EDITORIAL
ESPREITAR O MUNDO NÚMERO 5 JUNHO-JULHO 2007 Director Tiago Bartolomeu Costa tiago.bartolomeu@revistaobscena.com
A edição que está a ler é a primeira resposta ao desafio que significa fazer a OBSCENA, de há seis meses a esta parte. As últimas edições – disponíveis no nosso site – deixavamnos com a estranha sensação de vazio, como se algo estivesse por completar. No momento em que escrevo, não posso saber da sensação de agarrar esta revista; por isso, o que agora projecto será também uma sensação igual à sua. Foi sempre assim que quisemos fazer a OBSCENA, passo a passo, junto de quem nos lê, aprendendo e descobrindo, mas também propondo e discutindo o que nos rodeia. A OBSCENA surgiu há muito pouco tempo, meio ano que serviu para percebermos que o lugar que viemos ocupar, sem falsas modéstias, esperava por ser ocupado. Aconteceu sermos nós a fazê-lo, com as nossas (minhas) pressas, os nossos olhares, os nossos meios, as nossas ambições. Aconteceu. Não escondemos que sempre quisemos chegar ao papel. Fazemo-lo ao quinto número, em parceria com o Festival Internacional de Teatro de Almada que, na pessoa do seu director, Joaquim Benite, nos sugeriu associarmo-nos a esta 24ª edição, que decorrerá, nas duas margens do Tejo, mas de coração feito do lado de lá, de 4 a 18 de Julho. Não poderíamos estar em melhor companhia, nem mais orgulhosos. Este é só um primeiro passo, uma experiência, um risco, uma aposta, uma aventura que quer contrariar a inércia e desânimo que facilmente se instala “neste pequeno país dinamarquês”. No número seguinte voltamos ao online mas, como ensinou Platão, incapazes, estou certo, de ignorar o que existe fora da caverna. Razão pela qual todos os nossos esforços estão concentrados numa rápida e regular presença em papel: os desafios e as propostas são mais do que encorajadores. Destacamos o facto de a OBSCENA integrar, a partir de agora, a TEAM – Transdisciplinary European Art Magazines, uma rede internacional que integra doze revistas europeias: Alternatives théâtrales e etcetera, da Bélgica, Mouvement e Stradda, de França, 3xt, da Noruega, Art’O, de Itália, Ballettanz, da
Alemanha, Ellenfény, da Hungria, Highlights, da Grécia, a espanhola Exit e a eslovena Maska. Juntamo-nos assim a um prestigiado conjunto de publicações independentes, preocupado com a arte contemporânea, contribuindo, do nosso lado, enquanto única representante de Portugal, para que o cruzamento de nomes e referências, discussões públicas e políticas, reflexões sobre a criação mas também o que a envolve, possam acontecer a uma outra escala, mais abrangente, mais atenta, mais presente. E, certamente, com outra relevância e outra consequência. Foi sempre assim que imaginámos a OBSCENA, pensando localmente para agir globalmente. Mês a mês ficamos mais perto desse desígnio, crentes de que o trabalho feito não é um ponto de chegada mas um novo nó que queremos desatar. Também este número apresenta vários nós, ou antes, pontos de contacto. O Festival de Almada levou-nos a conceber uma edição quase inteiramente dedicada aos festivais. Assim, do Teatro Azul viajamos até Avignon, Bruxelas e Praga, lançando pistas para o que se vai apresentando no teatro, na dança, na performance, na música ou nas artes visuais, e que encontrarão repercussão nas futuras edições da OBSCENA. Lançamos cada número sabendo que poderíamos ter feito melhor, de outra forma, propondo outras ligações, falando de outros temas, com mais pessoas, convidando mais colaboradores. Este número, por ser em papel, especial e duplo, obrigou-nos a um exercício de síntese que deixou muito de fora. Por estranho que possa parecer, agrada-nos essa ideia de insuficiência – sabemos que, desse modo, teremos razão para voltar no mês seguinte. Agrada-nos ainda saber que o que fazemos está a ter uma recepção muito para além do que esperávamos, cientes de que, a cada conquista, as responsabilidades aumentam. Confesso, no entanto, um segredo: soubéssemos nós como fazer esta revista de olhos fechados, sem incertezas, não tínhamos passado do primeiro número.
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TIAGO BARTOLOMEU COSTA
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Editores Miguel-Pedro Quadrio mpquadrio@revistaobscena.com
Mónica Guerreiro motim@revistaobscena.com
Colaboradores Bandeira Bruno Horta Eugénia Vasques José Luís Neves Pedro Manuel
Participam neste número Arnd Wessemann, Caeli Gobatto, Cláudia Marisa Oliveira, Cristina Peres, Elisabete França, Francisco Valente, Gil Mendo, Gisela Pissarra, Halima Tahan, Henrique Silveira, Jaime Rocha, João Paulo Sousa, John Romão, José Mário Silva, Luís Rodrigues, Patrícia Brito, Pascal Bély, Rosário Santana Paixão, Rui Monteiro, Silvina Díaz
Agradecimentos Teatro Al Sur – Revista latinoamericana, Ballettanz, Jeroen Peteers, Diana Raspoet (Damaged Goods), Les Solitaires Intempestifs, Geraldine Chaillou (Théâtre de la Bastille), Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea
Fotografia Capa The End of Reality (enc: Richard Maxwell, 2006) © Lieven De Laet – Academie Anderlecht Design MERC tiago.rodrigues@revistaobscena.com
Publicidade publicidade@revistaobscena.com Assinaturas e informações obscena@revistaobscena.com A OBSCENA é uma revista de periodicidade mensal com distribuição electrónica gratuita através de assinatura. A OBSCENA aceita propostas de colaboração dos leitores. Os materiais publicados são da responsabilidade dos respectivos autores, estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial. As informações devem ser enviadas até dia 8 de cada mês. www.revistaobscena.com
OPINIÃO Coxia | Bandeira (6) Os efeitos sonoros de um motim podem provocar um motim verdadeiro Mónica Guerreiro (7) Visto dos Bastidores | Miguel-Pedro Quadrio (32) Ponto Crítico | Eugénia Vasques (73)
ARRITMIA (8) O ciclo que Lisboa dedica à coreógrafa Meg Stuart, um olhar especial sobre o Festival d’Avignon, em França, e o balanço do KunstenFestivaldesArts, em Bruxelas, cruzam o teatro, a dança e a performance actual num retrato vivo da cena internacional
APOSTA (30) A 11ª Quadrienal de Praga dedicada à cenografia e arquitectura conta com o cenógrafo João Mendes Ribeiro como representante oficial. Uma curta-metragem da coreógrafa Olga Roriz e uma peça do igualmente coreógrafo Miguel Pereira completam a presença portuguesa no mais importante evento mundial do género
TRÁFICO (34) Porque quando Almada recebe o seu Festival de Teatro nos abre portas para o resto do mundo, desvendamos-lhe, num dossier especial, os nomes e os espectáculos, nacionais e estrangeiros, que fazem esta 24ª edição. Entrevistas, perfis, críticas, diálogos e pré-publicação de um conto vietnamita
DIAS DO JUÍZO (74) O encenador italiano Pippo Delbono, o Festival da Fábrica, no Porto, a ópera no S. Carlos, a exposição dos suíços Fischli & Weiss, em Paris, e o livro Concerto das Artes são os destaques críticos desta edição. Outras críticas a espectáculos, livros, filmes e discos podem ser lidas nas diferentes secções da revista
ENSAIO (82) O Processo de Bolonha introduzirá novas regras no funcionamento das escolas artísticas. Gil Mendo, programador e professor da Escola Superior de Dança, dá-nos conta de algumas das dúvidas que o documento lhe suscitou
OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO Mónica Guerreiro
ALMADA CRU: SOBRE FESTIVAIS não apenas pela componente artística, como a imprensa “séria” fazia, mas enquanto facto sociológico. Foi assim que me vi a entrevistar não só os artistas actuantes, mas também os adolescentes agarrados às grades oito horas antes de o seu ídolo subir a palco. Foi assim que consegui entender a atracção que, de há dez anos a esta parte, resultou num florescer de festivais: nem sempre importa a música, mas importa sempre a experiência. Entretanto, esta abordagem ao “fenómeno” parece ter-se institucionalizado e a questão
vidativo); outra de refrigerante organizou um jantar a 30 metros de altitude para os premiados em passatempo prévio; um enigmático “labirinto de luzes” gerava outra fila desanimadora. De que “experiências” poderia usufruir quem não estivesse disposto a perder os concertos e DJ sets que ocupavam sete palcos? Por exemplo, a “tenda silenciosa” prometia possibilitar a mil dançantes, munidos de auscultadores, a opção entre dois DJ: só que ao som escolhido sobrepunha-se uma mistura de outras músicas trazidas pelo
juvenil ganha anualmente protagonismo na cobertura dos festivais. Mas aí vemos privilegiar o folclore e a caricatura, longe do espírito das reportagens que comecei por recordar: trabalhos jornalísticos que visavam relatar a actualidade relevante, as histórias do dia. Havia, portanto, também algo de “experimental” naqueles artigos, que com a repetição da oferta e dos festivais se perdeu. Talvez os festivais tenham de assumir que servem primordialmente para promover experiências, e só depois música. Em Portugal montou-se um primeiro evento em torno desse conceito, o Creamfields Lisboa. Isso, sim, parecia inovador. O subtítulo explicava: “música, experiências e etc., muito etc.”, tornando evidente que a prioridade consistia em reunir pessoas (e foram umas 40 mil) em torno de uma noção de partilha lúdica que recriasse ao ar livre a animação do Club Cream, de Liverpool. Deste “conceito” já se realizaram festas Creamfields na Europa e América Latina. Mas de que “experiências inéditas” falamos? Uma marca de champô assegurava visuais arrojados (a fila nunca teve um tamanho con-
vento, tornando a experiência... improvável. Se as “experiências” e os “etc.” (um stand humanitário, mas principalmente os espaços dos patrocinadores) não proporcionaram uma noite memorável, e a música? Também não. Apenas a curta distância do palco era possível evitar a contaminação dos sons que se tocavam noutros palcos. Os Placebo chegaram mesmo a comunicar um pedido de desculpas por terem terminado abruptamente o concerto, devido ao frio. Os Vicious Five deram um espectáculo à altura. E safou-se o concerto dos Da Weasel, à vontade com as canções do novo Amor, Escárnio & Maldizer mas com os antigos êxitos também, recordando os tempos de militância na Margem Sul, cujas palavras de ordem permanecem na memória. O mote, que Pacman ostenta tatuado no braço direito, remete para as origens: “Almada Cru”. A tripulação segue-os, e a atitude almadense animam-na eles nas canções, revoltadas e apaixonadas. Agora que se prepara o arranque de um novo Festival de Almada, o maior acontecimento teatral do país, será que a tripulação continuará a fazer-se ouvir?
© SÉRGIO COELHO
A conversa era sobre festivais de Verão. À minha entusiasmada antecipação do Super Rock deste ano, cujo “segundo acto” desperta definitivamente a atenção, a minha interlocutora respondeu com indiferença, afirmando peremptoriamente: já comprei os passes para o Sudoeste. Foi a minha vez de ficar surpreendida. Com um cartaz, em finais de Maio, ainda incipiente para as quatro noites de música, tornava-se nítido que não era a qualidade das bandas que a fazia aspirar, a cada ano, pelos dias quentes que se vivem a Sudoeste. Não: ela busca, como milhares de jovens, viver “uma experiência”. Nada de novo, aliás, mas que eu considerara um propósito ultrapassado. O que há ainda de experimental na liberdade sem guarda, no álcool desmedido, nos acampamentos insones? Tenho acompanhado com desenfreada curiosidade os episódios do reality show da MTV I’m From Rolling Stone – um dos raros programas feitos com pessoas que se candidatam a uma “experiência” temporária (viver com estranhos numa casa, ou numa quinta) que, ao contrário do costume, não é totalmente inútil. I’m From Rolling Stone acompanha o dia-a-dia competitivo de um grupo de estagiários na reconhecida publicação homónima, a braços com os prazos apertados, a exigência do trabalho jornalístico, a complicada relação com os artistas. Os editores são implacáveis e os aprendizes sofrem com as reprimendas. Destacados para o último Lollapalooza, dois candidatos a jornalistas agarraram no festival com perspectivas antagónicas: um deixou-se fascinar pelo fácil acesso às estrelas de rock’n’roll e não escreveu nada de jeito; o outro aventurou-se por uma selecção de 30 concertos e viu a sua reportagem publicada na Rolling Stone. Face à multiplicidade de formas de abordar um evento desta natureza, a dificuldade está em encontrar a “cacha”, escrever sobre aquilo que é mesmo importante. Quando, há dez anos, comecei a escrever sobre festivais de Verão (no Super Rock 97, onde alinharam os Rage Against The Machine, as L7 e os Simple Minds), os jornalistas do Blitz tinham indicações para perceber aqueles ajuntamentos de gente para lá do evento musical: para o verem como acontecimento de carácter ritualístico, pagão, desregrado e sazonal. Uma espécie de Carnaval fora de época, cuja análise teria de ser feita
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ARRITMIA
MEG STUART DE 3 A 13 DE JULHO A COREÓGRAFA NORTE-AMERICANA MEG STUART OCUPA O CCB, A CULTURGEST E O TEATRO CAMÕES COM UM CICLO DE ESPECTÁCULOS, PERFORMANCES E FILMES, QUASE TODOS EM ESTREIA NACIONAL. OPORTUNIDADE ÚNICA PARA CONHECER A FUNDO O TRABALHO RECENTE DE UMA CRIADORA ICONOCLASTA QUE MANTÉM HÁ MUITO UMA RELAÇÃO PARTICULAR COM A DANÇA PORTUGUESA.
