que estraga sempre os truques mágicos aparece alguma vez nos seus sonhos, indo atrás de si por cima de cadeiras de plástico juntas por cola de dentes com tesouras gigantes e afiadas de jardim? Será esta imagem demasiado óbvia? O Jonathan é um pós-colonialista? Um pós-pós-feminista? Um neo-federalista? A teoria que lê à noite respira pelos seus pulmões como um processo intuitivo refinado e informado a cada manhã no seu estúdio? Quão icónico se sente em relação à actual situação? Está a ir em direcção de algo ou a afastar-se de algo? Alguma vez atirou uma tarte à cara de alguém? Gostou um pouco menos disso do que esperaria? Terá esta revelação algum significado? É preciso acção? Haverá um acordo silencioso entre si e o Matteo que, naquele dia, em que nenhum dos dois se mostrará vitorioso, não terão outra alternativa senão lutarem num duelo até à morte?

Speaking Dance é a terceira parte de uma trilogia assinada pelo

Acha que as perguntas dão uma oportunidade para se dar um testemunho mais dinâmico? Serão elas cansativas, confusas ou irritantes? Acha que dão omissões valiosas de informação verdadeira, ou então nenhum foco real no seu trabalho? Serão elas mais sobre mim ou sobre si? As suas danças respondem às necessidades das pessoas? Em que se preocupa, à noite, quando as persianas estão fechadas e a água pinga no escuro? Preocupa-se sobre cubos de gelo a derreter? Propriedade intelectual? Campanha de reforma financeira? Gostaria de tirar uma fotografia comigo? Haverá algum motivo para discutir, mesmo? Acredita na Revolução Francesa? Pensaria em fazer uma dança sobre uma personagem chamada Capitão Sangue, com música apenas de um trompete de prata; algo demasiadamente ingénuo? Serão as perucas o novo nu da dança? O que tem o seu trabalho a ver com Praga, 1968? Porque não usa mais luz lateral? Alguma vez viu a cultura como uma almofada? Porque não podemos fantasiar? Alguma vez viu aquele Jackson Pollock, que na verdade não se parece muito com um Jackson Pollock porque foi feito antes da sua fase de pintura de acção, e assim é mais ou menos e apenas um quadro de um cavalo e uma carruagem ou qualquer coisa debaixo do céu nocturno?

coreógrafo inglês Jonathan Burrows e o músico italiano Matteo Fargion, depois de Both sitting duet, produzido em 2002 [e apresentado em Lisboa, no ACARTE, no âmbito do festival “Capitals”] e de The quiet dance, em 2005. Recebido com surpresa ou desconfiança, o trabalho destes dois “homens de meia idade, com barriga e evidente queda de cabelo, mais preparados para uma noite de cervejas e máquinas de jogo” (Stage Reviews) parte da construção de sequências simples para procurar um lugar para a dança. Segundo o sítio brasileiro SESCSP “a primeira parte, Both sitting duet, tem o bom-humor como característica. Os dois performers, como o próprio nome diz, fazem a coreografia sentados em cadeiras de madeira e dialogam com mãos e pés. A segunda parte, The quiet dance, é marcada pela forma rítmica e pela força do silêncio na comunicação com a qual os dois artistas interagem entre si e com o público. Na última sequência da trilogia, Speaking Dance, é evidenciada a fronteira frágil entre a música e a dança”. Diz o The Guardian que é um “alívio encontrar na dança moderna [alguém] que promete algo de diferente aos sempre comuns corpos em frenético movimento”. Sarah Franter, do Evening Standart, diz que Burrows e Fargion “conhecem demasiado bem as regras para as quebrarem”, o que se compreende já que Burrows foi intérprete do Royal Ballet e Fargion fez o curso de composição e coreografia da Fundação Calouste Gulbenkian em 1989. Diz a crítica que em Speaking Dance “lá se vai a linearidade, a melodia e a história [para entrar] uma torrente de discurso, música e dança. Há uma absurda repetição de passos desconhecidos, depois declamação de palavras sem sentido, a seguir música fragmentada e um canto de pássaro distante. Há uma linguagem gestual abstracta que não é exactamente dança, depois descrições de dança em vez de dança realmente. Ocasionalmente o duo mexe as pernas, mas assemelham-se mais a homens a virarem espetos, ou a caligrafia humana, do que a ‘bailarinos’ que possamos reconhecer”. Ramsay Burt, numa crítica à trilogia publicada na Ballet-Dance Magazine, refere, contudo, que “é um erro que trabalhos conceptualmente desafiadores ou inovadores como o é esta trilogia, vão deliberadamente contra as expectativas convencionais só porque sim ou por quererem ser modernas. Um trabalho que arraste alguém para fora do seu espaço confortável pode tornar evidentes ideias e experiências que esse alguém não encontraria de outra forma”. Jonathan Burrows e Matteo Fargion apresentam Speaking dance a 3 e 4 de Junho, às 23h, no Museu da Electricidade

Onde estava no 11 de Setembro? As pessoas zumbem à sua volta no foyer, na bolsa, ao telefone, olham para si e pensam: “Jonathan, terão as suas danças significado? Serão danças maravilhosas? Serão aquilo que nós, as pessoas, precisamos?” Diga-me algo. Cumprimentos, Tommy

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fotografia de ensaio de Bahok

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DE PERTO

NINGUEM E NORMAL PÁG. 100

BAHOK AKRAM KHAN PÁG. 103

PUSHED PADMINI CHETTUR PÁG. 104

CHINA WILLIAM YANG PÁG. 106

TEMPEST II LEMI PONIFASIO PÁG. 108

UN AN APRÈS ... NACERA BELAZA PÁG. 110

HARS AYDIN TEKER

Talvez seja uma questão de perspectiva mas tendemos a considerar-nos no centro das definições e a lançar retóricas exóticas para os outros que nos rodeiam. O que significa, então, ser-se contemporâneo na China, na Austrália, na Nova Zelândia, na Turquia, na Argélia, na Índia? E porque insistiremos (se é que o fazemos) em querer ver no outro os nossos códigos, as nossas lógicas, as nossas estratégias de afirmação? Alguns dos mais disruptivos espectáculos que se apresentarão no Alkantara não vêm dos eixos a que nos habituámos. E, no entanto, mostram-se muito mais próximos de nós do que imaginávamos (ou gostaríamos). E se o exótico for só o embrulho de algo que é muito mais profundo e muito menos superficial? E se o mundo, afinal, tiver o tamanho do nosso desconhecimento, onde é que nos posicionaremos?

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entrevista Debra Craine Em 1964, Beryl Grey tornou-se na primeira bailarina ocidental a ser convidada para dançar com uma companhia de bailado chinesa. Tanto se sentiu inspirada como deprimida com o que lá encontrou. Os bailarinos eram maravilhosos e acolhedores, mas a pobreza e despossessão com que lidavam perturbaram a sua sensibilidade ocidental. E as coisas pioraram. Dois anos depois, durante a Revolução Cultural, os bailarinos com quem tinha trabalhado foram enviados para os campos, “tal como camponeses”, dizia ela. Tinham que cavar, arrancar e plantar, não podiam ser artistas porque estes eram vistos como preguiçosos e inferiores. Agora, quarenta anos depois, Grey tem dificuldades em acreditar no quanto a dança mudou na China.