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BLESSED © CHRIS VAN DER BURGHT
ARRITMIA MEG STUART
Não foi por acaso que Jean-Marc Adolphe, editor da revista Mouvement, apelidou a norte-americana Meg Stuart de “coreógrafa do desastre” (Janeiro 2002) depois de assistir a Alibi (o filme que reequaciona a peça mostra-se dia 9 de Julho no CCB), peça marcada, conscientemente ou não pelos ataques às torres gémeas. “Política no que diz, actual pelo que faz surgir no instante da representação, toda uma genealogia de informações, de energias, de gestos derrotados. É bom verificar que esta encenação de clichés sobre a dominação surge de uma artista americana exilada na Europa depois de dez anos”. O crítico queria salientar a raridade de um discurso de resistência, de atenção, de desconforto, de coerência que, em vez de súbita e passageira, lhe era intrínseca. Para Meg Stuart esta ideia de catástrofe é anterior a 2001. “O meu trabalho foi sempre sobre a catástrofe. Quando eu estou no estúdio a trabalhar, sozinha e às voltas, estou sempre a lidar com a recuperação de um acidente, de uma catástrofe… Ou seja, trabalho em busca de uma cura, de uma recuperação… de uma reintegração do corpo que tem um problema de mau funcionamento… mas tudo de uma forma muito profunda, muito implicada com aquilo que me rodeia”. De Disfigure Study, a peça que a trouxe para a Europa, apresentada em 1991 no Klapstück, na Bélgica, o mesmo festival que firmou a Nova Dança Portuguesa – e é por aqui que começam as relações com vários criadores nacionais, que resultaram, por exemplo, em Blessed, um solo para Francisco Camacho que traz a Lisboa (CCB, 3, 6 e 10 Julho) – até It’s not funny! (CCB, 7 de Julho), obra a negro que desmonta a ligeireza dominante com que tendemos a abordar a tragédia, mais próxima ou universal, o centro do seu discurso está na identificação das razões que nos levam a agir desta ou daquela maneira. Assim, é no seu universo pessoal e referencial – que pode ir, de facto, do 11 de Setembro ao esforço físico do intérprete – que vai buscar a matéria que constitui um dos mais polémicos e pessoais discursos da cena contemporânea europeia. “Continuo a criar o meu mundo, as minhas ligações, as minhas pessoas, os meus projectos… uma espécie de abrigos temporários que por vezes cedem e eu crio novos. Eu vivo num outro espaço que não está dividido por realidades físicas, como teatros específicos ou dependente de relações pessoais”, diz, enquanto parte para mais uma viagem Bruxelas-Berlim, cidades onde se divide. A primeira porque é lá que tem a sede da sua companhia, Damaged Goods; a segunda, porque reside artisticamente na Volksbühne, o ex-teatro nacional de Berlim Leste, facto tanto mais raro por se tratar de uma mulher. Ser ou não americana, estar ou não na Europa, existir ou não um ponto de vista feminino, ter surgido ou não num momento em que vários outros criadores surgiam, em diferentes pontos da Europa, são questões que, se são circunstanciais e podem introduzir dinâmicas diversas na criação e recepção dos seus espectáculos, não enfermam o seu discurso ao ponto de o condicionaram a uma mensagem. Ela esclarece: “não quero fazer passar nenhuma mensagem, não quero educar ninguém, não faço statements”. E mais: “o meu maior conflito com a ideia de afirmação é que, quem quer fazer afirmações num palco, normalmente esquece-se de fazer um espectáculo e não assume que, simplesmente, não sabe. Há coisas que as pessoas não
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IT’S NOT FUNNY! © CHRIS VAN DER BURGHT
MEG, A PASSIONÁRIA
sabem, que levam tempo a aprender. E não saber faz parte. Antes de qualquer afirmação sobre o teatro ou a dança, é preciso saber-se o que se quer fazer, é preciso ser-se reconhecido, é preciso lidar com os lados negros, com o que é desconfortável… E a maior parte não o quer fazer, razão pela qual o expõe de forma tão evidente no palco. Mas o que é preciso dizer ao público é que, num teatro, eles estão a salvo, não precisam ter medo do que está a ser mostrado”. Não acreditando num discurso de afirmação tout court, é na exposição de certos vícios – dela, daqueles com quem trabalha, dos que a rodeiam e dos que a vêem –, que sustenta o seu trabalho quase sempre em parceria. Do videasta americano Gary Hill ao coreógrafo canadiano Benoît Lachambre, do dramaturgo e crítico flamengo Jeroen Peteers ao encenador inglês, Tim Etchells, dos Forced Entertainment, já foram muitos os músicos, intérpretes, coreógrafos, ensaístas, artistas visuais e realizadores que com ela colaboraram. É neste princípio – mais de generosidade e desejo de descoberta conjunta que de simples partilha discursiva – que Meg Stuart, de discurso mais retraído quando tem que falar do seu trabalho, e mais explosivo quando o mostra num palco, procura construir uma dança “do desastre”, certamente, mas sempre na tentativa de entender o trágico, essa condição que nos domina.
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TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA
Há muito tempo que rir já não é um pecado. Et pour cause, diz-se, várias liberdades tornaram-se adquiridas. Afinal rimos de quê, para quem e porquê? Estreado em 2006, por encomenda do Salzburger Festspiele, It’s not funny! explora algumas das linhas mais fortes do trabalho de Meg Stuart, nomeadamente teatralidade e representação, excesso e falhanço do movimento. Obedecendo, dessa forma, a uma obsessiva busca por um certo fil rouge que possa dar ao corpo, ao gesto e à estrutura uma coerência (uma linearidade) que o resgate da simples exposição de virtuosas sequências ou coerentes dramaturgias. Ou seja, balança permanentemente entre a queda no abismo e a certeza de um terreno seguro. It’s not funny! não é diferente de outras pesquisas centradas na dificuldade em aceitar a passividade: a raiva contida nos movimentos desesperados de Alibi (2001); a fragmentação do indivíduo em Visitors Only (2003), o comportamento do outro quando exposto nas suas fragilidades em Forgeries, Love and Other Matters (2004), com Benôit Lachambre, só para citar os mais recentes. Mas aqui o binómio acção-reacção vive de um constante questionar da validade da palavra, da acção e do sentido. Depende, por inteiro, da reacção já que é nela que se joga a legitimação do que se diz. Aqui o diálogo é mais directo, é menos metafórico, é mais cru, sendo outro o tipo de humor proposto. Composto por diversos números, como se de um grande show de entretenimento se tratasse, recorda-nos, mesmo que apenas projectando, Las Vegas e a sua cultura da superficialidade. Não falta uma imensa escadaria em madeira crua a ocupar o palco, um número de dança inicial, à la Busby Berkley, no qual sete intérpretes (três mulheres e quatro homens, entre os quais a estrela convidada, o coreógrafo francês Boris Charmatz), fazem de pin-ups com as cabeleiras louríssimas de plástico, os ridículos fatos e os maillots berrantes. O slapstick toma, depois, conta do palco e dos intérpretes que caem de escadas, lançam tartes de creme à cara uns dos outros, guerreiam-se, criam armadilhas, divertem-se a gozar com tudo e com todos, contam anedotas, tentam subir vários móveis com patins, atiram-se, enrolados em tapetes, pela escadaria, dançam desajeitadamente uma qualquer música de salão, … Tudo tragicamente e ilusoriamente encenado. Estes palhaços tristes vivem presos na necessidade de fazerem rir. O texto que Meg Stuart e Tim Etchells, encenador da companhia Forced Entertainment, assinam na folha de sala é sintomático da dificuldade em distinguir o que pode ser matéria de humor e o que, de forma alguma, é engraçado. A guerra no Iraque, a bomba atómica, os novos role models impostos pela futilidade da sociedade americana, os discursos pacifistas, a salvação do mundo, os espectáculos de casino, o stand-up comedy, os reality shows, o furacão Katrina, os prisioneiros em Guantánamo, a autobiografia… tudo pode ser muito engraçado (sobretudo em palco, porque ficcional), mas, e novamente do programa, “uma piada é muitas vezes engraçada quando contada num contexto. Um comentário sexista no dia-a-dia é doloroso; na boca de um comediante transforma-se em anedota, por isso, ‘inofensiva’”. Há aqui uma ideia de voyeurismo escatológico que atinge proporções alarmantes no momento que a peça passa de um conjunto de gags para um terreno mais negro e muito menos confortável (para o espec-
© CHRIS VAN DER BURGHT
A EXPOSIÇÃO DO RISO
tador, claro). Os intérpretes juntam-se para agredir um deles, Leja Jurisic, e o que parecia uma brincadeira torna-se numa selvagem agressão à intérprete que, saindo naturalmente ilesa, não mais será olhada – nem o espectáculo –, da mesma forma. A passagem para o lado negro do humor (e que não é a mesma coisa que humor negro) é ampliada pela presença cruel e sádica de Boris Charmatz que se impõe aos outros através de uns longos braços de borracha de cor púrpura e, com eles, maltrata e importuna os parceiros. Percebemos que já não há grande esperança, nem para aqueles palhaços-tristes nem para nós, incapazes de sair da posição passiva de espectadores expostos ao nosso próprio gozo na tragédia dos outros. Ridículo e embaraço são sobrepostos num espectáculo em discurso de directa confrontação. Razão pela qual o último número de stand-up (e este é um espectáculo que destrói por completo toda e qualquer ideia que possamos ter sobre a validade do stand-up comedy) é um longo manifesto sobre o futuro. Um dos intérpretes lança-se no desafio de enunciar os temas sobre os quais já não se pode fazer humor. Entre eles a concentração e campos de concentração, acidentes de aviação, violência desnecessária, pessoas que não conseguem raciocinar, os grandes teatros europeus e a sua ideia de tudo saberem sobre o mundo, o público, sobre como as coisas poderiam ter sido diferentes, sobre como as coisas são, sobre a ténue linha entre o divertido e a loucura, etc., etc... Depois disto, pouco resta a It’s not funny!. Aquilo que começara como uma desmontagem humorada do humor transforma-se numa dolorosa tomada de consciência dos riscos desse humor. Meg Stuart, na sua iconoclastia e consistente questionamento, oferece-nos a possibilidade de reflexão. Apanhados que fomos na liberdade perversa do riso, somos obrigados a antever que limites devemos impor a nós mesmos para que não sejamos dominados pela superficialidade do riso. Mais uma vez a relação com a responsabilidade, palavra-chave na obra desta autora.
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TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA (versão revista da crítica publicada em Setembro de 2006 no blogue O Melhor Anjo, escrita com o apoio do Programa de Apoio à Dança da Fundação Calouste Gulbenkian) It’s not funny!, apresenta-se no CCB dia 07 de Julho às 21h00
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ARRITMIA MEG STUART
CHUVA DEMOLIDORA
© CHRIS VAN DER BURGHT
Chuva, chuva incessante a cair no palco. O seu impacto destruidor começa por vergar a palmeira de papelão e depois faz com que se desmorone o cisne gigante, também de papelão. Por fim, acaba por ceder o derradeiro refúgio, uma paragem de autocarros de papelão que não resiste ao impacto da chuvada. A chuva sepulta o bailarino Francisco Camacho que, ainda pouco minutos antes, estava a admirar a palmeira e a acariciar o cisne, atravessando, tal jovem Nijinsky, o seu paraíso bailando ao ralenti e em chinelas de borracha. O pobre diabo acaba sepultado por todos estes objectos provisórios. Dissolvem-se, em tempo real, os símbolos do Sul, do bailado e de tudo aquilo que nos protege. O que nos resta do exotismo é apenas El Niño. Nada daquilo que nos deveria proteger resiste contra os tsunamis, os tornados, os glaciares e os pólos. A chuva permanente desfaz estas obras em decomposição da artista Doris Dziersk, tal como, ao fim e ao cabo, toda a Bolívia acabou por ser submergida pela enchente. É nisto que pensamos, porque Camacho, que, com uma falta de senso cada vez maior, procura abrigar-se por debaixo de pedacinhos de papelão cada vez mais pequenos, acabando por tapar a face com
uma máscara de barbas vermelhas e pompons multicolores, uma máscara boliviana, sugerindo assim uma espécie de dança da chuva de sinal invertido. Mas de nada lhe serve. Recomeça a chover. Não logramos interromper a cadeia de associações do regresso do homem feliz à idade da pedra, a miséria invade as filas de assentos, inexoravelmente, como uma corrente fria e húmida: os sem-abrigo em Paris, os desamparados em Nova Orleães, o próprio dilúvio – tudo isto trespassa, gotejando, do princípio ao fim, toda a pequena obra de arte da coreógrafa Meg Stuart – Blessed (“abençoados”) – sem qualquer vestígio de alívio. E quando este alívio acaba por surgir, é tão desconsolado, que quase não o conseguimos aguentar. Não podemos imaginar um maior contraste do que aquele que nos surge entre os dentes arreganhados, quase simiescos, de Francisco Camacho, acocorado no papelão empapado, e uma impudência de revista. Porque a subtileza sumptuosa da composição do compositor americano Hahn Rowe aparece salpicada de laivos de música de salão, um pontapé de palhaço, a bailarina Kotomi Nishiwaki com toucado javanês. Empoleirada em saltos altíssimos, com uma faixa graciosa, ela dança
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a sua grande alegria no meio de toda aquela miséria. Nunca houve nada de mais brutal: o contraste entre a impotência da natureza humana e o seu prazer nesta dança sobre um vulcão. Camacho é repescado da imundice Tal como alguém que salvaram do afogamento, Jean-Paul Lespargnard veste-o habilmente no estilo da nossa época. Sobre o bailarino, qual Cristo petrificado, ele coloca óculos, casacos, uma máscara mortuária – a miséria exige estes modelos para que surjam como exemplos de vencedores e para que, tal como os rapeiros recuperados dos bairros de latas de Chicago, sejam os povoadores do palco da ignorância.
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TEXTO ARND WESSEMANN CRÍTICO Tradução do alemão: Anneliese Mosh Publicado em colaboração com a revista Ballettanz
Blessed apresenta-se no CCB dias 3, 6 e 10 de Julho às 21h00
O FÁTUO GRANULAR O areal da praia é aquele chão instável e movediço que nem é terra nem mar. Onde não se caminha em frente, mas de lado. A areia é onde os corpos se afundam. Serve a introdução para apresentar Sand Table, de regresso a Portugal depois de apresentado no CCB, em 2005, no âmbito do Festival Temps d’Images. Aí, os espectadores assistiam ao espectáculo num foyer do Grande Auditório, olhando de cima para baixo, como para o fundo de um poço, onde a água se agita em sombras e reflexos. No fundo, existia uma mesa coberta de areia, ladeada por dois intérpretes. A mesa é o palco, o espaço definido da representação, onde se projectam imagens sobre a superfície da areia, imagens de bailarinos a dançar sobre o chão. A imagem vídeo, plana, ganha volume nos contornos da areia. Os intérpretes movimentam a areia sobre a mesa, procurando acompanhar os movimentos dos corpos dos bailarinos. Daí resulta uma subtil sensação de presença física dos corpos projectados e uma intensa dinâmica entre o movimento das imagens e dos manipuladores. Um primeiro nível de diálogo estabelece-se entre os materiais, o vídeo e a areia, ambos materiais fragmentados mas dos quais resulta uma nova presença, volúvel e ambígua. As imagens tornam-se corpos granulares e a dissociação entre a imagem do corpo e a sua materialidade cria interrupções de onde nascem deformações, breves monstros. O segundo nível de diálogo é entre os corpos reais e os corpos granulares. Qual o estatuto destes corpos reais, intérpretes ou manipuladores? Aqui, a dança, mais que o conteúdo da experiência tecnológica, subsiste ainda como linguagem, e é enquanto diálogo de movimentos que podemos entender a relação de manipulação, como jogo. O momento em que o rosto do intérprete projectado na areia se vai desfazendo é especialmente emblemática, apontando para uma tensão e uma ambiência obsessiva, própria dos trabalhos de Meg Stuart e que aqui é exercitada através das relações entre corpos, não entre personagens, mas na relação entre corpos fátuos e os seus manipuladores.
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TEXTO PEDRO MANUEL
Sand Table apresenta-se no CCB dias 6 e 7 Julho às 19h00 e 20h00
SOMEWHERE IN BETWEEN © REGARDS PRODUCTIONS/ PIERRE COULIBEUF
ESPELHO MÁGICO Os títulos dos vídeos e filmes do ciclo Meg Stuart são esclarecedores em uma das linhas fundamentais da coreógrafa: o lugar de pertença. Between two chairs (Jorge Léon, vídeo 16’25”), the invited (Jonathan Inksetter, vídeo 12’22”), Meg Stuart’s Alibi (Maarten Vanden Abeele, vídeo 24’) e Somewhere in between (Pierre Coulibeuf, filme 70’). Apenas o último. Coulibeuf, autor, entre outros, de Pavillion Noir (ver OBSCENA #1) e artista visual, explorou o universo de Stuart numa longa-metragem que, ao contrário das outras, não surge a partir ou prolongando uma coreografia. Sabe-se que não agradou completamente à coreógrafa, existindo uma outra versão, In Between, mais curta. Reconhecemos na luminosa média-metragem (a luz, reveladora e inquietante, é explorada plasticamente tornando quase irreal, e profundamente cénico, o que a câmara mostra) elementos característicos das peças: grandes espaços e a errância dos corpos neles, nervosismo coreográfico que faz os corpos explodirem de surpresa, tensão nos diálogos como se escondessem mais do que dizem, uma alucinante espiral de sequências angustiantes. Mas ao hesitar entre registar passivamente o movimento e dominá-lo encerrando-o nos espaços, ou nos planos, força o olhar do especta-
–, constantemente procurando o equilíbrio e o lugar de pertença. Sentimento também explorado em the invited, curtíssima alegoria que prolonga uma das cenas de Visitors only (2004), negra peça de corpos errantes. O filme encerra-os (e a nós) num hangar cinzento, deixando que a imagem e o som manipulem e vampirem um sentimento de identificação. Alibi é, por outro lado, uma das mais marcantes peças de Stuart (2001) onde perpassam os ecos, trágicos mas também denunciadores, da ressaca do 11 de Setembro. O trabalho visual do fotógrafo Maarten Vanden Abeele re-ordena, sem impor, um confronto entre ficção e realidade, num exercício exploratório sufocante e, surpreendentemente, intimista.
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TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA O ciclo passa no CCB a 9 de Julho às 21h00
Sobre a mesa, a dança Ela pede disponibilidade para esperar que daquela roda de cadeiras onde todos se sentam, “como numa conferência”, algumas “situações se tornem desproporcionais”. Eles são os coreógrafos Boris Charmatz, Terry O’Connor, Vera Mantero e António Tavares, o actor Miguel Borges, o performer e director da revista eslovena Maska, Emil Hrvatin, a dramaturga da peça Maybe Forever (na Culturgest a 4 e 5) e co-directora do portal flamengo Sarma, Myriam Van Imschoot, e os músicos Carlos Zíngaro e Hahn Rowe. Ela, Meg Stuart, à cabeceira de uma roda imaginária a conduzir uma improvisação chamada Auf den Tisch! ou, em português, sobre a mesa.
Auf den Tisch! mostra-se dias 12 e 13 de Julho, às 21h00, no palco do Teatro Camões.
dor, essencial para fazer activar o discurso de Stuart, a desistir de seguir a ténue narrativa para observar, isolada e descontextualizadamente, cada uma das sequências. E as suas coreografias sempre quiseram tudo, menos deixar o espectador à deriva. Não sendo um filme extraordinário tem o mérito de rasgar cenográfica e espacialmente os espaços de Stuart. A habitual claustrofobia contrasta aqui com o mar (de uma intensidade ofensiva), o prédio abandonado, o salão ou as ruas. Porque o realizador nunca ousa questionar directamente o olhar da coreógrafa, aquilo que poderia sugerir um deslocar dos corpos para espaços mais amplos, numa projecção que os tornasse mais nus, falha na estilização do plano, seco e distante. Os restantes filmes, menos ambiciosos, expõem algumas das obsessões de Stuart. O mais radical, num processo de aliteração dramatúrgico que vai mais fundo na premissa coreográfica, é Between two chairs, retrato pungente e biográfico do bailarino americano Ronald Burchi enredado nos processos burocráticos de legalização de estrangeiros na Europa. É um desfiar de memórias sobre o que significava ser artista nos anos 80 em Nova Iorque, as técnicas de sobrevivência a que se sujeitam para trabalhar, e um questionar da validade da arte quando confrontada com as necessidades básicas da vida. Partiu de Replacement (2006), peça de inteligência rara, onde os intérpretes viviam num limbo – um enorme edifício em ruínas, que os impedia de se movimentarem, enquanto metáfora de um mundo também instável
MAIS MEG STUART
Bodies as Filters: on Boris Charmatz, Benoît LaChambre and Meg Stuart, Jeroen Peteers, CC Maasmechelen/Bruxelas, 2004, €8; No wind no Word: Neue Choreographie in der Gesellschaft des Spektakels, Helmut Ploebst (em inglês e alemão), K.Kieser/Munique, 2001, €19,90; O portal flamengo Sarma (www.sarma.be) reúne textos de carácter ensaístico, notas para programas, entrevistas e críticas ao trabalho da coreógrafa em inglês, alemão e flamengo (seleccione Search na página inicial e escreva “Meg Stuart” na tábua de opções); O arquivo da revista francesa Mouvement (www.mouvement.net) guarda entrevistas, críticas e artigos de opinião sobre Meg Stuart (seleccione “Ressources” e escreva Stuart na opção “mot clef”); Meg Stuart em entrevista http://omelhoranjo.blogspot.com/2006/11/na-primeira-pessoa-megstuart.html; O Centro de Documentação do Fórum Dança (www.forumdanca.pt) disponibiliza para visionamento os espectáculos Held (1990) e Disfigure Study (1991); Site da coreógrafa: www.damagedgoods.be
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ARRITMIA
AVIGNON
BARALHAR E VOLTAR A DAR
VERÃO EM FRANÇA É SINÓNIMO DE FESTIVAL D’AVIGNON, O MAIS IMPORTANTE ENCONTRO INTERNACIONAL DE TEATRO NO VELHO CONTINENTE QUE, CADA VEZ MAIS, SE MOSTRA (INEVITAVELMENTE) ABERTO A OUTRAS DISCIPLINAS. DE 6 A 31 DE JULHO A 61ª EDIÇÃO APRESENTARÁ OS NOMES QUE, NOS PRÓXIMOS MESES, IRÃO CIRCULAR POR VÁRIOS PAÍSES EM ESPECTÁCULOS QUE DESAFIAM AS FRONTEIRAS DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA. NUM DOSSIER ESPECIAL A OBSCENA DÁ-LHE CONTA DA PRESENÇA PORTUGUESA EM ANOS ANTERIORES NO FESTIVAL, DESVENDA O PROCESSO CRIATIVO DO ENCENADOR ARGENTINO RODRIGO GARCÍA E RECORDA A POLÉMICA EDIÇÃO DE 2005, QUE QUESTIONOU O LUGAR DOS FESTIVAIS, EM PARTICULAR O DE AVIGNON, NA DEFINIÇÃO DAS TENDÊNCIAS PERFORMATIVAS.
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ツゥ JOHN ROMテグ
ARRITMIA FESTIVAL D’AVIGNON
SOLITARY VIRGIN © JOSÉ ALFREDO
PONTO DA SITUAÇÃO
“Num momento em que é evidente a redução do espaço dado à arte e à cultura, tanto nos discursos políticos como nos media, devemos, em conjunto com artistas e espectadores, testemunhar a vitalidade da criação artística, bem como a importância que esta pode ter quando se cruza com a vida, e a necessidade de permitir o seu usufruto frequente”. É assim que abre o editorial de apresentação da nova edição do Festival d’Avignon, mais de 60 anos depois da inauguração do mais importante encontro de teatro do Velho Continente. Com Frédérich Fishbach nos comandos da programação deste ano – depois das polémicas edições de Thomas Ostermeier, Jan Fabre e Josef Nadj – aponta-se agora para um consenso no cruzamento do teatro com a dança, as artes plásticas e mesmo a ópera ou as marionetas, dado o percurso deste encenador, um dos nomes que integra a associação Sans Cible (em francês, sem alvo, mas também sugerindo sensível) que junta vários encenadores na reflexão sobre o lugar do teatro no espaço público. É essa noção de presença num espaço partilhado que a direcção de Vincent Braudiller e Hortense Archambault, 34 e 32 anos respectivamente, deve reforçar, sobretudo depois de ter sido confirmada a renovação por mais dois anos da condução do festival. Uma decisão nada pacífica – e uma aposta pessoal do anterior Ministro da Cultura Renaud Donnedieu de Vabres – que visa relançar Avignon como o centro da criação internacional. O mote é dado por René Char: “L’acte est vierge, même répété” (A acção é virgem, mesmo que repetida), uma das 237 frases de Feuillets d’Hypnos, que Fishbach encenará. A edição deste ano junta os alemães Frank Castorf (numa adaptação do romance Nord, de Céline), Sasha Waltz (primeiro espectáculo após a saída da direcção da Schaubühne) e Raimund Hoghe (que regressa ao solo em 36, Rue Georges Mandel, título que recupera a última morada de Callas, em Paris) aos já habituais Romeo Castelluci (Hey Girl!, estreado no Festival d’Automne à Paris 2006 e criticado na OBSCENA #4), Ariane Mnouchkine (que repõe Les Éphémères: recueils 1 & 2) , Krzysztof Warlikowski (com uma encenação dos dois tomos de Angels in América, de Tony Kushner), Ludovic Lagarce (que apresenta uma reescrita de Ricardo III, de Shakespeare, pelo polémico e profícuo autor flamengo Peter Verhelst) ou Rodrigo Garcia (que para além de Cruda… ainda apresenta Approche de l’idée de méfiance, uma recolha de histórias mínimas projectadas, para que o tempo de leitura seja um tempo de descoberta teatral). Em ano de nítida reconciliação, os programadores acreditam que “deste momento de partilha poderão nascer discussões, interrogações, que dividam ou juntem, mas que permitam a cada um de avançar um pouco mais, e livremente, o seu próprio caminho”. A programação do festival, bem como imagens e outros documentos, pode ser consultada em www.festival-avignon.com.
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A presença portuguesa no Festival de Avignon tem sido residual. Em 2002, a bailarina Leonor Keil foi uma das convidadas da rubrica Le Vif du Suject, onde os intérpretes escolhem os coreógrafos para produzir um solo. Em 2006, o convite foi feito a João Paulo dos Santos, que escolheu o coreógrafo Rui Horta. E, nos idos de 1988, Luís Miguel Cintra teve um convite particular de José Gil (na altura à frente da organização de um ciclo de colóquios) para fazer um espectáculo a partir de Fernando Pessoa. A OBSCENA falou com estes três convidados. Sobre a organização do festival são unânimes em referir o seu bom funcionamento, o acolhimento, as condições para os artistas, isto é, um evento que funciona como uma máquina bem oleada. Luís Miguel Cintra, repetente em Avignon, como espectador e como artista, lembra-se da sua primeira vez, no Verão de 1968, pouco depois do Maio mais quente de França. “Havia um clima de contestação contra a direcção de Jean Vilar e o festival foi muito marcado pelo impacto da presença do Living Theater. Havia muitos debates e discussões, um público muito interessado com uma participação fantástica. Nesse ano todo o festival era Off e os espectáculos eram quase espontâneos e à margem da organização”. Vinte anos depois, o actor e encenador apresentou O Príncipe, com Maria de Medeiros, que lhe valeu um convite para participar no Festival de Outono, em Paris. Para Cintra, o público continuava, duas décadas depois, a não ser convencional. Acredita, no entanto, que é difícil haver em Avignon espectáculos nacionais que não sejam “especialmente portugueses” (como foi o seu caso com Fernando Pessoa) e que os convites não surgem “porque continuamos a ser muito periféricos”. Cintra constata ser fraca a participação portuguesa neste tipo de eventos e acredita ser a difusão de produções nacionais no estrangeiro um dos papéis do Instituto das Artes. “Mas isso remete-nos para o problema da responsabilização do Estado pela actividade cultural, quando a tendência é a contrária e o Estado se responsabiliza cada vez menos e deixa cada vez mais espaço à iniciativa privada”. Leonor Keil convidou Javier de Frutos para coreografar um solo que seria para si um grande desafio, e partiu para Avignon com a responsabilidade de ser a primeira bailarina portuguesa no festival. Foi convidada por Héla Fatoumi, que a vira dançar em apresentações no estrangeiro da companhia Paulo Ribeiro. Concentrada no espectáculo Solitary Virgin (na página ao lado) e na sua participação, Leonor Keil acha que não aproveitou o festival como espectadora. A reacção que teve ao seu trabalho foi principalmente a de alguns amigos, mas igualmente de uns quantos desconhecidos. “Há um grande fenómeno turístico, que as pessoas da cidade acompanham. Regra geral mistura-se todo o tipo de gente e ninguém se sente mal com isso”, comenta, acrescentando que o que mais a marcou em Avignon foi a quantidade de acontecimentos em simultâneo e a enorme movimentação de pessoas. Para Leonor Keil “o trabalho artístico em Portugal muitas vezes não têm continuidade. Temos vontade, mas ainda temos muito que aprender perante organizações como a de Avignon”. João Paulo Pereira dos Santos tem apenas 28 anos e é um artista ligado ao novo circo. Foi convidado na edição do ano passado do Le
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EXPERIÊNCIAS PORTUGUESAS NUM FESTIVAL DE REFERÊNCIA
Suject à Vif e escolheu o coreógrafo português Rui Horta para fazer um trabalho em co-criação, Contigo (na foto), considerado entre as revelações de Avignon em ano de comemoração do 60º aniversário. Santos fez parte da sua formação na área do circo em França e foi convidado a participar no festival pela SACD, a entidade que gere os direitos de autor naquele país. Apesar de passar grande parte do seu tempo em França e achar que é essencial rasgar fronteiras, Santos tem apego a Portugal e sente a necessidade e o dever de mostrar a cultura portuguesa. Para João Paulo Santos foi uma óptima oportunidade de chegar onde nunca sonhara e, embora a satisfação tenha sido enorme, diz: “Fiquei sereno. Não procurei a sobre-exposição nem caí na ilusão de ser uma estrela. Não procurei a glória porque já a tinha dentro de mim”. Quanto a Avignon, o artista acha o festival elitista. “Há um excesso de elitismo. Mas, por outro lado, é um acontecimento que dá algumas hipóteses a novos valores”. No entanto, mantém, desagrada-lhe o lado “supermercado” do evento e a banalização do espectáculo”.