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Hoje, como provam as Olimpíadas de Beijing, o país anseia por uma atenção internacional, tanto nas artes como nos negócios, sendo a dança uma fonte de orgulho nacional. As suas companhias trabalham regularmente fora, enquanto que o livre câmbio de ideias entre Este e Oeste fez expandir a sensibilidade artística chinesa. O público cresce e formam-se novas companhias de dança, a sua forma artística forja uma nova identidade chinesa. “Temos muita sorte, pois a China é, neste momento, o ponto quente do mundo”, diz Zhang Changcheng, director da Companhia de Dança Moderna de Pequim. “As pessoas querem conhecer a China que muda, e muitos artistas desejam vir a Pequim para trabalhar connosco.” Vão longe os dias de Grey, quando os artistas ansiavam para escapar ao seu isolamento artístico e o programa preferido de Mao Tsé-Tung era o Destacamento Vermelho Feminino, um ballet-modelo revolucionário que contava com bailarinas em pontas a apontar carabinas As colaborações multiculturais realçam a maneira como a China procura novas ideias no Ocidente. Sidi Larbi Cherkaoui, o coreógrafo belga, trabalhou com o escultor Antony Gormley e com monges do Templo Shaolin para a peça Sutra (que se estreou em Sadler’s Wells em Maio de 2007), enquanto o coreógrafo britânico Akram Khan juntou forças com os bailarinos do Ballet Nacional para criar Bahok. Para Khan, o tempo passado na China a coreografar foi um fervor criativo. “Tem sido muito interessante porque eles vêm todos de perspectivas diferentes. Os bailarinos do Ballet Nacional são extremamente líricos e atléticos. E mesmo quando o vocabulário é igual, o movimento não o é. Essa sensação de caos no exterior e de calma no interior, dentro do corpo, é algo de muito asiático, e estou sempre a procurá-la dentro de mim”. Calmos ou não, os bailarinos chineses (há três deles a trabalhar com cinco outros da companhia londrina de Khan), sentiram muito os seus ensaios ao lado um talento tão pouco ortodoxo. Perguntaram-se para onde estariam a ir, em parte por serem os autores do espectáculo, algo de novo para eles. Falar também foi uma experiência estranha. Todo o texto de Bahok vinha dos bailarinos, das histórias de suas casas, pois a peça baseia-se na procura de uma origem num mundo crescentemente facturado. “Está tudo nesse sentimento de viajar de um sítio para o outro”, diz Khan. “Para saber para onde vamos, temos de saber de onde vimos.” Cherkaoui, cujo projecto chinês tem sido ainda mais fora do comum, guarda apenas elogios da sua experiência. “Trabalhar na China é como descobrir uma outra parte de mim próprio”, afirma. Em Sutra, que está recheada de imagens poéticas sobre o princípio e o fim da vida humana e animal, colabora com quinze monges budistas, todos peritos de artes marciais. “Os seus movimentos lembram animais, como gafanhotos, cobras e macacos, por isso assemelham-se aos meus movimentos, que também lembram outros animais. Mas aprendo muito porque eles vêem o movimento de maneira muito diferente. Vêem o corpo e o seu ambiente como um só, o que não é a maneira de pensar no Ocidente”. Quando Cherkaoui chegou pela primeira vez ao Tempo Shaolin no ano passado (a cerca de noventa minutos a Sul de Pequim), viu os seus preconceitos sobre a vida das reclusas comunidades religiosas virarem do avesso. “Fiquei surpreendido ao vê-los a andar com telemóveis e a ouvir música pop. Têm padrões de movimentos com 750 anos mas vivem na China de hoje. E têm uma mente muito aberta. Querem comunicar e partilhar o seu conhecimento com o mundo; de outra forma nunca me teriam deixado entrar”. Deixar o Ocidente entrar tem-se tornado mais fácil, graças ao cresci-

mento do estatuto internacional da China. “Todos os anos, a Companhia de Dança Moderna da China convida coreógrafos diferentes dos Estados Unidos e da Europa para virem trabalhar connosco aqui”, afirma Zhang. “Tentamos não seguir nenhum outro país, mas as colaborações incentivam os bailarinos a abrirem a mente, o que lhes permite desenvolver uma identidade”. O seu grupo, que ensaia Tai Chi e técnicas da Ópera de Pequim, assim como estilos ocidentais, utilizam tanto elementos tradicionais como contemporâneos nas suas coreografias. A maneira como a sua companhia é dirigida também se reflecte na nova maneira de pensar da China. A primeira coisa que Zhang fez quando chegou à sua direcção em 1998 (três anos depois da companhia ter sido fundada) foi tornar a CDMC independente do governo. A sua decisão, sem precedentes na cena artística chinesa, tornou a companhia mais difícil de dirigir mas deu-lhe uma maior liberdade artística. “Disse aos bailarinos que éramos animais selvagens. Ninguém nos pode dar de comer, ninguém pode tomar conta de nós. Temos de apanhar o coelho se quisermos comê-lo”. A única maneira da sua companhia sobreviver é através das receitas das suas digressões estrangeiras. Os seus bailarinos, diz ele, mal ganham um salário para viver porque, apesar da feroz economia chinesa, existe muito pouco dinheiro para as artes contemporâneas. Alguns bailarinos chineses (especialmente os de ballet de variedades) encontram trabalho na Europa e na América do Norte, mas ainda é difícil para eles ultrapassar as barreiras da imigração. “Ser bailarino na China é ser muito pobre”, diz Zhang. “Em termos económicos, o meu país desenvolveu-se muito rapidamente, mas precisa de tempo para desenvolver uma verdadeira cultura das artes performativas contemporâneas”. A maior parte do seu público ainda só se interessa pelas artes clássicas. Qual é a moda? Aprontar-se para ir ver o Lago dos Cisnes numa grande sala.” Ironicamente, o Ballet Nacional da China (a companhia com a qual Grey dançou), irá abrir a temporada de Convent Garden, em Londres, a 28 de Julho com o seu renovado Lago dos Cisnes, encenado para a companhia de Natalia Makarova, a bailarina russa (com cenários do designer britânico Peter Farmer). Mas também apresentará Raise the red lantern, o ballet baseado no filme-sensação chinês de Zhang Yimou, que também dirigiu a adaptação coreográfica, cuja estreia britânica ocorreu em 2003, obtendo tanto sucesso que a companhia sentiu-se suficientemente confiante para trazê-la de volta. Raise the red lantern, um conto intenso e trágico que analisa o papel das mulheres no feudalismo chinês dos anos trinta, representa um marco na história da companhia de Pequim, que já vai com cinquenta anos. Atrevendo-se a juntar ballet com dança tradicional chinesa, espalhou debate e polémica no exterior dos círculos confinos do teatro. O próprio realizador foi lesto a declará-lo como o futuro do ballet na China. A companhia de catorze elementos de Zhang Changcheng, que vive no outro espectro da dança, tem uma ainda maior viagem para concluir. “Há muito entertenimento na China”, diz ele, “mas as artes não estão muito saudáveis (...) neste momento, o comércio, o entertenimento e as artes estão muito juntas. Algumas pessoas estão a ficar muito ricas na nova China, mas ainda não têm uma alma. Quando as pessoas suficientes tiverem o dinheiro suficiente, começarão então a pensar sobre as suas almas. Talvez aí irão a uma galeria, a um museu ou uma peça de dança moderna. Apenas precisam de tempo.” Texto publicado em colaboração com o The Times.

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BAHOK texto Qing Qing

“Quem sou eu e de onde venho?” Esta parece ser uma pergunta pendente com que Akram Kham lida. Como figura internacional, tem uma herança multicultural e confronta-se por vezes com choques culturais. Assim, não é nada estranho que Akram guarde tanta ansiedade e curiosidade, especialmente quando o mundo se encontra debaixo de uma globalização económica e a questão da “identidade” cultural se torna mais saliente. A ansiedade tornou-se numa epidemia mundial, fazendo com que Bahok chegasse na altura certa. À medida que as suas produções de dança despertam a curiosidade do mundo, de que forma Akram Kham irá explorar a questão da identidade cultural? Para além disso, como irá isso ser interpretado através da sua dança? Quando a cortina se abre, vê-se uma plataforma em palco. A sabedoria de Akram Kahm é imediatamente revelada na sua selecção de uma “plataforma” para o ambiente da sua produção. A plataforma é o símbolo para a curta estadia na viagem da vida, um lugar onde as pessoas se juntam e se afastam, um terraço onde diversidade e diferença se encontram. É um princípio natural e indicado para Bahok. Um enorme quadro rectangular electrónico está pendurado por cima do centro do palco. Toda a estrutura deste trabalho é feita a partir de mensagens electrónicas que aí piscam. Cada mensagem tem um papel muito importante na produção, que é composta por sete ou oito números. Os primeiros três são sobre questões coincidentes e contraditórias e problemas frequentes de viagens, como atrasos e esperas; as mensagens dos últimos números estão traduzidas em elementos básicos, como água, fogo, ar e vento, que foram definidos por filósofos gregos como os elementos básicos do mundo. Será esta a razão por Akram Kham ter escolhido estes elementos? Não sabemos a resposta a esta pergunta, mas sabemos que estes elementos representam uma região, um pedaço de terra, uma raiz cultural e a primeira memória que temos da nossa própria cultura. Estes dois tipos de informação, colocados no mesmo quadro, mostram a transformação misteriosa desta produção. Providenciam um espaço para se passar do real para o espiritual, geram forças tensas entre o bizarro e o familiar, produzem lutas entre o tangível e o abstracto. É o ponto de interrogação que existe entre culturas diferentes. Informação útil, camada por camada, que sobe à superfície por tal transformação. Conseguimos ver, aparentemente, que Akram Kham parece procurar e mostrar uma “diferença”. Homens e mulheres vindos de nove nações diferentes e distintos em cor de pele, roupas e sotaques, diferenciam-se uns dos outros em movimento, estilo e feitio pessoal. E sobretudo, Akram Kham convidou três bailarinos do Ballet Nacional da China para actuar nesta produção. Mesmo quando dançam a mesma peça juntamente com outros actuantes em palco, os tra-