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TEXTO GISELA PISSARRA JORNALISTA
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RODRIGO GARCÍA UMA VISÃO INTERIOR
© JOHN ROMÃO
O ENCENADOR ARGENTINO RODRIGO GARCÍA REGRESSOU A CASA, DEPOIS DE ANOS “EXILADO” EM ESPANHA, PARA CRIAR CRUDA. VUELTA Y VUELTA. AL PUNTO. CHAMUSCADA., UMA PEÇA TRIBAL ONDE OS MURGUEROS LOCAIS ADQUIREM VOZ PRÓPRIA. O ACTOR PORTUGUÊS JOHN ROMÃO, ASSISTENTE DA DIRECÇÃO ARTÍSTICA DESTA PEÇA, QUE SE APRESENTA NO FESTIVAL DE AVIGNON, DÁ-NOS CONTA DO PROCESSO DE TRABALHO.
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As obras do Rodrigo apresentam-se como uma paisagem teatral, composta por corpos, movimentos, fluidos e estados emocionais. Grande parte do texto é projectado, o que permite ao espectador fazer os seus próprios linques entre o que vê e o que lê, alimentando uma ambiguidade que permite que o espectador não crie uma ansiedade de compreensão. A desconstrução formal resulta numa progressiva aplicação do trabalho dramatúrgico nos corpos dos intérpretes. Estes relacionam-se com objectos e materiais orgânicos (barro, espuma de barbear, vísceras), propondo uma nova percepção da matéria. Mostrar o corpo humano como algo repulsivamente belo pressupõe
© JOHN ROMÃO
O Rodrigo desenvolve um teatro experimental centrado no corpo, nas matérias e na oralidade, privilegiando uma linguagem crua e poética. Construção e desconstrução, fragmentos, explosões e violência, fazem parte desta dramaturgia pouco conformista. Da escrita à cena, a proposta política e radical do dramaturgo parece encarnar visões da actualidade e do Mundo. Começar uma criação com o Rodrigo é sempre uma aventura em direcção a “terra incógnita”. Ninguém sabe como será o espectáculo. Primeiro escolhem-se os actores. Às vezes há uma imagem/ideia assombrada que o Rodrigo associa a um determinado actor. Umas vezes o título dá o mote à criação, como em Esparcid mis cenizas en Eurodisney (2006). Neste caso, o título surgiu depois do primeiro período de trabalho em Buenos Aires. Cruda. Vuelta y vuelta. Al punto. Chamuscada. é o ritmo a que se submete a carne vendida nas barracas, massificadas no período do Carnaval, quando as murgas (grupos organizados dos distintos bairros) saem à rua e apresentam as coreografias e as músicas que ensaiaram e os trajes repletos de estampados e lantejoulas que fizeram minuciosamente durante o ano. Estes termos referem-se à celebração do dia-a-dia da classe trabalhadora argentina, onde a cor, a dança e a música se reúnem como forma de protesto social. Foi com esta memória e fascínio da infância que o Rodrigo quis voltar a Buenos Aires e desenvolver um trabalho com 15 murgueros (aqueles que dançam e cantam e outros que tocam percussão nas murgas) e um actor profissional, o seu inseparável Juan Loriente. Se contasse o que se passou em Buenos Aires com o Carnaval, uma equipa de produção, uma outra de vídeo, 20 murgas, milhares de murgueros, crianças e adultos com síndrome de Down, chuvas tropicais, campos de futebol, bairros marginais…, dava para escrever uma novela. Melhor, nada de literatura e a ver como explico o que se passou. Feita uma pré-selecção de 22 murgueros e passadas duas semanas de audições (porque, ao contrário das nossas expectativas, nenhum desistiu!), chegámos aos 15. Seleccionámos apenas homens. Aconteceu. São os mais espontâneos, os mais virtuosos, mais vandekeybusianos. Apercebemo-nos, pois, do material que tínhamos em mão: uma energia intensamente masculina, corpos que dançam de forma tribal, marcados, excessivos, com histórias, vozes rasgadas, gritantes, com passado, e estados emocionais à espera de serem provocados. No primeiro dia entendemos o funcionamento dos ensaios. Tínhamos de cuidar cada detalhe e sobretudo das pessoas: dar-lhes comida, bebida, dinheiro, confiança, seriedade e não muitas limitações. Na base do “quem é que tem tomates para fazer isto?” chegámos a estados absolutamente incríveis. Eles próprios, no dia seguinte, perguntavam-nos se aquilo tinha realmente acontecido. Quando pensámos que teríamos de encontrar argumentos para algumas propostas de imagens/esquissos do Rodrigo (desenhados e apresentados diariamente), já os víamos a pegar nos objectos e a responder à proposta, ou a sugerir novas imagens. Assistimos a momentos sublimes, nos ensaios, em que se criaram energias e silêncios esquisitos, desconhecidos. O Juan, misturado com os murgueros, faz com que o grupo seja fluído e veja que “quem não deixar os tomates em cena faz de idiota”. “Agora é tudo mais calmo, mas nem por isso mais ligeiro. Pelo contrário, creio que é um discurso mais grave. Digamos que aqui já não grito. É um rumor. Mas o que sussurro não é agradável e talvez faça doer mais os ouvidos que um alarido” (escreveu o Rodrigo a propósito recentemente).
infringir os cânones de beleza e de gosto, através da figura freudiana “Unheimliche” (o inquietante), que explica a ambivalência do espectador e a ambiguidade de reacções: “repulsa e atracção por uma realidade oculta e que se manifesta acoplada à simbologia da morte” (António Pinto Ribeiro). Neste desejado “lugar de todas as presenças” (Claude Regy), o real faz-se presente da forma mais brutal, numa revolta perante a qual o espectador deve reagir, pôr em jogo os seus próprios critérios de selecção, estar alerta. A partir deste desconhecido, do encontro com pessoas que nunca fizeram teatro (mas que possuem uma linguagem artística), o desejo é de criar uma outra forma de ficção, de procurar um novo universo. Textos projectados, imagens gravadas, acções cénicas e muitas músicas ao vivo compõem este novo “atentado poético.” Estamos a três semanas da estreia. Salamanca, Atenas, Roma e Avignon. Nenhum dos murgueros subiu alguma vez a um avião ou a um palco. Há pouco perguntavam se os deixávamos actuar na rua, para passarem um chapéu e levarem mais dinheiro para casa. Eu disse-lhes que claro que sim, mas que não fosse preciso ir parar à esquadra, porque no dia seguinte tínhamos de actuar à noite. Em Avignon, teremos outro “off!” O Off Murguero!
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Cruda. Vuelta y vuelta. Al punto. Chamuscada. Estreou a 14 de Junho em Salamanca, Espanha, no âmbito do III Festival de Artes de Castela e Leão. Apresenta-se entre 7 e 14 de Julho no Festival d’Avignon
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2005: CASO DE ESTUDO Para surpresa, ou talvez não, de muitos a verdade é que a edição de 2005 do Festival d’Avignon marca um ponto de viragem na história do mítico festival francês, assim como na importância dos festivais enquanto agentes legitimadores de tendências e valores. Depois de em 2003 os intermitentes – os profissionais do espectáculo sem contrato certo – terem paralisado todas as manifestações de verão, com o festival a ter que ser anulado, decisão que só encontra eco na edição de 1968, ano de todas as mudanças políticas e culturais, achavase que o caminho aberto pelo encenador alemão Thomas Ostermeier, director artístico da Schaubühne, traria um apaziguamento das relações entre o público, os criadores e a crítica. Doce engano! A proposta de Jan Fabre, o célebre criador flamengo, disruptor por excelência e valor seguro quando se trata de revolver as convenções, deixou marcas profundas que só o tempo dirá se Avignon as soube interpretar. A opção de entregarem o grosso da programação oficial a um criador, em torno do qual surgiriam depois várias manifestações, fez parte da estratégia desenhada pela dupla de programadores Vincent Braudiller e Hortense Archambault, para que “cada olhar de cada artista pudesse traçar um mapa da criação artística”. 2005 foi-lhes fatal. Não tanto pelas propostas, nem mais nem menos radicais do que as apresentadas em qualquer festival internacional na
Europa que se queira actual, mas por ser ali, em Avignon, esse lugar sagrado, quase intocável, e onde o fantasma de Jean Vilar, o fundador em 1947, ainda se faz sentir. É essa, pelo menos, a ideia de muitos programadores europeus, chocados com o choque. Mas que fez Fabre? No essencial deu a Cour d’ Honneur du Palais des Papes, o epicentro do festival, aos coreógrafos que, ultraje, dançavam menos do que falavam – quando falavam. Apresentou leituras de clássicos que faziam tábua rasa de séculos de doutrina dogmática, incluindo aquelas protagonizadas por Avignon. Propôs um teatro trágico, negro, depressivo, sem esperança, sem solução. E acusou todos, público, crítica e criadores, de terem contribuído para o buraco onde as artes performativas tinham caído. As respostas foram, natural e igualmente,
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radicais. Acusações de parte a parte, boicotes aos espectáculos, ataques verbais e físicos… e todos os dias, na imprensa, o combate de boxe contabilizava mortos e feridos. Até que o mal encontrou um bode: a própria imprensa. Acusada de parcialidade, tendenciosa, maniqueísta e traiçoeira, a comunicação social foi a primeira a perder a batalha. Ora, numa tentativa de corrigir essa ideia, apresentando um outro lado, que só o tempo podia fazer serenar, Georges Banu e Bruno Tackels, reputados teatrólogos e editores, o primeiro da belga Alternatives Théâtrales, o segundo da francesa Mouvement, reuniram, em tempo recorde, um conjunto impressivo de testemunhos que resumem bem a dificuldade de um ponto de equilíbrio. Chamaram-lhe, ironicamente, Le Cas Avignon 2005 – regards critiques (não existe versão em português). Escrevem os críticos e especialistas Jean-Pierre Han, Gérard Mayen (o seu texto “De que dança falamos?” é fundamental para a compreensão do futuro das relações entre teatro e dança), Jean-Marc Adolphe, Jean-Louis Perrier, os sociólogos da cultura Emmanuel Ethis, Jean-Louis Fabiani e Damien Malinas (que desde 1994 estudam os públicos deste festival e perguntam, certeiros, se devemos “falar do público ou para o público”) e algumas figuras ligadas a instituições de fomento cultural, como o Office National de Diffusion Artistique, o organismo responsável pela difusão de espectáculos. Mas, em contraponto, recolhem-se os diálogos entre vários encenadores presentes nessa edição. Fabre, claro, mas também Romeo Castelluci e Krzysztof Warlikowski (o seu espectáculo Krum, apresentado em Maio no CCB, foi um dos que mais polémica causou) que numa troca estimulante dão conta do óbvio: o desfasamento é muito anterior. Destaque ainda para o encenador Olivier Py, polemista como (lhe) convém, num texto “Avignon, teatro de questões”, que só pode ser lido enquanto enunciado de um programa cultural a cumprir, para mais quando, um ano e meio depois se soube que vai dirigir o Ódeon – Théâtre de l’Europe, em Paris. Se é verdade que muitas das questões levantadas se encerram nas características particulares de um festival como Avignon, não tão aberto como Edimburgo nem tão institucional como o Festival d’Automne à Paris, é também verdade que a importância desses acontecimentos reflecte um divórcio grande entre um modelo de criação e o público, como se um e outro tivessem, a dada altura, virado costas e seguido caminhos diferentes. Não sendo nova, esta não é uma questão de somenos importância. O que se passou em Avignon foi um alerta, depois de anos de rupturas, muitas delas sem consequência ou verdadeira reformulação. Não se trata somente de uma guerra entre “novos e velhos”, trata-se de uma discussão que, longe de ter um fim, procura esclarecer equívocos. É essa a grande mais valia desta obra, contrária à efemeridade, atenta à responsabilidade. (Éditions L’Entretemps, €10)
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TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA
ARRITMIA
KUNSTEN FESTIVALDESARTS PELA 14ª VEZ BRUXELAS RECEBEU, ENTRE 4 E 26 DE MAIO, O KUNSTENFESTIVALDESARTS, UM DOS MAIORES E MAIS IMPORTANTES FESTIVAIS DE ARTES PERFORMATIVAS DA EUROPA. FORAM TRÊS SEMANAS ONDE VÁRIOS OLHARES SE CRUZARAM NUMA TENTATIVA DE MAPEAMENTO DA REALIDADE CULTURAL E ARTÍSTICA QUE NOS CERCA. RECUPERANDO UMA DAS FRASES-CHAVE DESTA EDIÇÃO “EXPANDA-SE O ESPAÇO EM VEZ DE O REDUZIR”, A OBSCENA TRAÇA UM PERCURSO PELO FESTIVAL A PARTIR DE ALGUNS DOS ESPECTÁCULOS APRESENTADOS NA CAPITAL BELGA, PROMETENDO REGRESSAR, EM EDIÇÕES FUTURAS, A ALGUNS DOS OUTROS QUE, PELA SUA RELEVÂNCIA, NOS PARECEM MERECEDORES DE UM OLHAR MAIS APROFUNDADO.
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THE END OF REALITY/ RICHARD MAXWELL © LIEVEN DE LAET – ACADEMIE ANDERLECHT
ARRITMIA KUNSTENFESTIVALDESARTS
UM FESTIVAL COM ASSINATURA(S) NUM PAÍS SEM IDENTIDADE(S)
A recta final do KunstenFestivaldesArts, que decorreu em Bruxelas de 4 a 26 de Maio, foi um sinal evidente da importância deste festival. Na mesma semana podiam-se ver nomes como os do colectivo norteamericano The Wooster Group (La Didone, em estreia mundial, agendado para o CCB em 2008), ou dos coreógrafos Anne Teresa de Keersmaeker e William Forsythe (ambos com um programa duplo onde procuraram a reinvenção). Mas também o lituano Alvis Hermanis, recentemente galardoado com o Prémio Europa de Teatro para as Novas Realidades, que apresentou The Ice, violenta leitura de um romance nada piedoso para uma ex-União Soviética onde grassava a depravação sexual e a violência, ou os suíços Rimini Protokoll (que estiveram em Lisboa, na Culturgest, com Mnemopark), que mergulharam a fundo no Das Kapital, de Karl Marx. Pelo meio houve descobertas, algumas provocadas pelo próprio festival, como o jovem encenador japonês Toshiki Okada que, com Five Days in March, uma parábola sobre os efeitos, na China, da aliança entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha na ofensiva iraquiana, se apresentou pela primeira vez fora do Japão, numa iniciativa arriscada e solitária do Kunsten; ou Little Red Play: Herstory, desmontagem arguta do que significa pertencer à última geração de alemães a nascer com o Muro de Berlim (a que ficou conhecida por “bebés da fralda vermelha”), assinada pela companhia andcompany & Co; mas também, e para ampliar ainda mais a dimensão internacional deste “festival que a Europa inveja” (classificou o Le Soir, 4 Maio), o novo espectáculo de João Fiadeiro, co-produzido pelo Kunsten, Para onde vai a luz quando se apaga? (apresentado na Culturgest, a 4 e 5 de Maio); os brasileiros Companhia de Actores, cuja versão bufona e Godardiana de A Gaivota, de Tchekov, chega ao CCB em Abril do próximo ano; ou o sul-africano Mpumelelo Paul Grootboom, com um retrato agridoce dos subúrbios de Pretória a fazer eco nas cidades europeias onde os imigrantes se sujeitam a tudo. E outros nomes há, na dança, no teatro, nas artes visuais, na filosofia ou na música que encontram em Bruxelas aquilo que Christophe Slagmuylder, 40 anos feitos durante o festival e pela primeira vez seu programador, gosta de chamar “um convite para serem livres”. Criado há 14 anos, o festival foi pioneiro na apresentação ao público belga de novos nomes vindos do Oriente, prosseguindo uma abertura criada pelo Klapstük, a bienal que terminou em 2005. “Uma iniciativa de cidadãos para cidadãos”, explica Slagmuylder, “que não seria possível numa outra cidade ou num outro país”. De facto, o Kunsten está intrinsecamente ligado a uma Bélgica sem identidade, país dividido, o francês e o flamengo como línguas, com diferentes ritmos, estruturas, meios e conceitos de apoio à cultura. Por isso, quando este ano o festival assumiu como mote “uma política de autores”, justificando que “o artista-autor é uma personalidade que baralha os nossos olhares fixos sobre o que nos rodeia e o que consideramos familiar, tornando visíveis preocupações que estruturam as nossas opiniões quotidianas e aquilo em que acreditamos”, as perguntas tornaram-se eminentemente políticas. Por exemplo: que Europa para celebrar quando a sua Constituição hesita em sair do papel? Como compreender o resultado das eleições presidenciais em França e o avanço galopante das políticas opressivas?
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O programador, consciente de que estas questões atravessaram muitas das conversas pós-espectáculos, assume, contudo, um distanciamento político. Enquanto “festival de criações”, o Kunsten defende a ideia de que “o artista é independente, podendo desenvolver as suas posições livremente, observando e reflectindo sobre uma realidade, e através de uma linguagem comunicar com o público”. Interessa-lhe “a especificidade do olhar”, mais do que “ser interventivo só porque sim”. Este não é, assegura, “um festival para os outros, mas porque é preciso fazer”. E é aí que esta ideia de abertura encontra a maior característica da cena cultural belga: “não temos grandes tradições, tal como não temos muita oferta internacional na cidade. E mesmo sendo um festival reconhecido, o Kunsten não é, entendem os políticos, uma boa vitrina para ninguém”. Como? O festival que oficializa o início da temporada de festivais não interessa a um país que já foi o centro da cultura europeia? “Nós não pertencemos a lado nenhum, nem aos flamengos nem aos franceses. Recebemos apoios e trabalhamos com os dois lados, e quando um deles deixar de nos apoiar o festival acaba. Mas isso não significa um reconhecimento político. É mais uma evidência de que devem apoiar do que outra coisa. Não somos nem nunca fomos uma prioridade para ninguém. Só temos apoios porque estamos a fazer o que queremos”. Slagmuylder garante: “É confuso mas fascinante”.Talvez seja esta liberdade política, económica e cultural que faz do Kunsten um ponto de passagem obrigatório para programadores de toda a Europa. Uns que vêm negociar novas coproduções ou verificar se apostaram no artista certo, outros que vêm comprar, alguns que só vêm ver o que se anda a fazer. Mas todos garantem que as novas tendências das artes performativas passam por aqui. Razão pela qual não surpreende que jovens criadores, como o japonês Hiroaki Umeda (que em Outubro e Novembro vem a Portugal, respectivamente ao Temps d’Images, Lisboa, e ao Frame, Porto), ou nomes já estabelecidos, como Richard Maxwell, se possam cruzar numa mesma programação, mesmo que as relações não sejam, a princípio, evidentes para quem convida. “Só quando fazemos o mapa da programação é que temos noção da moldura que criámos”, diz o programador. E é então que “percebemos o que fizemos e quais as relações entre eles”. Este ano um dos temas fortes foi repensar o comunismo enquanto falência utópica que marca o século XX e que, seis anos depois, representa, de facto, o fim de um período, de uma História mas, sobretudo, de uma memória. Mas também, e esta é uma ideia que liga Hong-Kong a Nova Iorque, Riga a Pretória, Berlim ao Rio de Janeiro, uma noção de espaço urbano e cosmopolitismo criado pelo mesmo Homem que já não encontra o seu lugar e cujo retrato se desenha a trágicos e desesperados traços. Durante três semanas Bruxelas é, de facto, o centro do mundo. Ideia confirmada “na partilha de processos, nos riscos em que nos colocamos ao assumirmos que é a identidade do artista, mais do que a originalidade do trabalho, aquilo que interessa”, mas também, e sobretudo, nesta imensa Babel multicultural que recusa qualquer ideia de modismo para falar de criação contemporânea, “expandir em vez de reduzir”.
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TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA
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O ZAPPING SHAKESPERIANO DE ISABELLA SOUPART
“Hamlet revisitado”. É este o slogan com que termina o texto do programa de K.O.D. (Kiss of Death) de Isabella Soupart (KVS-Box, 16 a 20 Maio). A coreógrafa poderia ter inovado dentro da continuidade da sua pesquisa, mas ela repete até ao infinito as suas novas linguagens feitas de movimentos coreográficos transversais, das linhas verticais suspensas acima de nós, de imagens em vídeos de pendor crítico que nos dão um meta-contexto. Todos estes cruzamentos ambicionam fazer deste “Hamlet revisitado” um fresco moderno, mas não é mais do que um mosaico onde as formas se sobrepõem às ideias, num labirinto onde o espectador se perde tanta que é a multiplicação de linguagens impostas em vez de comunicativas. Muito à imagem de uma sociedade mediática sempre pronta a criar novas ferramentas de comunicação sem que seja óbvio o seu uso. É assim que K.O.D. se relaciona com o público, enquanto espaço de uma extrema verticalidade: quando chega ao limite de uma linguagem Soupart propõe-nos outra sem que tivéssemos a possibilidade de perceber a sua pesquisa. A velocidade de cada sequência não dura, com raras excepções, o tempo de uma canção. O espectador poderá, mais tarde, ressentir-se e quase infantilizar o desafio na impossibilidade de se libertar dele. Bombardeado de vídeos (de uma beleza perturbadora quando ela projecta os rostos em grande plano), de achados sonoros (frequentemente inteligentes), de legendagens (bravo aos tradutores), de danças (joelhos na terra… um pouco limitado e sobretudo já visto em In the wind of time), acabo por me divertir com toda esta excitação. Isabella Soupart parece bulímica de metáforas, esquecendo a complexidade criada por colocar dois homens a interpretarem o papel de Hamlet, multiplicando as cenas num mesmo espaço como se um devesse explicar o outro. Ela acaba por nos propor um vídeo que reinventa um outro cenário como se o “aqui e agora” não fossem suficientes: é verdade que os objectos (mesas, cadeiras de escritório e mobiliário do IKEA) reduzem a dança e entravam a relação entre as personagens e o público. A relação criada entre o texto de Shakespeare e os fragmentos de entrevistas extraídas de documentos da ex-União Soviética não é mais do que um truque de estilo. Fora de contexto perdem-se num vulgar “corta e cola” demasiado publicitário. Este Hamlet não esclarece nada: tudo se adiciona, nada se multiplica. Isabella Soupart acaba por fazer aquilo que queria denunciar. Para assumir o seu poder enquanto artista toda poderosa face a um público desorientado ela manipula as formas, descontextualiza a história, recicla os símbolos da literatura. Perante este jogo K.O.D. torna-se um agradável momento de divertimento, muito tendencioso e visualmente impecável.
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TEXTO PASCAL BÉLY CRÍTICO
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ARRITMIA KUNSTENFESTIVALDESARTS
Com Mpumelelo Paul Grootbomm a África do Sul chegou ao KunstenFestivaldesArts. Este autor e encenador (n. 1975) apresentou Telling Stories (18 a 22 de Maio, KVS-Bol) uma longa epopeia de três horas e meia em que o público mergulha no universo claustrofóbico dos subúrbios. É a história de um escritor negro, Madi (interpretado por um magnífico Mandla Gaduka) que, ansioso por escrever uma história sobre a criminalidade nos subúrbios, acompanha um grupo de jovens delinquentes. Duas trajectórias irão cruzar-se e traçar uma panorâmica geral sobre a dura realidade de um país sujeito a violências de toda a natureza. Mas impõe-se uma questão prévia: porquê apresentar esta peça no contexto do Kunsten? Em que é que Telling Stories se inclui nas novas formas artísticas? Como é que esta história nos pode ajudar a imaginar um futuro? Telling Stories é um divertimento agradável, pertinente no quadro da programação anual de um teatro. E isso explica um pouco do embaraço que se pode sentir, encurralados entre o desejo de aplaudir a prestação dos actores, reservados em relação à encenação e ao interesse da história e francamente desiludidos pela escolha dos programadores do Kunsten (esta peça teria sido seleccionada se produzida em Bruxelas ou Paris?) O texto no programa do festival levanta uma questão: “em que momento o ‘tudo pela arte’ já não se justifica de um ponto de vista ético? Quando a representação/apresentação da violência cai no voyeurismo”. Francamente não vejo a relação! Em que é que Telling Stories responde a essas questões? Para mais, Mpumelelo Paul Grootboom tem o talento de nos apresentar uma primeira parte entusiasmante, plena de colorido e ricochetes. A passagem da vida do escritor para a ficção oferece um contexto pertinente para produzir um excelente modelo de teatro popular, pontuado de momentos musicais estandardizados (contudo mais inovadores do que a Norah Jones que também faz parte da banda-sonora). Após o intervalo a trama enterra-se na história do escritor. O vídeo deixa-se iludir pelo ridículo de nos mostrar cenas de amor dignas de um mau filme erótico de fim de tarde no M6 [canal de televisão francês]. O barulho de um comboio, apresentado ao ralenti, é um calvário para o espectador que se pergunta em que momento vai a sequência terminar. Assim, surpreendemo-nos com a facilidade com que desligamos do contexto da história, sempre violenta. Se na primeira parte a relação entre o escritor e o contexto era hesitante (por momentos radioso quando já não sabíamos o que era ficção e o que era realidade, ideia reforçada pelo cenário que articulava as duas realidades, uma ao fundo, outra mais perto), a segunda aproxima-se mais de um teatro tradicionalista, de narração linear, com uma encenação sem surpresas, que deixa o tempo fugir lentamente. A aposta era colocar em causa os questionamentos dos programadores do Kunsten citados acima. Em vez disso, aborrecemo-nos num divertimento. A força de um projecto como o Kunsten é a de nos fazer viver num tal paradoxo!
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UM OLHAR OBSTINADO Alvis Hermanis e o Novo Teatro de Riga foram castigados por tentarem fazer de The Ice (Théâtre National, 18 a 22 Maio) o acontecimento do Kunsten. O subtítulo não deixava dúvidas acerca das intenções do encenador e da audaciosa encenação do romance do escritor russo Vladimir Sorokin: “uma leitura colectiva do livro, com a ajuda da imaginação, em Riga”. Para criar este colectivo Hermanis apoiou-se num dispositivo cénico complicado: um espaço cénico circular, como uma pista de circo, onde 14 actores faziam uma leitura do romance. Enquanto alguns representavam ao centro, o público participava (silenciosamente) nessa leitura colectiva folheando dois álbuns de fotografias e uma banda-desenhada. O que não se podia ver em cena imaginava-se na leitura desses álbuns. Por fim, e para que pudesse acompanhar a tradução desta peça apresentada em letão, os espectadores tinham um capacete na
© MICHELE ROSSIGNOL
QUANDO O SUBÚRBIO SE TORNA UM DIVERTIMENTO (OU NÃO)
cabeça, onde ouviam um “tradutor” (recrutado à Comissão Europeia?) que, no interior de uma cabina, parecia ler um anuário. Desde o início que este era um dispositivo violento: a tradução estava constantemente desfasada, os álbuns de fotografias eram de uma fealdade (artística?) indefinível e a banda-desenhada jamais encontraria um comprador entre a vasta oferta fornecida pela Fnac. Ao longo das três horas e meia de duração do espectáculo, estes quatro níveis de linguagem desarticularam-se e deram-me uma cefaleia indescritível. Da minha parte (enfim) participei nesta leitura colectiva tanto quanto é doloroso o tema do romance: The Ice evoca uma seita de homens louros de olhos azuis ansiosos por aniquilarem uma sociedade corrupta (a Rússia?) e criarem um estado purificado dos seus parasitas. Um universo de ficção-científica traduzido com dificuldade por uma encenação de uma pobreza desconcertante. Os objectos em cena definiam o tempo, marcando-o, como se os intérpretes dependessem da complexa orquestração de Hermanis. O contexto sectário reforçava o peso do dispositivo e encerrava um pouco mais a encenação em si mesma, deixando o público abandonado.