ços do seu ballet são por demais evidentes, independentemente do facto de Akram Kham ter uma estrela bailarina a dançar o número de destaque do ballet. Na verdade, podemos sentir que Akram Kham persegue o ponto comum ou do “meio” entre uma miríade de diferenças óbvias. Vemos que as pessoas irão levantar as mesmas questões, independentemente das diferenças de linguagem. Apesar de hábitos e comportamentos diferentes, todos se lembram, todos lutam, sofrem, esperam por um grupo, viajam, usam telemóveis, etc. Até para homens e mulheres, por vezes não conseguimos distinguir as suas diferenças sexuais e físicas. Corpo, sexo e identidade cultural são ideias confusas, idênticas dentro da diferença, diferentes dentro do idêntico. Parece ser esta a mensagem que Akram Kham nos quer dar, uma realidade verdadeira. As pessoas estão a viver nos seus mundos individuais enquanto que partilham e vivem experiências com outras. A vida é tão interessante, eu atrás de ti, tu atrás de mim. Talvez a própria cultura seja um abrigo grande, protegendo-nos das experiências directas da vida. Talvez o nascimento da linguagem em si seja uma ferramenta usada por Deus para enganar os seres humanos. Não deveríamos, por ventura, perseguir o “quem sou eu?” filosoficamente, que na verdade não existe nem necessita de resposta. No entanto, Bahok faz-nos pensar em como reflectir sobre a vida humana e colocar estas questões. Através deste tema profundo que Akram Kham explora em Bahok, detectamos também a sua extraordinária perícia coreográfica e as suas capacidades para estruturar e lidar com temas maravilhosos. Como mencionado anteriormente, cada número é fabuloso, dentro do seu conjunto total. Cada performer tem o seu monólogo, e enquanto que são diferentes nos seus corpos e nos seus movimentos, falando tanto pela aparência externa como pela energia interior, trata-se de algo precioso. A mestria do tempo de Akram Kham e a sua força na coreografia é evidente. Explosões repentinas de energia, uma acumulação intensificada de energia e um movimento gracioso e altamente controlado impressionam o público. Para nos surpreender ainda mais, os actores não parecem dançar. Pelo contrário, interpretam o rio da vida, que nunca deixa de fluir. Os bailarinos ocidentais espantam-nos pelo verdadeiro poder que se encontra dentro dos seus corpos e através da sua enorme dedicação a esta produção. A colaboração entre Londres e o Ballet Nacional da China não é o principal motivo para esta produção. Trata-se simplesmente da altura certa e do lugar certo. Esta colaboração dá um maior sentido de “encontro” a Bahok, dando-lhe mais espaço para explorar e pensar sobre a vida. Assim, Akram Kham e o Ballet Nacional da China materializaram um Bahok (encontro) de sucesso. Akram Khan apresenta Bahok a 30 e 31 de Maio, às 21h, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém

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PUSHED

texto Vasanthi Sankaranarayanan

Concebido, coreografado e executado por Padmini Chettur, uma bailarina indiana cuja linguagem coreográfica tem evoluído nos últimos quinze anos, Pushed, o seu último trabalho, foi apresentado no Mary Hall, Sougang University, em Seoul, Coreia do Sul, a 11 e 12 de Outubro de 2006, como parte do Festival de Artes Performativas de Seoul (SPAF). Esta experiência indo-coreana foi financiada pela direcção do Festival de Artes Performativas de Seoul. A sua produção contou com cinco bailarinos, para além da própria Padmini: Krishna Devanandan, Anoushka Kurien, Aswini Bhat, Divya Rolla e Akhila. A música é composta por Marten Visser, que estudou a música tradicional coreana durante três meses. Zuleikha Chatterjee, de Delhi, é o director de luzes. As roupas foram desenhadas pela própria Padmini e finalizadas por Metaphor. O título Pushed é uma metáfora estrutural e conceptual para esta dança. Todos os movimentos – em solo, duo, ou grupo – consistem em imagens onde o acto físico de empurrar é um elemento central. Qualquer imagem criada por movimentos leva ao acto de empurrar. Neste sentido, Pushed é tanto o conteúdo como a estrutura vinda da técnica. Poderia ser tomado como uma metáfora para indivíduos a empurrarem os seus corpos até aos limites do possível, de maneira a ganhar um certo equilíbrio estético. Com um par de bailarinos, este empurrão ganha uma dimensão diferente – cada um empurra o seu parceiro e mantém o seu equilíbrio. Nas sequências de grupos, o acto de empurrar ganha um estilo de movimento bem ritmado e altamente coordenado. Mas esquecendo as suas implicações físicas, este acto de empurrar guarda também um conceito subjacente. Empurrar pode ser algo de suave, moderado ou forte. Os efeitos podem ser suaves ou destrutivos. Podem resultar em dor, alegria e tristeza, amor, ou em fúria e luxúria (desejo). Mas as polaridades não são os únicos elementos em que reparamos. A transição de um estado emocional para outro, a transeunte e provavelmente inconspícua natureza desta transição e o balanço à qual ela chega no seu movimento também é um dado importante. Padmini explica este movimento de uma emoção para outra da seguinte maneira: “A intenção é ocultar as linhas da emoção. Mover o que é emotivo, indo da sua subjectividade tangente para a objectividade intangível. Assim, resta-nos a ideia das transições entre corpos e entre estes e o espaço performativo. A emoção está, deste modo, na nossa capacidade em encontrarmos um equilíbrio mas também em perdê-lo. É a corda que nos leva dos pontos altos para os pontos baixos e vice-versa – não apenas uma vez mas repetidamente.” Existem outros elementos estruturais que entram em jogo em cada fase da dança. Há um movimento constante entre o primeiro plano do palco, na direita, para o último plano, na esquerda. Há também uma progressão nas posturas dos corpos – desde a estarem levantados, a

segurarem-se em mãos e pernas ou por movimentos a nível do chão. Cada secção da dança progride para outra até chegar finalmente a um clímax pacífico, silencioso e terapêutico. Se comentássemos a textura dos movimentos, diríamos que são lentos, reflexivos e meditativos. Dão tempo ao público para saborear a pureza dos movimentos, a solidez e a tensão dos corpos a partir da qual os movimentos se criam e como podem surgir imagens a partir deles. É através da criação de imagens pelos movimentos que o seu conceito abstracto se revela, assim como se mantém a coordenação precisa dos movimentos e a coerência da estrutura. Neste processo, apenas guardamos visões passageiras da essência de cada emoção, até por fim se passar para outra. O que começa como ira torna-se em revolta, violência, subjugação, desespero e finalmente aceitação. A narrativa pode ser criada pelos espectadores tal como surge e os poderá atrair. Contudo, os movimentos lentos e o padrão linear não-narrativo destes dá ao público tempo suficiente para os absorver, vendo toda a condição humana como uma colagem de emoções através da dança. Se muitos dos movimentos lembram animais, isso é apenas circunstancial para o coreógrafo. No entanto, para quem vir esta ideia de “animais imaginários” como os protectores de todas as legendas e mitos da Coreia, esses movimentos animalescos são o acto inconsciente do seu subconsciente. O tema geral está nas emoções, pois Padmini usa como ponto de referência alguns conceitos emotivos, em pares – prazer, dor, alegria, tristeza, amor, ira ou luxúria. No entanto, estas emoções não são directamente transmitidas por expressões faciais, ilustrações ou textos narrativos. São tanto abstraídas como conduzidas pelos movimentos corporais. A dança foi criada em silêncio; a música veio depois. O objectivo do compositor, Marten, foi de criar uma banda sonora que fizesse avançar a dança, não complementá-la. Dissecou-a em sons despidos de sumptuosidade ou de emoção. O ritmo está lá, mas ainda assim, não é apenas o ritmo que coordena os movimentos da dança. Mesmo que os sons sejam produzidos por instrumentos da música tradicional coreana, Marten não cingiu a sua composição à cópia ou reprodução de bocados desse tipo de música. Mesmo que Padmini tenha criado imagens pelos movimentos, Marten também criou imagens sonoras que se juntam às dos movimentos. A iluminação de Zuleikha, ao também enriquecer os movimentos da dança, guarda a sua própria estrutura e vida. Os principais elementos desta produção – movimento, música, luz –, são independentes mas trabalham também em conjunto. Que esta seja a única presença da Índia neste prestigioso festival internacional diz tudo sobre a sua singularidade. Pushed, de Padmini Chettur, estará a 7 de Junho, às 17h, e a 8 de Junho, às 21h, no Museu do Oriente

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DIAS DO JUÍZO

ALKANTARA FESTIVAL

CHINA

texto Diana Simmonds

“A China é tão grande que só se consegue conhecer uma pequena fracção”, diz o artista visual, performer e fotógrafo australiano William Yang. “E como sabemos, está a mudar muito e muito rapidamente, o que é fascinante mas também enganador”. Yang tem-se tornado num dos performers de preferência na Austrália – e no mundo – graças aos seus espectáculos de histórias e imagens, como Sadness, Friends of Dorothy, Blood Links, Shadows, Objects For Meditation e o seu novo trabalho performativo – William Yang’s China – dedicando-se a viajar pela China, a terra dos seus antecessores, mas um lugar estranho para o homem da região do Far North Queensland. “Tem sido, de facto, um problema para mim na China”, diz Yang. “Sobretudo desde que comecei a actuar lá, em vez de só ir visitar. Porque põem expectativas sobre mim que eu não posso cumprir – não sei falar chinês, por exemplo”. O racismo está implícito no trabalho de Yang – de que outra maneira poderia ser para um rapaz que cresceu como “outro” nos anos cinquenta australianos? Ele sabe que isso não se confina à Austrália. Mas ele tem uma opinião diferente. “Eu acho que o mundo inteiro é tribal”, afirma. “As pessoas tendem a proteger-se a si e a sua tribo das outras rivais – onde quer que estejam e por quem quer que sejam”. Yang tem visitado a China desde 1989, guardando uma visão interessante sobre o tipo e a quantidade de experiências que aí se faz. “Era muito mais restritiva do que é actualmente”, lembra. “Visitei a China logo a seguir a Tiananmen e vi que era muito restritiva. Fui multado por tirar uma fotografia num comboio, era arrepiante estar debaixo de tanta observação.”

“Um dia, fui ter com Nick José – assessor cultural na altura – e deixei um envelope num táxi. Durante o jantar, alguém bateu à porta e veio devolver-me o envelope. Fiquei surpreendido por saberem onde eu estava, mas o Nick disse-me: eles sabem tudo sobre ti. Agora, já não é tanto assim”. Na China de hoje, as liberdades estão no dinheiro e numa classe média em crescimento, diz Yang. “As pessoas não podiam viajar de uma cidade para outra; hoje em dia, os maiores grupos de turistas nos principais monumentos são chineses de classe média. Estive a visitar as montanhas sagradas e a última vez que estive em Huang Shan, estava repleta de turistas chineses. Querem ser como qualquer outra pessoa próspera”. No entanto, e segundo Yang, as mudanças de vida na China parecem ter mais a ver com as cidades do que com as grandes áreas rurais, que ainda permanecem rurais e pouco tocadas pelo século XXI. “Estive a viajar pela China Central e não está assim tão diferente agora. Ainda é uma vida de base rural, assente nas tradições agrárias. As pessoas parecem felizes – mais do que o australiano médio que trabalha num escritório, de qualquer modo!” O trabalho de Yang tem mudado quase tanto como a sociedade chinesa nos vinte anos que o seu novo espectáculo percorre, e por muitas das mesmas razões: o progresso, a tecnologia e a competição. Já não é simplesmente um fotógrafo… “O meu cartão de negócios diz ‘artista visual/fotógrafo’ porque é difícil ser apenas fotógrafo – mesmo se quisesse sê-lo, o que não quero, na verdade. A fotografia digital mu-

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DIAS DO JUÍZO

ALKANTARA FESTIVAL

texto Aleksei Wechter

dou tudo. É demasiado fácil produzir uma imagem hoje em dia – toda a gente o pode fazer. Por isso, temos que pensar noutras coisas. Pas-sei para a projecção digital nos meus espectáculos, é um progresso tecnológico, acho eu. E tornei-me melhor a juntar as imagens”. Ri-se. “Seria de esperar, depois deste tempo todo”. O novo espectáculo contém música ao vivo de Nicholas Ng num erhu (violino chinês), assim como mostra a perspectiva pessoal de Yang e a sua recorrente abordagem imprevisível do relato da história. “É um lugar fascinante e há muito para dizer”, diz ele sobre a China. “Há mais nesses noventa minutos do que em muitos dos anteriores espectáculos, condensei e condensei. Espero que faça sentido. Mas há coisas que não consigo fazer cair – como a parte sobre caligrafia, que adoro. Não é nada de dramático, é um pouco dispensável, mas queria guardá-la porque acho que é interessante. Às vezes é um dilema, mas espero que tenha tomado as decisões certas”. A experiência de Yang em conseguir encantar o público não é feita de escolhas erradas, o que significa que o novo espectáculo irá provavelmente juntar-se ao seu repertório e continuar a levá-lo pelo país e pelo mundo para contar histórias e mostrar imagens.

A primeira coisa de que me lembro quando penso na minha viagem à China é de ser devastadoramente confrontado pela poluição. Quando se vive num país prístino como a Austrália (até em Sidney), poucos apreciam o facto de não sermos oprimidos por um fumo tão espesso que chegue a evocar as imagens de Nothing de Michael Ende, consumindo o mundo à nossa volta. Contudo, os chineses não parecem preocupados – na altura presumi que por não terem nada com que comparar o seu céu sem sol, não conheceriam nada melhor, estando assim mais interessados nas suas lutas quotidianas, tal como quaisquer outras pessoas em qualquer outro lugar do mundo. Ao viajar pelo país, falei com as suas pessoas (através de um amigo que falava mandarim) e absorvi a sua cultura como em restaurantes rudimentares com uma fome e um desejo por saber mais sobre esta nação que me fazia sentir como se não pudesse crescer. Sendo branco, seria sempre um deslocado na China, mas William Yang (australiano de origem chinesa) é também um lobo em vestes de carneiro, estando eu, então, ansioso para mergulhar nas experiências do desenvolvimento místico e em expansão desde super-poder do Oriente. Na sua premissa e performance, China de William Yang é tão simples quanto eficaz. Yang leva o seu público por viagens na China, onde procura uma maior compreensão das suas raízes e se expõe perante a cultura e o povo da sua terra mãe espiritual. Fá-lo apresentando a sua odisseia de fotografias e uma prosa quase medida, acompanhado por Nicholas Ng, que reproduz a sua música ao vivo num erhu (violino chinês) e pipa (alaúde chinês). A actuação de noventa minutos poderia tornar-se um pouco grande demais, não fosse o carisma, o humor e a solidez da voz de Yang. Yang visitou a China pela primeira vez em 1989, poucos meses depois dos acontecimentos da Praça Tiananmen, ou dos “Incidentes de Junho”, tal como diz aos espectadores, fazendo referência à China e marcando o tom para a sua actuação. Na sua performance, Yang toca em muitos dos problemas sociais que a China enfrenta, mas de modo a apresentá-los de maneira renovada, revelando-os pelo seu próprio comprometimento com os chineses, e não colorindo os eventos com a sua própria opinião. Mas China é muito mais que um discurso sobre os julgamentos e as tribulações com que a China lidou nas últimas décadas, visto que nos encontramos com os seus conhecimentos, partilhamos as suas refeições, subimos com ele pelas montanhas sagradas que decidiu atravessar; procurando com ele, assim, a sua própria história, a que ele nunca pode viver anteriormente. Para mim, China foi uma bonita viagem de descobertas e reminiscências. Como Yang, e para tantos australianos, o sangue dos meus ascendentes mais imediatos vem de solo estrangeiro, e existe uma vontade de preenchimento na compreensão individual da história de cada um. Tendo viajado recentemente à China, vi-me a partilhar os prazeres e os desafios que Yang encarou na sua viagem. China não encaixará nos gostos de toda a gente, mas se for alguma coisa, será uma janela aberta para uma excursão cultural num país tradicionalmente fechado a estrangeiros; sobretudo devido à vasta barreira da linguagem que Yang consegue ultrapassar, tal como tantas montanhas sagradas. William Yang apresenta China a 3 e 4 de Junho, às 21h, no Museu do Oriente