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BIG BROTHER TEATRAL A folha de sala alerta: Richard Maxwell, encenador e dramaturgo americano, do colectivo New York City Players, é adepto das “graças antiteatrais”, “estáticas”, com um “estilo minimalista” e “humor afiado”. Com The end of reality (15 a 18 Maio, Théâtre Les Tanneurs) dou os primeiros passos num território desconhecido até agora. Estamos no escritório de uma empresa de vigilância em Manhattan. Uma projecção vídeo restitui a vista do quarteirão e remete-nos para uma cultura paranóica onde tudo é um perigo, mesmo a psicologia das personagens (“Aquilo que gosto em ti é que te compreendemos muito depressa”, diz uma das mulheres ao seu colega de trabalho). Eles estão ora com a roupa do trabalho ou com fatos de treino, mas sempre fardados. Como tal, as esferas privada e profissional acabam por se fundir provocando um sentimento de asfixia. Seis actores confrontam-se neste huis-clos, reforçado por uma encenação racionalista onde os movimentos ocupam o espaço à semelhança de um ecrã de telemóvel. Eles entram e saem da peça numa tentativa de ludibriarem o inconsciente, potencialmente perigoso. Fora isso, tudo está sob controlo. Os tumultos são interpretados a uma outra velocidade (momento jubilatório que torna próximos os agressores e os agredidos…); a relação amorosa que surge entre dois seguranças e se reduz a um jogo de engate na esfera da Internet onde os corpos, como que contaminados, se culpabilizam por desejarem tocar-se. Todas estas interacções “na diagonal” permitem alguns espaços livres que os protagonistas se apressam a ocupar: o dossier no qual são descritas as delinquências, o jornal do dia (gratuito?) colocado em cima da mesa para leitura e tradução mediática. A armadilha está montada. É certo que Richard Maxwell não se esquece de criar algumas margens de autonomia dramatúrgica que conduzem a que um oficial liberte um delinquente sem que se perceba porquê. Num clima tão pesado, o espectador aborrece-se (à minha volta os espectadores esforçavam-se por não cabecearem). O minimalismo seco, bastante caricatural, torna tão linear a história que nos transforma numa super câmara de vigilância. Somos constantemente remetidos para a condição de homens nos momentos mais tristes do seu quotidiano onde tudo é racionalizado. Durante hora e meia resisti ao estabelecimento de relações com o contexto da eleição [presidencial] de Nicolas Sarkozy. A encenação de Maxwell lembrou-me os processos redutores que o novo poder instalou para impedir o surgimento de todo o pensamento global, focando-se no indivíduo em detrimento de uma aproximação colectiva. Mas talvez seja aí que reside a força desta obra: com esta aproximação minimalista, Maxwell cria um espaço para (re)pensar a nossa sociedade, atendendo ao nosso posicionamento. Eis-nos regressados ao início, já que só o pensamento complexo exporá o medo.
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TEXTOS PASCAL BÉLY
APOSTA
ARQUITECTURAS EM PALCO JOÃO MENDES RIBEIRO NA XI QUADRIENAL DE PRAGA
A SESTA, OLGA RORIZ (STILL) © RODRIGO CÉSAR
PELA PRIMEIRA VEZ EM 44 ANOS – QUE É COMO QUEM DIZ, EM ONZE EDIÇÕES DA QUADRIENAL DE PRAGA, A MAIS RECONHECIDA EXPOSIÇÃO DE CENOGRAFIA E ARQUITECTURA TEATRAL – PORTUGAL ESTÁ REPRESENTADO COM UM PAVILHÃO NACIONAL, RESPONSABILIDADE QUE FOI ATRIBUÍDA AO ARQUITECTO JOÃO MENDES RIBEIRO, UM DOS MAIS PROLÍFEROS CENÓGRAFOS DOS ÚLTIMOS ANOS. A QUADRIENAL DE PRAGA 2007 DECORRE DE 14 A 24 DE JUNHO E A PARTICIPAÇÃO PORTUGUESA, PATENTE NO PALÁCIO DA INDÚSTRIA, DEBRUÇA-SE SOBRE DOIS FOCOS TEMÁTICOS PRINCIPAIS: A CENOGRAFIA COMO REPRESENTAÇÃO ARQUITECTÓNICA E OS OBJECTOS COMO EXTENSÃO DO CORPO HUMANO.
A partir de uma selecção de 16 projectos cenográficos para teatro e dança, datados de 1997 a 2006 – em espectáculos de Ricardo Pais, João Lourenço, Olga Roriz ou António Pires – o arquitecto residente em Coimbra concebeu um conceito expositivo, a que chamou Arquitecturas em Palco, que parte de dois objectos seus com carácter icónico: o protótipo OR Mala-Mesa, originalmente construído para um espectáculo da Companhia Olga Roriz (Anjos, Arcanjos, Querubins, Serafins... e Potestades, 1998); e um outro dispositivo, também transformável, que configura um pequeno auditório para pro-
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jecção de vídeo, concebido para uma exposição da Ordem dos Arquitectos no Congresso Mundial de Arquitectura (2002). Ambos em madeira e de fisionomia modular, estes dois objectos sintetizam a versatilidade e plurioperacionalidade dos trabalhos de João Mendes Ribeiro, ao mesmo tempo que são os contentores da própria matéria expositiva. Assim, as “malas-mesa” estão dispostas em duas bancadas paralelas, onde se encontram pousados esquiços, fotografias, desenhos e outro material documental das cenografias, e o pavilhão completa-se com a apresentação de um filme no interior do auditório
nicantes. A questão da flexibilidade é também determinante e corresponde a uma investigação em torno da metamorfose dos espaços e da manipulação dos dispositivos cénicos para configurar diferentes representações do mundo ou hipotéticas situações vivenciais. A ideia de contraste ou ruptura prende-se quer com as particularidades dos diferentes guiões ou intenções coreográficas, quer com a transposição de algumas premissas estéticas e conceptuais da arquitectura para o universo da criação cenográfica, assinalando a vertente transdisciplinar do projecto”. A 11ª edição da Quadrienal de Praga integra, além da secção de exposições nacionais, uma secção de arquitectura e tecnologia e uma secção para estudantes, reunindo trabalhos de cerca de 60 nacionalidades diferentes, numa tentativa de antecipar o que poderá ser a cenografia e arquitectura para teatro no século XXI. Portugal esteve já representado, em edições anteriores, nas áreas de cenografia e desenho de figurinos, por José Manuel Castanheira, João Brites, Nuno Carinhas e António Casimiro. Em 2007, porém, a organização desa-
ESQUISSOS DO ARQUITECTO JOÃO MENDES RIBEIRO
OR MALA-MESA, JOÃO MENDES RIBEIRO © PATRÍCIA ALMEIDA
modular, A Sesta, encomendado a Olga Roriz. Nesta curta-metragem, as “malas-mesa” reassumem o protagonismo e são manipuladas por um grupo de intérpretes que se juntam para um piquenique no bosque, sendo dispostas em duas filas paralelas, replicando a configuração da exposição. Desta participação oficial de Portugal na Quadrienal de Praga foi publicado um catálogo, bilingue, co-editado pelo Instituto das Artes e pela Almedina, que reúne documentação visual do trabalho cenográfico de João Mendes Ribeiro e um conjunto de textos críticos – de Daniel Tércio, Miguel-Pedro Quadrio, Antoní Ramón Graels e Ricardo Pais, entre outros – que o contextualizam e problematizam. Um texto do arquitecto complementa esta edição, onde são explicitados os traços fundadores da sua obra – como a componente experimental e a noção de contraste ou ruptura – tal como se apresentam em Arquitecturas em Palco: “Por meio de uma linguagem essencial, austera e depurada, não muito distante da prática da arte minimal e do expressionismo abstrac-
to, as intervenções em causa enfatizam um certo subjectivismo, onde as propriedades físicas do espaço, escala e materiais, são exploradas como fenómenos autónomos, nas suas intrínsecas qualidades plásticas. A cenografia é abordada enquanto experimentação de processos e linguagens comuns à arquitectura, nomeadamente, no que toca à modelação dos espaços a partir de temas como a escala, os aspectos compositivos e construtivos ou o recurso a dispositivos geométricos e modulares. A componente humana e vivencial dos espaços é determinante e traduz-se na estreita relação do objecto cénico com o corpo ou as características dos seus utilizadores: os dispositivos são catalisados pela sua presença, desenhados à sua medida e em função dos seus gestos e percursos. É no contacto com os intérpretes que se revela, efectivamente, a habitabilidade dos espaços cenográficos e que estes se convertem em objectos reconhecíveis, em signos comu-
fiou os países participantes a apresentar uma exposição individual dedicada a um tema que reflicta a singularidade da cultura teatral do país, possibilitando a oficialização de representações nacionais. Além das secções, a Quadrienal inclui ainda um intenso programa de iniciativas, como conferências, workshops, exposições temáticas e performances. No âmbito desta programação paralela, destaca-se a intervenção do coreógrafo português Miguel Pereira com Costumes, a ter lugar numa praça central da cidade de Praga. Pereira foi desafiado a prolongar as suas pesquisas em torno das roupas e dos figurinos – iniciadas no projecto Everything But The Clothes e materializadas no espectáculo Corpo de Baile – numa performance que contará com intérpretes recrutados localmente. Depois da apresentação em Praga, está prevista uma digressão de Arquitecturas em Palco por Barcelona (no Fomento de Artes Decorativas de 12 de Julho a 8 de Agosto), São Paulo (no Instituto Tomie Ohtake, entre 3 de Outubro a 18 de Novembro) e, no primeiro trimestre de 2008, em Lisboa e no Porto.
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Mais informações em www.pq.cz e em www.iartes.pt/qp07
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VISTO DOS BASTIDORES Miguel-Pedro Quadrio
ABRIL EM JULHO, ABRIL SEMPRE Prémio da Crítica 2004 que distinguiu a sua encenação d’O Fazedor de Teatro, de Thomas Bernhard, assinalei que era “… a sageza de dar a ver o melhor teatro nas condições ideais para que qualquer tipo de público a ele tenha acesso […] que transforma o [seu] trabalho […] com a Companhia de Teatro de Almada num dos mais relevantes e inteligentemente comprometidos projectos do nosso panorama teatral.”1 Esta valorização estética e ética do percurso que a CTA vem desenvolvendo em Almada,
A consistência deste programa, a sua inegável vocação cívica e reconhecimento comunitário conferem pertinência renovada à possibilidade, várias vezes avançada por Joaquim Benite, de uma total reconfiguração do apoio estatal às artes performativas. Demonstrada a exequibilidade e sucesso de um pólo descentralizado, pluridisciplinar, multifuncional (onde a criação se articulou com a produção, a programação e o acolhimento), internacionalizado e efectivamente procurado por públicos diversos (semelhante a um “centre
desde que o Grupo de Campolide se mudou para a margem sul do Tejo, em Janeiro de 1978, ganhou novo e evidente fôlego com a abertura do Teatro Azul. Num só ano, lá se apresentaram criações de encenadores europeus de referência, como Bernard Sobel – que regressa nesta 24ª edição do FITA, dirigindo a CTA e o Teatro dos Aloés em A Charrua e as Estrelas, de Sean O’Casey –, Giorgio Strehler (Os Dias Felizes, de Beckett) ou Alain Olivier (O Marinheiro, de Fernando Pessoa); a temporada regular integrou colaborações de prestigiados criadores portugueses (além de Joaquim Benite, trabalharam em Almada Rogério de Carvalho, Jorge Listopad ou Luís Miguel Cintra); deu-se lugar a jovens dramaturgos (a estreia de Quarto Minguante, primeira peça de Rodrigo Francisco, constituiu um êxito); habitaram-se os vários espaços do novo teatro com dança, concertos vários, conferências, debates, exposições de artes visuais, ateliers destinados à infância e, last but not the least, o hall do Teatro Azul abriu-se a bailes públicos de convívio, gratuitos, com música ao vivo.
dramatique national” francês ou a um “teatro stabile” italiano), resta saber se o Ministério da Cultura entenderá esta experiência inovadora e genuinamente democrática como alternativa ao conceito macrocéfalo, oneroso e tantas vezes errático de “teatro nacional” (basta relembrar a acidentada história do Teatro Nacional D. Maria II) e se estará disposto a incentivá-la – e a outras que a multipliquem – com um investimento financeiro semelhante ao que realiza nos orçamentos significativos dos teatros nacionais existentes.