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ALKANTARA FESTIVAL

TEMPEST II

texto David Tushingham

Enquanto que falo com Lemi Ponifasio ao telefone da minha sala numa manhã clara de Verão, ele está sentado debaixo de uma bananeira a meio da noite, no meio do Oceano Pacífico, na ilha de Samoa, onde nasceu, a ser picado por mosquitos. Ponifasio deixou Samoa em adolescente, treinou como bailarino profissional e levou uma extensa carreira em dança contemporânea na Nova Zelândia, Europa e Japão. Contudo, tudo isto acabou abruptamente em 1995 quando o seu apartamento japonês foi destruído pelo fogo e levou consigo todas as suas posses, entre as quais as gravações completas dos seus solos, algo que fazia todos os dias durante quase uma década. De repente, teve que pensar muito e bem sobre o que quereria fazer o resto da sua vida. A resposta que encontrou foi voltar ao Pacífico e fundar a MAU. O nome MAU vem da palavra de Samoa que significa “visão” e “revolução”, um nome previamente escolhido pelo movimento independentista de resistência não-violenta aos líderes colonizadores de Samoa. Reitera a necessidade de chamar a atenção para uma parte do mundo que é muitas vezes vista por outros como um espaço em branco no mapa, um lugar ideal para testar armas nucleares, ou deitar lixo espacial e partes usadas de naves. “O Pacífico é uma área vasta”, diz Ponifasio. “A MAU desafia as pes-

soas a reconsiderar as suas próprias culturas e os seus sistemas de conhecimento. Não se trata de rejeitar o Ocidente mas perguntarmonos sobre o que temos para oferecer. O movimento MAU original dedicava-se à revolução política, mas também se perguntava sobre o que significava ser samoano.” Os samoanos, os maoris e os outros povos do Pacífico descendem dos navegadores polinésios que ultrapassaram as negociações em distâncias imensas nos mares abertos, numa época em que os europeus ainda acreditavam que a Terra era plana. Mais recentemente, as culturas destes povos do Pacífico têm sido bombardeadas pelos interesses políticos e económicos do Ocidente. O trabalho da MAU pega nesta perspectiva social, na consciência histórica e no olho crítico dos nossos tempos, para a aliar a um estilo coreográfico vigoroso, visceral e forte, juntando um movimento tradicional a uma forte componente estética contemporânea. A coreografia de Ponifasio é intensamente corporal. São criadas danças inteiras com dedos ou línguas. Juntamente com a sua colaboradora de longa data, a designer de iluminação Helen Todd, criou um teatro de luz que emerge da escuridão, focando-se muitas vezes apenas em certas partes do corpo – costas nuas, um rosto. Muito do seu poder e da sua beleza vem do facto de muitas zonas permanecerem na sombra. A efemeridade da beleza é um tema recorrente. São imagens deslumbrantes, mas estão sempre no limite de voltarem de novo para a escuridão.

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Fazer teatro nas ilhas do Pacífico é algo de muito distante das condições de trabalho que Ponifasio encontrou na Europa e no Japão. “As ilhas são culturalmente muito dinâmicas”, diz ele, “mas também muito frágeis. Não temos muitos recursos. Mas temos música, dança e cerimónias.” As ilhas não têm teatros. Quando a companhia actua aqui, fazemo-lo ao ar livre e depois de anoitecer. E não têm artistas, pelo menos não como as pessoas que vivem como artistas profissionais numa cidade como Londres. “ O artista”, explica Ponifasio, “tem de ser um fornecedor, um lutador, um líder, uma pessoa que olhe pela comunidade.” Os performers da MAU, que vêm de muitos pontos das ilhas do Pacífico, tanto podem ser pescadores, advogados, arquitectos, como cantores experientes ou bailarinos. “Aqui, a arte não está separada da vida quotidiana.” Ponifasio continua, dizendo: “o trabalho da MAU vem dessa tomada de consciência. Tudo se interliga. A arte não pode existir por si só.” Parte do papel de liderança do artista consiste em usar estratégias, como criar um acolhimento para os que nos vieram ver, fazendo-os sentir que se estão a juntar como uma comunidade e não como um público.” Também sente uma necessidade grande em insistir no facto que cidades que fundaram impérios, tais como Londres ou Viena, estão também ligadas a lugares como o Pacífico, mesmo que se saiba muito pouco sobre eles. No Pacífico, a globalização chegou de forma rápida, crassa e extrema. A região tem estado exposta de maneira brutal a uma série de eventos sinistros da era tecnológica – mais recentemente, a subida dos níveis dos mares, graças ao aquecimento global. Estes ameaçam submergir completamente as Ilhas Kiribati, de onde vêm seis dos bailarinos de Requiem. “As mudanças vindas de fora têm sido tão profundas”, diz Ponifasio, “não apenas em termos ambientais mas também, claro, política e culturalmente. Fazem-nos moldar à maneira do Ocidente. E tornarmo-nos ocidentais tira-nos a âncora.” Um dos objectivos da MAU é providenciar essa âncora e dar às pessoas a oportunidade de se agarrarem a ela. Por exemplo, é mais importante transmitir confiança nas nossas próprias formas de dançar do que provar que conseguimos dançar como Nijinksy.” No centro das peças da MAU está, muitas vezes, uma contradição forte. Paradise mostrava repetidamente imagens das ilhas do Pacífico e dos seus habitantes a serem devastados por testes nucleares. Tempest [leia a crítica na coluna ao lado] contava com o activista de direitos humanos maori Wairere Tame Iti, e um ancião do povo de Tuhoe, que dá conta do seu envolvimento no movimento de direitos da terra, dirigindo-se directamente à Rainha de Inglaterra e dando, a partir do ponto de vista do povo colonizado, uma réplica eloquente à peça de Shakespeare com o mesmo nome. Do mesmo modo, Requiem recusava ser saudosista. Não é um lamento nem uma elegia. O cenário é dominado por dois pilares idênticos que formam o apoio central à casa tradicional samoana. A performance acaba com a casa a ser varrida por um jovem, enquanto que o sol nasce lentamente. Está-se a preparar para o novo dia que vai começar em breve e para se responsabilizar pela vida que vai continuar. A aceitação desta responsabilidade é algo que Ponifasio sente profundamente. À medida que a nossa conversa termina, diz-nos que está na ilha para receber uma honra: a de se tornar num dos Grandes Chefes de Samoa. “Sinto-me nervoso”, diz ele. Em colaboração com o portal Lift

texto Alexa Wilson

Tempest II, a peça onde Lemi Ponifasio prossegue o trabalho criado em 2007 a partir da obra de William Shakespeare, tem estreia mundial marcada no KunstenFestivaldesArts, em Bruxelas a 15 de Maio, dando início a uma digressão europeia que passa por Portugal, Inglaterra e Áustria. Tal como a sua antecessora também esta requer alguma literacia cultural sobre os temas e acontecimentos de A Tempestade de Shakespeare, assim como sobre a língua Maori, falada correntemente pelo seu protagonista principal, o conhecido activista maori Wairere Tamaiti da tribo Tuhoe, que regressa nesta peça como parte do colectivo MAU, dirigido por Ponifasio. Na primeira versão opunham-se desconstrução e o confronto das histórias pessoais de subjugação racial, opressão, colonização, de força e resistência de Tamaiti e Ahmed Zaoui, com imagens projectadas, texto, a tradicional Maori Haka (literalmente dança Maori), fortemente representada por um grupo de intérpretes locais. Tudo isto incluído num sentido de redenção que contribui para as representações das tempestades que vivem na nossa história cultural. Presumindo que A Tempestade falava sobre a (in)justiça e as noções de posse e de soberania violada, a referência da companhia MAU é em si desconstrutiva e pós-moderna, desafiando várias noções universais, como a justiça, aqui opressiva para os povos indígenas, e substituindo-a com as histórias pessoais da opressão e da resistência a ela. A Tempestade, também baseada numa ilha, fala do exílio do seu protagonista, Próspero, que usa os seus poderes mágicos para aterrorizar e controlar todos aqueles que chegam à ilha e que o enganam (tendo sido traído pelo seu irmão). Coloca questões como “a quem pertence esta ilha?” e, através de uma história complicada mas fascinante, acaba por perdoar a todos, vendo o seu poder de novo restaurado em Milão. Devido ao facto de os ingleses nunca terem totalmente ganho as guerras neozelandesas, a sua forma de colonização aproximava-se mais da confiscação de terras, com a proibição do uso da língua maori nas escolas. Estas duas questões formam grande parte da história, da performance e dos monólogos de Tamiti, maioritariamente falados nessa língua. Assim, tanto se cria uma identificação no público que fala maori, como se levanta um desafio para aqueles que não falam a língua, embora muito do que é comunicado acabe por ser feito através da expressão intensa e generosa dos seus olhos e do seu rosto tradicionalmente tatuado, assim como pelos gestos do seu corpo. Ao ouvir a sua história e vendo a sua performance, sinto-me a ver uma ave rara da região, como uma oportunidade especial e única de poder ouvi-lo e observá-lo de perto. A opressão inglesa reitera-se, naturalmente, pela continuidade do seu controlo e da antiga prisão de Ahmed Zaoui, antigo refugiado político em exílio na Argélia, cuja história da sua condenação como terrorista, fugindo de país para país, o levou a um longo enclausuramento nas prisões da Nova Zelândia. Tudo isto é apresentado em vídeo como prova clara dos actos de colonização e de opressão, uma violação assumida dos direitos humanos e da permanente injustiça que se vivia. Texto publicado em colaboração com o portal neo-zelandês www.theatreview.org.nz, do qual foi adaptado.

Tempest II, de Lemi Ponifasio, irá ser apresentado a 22 e 23 de Maio, às 21h, no Teatro

São Luiz

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DIAS DO JUÍZO

ALKANTARA FESTIVAL

NACERA BELAZA

texto Boubakeur Sekini

Natural de Medea, cidade singela do Norte da Argélia, Nacera Belaza deixou o seu país e chegou a França com cinco anos, acompanhada pelos seus pais. Desde jovem que Nacira se impressionou pelas rimas dos cantos populares, uma linguagem desmedida por excelência e ligada à arte do movimento corporal. Pertencem, a esta geração, bailarinos e coreógrafos associados à ideia que “na cultura árabe, a dança ainda se associa à perversão”, tal como sublinha Nacira. Tal como nas belas cartas com que tinha trabalhado nos seus estudos universitários em Literatura Moderna, tenta impôr um grande rigor formal para “inserir o maior pudor possível nos gestos, e permanecer fiel às convicções”; as suas danças são contemporâneas pelo fervor, pela espontaneidade e pela sinceridade dos sentimentos expressos, assim como pelo pensamento de um amor de inspiração utópica. Bailarina “feminista”, à imagem de outras mulheres argelinas do século XXI, consagra-se inteiramente à coreografia em 1987, sendo mais tarde recebida pela CNAT [Centro Nacional de Arte e Tecnologia] de Reims, onde cria Périr pour de bon em 1995. Depois desta data, criou Récif (1996) com a sua irmã Dalila Belaza, assim como Point de fuite (1997), Le Sommeil rouge (1999/2000), Le feu (2001) e Un an après. A sua coreografia inspira-se tanto na riqueza da cultura árabe como se alimenta fortemente da subjectividade do eu-criador, reivindicado assim a liberdade para todos os modos de expressão e acreditando, deste modo, primeiro no seu corpo e depois nas palavras. O espírito, contudo, nunca se encontra longe. A sua dança dispara entre a possessão e a reflexão. Vê a arte como um desvio da vida. Contornar, afastar-se alguns passos para melhor revelar estas fachadas opacas que ecoam a cada momento da existência. Nacera alimenta-se desta fachada, do gesto inconsciente que distrai a palavra, do olhar que influi na atitude, da intenção que esconde o discurso. Não deixa de pro-

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UN AN APRÉS ... TITRE PROVISOIRE DE NACERA BELAZA

texto Jaime Conde-Salazar Pérez

curar movimentos vulneráveis, originais, emotivos... Dá aos seus gestos uma inventividade estilística que se torna num dos seus próprios valores, coincidindo ao mesmo nível com as impressões cândidas. As suas danças seguem de forma contínua os eventos que tocam não somente o espírito beur mas também a própria sociedade argelina, nomeadamente os temas em que se investe a geração pós-independência. Para acordar as consciências, depois de um período de interiorização, diz-nos: “Ser bailarina e coreógrafa são, para mim, duas posturas indissociáveis. O ponto de vista de um alimenta o outro; se vejo de forma clara nas minhas peças, é porque também estou dentro delas. Muitas vezes, tenho a sensação de as construir de dentro e por fora. O meu espaço de trabalho, esse, sempre foi um local privilegiado que me permitiu explorar as minhas principais preocupações: o silêncio, o vazio, a escuridão, a vida, o fim, o ser humano... Tudo isso através do corpo. Esta procura tem como consequência uma interiorização que nos corta do barulho da rua e das nossas vidas.” Nacera mostra-se de forma mais interior, mais poética, percorre nas suas danças uma reflexão profunda sobre o valor do ser humano que reflecte sobre os grandes eixos da existência, colocando os outros à distância, ao mesmo tempo que reconstrói uma identidade ferida na sua agressividade. Mostra-se, do mesmo modo, provocante no seu estilo e no seu assunto, sendo a sua inspiração uma requisição virulenta contra a submissão. Privilegia o jogo da memória afectiva ao cruzar as tradições árabes com as asiáticas. Sabemos hoje que Nacera Belaza dispõe de uma notoriedade internacional já estabelecida que a coloca entre os coreógrafos mais inovadores. As suas criações distinguem-se tanto pelo sentido da sua pesquisa formal como pelo seu conteúdo. Nacera está longe de ser uma personalidade deslocada, deixando-se, pelo contrário, guiar pelo encanto das coisas.

A máquina do ballet sustém-se a partir de um sistema de direcções únicas: um único ponto de vista privilegiado; um único ponto de fuga, simétrico ao primeiro; um único desejo hegemónico que une os pontos anteriores; uma única posição possível num pátio de cadeiras; uma única totalidade visual a apreender… Assim, se as alucinações unidireccionais produzidas dentro desta fascinante máquina estão longe de questionar o status quo, os estados de consciência aí estabelecidos resultam numa experiência totalmente controlada, à qual se torna difícil escapar. Mas nisso, no ballet, apenas podemos relaxar e desfrutar enquanto duram os efeitos da droga inócua. Un An Apres... de Nacera Belaza é uma clara tentativa de destabilizar o sistema unívoco do ballet. E para isso, cria um dispositivo em que tudo se duplica: duas bailarinas idênticas, duas cenas, uma real e outra projectada em vídeo; dois tempos simultâneos; dois meios de percepção… e a repetição. Uma repetição obsessiva que faz com que, chegado a um certo ponto, se tenha a sensação de estarmos presos a um loop de acções já familiares. Não existe tal coisa como um desenvolvimento linear e positivo. Pelo contrário, a experiência tem algo de circular, fazendo com que as referências e os pontos a que se agarrem se dissolvam por belíssimos movimentos ciclónicos, parecendo não ter nem princípio nem fim. O resultado é uma nova alucinação, mas que desta vez nos afasta da certeza e nos convida a participar numa embriaguez lúcida que tem algo de revelação, inclusivamente de transe. Se o sistema do ballet servia para afirmar a presença de um sujeito único e de vocação hegemónica, Nacera Belaza parece propor outra subjectividade centrada na incerteza. O seu sistema de duplos não é apenas uma estratégia para provocar uma situação “diferente”. É possível que Un An Apres... tenha mais a ver com a criação de uma experiência da ordem da tristeza, no sentido em que Freud dá à palavra, ou seja, como um processo em que, num primeiro momento, se reconheça um objecto ou uma situação como algo de familiar e, imediatamente depois, isso mesmo se distancie, como se algo de imperceptível tenha mudado e tornado impossível tornar a reconhecê-lo como algo de familiar. É nesse espaço intermédio que se geram os duplos, entre as extremidades da repetição, e por onde nos leva Belaza. É aí onde talvez apareça a possibilidade de um estado de consciência diferente, instável, desregulado e fora de controlo, ao ponto de, por sua vez, gerar novas possibilidades de definições do prazer. Un an après…, de Nacera Belaza, irá estar no Teatro São Luiz a 25 e 26 de Maio, às 21h

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ALKANTARA FESTIVAL

harS

entrevista Zeynep Gunsur

Aydin Teker é um dos nomes mais reconhecidos da dança contemporânea turca, apesar de se apresentar mais regularmente fora do seu país do que nele. Mais uma vez a estreia mundial da sua nova peça, harS acontece a 10 de Maio em Bruxelas durante o KunstenFestivaldesArts, pouco antes de chegar a Lisboa e ao Alkantara Festival, que co-produz a peça. Depois de mais de um ano de processo de trabalho, a coreógrafa que gosta de estender o corpo para objectos inorgânicos (recorde-se o uso que deu a sapatos em aKabi na última edição do Alkantara), mostra agora como se transforma uma harpa em material coreográfico.