PORMENOR DA FACHADA DO TEATRO MUNICIPAL DE ALMADA, DR
Em Julho de 2003, na crónica “A doçura da arte”, publicada na revista Magazine Artes, escrevia Jorge Silva Melo: “Daqui a uns anos, já não vai ser assim, já haverá teatro construído, já cresce dos alicerces o edifício desenhado pelo Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, corolário óbvio do imenso trabalho realizado pela Companhia de Teatro de Almada [CTA] e por este extraordinário Festival. […] Julho é o mês do Festival de Almada que sobe Tejo acima e ainda bem.” Entretanto, completou-se o sólido e moderno edifício do Teatro Azul, o novo espaço já funciona regularmente desde 5 de Julho de 2006 – ou seja, desde o início da 23ª edição do Festival Internacional de Teatro de Almada [FITA] – e continua a “ser assim”: o único evento cultural português onde, ano após ano, uma libérrima descontracção mediterrânica se alia à renovada qualidade das programações, a um profissionalismo irrepreensível, a uma internacionalização esclarecida e consequente da nossa cultura (proporcionada não só pelo cruzamento de propostas, como pela visibilidade que a produção nacional ganha junto dos criadores e críticos estrangeiros que por lá passam) e à multiplicação de espaços de acolhimento (além da imprescindível esplanada da Escola D. António da Costa, em Julho Almada também é no CCB, na Culturgest, no Teatro Municipal de São Luiz ou no Teatro Nacional D. Maria II). Este “Abril em Julho”, que o actor, encenador e realizador português celebrava efusivamente naquele texto, seria, por si só, um feito digno de nota para um grupo teatral que o Estado, eximindo-se às suas inalienáveis responsabilidades, insiste em subfinanciar. Ora, as excelentes condições de trabalho do novo Teatro Municipal de Almada e a programação variadíssima que o vem ocupando ininterruptamente demonstraram que este “Abril em Julho” só carecia dos meios adequados para se tornar num “Abril sempre!” (slogan que tantos repetiram no auge da festa, mas poucos quiseram e souberam transformar em projecto efectivo, recuando para modelos cediços, onde se consolam lambendo as feridas duma renovação frustrada ou, situação mais deprimente mas não invulgar, tornando-se em neófitos graves de um neoliberalismo inculto e selvagem). Na entrega a Joaquim Benite – director da CTA e do FITA – da Menção Honrosa do
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1 “Thomas Bernhard ‘servido’ por Joaquim Benite,
Sinais de Cena, dir. Maria Helena Serôdio, Lisboa, Associação Portuguesa de Críticos de Teatro / Centro de Estudos de Teatro, Junho de 2005, n.º 3, p. 20. Cito a partir desta versão revista do texto lido na cerimónia da entrega dos prémios, que teve lugar no Salão Nobre do Teatro Nacional D. Maria II, em 28 de Março de 2005.
24ยบ FESTIVAL DE
ALMADA
24º FESTIVAL DE ALMADA, 4 A 18 DE JULHO, VÁRIOS LOCAIS
A Charrua e as Estrelas, Sala Principal do Teatro Azul, dias 17 e 18 (p. 36) Sizwe Banzi is dead, Sala Principal do Teatro Azul, de 6 a 9 (p. 42) Les Paradis Aveugles, Fórum Romeu Correia, dia 9 (p. 46) Marionetas de Água do Vietname, Centro Cultural de Belém, de 15 a 17 (p. 47) Nada ou o Silêncio de Beckett, Palco Grande, dia 7 (p. 50) Cabaret Molotov, Palco Grande, dia 8 (p. 51) Gulliver, Palco Grande, dia 12 (p. 51)
Romeu e Julieta/ teatro (Oskaras Korsunovas), Teatro Nacional D. Maria II, dias 16 e 17 (p. 52) Romeu e Julieta/ dança (Mauro Bigonzetti), São Luiz – Teatro Municipal, dias 13 e 14 (p. 54) Burger King Lear, Palco Grande, dia 10 (p. 55) Living Costa Brava, Palco Grande, dia 5 (p. 56) La Estupidez, Palco Grande, dia 4 (p. 57) Anathema, Culturgest, de 7 a 11 (p. 58)
História de Amor (Últimos Capítulos), Instituto Franco-Português, de 5 a 13 (p. 59) Cavaterra, Palco Grande, dia 18 (p. 60)
Ifigeneia, Fórum Romeu Correia, dia 14 (p. 62) Sete Contra Tebas, Culturgest, de 10 a 15 (p. 63) O Cerejal, Palco Grande, dia 14 (p. 64)
Rabih Abou-Khalil, São Luiz – Teatro Municipal, dias 5 e 6 (p. 68) Canções Heróicas de Lopes Graça, Fórum Romeu Correia, dia 8 (p. 69) E AINDA Sobel/García: olhares sobre o desespero contemporâneo (p. 41) Carmen Dolores, homenageada pelo Festival, e a memória do Teatro Moderno de Lisboa (p. 44) Pré-publicação de A Peste, conto vietnamita de Phan Huyen Thu (p. 48) Festival X: quando Almada teve um Off (p. 55) Olhares cénicos de Costa Pinheiro (p. 70)
TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
BERNARD
SOBEL O ENCENADOR QUE FALA TEATRO ENTREVISTA JOSÉ MÁRIO SILVA FOTOGRAFIA JOSÉ LUÍS NEVES
BERNARD SOBEL É UM DOS MAIS IMPORTANTES ENCENADORES FRANCESES DA ACTUALIDADE. CRIADOR DO THÉÂTRE DE GENNEVILLIERS, NOS SUBÚRBIOS DE PARIS, DURANTE 43 ANOS (ATÉ ATINGIR O LIMITE DE IDADE LEGAL, EM DEZEMBRO DE 2006), SOBEL MONTOU MAIS DE 80 PEÇAS, SOBRETUDO DE AUTORES RUSSOS E ALEMÃES.A SUA ABRANGÊNCIA ESTÉTICA LEVOU A QUE SE INTERESSASSE TANTO PELOS CLÁSSICOS GREGOS (ÉSQUILO, EURÍPEDES) COMO PELA CONTEMPORANEIDADE (SARAH KANE). TAMBÉM DIRIGIU ESPECTÁCULOS DE ÓPERA E FOI REALIZADOR DE CINEMA E TV. A ALMADA TROUXE TRÊS ESPECTÁCULOS: O REFÉM, DE PAUL CLAUDEL (2002); DOM, MECENAS E ADORADORES, DE OSTROVSKI (2006); E A CHARRUA E AS ESTRELAS, DE SEAN O’CASEY QUE SOBE AGORA À CENA EM TRADUÇÃO DE HELENA BARBAS NO NOVO E MUITO AZUL TEATRO MUNICIPAL.
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
Por que é que escolheu encenar Sean O’Casey, um dramaturgo irlandês que nunca antes tinha subido ao palco em Portugal, e esta peça – A Charrua e as Estrelas – em particular? Existe alguma lógica de continuidade com os trabalhos de encenação que tem feito nos últimos anos? Isto tudo começou quando o Joaquim Benite, director da Companhia de Teatro de Almada, me disse: “Queres vir fazer qualquer coisa aqui?” A primeira questão que me coloquei tinha a ver com o meio envolvente do Teatro Azul, como é conhecido o novo Teatro Municipal. Isto é, tinha a ver com as pessoas que vivem à volta dele. Porque vir encenar um clássico não fazia sentido para mim, por muito generosa que fosse a proposta do Joaquim. Era preciso que eu sentisse uma verdadeira necessidade de estar ali, no Teatro Azul, naquele contexto demográfico, digamos assim. E parece-me que um homem como O’Casey, quando fala dos subúrbios e bairros operários de Dublin, que são de certo modo o seu território, fala também das pessoas que habitam à volta do Teatro Azul. Porque o Teatro Azul, em si mesmo, é um milagre e um paradoxo. Podemos perguntar-nos o que é que ele faz ali. A coragem da autarquia e a teimosia do Joaquim criaram um instrumento precioso, respondendo de certo modo à indignação do Rei Lear, quando diz: “Se derem aos seres humanos apenas aquilo de que eles necessitam, estarão a tratá-los como animais.” A mim, pareceume que se um almadense que habite perto da milagrosa casa azul decidir descer ao teatro, não digo que se reconheça em O’Casey, mas pode ver pessoas, sentimentos, emoções, esperanças e desesperos que continuam a ser os seus, mesmo hoje. Entre a Dublin de 1916 e a Almada (ou a Europa) de 2007, o que é que mudou e o que é que ficou na mesma? O que mudou foi apercebermo-nos de que o animal humano não muda. Ele faz a História, ele altera o mundo, mas não se altera a si mesmo. Quer dizer, altera-se mas não muda: não se torna bom, não se torna melhor. Se quisermos falar hoje do nosso tempo, evocando a invenção da lei, a democracia, a liberdade, a relação do indivíduo com a comunidade, etc., a obra mais moderna de que podemos partir é a Oresteia, de Ésquilo. Tornou-se claro que não é Shakespeare que é nosso contemporâneo, como dizia Jan Kott, mas somos nós que continuamos a ser contemporâneos de Shakespeare. O animal humano, que é uma parte da Natureza, é a parte da Natureza menos natural, a mais monstruosa. E essa constatação sempre foi o que esteve na origem da prática artística a que chamamos teatro. O’Casey era um autor empenhado não apenas politicamente mas também socialmente. Não acho que fosse mais empenhado do que Shakespeare. Era um homem do seu tempo, sem dúvida. Tinha opiniões, assistia às lutas e aos combates, mas não creio que fosse mais ou menos empenhado do que Shakespeare. Dizer isso seria reduzi-lo. Já que refere o autor de Macbeth, há quem diga que a linguagem de O’Casey era muito shakespeariana. Mas claro que sim. Ele foi, acima de tudo, um poeta. Um poeta que foi admirado por homens como Beckett. O seu problema foi ter escolhido heróis que aparentemente nada têm de heróico. Falou da arraia miúda de Dublin, como António José da Silva falou dos habitantes do Bairro Alto, Goldoni dos desgraçados de Veneza e Valle-Inclán dos miseráveis de Madrid. O que O’Casey mostra é que essa arraia miúda de Dublin só conseguia sobreviver a condições de vida muitíssimo precárias graças a duas drogas: a poesia e o álcool. Todos os seus heróis são poetas. É a poesia que lhes permite suportar o lado implacável da realidade. Em O’Casey, ao contrário de Brecht, não há uma mensa-
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gem que se quer passar, uma lição. Considero-o mais inovador e construtivista do que Brecht, que se queria moderno. Brecht é mais clássico do que O’Casey. Mas isso não se vê. Ficamos com a impressão de que Brecht é muito mais moderno e que O’Casey tem uma modernidade mais secreta. O’Casey é idealista mas não é ideólogo. Eu diria antes que ele é um poeta a viver no meio de outros poetas, que não sabem que o são. Há também um lado simbólico nesta peça. Porque a metáfora da charrua e das estrelas aborda a possibilidade de uma certa superação dos constrangimentos que prendem os homens à terra e a uma vida insatisfatória. Sim, era um pouco isso. A política na Irlanda podia ser ao mesmo tempo sangrenta e poética. Mas O’Casey fez com A Charrua e as Estrelas a sua mais bela peça. Ele foi beber aos gregos, aos isabelinos, aos filósofos. E também há lá dentro a Nora de Ibsen, a Ofélia de Shakespeare, Tirésias, figuras do teatro que aparecem como vindas do nada. Quando o poema é verdadeiro, regressam automaticamente as figuras mitológicas da humanidade. Há a Bíblia, há profetas bêbedos. É uma mistura onde cabe tudo, de Ésquilo e Homero até Chaplin.
Mas sempre a partir de tipos urbanos ainda hoje reconhecíveis. Sim. As suas personagens são operários, mulher-a-dias, pedreiros. É talvez por isso que a maioria dos encenadores torcem o nariz a O’Casey. Mas pensei que em Almada – onde não faltam mulher-adias, pedreiros, carpinteiros e... desempregados – fazia sentido abordar este universo. A peça já tinha sido montada por si, em 1986. Mais de 20 anos depois, em que é que difere o seu olhar de encenador sobre o texto? O meu olhar difere porque entretanto pude descobrir o artista enorme que O’Casey é. Discernir a sua arte. Uma arte que absorve tudo o que então se passava na Europa, mesmo sem que ele se apercebesse disso. Há ali ideias de montagem, ecos do nascimento do cinema. Em alguns aspectos, eu diria mesmo que A Charrua e as Estrelas é uma peça cubista. A actual produção vai ser falada em português. Este facto implicou algum tipo de ajustes no seu método de trabalho? Não. Mas é óbvio que se trata de um desafio. E de uma enorme demonstração de coragem por parte do Benite. Foi ele que me fez o
casting. Corrigi-o depois um pouco, mas não muito. Quanto aos jovens actores que trabalham comigo, só espero estar à altura do entusiasmo de que já me deram provas. Eles estão muito cansados, o trabalho tem sido muito duro. Você é muito exigente como encenador? Nem por isso. Ou melhor, não sou eu que sou exigente. É O’Casey. A língua não está a ser uma barreira? Quando se monta uma peça, seja de quem for, depressa se compreende que a “fala” do teatro é uma outra fala. Mesmo quando estou num palco em França, não é francês que eu falo. Falo outra coisa. Falo teatro. É um idioma à parte. Não. É uma língua que não é a língua do uso quotidiano. E é por isso que eu posso entender-me com os actores portugueses, mesmo que não perceba o que eles dizem. Porque quando estamos juntos falamos teatro. E quando falamos teatro, entendemo-nos. A sua formação começou na Alemanha, com o Berliner Ensemble. Qual foi a importância desse começo, dessa descoberta do teatro sob o signo de Brecht? Não sei dizer. Eu não tenho uma teoria do teatro mas descobri que ele é cada vez mais útil porque o teatro, tanto em Molière como em Ostrovski, tenta oferecer ao animal humano, consciente ou inconscientemente, a coragem de compreender que a sua vida não tem um sentido pré-estabelecido. É como diz Shakespeare: a vida signifying nothing, a nossa vida, que nada significa. Não quer dizer que seja desesperado. Mas a esperança é uma paixão triste. Não devemos ter esperança nem desesperar. Devemos viver. Diz que não tem uma teoria do teatro, mas em Gennevilliers pôde entregar-se à prática do teatro durante mais de 40 anos. Pois. Mas durante essas quatro décadas deu-se o aparecimento da televisão, o desabar do socialismo real existente... E o seu trabalho foi reflectindo tudo isso... Sim, essa era mesmo a sua razão de ser. Registar as transformações do mundo. As transformações que eu próprio vivia. E os poetas antigos foram-me ensinando que o mundo sempre sofreu transformações brutais. Quando montava Ésquilo, não tinha a impressão de montar um velho poeta. Compreende? Joaquim Benite sempre disse que o projecto de Almada – fazer teatro e criar um público na periferia da capital – se inspirou no seu trabalho em Gennevilliers. Por que é que escolheu fazer teatro longe do centro de Paris, nos subúrbios? Porque é nos subúrbios que as mudanças têm efeitos mais violentos. É ali que se tem medo de perder o trabalho, é ali que assistimos ao consumo nas grandes superfícies comerciais, é ali que reina o McDonalds. E é também ali que emerge a rebelião, como em 2005, com os automóveis a arder. Claro. É na periferia das grandes cidades que o maremoto que varre a Terra se faz sentir de forma mais evidente. Na Europa, a nossa principal preocupação é proteger o que temos, porque já nos mostraram que de um só golpe podemos perder tudo. A exacerbação dos nacionalismos, de que O’Casey também fala, é uma tentativa de esquecer a realidade. E a realidade é que a “fábrica do mundo” fica nos arredores de Pequim, já não é aqui. Ao trabalhar nos subúrbios, conseguiu sentir de perto esses problemas económicos e sociais? De muito perto mesmo. E também por isso considero que a chegada
ao poder de Sarkozy é um sinal fortíssimo. Sarkozy disse que um dos seus objectivos é pôr fim ao que resta do espírito de Maio de 68. Há uma coisa que é surpreendente na aventura Sarkozy. Ele próprio me disse uma vez que nós pertencíamos à mesma profissão. É um encenador? Um actor? Sim. Ele é o actor dos discursos de outrem. Se virmos bem, tudo se resume ao poder das palavras. Quais são as palavras que vão causar maior impacto? E nesse sentido há uma proximidade entre Sarkozy e um grande actor, que pede a autores que lhe escrevam os seus textos e que sabe os efeitos que as palavras produzem. Isso foi muito evidente no célebre episódio em que Sarkozy, ainda ministro do Interior, se referiu à “racaille” (ralé) quando falava dos jovens que protestavam contra a morte, num transformador de electricidade, de dois adolescentes perseguidos pela polícia. A palavra “racaille” teve um peso tremendo, como agora essas duas palavras que andam sempre juntas: valor e trabalho. Aliás, penso que a esquerda, depois de ter sido espoliada da ideia de progresso, foi incapaz de encontrar outra linguagem. Permaneceu na velha linguagem. Ao contrário de Sarkozy, que se adaptou e por isso acho que ele mereceu ganhar as eleições presidenciais. Agora, se não concordo com ele, porque sou de esquerda, tenho que encontrar uma outra linguagem, tão eficaz quanto a dele. E este é um problema de teatro. Teme a encenação que ele vai preparar para a França? Isso não sei. Ele vai fazer como o Joaquim Benite. Procurar o seu público, aqui e ali. No final de 2006, abandonou o Théâtre de Gennevilliers. Foi duro? Como é que viveu essa saída? Foi muito duro. Acho que quem tomou a decisão se enganou. Mas espero que o meu substituto faça um bom trabalho. Da minha parte, vou fazendo o que posso. Gostava de voltar? Não, não. Isso é impossível. Mas penso que podia ter continuado a ser útil. Qual é o seu projecto neste momento? Encontrar um lugar, um espaço modesto, para uns 100 ou 200 espectadores. Para mim, o que é interessante é dar um rosto a uma casa, uma identidade. Ainda não encontrou esse espaço? Ainda não. O que é que vai fazer depois desta passagem por Almada? O director do Teatro Nacional de Estrasburgo, Stéphane Braunschweig, convidou-me a montar um espectáculo de Yuri Olecha, um grande escritor soviético, contemporâneo de Mandelstam. Vai ser em Outubro e irá depois para o Théâtre de la Colline, em Paris. Quando encontrar esse espaço, acha que ainda vai ter a energia necessária para recomeçar um projecto da estaca zero, com novos artistas? Espero ter força para isso, sim. Não lhe falta vontade. Claro que não. Caso contrário, creio que não teria quaisquer razões para viver. A sua vida foi sempre o teatro. Sim, mas nunca tive vocação para o teatro. Nunca?! Nunca tive. Foi tudo por acaso. E tenho a impressão que é apenas aquilo que eu posso fazer menos mal.