Sobre harS, sei que passou por um determinado processo. Como se desenvolveu a ideia? Tenho trabalhado com Ayşe desde 2004, sabia que ela tinha um pas-sado musical. Ela estudou harpa durante oito anos no conservatório em Istambul. Em 2000, coreografou dbll-base no Royal Festival Hall em Londres, que era uma peça para um duplo baixo e um músico. A dupla contrabaixista era Lucy Shaw, a música era composta por Luke Stonehome. Se me lembro bem, conversámos com Ayşe num café sobre a ideia de criarmos juntos uma peça de harpa, entusiasmámo-nos os dois. Talvez Ayşe consiga lembrar-se melhor desse dia do que eu. De qualquer modo, fomos a Paris num desses dias e procurámos lojas de harpa. Alguém nos disse que havia uma loja com harpas feitas de fibra de carvão. Fomos lá. Era maravilhoso. Comprámos a harpa. A ideia poderia finalmente materializar-se. Porquê fibra de carvão? É mais forte e ligeiro do que madeira. Com uma harpa de madeira, não conseguiríamos fazer o que fazemos agora.

Tem andado em experimentações e pudemos testemunhar um ensaio aberto no encontro do DBM – Danse Basin Mediterranée [veja na OBSCENA #7 um balanço deste encontro] no verão passado. Pode falar-nos sobre os detalhes com que teve que lidar? O instrumento é muito bonito. Isso era um problema para mim. Era demasiado bonito. Tudo o que se fizer com aquilo parece bem. Depois, comecei a colocar-me perguntas. Será que me tornei muito profissional? Será que tenho truques para fazer tudo funcionar? Foi uma sensação horrível. Não queria coreografar só por fazê-lo. Há coisas que tento sempre procurar: ultrapassar fronteiras, quebrar limites, regras. No princípio, esperávamos encontrar um compositor. Ayşe estava a treinar partituras clássicas e por vezes improvisava. Começámos a gravar todos esses sons. Um dia, o jovem compositor Evrim Demirel, que tinha regressado à Turquia vindo da Holanda, veio ao nosso ensaio. Viu a peça e deu pequenas sugestões. Depois de partir, estávamos prontos para juntar as coisas. Agora, é o nosso conselheiro musical.

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Mencionou que, no princípio, era tudo demasiado bonito para si. Lembra-se do ponto em que isso mudou? O que aconteceu nos ensaios para fazer mudar a sua percepção? Crio sempre problemas e depois tento resolvê-los. Com a harpa, comecei a procurar as extremidades, os elementos de risco. Nessa altura, Ayşe foi muito importante. Podia ir para além das minhas expectativas e talvez das suas também. Trabalhávamos como num laboratório. Foi uma experiência forte. Nesta peça, alguns elementos mitológicos apareciam de maneira inevitável. Geralmente, nunca teria usado aquelas imagens. De algum modo, aceitei-as. Poder mudar tudo é algo de muito difícil, especialmente depois de uma carreira como a sua. Depois de muitas peças de sucesso, com todos os hábitos de trabalho… é complicado conseguir mudar. Tem a sorte de ter essa habilidade de se transformar. Acho que é por isso que sobrevivi. Desde 1980 que tenho estado a coreografar e ainda o faço. Claro que não é fácil. Às vezes sofremos muito. Lida sempre com os limites do corpo, as ligações do corpo com o mundo exterior, de uma maneira imprevisível. Usa estes objectos como sapatos ou um bonito instrumento musical… mas não são apenas o que são. Fazem parte do corpo, que também muda com eles. Como associa estas experiências ao corpo? Que mais pode dizer sobre estes objectos? Quando começo a trabalhar com objectos, às tantas esqueço-me que do que são. O corpo, sapatos, a harpa, tudo isso são elementos. Nesta peça, a harpa torna-se às vezes numa personagem. É um corpo para si. Também é um corpo. O que vemos em palco é às vezes um duo, outras vezes um solo. O corpo transforma a harpa, a harpa transforma-se a si mesma... A transformação é muito importante. Agora, por exemplo, estou a trabalhar com rostos. Não estou a usar nenhum objecto, mas rostos. Não acreditaria quanto estes rostos mudam. Até a parte mais pequena do corpo pode ser transformada em outra coisa, mas temos que ser pacientes. Temos de explorar. Se calhar não nos deveríamos preocupar em criar algo mas apenas estar no estúdio, aproveitá-lo, explorá-lo e viver esse momento. Não nos preocupar com mais nada. O resultado é o resultado. O mais importante, para mim, é estar no estúdio com Ayşe e viver essa experiência. Acredito que passámos por algo muito especial.

DIAS DO JUÍZO

ALKANTARA FESTIVAL

Estando muito interessada nessa transformação, pergunto-lhe se, nesse processo, ela também afecta a sua percepção diária das coisas? Se sim, de que maneira? Tudo o que eu aprendo ou vivo afecta a minha vida. Não sou uma pessoa que separa o trabalho da vida pessoal. Ter um gato em casa ou assistir a aulas de condução trariam novas imagens às minhas aulas. Quando comecei a tirar aulas de Feldenkrais, coreografei Momentum. Quando não tinha um palco para actuar, fazia trabalhos site-specific. Viveu nos Estados Unidos, andou de trás para a frente. Acha que essa ligação com a dança contemporânea americana também afectou o seu modo de trabalhar? Nos meados dos anos 70, quando viva em Nova Iorque, a minha aproximação ao corpo era diferente da dos anos 90. Em 1993, quando fui de novo para Nova Iorque com Fulbright, estava interessado em teorias somáticas e anatomia. Trabalhei arduamente para ajustar a minha maneira de pensar às aulas. Depois de voltar à Turquia, continuei a estudar anatomia. Acho fascinante poder compreender o corpo. Depois insiro nisso no meu trabalho, sem dar-me conta. Por exemplo, depois de estudar o sistema nervoso (mesmo não tendo ainda os conhecimentos suficientes), todos os meus trabalhos floresceram. As minhas coreografias recentes, Density e aKabi, relacionam-se com o sistema nervoso. É positivo conseguir ligar cada informação ao seu processo criativo. Como se fazia a ligação quando trabalhava em aKabi com o sistema nervoso? Eles sentavam-se em bicos dos pés e tentam aproximar-se da extremidade o mais possível. Era fantástico. Estavam a cair mas só se apercebiam disso quando caíam mesmo. Era tão difícil. Os seus sistemas perceptivos não estavam suficientemente desenvolvidos, e passado algum tempo conseguíamos ver o quanto tinham mudado e progredido. Foi por isso que conseguimos ir mais além. Talvez esteja enganada, mas a maneira como descreve a sua luta com o corpo lembra-me que tal é possível pela maneira como Istambul é organizada, a maneira como aí vivemos e como temos que lutar com os pequenos detalhes a toda a hora para poder continuar com as nossas vidas. Acha que faria as mesmas peças vivendo noutra cidade? É difícil responder a essa pergunta porque vivo em Istambul há muito tempo. Sinto-me feliz a viver e trabalhar aqui. Não sei se será do meu cérebro ou do sítio onde vivo. Acredito que tudo afecte tudo. harS, de Aydin Teker, apresenta-se na Sala de Ensaio do Centro Cultural de Belém entre 5 e 7 de Junho, às 19h

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OPINIÃO

A FACE OCULTA

António Pinto Ribeiro

DIÁRIO DE VIAGENS

Lisboa O ciclo Outras Lisboas que o São Luiz – Teatro Municipal organizou durante os meses de Fevereiro a Abril é uma programação oportuna, actual, com sentido das questões e das práticas culturais e artísticas e com pertinência internacional. Sabendo das dificuldades dos recursos financeiros do Teatro, esta iniciativa do Jorge Salavisa contribui para a emergência de algum cosmopolitismo lisboeta. Outras Lisboas reúne a produção e apresentação de peças de teatro, concertos e conversas sobre o tema genérico e aberto da interculturalidade. Vi a peça que Natália Luísa escreveu e encenou em conjunto com Miguel Seabra, Lisboa Invisível [14 a 17 Fevereiro]. A curiosidade pelas comunidades de estrangeiros a viverem em Portugal e a vontade de lhes dar visibilidade são contributos preciosos para o seu reconhecimento e para o conhecimento que delas se tem. No entanto, é um pressuposto deste tipo de trabalho – uma espécie de antropologia teatral participante – ter a noção de que há limites que as diferenças culturais nos impõem, e que querer tudo entender resulta num equívoco. Apesar do manifesto e genuíno interesse que estes autores/ encenadores têm por estas comunidades, a peça resulta num equívoco tremendo: numa caricatura do imigrante africano entre nós, apresentado com um conjunto de clichés já muitas vezes passado em programas de entertenimento fácil nas tvs e em comédias de gosto muito duvidoso. Não basta ser solidário com os imigrantes, se daí resultam manifestações demagógicas (como a cena do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), ou demonstrar comiseração pelo sofrimento do outro. Importante para conhecer os imigrantes – se era essa a intenção da peça, porque poderia ser apenas sobre algumas questões por eles colocadas – teria sido bom estudar melhor a questão do hibridismo identitário, da diferença de expressões dos afectos, as expectativas que estas comunidades têm no seio da comunidade anfitriã, as tensões geracionais e de classe entre as mesmas e, sobretudo, ouvir as suas pequenas narrativas históricas. Às vezes a solidariedade pode ser apenas ouvir em silêncio ou ver com contenção…. Pelo contrário,

a transferência do B. Leza para o Jardim de Inverno – temporária, é certo – foi um acto de doação de território, um gesto de prática intercultural. Mayra Andrade [24 Fevereiro] não é parecida com ninguém. É única. A sua voz é forte, modelada, com as nuances que a cantora deseja, e o timbre é claro e sedutor. O seu reportório é novo, actual, pertinente e a sua elegância no palco fazem dela uma das grandes cantoras das músicas do Atlântico. Turbo-folk, pelo Teatro Praga [6 a 15 Março], ocupou-se de tratar o tema da imigração de leste no contexto de abordagem às várias comunidades que vivem em Portugal. Este é um grupo que há muito reflecte nos seus espectáculos sobre a relação do teatro com o mundo, em geral, e com os públicos e as suas expectativas em particular. Também nesta obra aborda essas questões. Assim, o espectáculo divide-se em duas partes: a primeira – em formato de combinação de géneros, da revista ao festival da canção – pretende resolver a questão da encomenda do espectáculo pelo Teatro com as supostas susceptibilidades dos criadores contemporâneos aos limites de produção; a segunda, é uma reflexão sobre o prazer e o desprazer do teatro e sobre a história da cultura. O Teatro Praga faz um teatro culto, citando tanto os autores contemporâneos mais pertinentes, neste caso Amartya Sen, Slavoj Žižek e Godard, como os clássicos, o que produz uma sensação de alguma arrogância intelectual, dado o formato de compilação de citações que por vezes ocorre (imaginemos uma página da wikipedia aberta a despropósito um certo dia da semana?). A segunda parte é também apresentada como um solilóquio, um manifesto do grupo sobre o teatro que fazem que é, de acordo com o seu pensamento, o teatro a fazer. O Teatro Praga é um projecto de inovação exactamente pela sua vertente reflexiva, pela actualidade das suas propostas, pela sua dimensão internacionalista, mesmo que, de forma algo cínica, se digam alheios a estas questões: os seus trabalhos estão repletos de referências internacionais, na música, na literatura, na cenografia. Neste espectáculo há ainda um aspecto revolucionário sobre a formação do gosto – que é de admirar - e a revelação de André e. Teodósio como um dos excelentes intérpretes das artes da performance em Portugal.

Maison Tropicale de Ângela Ferreira e, agora, também de Manthia Diawara Com a instalação de Ângela Ferreira (na imagem), que foi a Representação Oficial Portuguesa na 52ª Bienal de Veneza, é agora possível ver o documentário realizado por Manthia Diawara. As duas obras formam assim um díptico, já que o filme se afastou da tentação habitual de acompanhar a concepção do projecto de Ângela Ferreira, para se constituir como uma obra visual autónoma de reflexão sobre as questões colocadas pela artista e pelo realizador. O resultado é então este díptico que funciona como um espelho: de um lado existe uma escultura enigmática, do outro um relato à maneira de uma narrativa policial, em que os autores vão descobrindo e revelando passo a pas-so os enigmas da construção da Maison Tropicale, os seus habitantes, os locais suspeitos da sua implantação, o seu regresso à Europa no

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OPINIÃO

meio de um negócio de contornos pouco claros. De um lado, existe uma escultura fria, distante; do outro, um filme quente, colorido; de um lado, existe a visitação por espectadores a solo; do outro lado, um filme cheio de pessoas. E, no entanto, as duas obras devem-se uma à outra, e a primeira, de facto, é o móbil da construção das duas. Isto é o imediato, porque antes está um trabalho de décadas – a maior parte das vezes solitário, e até tido como estranho ou mesmo o inoportuno – da artista Ângela Ferreira a tentar compreender como é que o modernismo europeu, na sua dimensão revolucionária, foi um dos instrumentos mais fortes do colonialismo cultural quando se impôs em África, e não só na arquitectura, mas igualmente na pintura, na escultura e na criação artística em geral. Maison Tropicale é uma tese de meio de percurso porque, depois deste episódio de desconstrução narrativa, importa desvendar as narrativas que foram enubladas pelos processos que conduziram às maisons tropicales e, que se continuam agora pelo mercado dos leilões de arte, dos coleccionadores, de alguns curadores e museus com pouco cuidado pela história das artes em África.

Um livro Quando tudo se desmorona, no original Things Fall Apart, de Chinua Achebe acaba de ser editado em português graças à editora Mercado das Letras, 50 anos depois da sua primeira edição em inglês e de outras traduções para muitas línguas. Considerado o romance fundador da literatura africana originária da África Anglófona, Things Fall Apart é uma obra fundamental da literatura mundial. Trata-se de um romance que cumpre os mais rigorosos preceitos da epopeia, com um herói em conflito com o destino ao qual não poderá escapar. Começando por ser a história de Okonkwo que ganha a sua notoriedade quando vence uma luta improvável, ela é também a história de uma comunidade rural do centro de África, num tempo que se inicia no pré-colonialismo e que termina já no período colonial de influência inglesa. Nesse tempo pré-colonial um ancião conta: “O Mosquito, contara ela, pedira à orelha que casasse consigo, após o que a Orelha tombou ao chão rebolando-se de riso. Quanto mais tempo crês tu que irás viver? perguntou ela. Já és um esqueleto. O Mosquito afastou-se humilhado, mas de cada vez que passava junto à Orelha ia dizer-lhe que ainda estava vivo”. A tradição oral que é legitimada e exaltada neste romance não inibe uma construção narrativa sólida, excelentemente estruturada em três partes: iniciação do herói e crime contra os deuses, exílio (sete anos, como é comum nas grandes narrativas míticas) e regresso à cidade de origem para que se cumpra o destino, segundo todos os oráculos, os gregos e os africanos. A forma como o colonialismo, as suas contradições, a importância dos missionários brancos (os bons e os maus) e a tecnologia (neste caso, as armas de fogo), como seus instrumentos de alteração de normas de conduta e de valores, e motivo da rebeldia do herói e dos seus parceiros da mesma vila, são descritos com uma clareza e uma evidência histórica de quem aprendeu entre os seus que “a arte da conversa é tida em grande conta e os provérbios são o óleo de palma com o qual as palavras são comidas”. Um grande clássico da literatura mundial!

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