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
SOBEL VS GARCÍA
COMPREI UMA PÁ NO IKEA PARA CAVAR A MINHA CAMPA © NUNO PATINHO
OLHARES SOBRE O DESESPERO CONTEMPORÂNEO
EM NOVEMBRO DE 2004 CERCA DE TRÊS MIL ENCENADORES, DRAMATURGOS, COREÓGRAFOS, FILÓSOFOS, ACTORES, POLÍTICOS, INVESTIGADORES, CRÍTICOS E PROGRAMADORES REUNIRAM-SE EM RENNES, NO NOROESTE DE FRANÇA, PARA O COLÓQUIO INTERNACIONAL ENCENAÇÕES DO MUNDO. DAS ACTAS DO ENCONTRO TRANSCREVEMOS UM EXCERTO DO DIÁLOGO ENTRE OS ENCENADORES BERNARD SOBEL E RODRIGO GARCÍA, QUE INTEGRARAM O PAINEL “ENCENAÇÃO E ORDEM POLÍTICA”: A PROCURA DE UMA RELAÇÃO ENTRE PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO PÚBLICA E A RESPONSABILIDADE DE TRANSMITIR VALORES, IDEIAS E SENTIDOS. 40
Bernard Sobel Ao vir até aqui pensava na impressão extraordinária que me causou o espectáculo de Rodrigo García Comprei uma pá no IKEA para cavar a minha campa [2003]. Nunca tinha visto nenhum dos seus espectáculos. Ali passou-se qualquer coisa que não é da ordem do espectáculo, mas que lhe corresponde que por isso me deixou profundamente tocado. Até aí tinha como referência a visão de Brecht sobre os pequenos-burgueses. E sinto-me agradecido a García, porque o que ele nos mostrou não foi o desprezo pelos pequeno-burgueses, mas que o objecto do seu trabalho é a resistência desses seres humanos. Posso dizer que me sinto muito orgulhoso e penso que, se tivesse morrido há dez ou vinte anos, poderia dizer-se que tinha morrido estúpido. Ao passo que hoje, em relação ao problema das ilusões, das utopias, estamos perante uma realidade que é descrita, de certa forma, pelo Rodrigo. Faço uma diferença entre o seu trabalho e o modo como fala. Eu sei que aquilo que é difícil sendo poeta – contrariamente ao Rodrigo, eu não sou um poeta – é de apelar à inteligência. Visto que, e sem o dizer, ele fez uma evidente referência a Heidegger, e eu faço referência a Spinoza para dizer que o desespero é uma paixão triste. Ou seja, nós não podemos fazer nada. O teatro, portanto a encenação do mundo, falou sempre do ultraje que a humanidade fez ao humanismo. Ora, o humanismo não existe. Mas não conheço teatro que não fale dos ultrajes que a humanidade fez a esse dito humanismo existente. Portanto, a encenação do mundo consiste em falar desse ultraje. É isso que faz o Rodrigo. Agora, se ele faz referência a Heidegger e aos problemas metafísicos que se colocam ao indivíduo, estou de acordo. Mas penso mais nos problemas da espécie. No Le Monde vinha hoje uma fotografia de uma fábrica na China onde vemos os operários a trabalhar. O problema para nós é que não podemos condenar isto, não temos o direito de ficar desesperados. Não podemos ignorar uma criança que passa fome em África. Mas eu tenho a impressão de que a humanidade se encontrou sempre nesta situação. Quando Shakespeare escreveu Rei Lear, foi para falar desse ultraje. Os poetas, os verdadeiros poetas, como dizia Proust citado por Yves Saint-Laurent, são os depressivos e os depressivos são o sal da terra. Ora, eu não posso dizer que seja um depressivo. Mas preciso dos depressivos. Rodrigo García Eu defendo o facto de que as pessoas que vemos nessa fotografia são pessoas que têm um atractivo poético. Eles têm um quotidiano real, uma relação com a terra, com a vida de todos os dias. Creio que na Europa nos recusamos ao direito à poesia. Creio que o problema da poesia é que ela desapareceu no quotidiano, no nosso quotidiano. Mas em momento algum eu posso dizer que essas pessoas, por exemplo na China, não têm um grande nível poético. Eu pelo menos invejo o seu universo. É verdade, tendemos a ignorar que eles por vezes são pobres. Isso faz-me falta neste momento. BS Desculpe-me, isso parece um pouco pretensioso. Mas eu estou a ler a Ética de Espinoza e penso que isso me é muito útil. Quando ele fala de homens que controlam a razão, ele sabe que isso não existe. Mas, em última análise, o que nos permite ser poéticos é aquilo que podemos partilhar, é a inteligência. E a inteligência não deve baixar os braços diante da poesia. A inteligência é o que nos faz afrontar o mundo de hoje tal como ele é. Penso que nós, que o teatro na sua especificidade (não como no cinema), tentamos mostrar o lado não natural do homem. Ou seja, que o humanismo não existe, fabrica-se continuamente. E não há um homem assim tão bom, há um fabrico do homem. E os homens de teatro são essencialmente, e sem cessar, trabalhados. Portanto, hoje não é tão desesperante como ontem. Mas estou de acordo que o mais difícil é sermos conscientes disso. Lido
mal com isso enquanto pequeno-burguês, mas não estou desesperado, porque se me deixo ir, bem, como diria Heidegger, a technè, a natureza distancia-se, etc. Mas eu continuarei a comer. RG Mas eu não oponho a poesia à inteligência. Para se fazer poesia é preciso ser-se inteligente. O que me pergunto é: a que nos leva essa inteligência? Qual o caminho a percorrer? Para mudar o destino justo dessa inteligência, porque não pensar antes na intuição e no carácter animal? Se o encenador não é um poeta, devia ser. Há uma diferença entre aqueles que fazem teatro por razões artísticas e aqueles que se contentam em perpetuar a tradição. BS Eu penso que somos animais que têm a possibilidade de estar desesperados e de comunicar esse desespero aos outros. Isso já é alguma coisa. Os animais não transformam o mundo. É verdade que o teatro é, a meu ver, uma ramificação da filosofia. Quando mostrei esta imagem, eu que pretendo ser comunista, é na China comunista que isto se passa. Entre estes trabalhadores alinhados e aqueles que fazem fila na ANPE [Centro de Emprego], eu questiono-me. Não é um apelo ao desespero porque há, talvez, coisas maravilhosas que se constroem. E na nossa profissão é preciso continuar a trabalhar. É a nossa tarefa, a de Büchner, a de Ésquilo, a tua, a de Sarah Kane. Büchner falava de desespero. E tinha razões para estar desesperado porque quando redigia os panfletos pela paz nas cabanas e a guerra nos palácios, quando esses tratados escorregavam pela porta dos camponeses, os camponeses denunciavam-no à polícia. Mas o que Büchner nos deixou é algo que nos alimenta todos os dias. RG Produziu-se um fenómeno estranho. O meu discurso foi interpretado como qualquer coisa de desesperado, enquanto que eu vejo-o como um discurso cheio de esperança. Eu sou um artista que questiona e que se interroga sobre o seu trabalho. E eu acredito que isso dá esperança. BS Quando eu falava há pouco, repetindo estupidamente o discurso de Spinoza, em que ele dizia que o desespero era uma paixão triste, isso quer dizer que Beckett, por exemplo, não era desesperado. Depende de como o entendemos. Eu não sou poeta. Mas o facto de alguém como Rodrigo García o ser – Matthias Langhoff trabalhou os seus textos, por exemplo – e faça parte daqueles que, justamente, falam de resistência, mostra que o ser humano não pode senão resistir ao ultraje que se pratica constantemente sobre si mesmo. Enfim, é tudo, e é enorme. Como será feito amanhã ninguém o sabe. Ninguém se pode considerar nu hoje tendo em conta o que as gerações anteriores nos deixaram de instrumentos de pensamento e reflexão. Hoje alegremo-nos pelas dificuldades. Agora, é certo que o Rodrigo podia fazer como Rimbaud, deixar a poesia e ir vender armas para África, porque não? É difícil saber como falar daquele operário chinês e dizer o que é a sua vida. São pesquisas. As pessoas procuram, experimentam. Brecht é isso. Ele procurava sem parar. E nós, encenadores, tentamos que façam parte dessas experiências. Agora, naturalmente, Büchner ficava profundamente desiludido quando o camponês o ia denunciar à polícia. Nós não carregamos a esperança mas falamos do orgulho de se ser humano tendo em conta todos os horrores de que o Homem é capaz, e isto sem dizer que há bons e maus. Foi isso que Shakespeare fez e foi isso que os gregos fizeram. Não há bons e maus. Mas então o que há, perguntam? Eu não vos irei responder. Porque não há resposta. Mas dizer que não há bons nem maus já é muito importante.
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O diálogo integral encontra-se publicado com o título Mises en Scéne du Monde, edições Les Solitaires Intempestifs (2005, €15).
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
A POESIA ÁRIDA DE PETER BROOK DE QUE É QUE FALAMOS QUANDO SÓ TEMOS MEDO E JÁ NÃO SABEMOS QUEM SOMOS? ESTA PARECE SER A QUESTÃO QUE OS SUL-AFRICANOS ATHOL FUGARD, JOHN KANI E WINSTON NTSHONA PRETENDERAM DEBATER EM SIZWE BANZI IS DEAD, PEÇA QUE CHEGA A ESTA VIGÉSIMA QUARTA EDIÇÃO DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE ALMADA, DIRIGIDA PELO CÉLEBRE ENCENADOR E REALIZADOR CINEMATOGRÁFICO BRITÂNICO PETER BROOK (LONDRES, 1925). AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE RODEARAM A SUA ESCRITA E ESTREIA, EM 1972, SÃO, POR SI SÓ, SUFICIENTEMENTE INDICATIVAS DO PROGRAMA ÉTICO-POLÍTICO QUE A ENFORMOU.
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mo e pela urgência de uma revolução que estabelecesse na África do Sul a democracia, a liberdade e a igualdade. É uma peça, portanto, que surge em plena maturidade criativa de um dos seus autores e no momento em que a companhia já possuía reconhecimento e maturidade suficientes para radicalizar a sua experiência de “teatro improvisado”. Os actores e co-autores Bonsile John Kani (n. 1943) e Winston Ntshona (n. 1941) – ambos negros – já há algum tempo que intervinham na concepção deste teatro vivo, marcadamente oral e, a mais das vezes, deixado inédito. Ora é precisamente com Sizwe Banzi Is Dead – a que seguirá, em 1973, The Island – que este trio criativo firma o seu sucesso, alcançando mesmo forte visibilidade e reconhecimento nos países de língua inglesa (ambas as peças receberam um Tony Award, em 1975).
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Harold Athol Lannigan Fugard (1932) – um branco, filho de um casal anglo-africânder – chegou tarde à actividade teatral. Abandonada a universidade e as vantagens socioeconómicas que a cor de pele lhe teriam proporcionado na África do Sul do apartheid, decide correr mundo, como embarcadiço, em navios da marinha mercante. Regressa só nos últimos anos da década de 50, quando casa com a actriz Sheila Meiring e se torna funcionário judicial. É justamente nesta função silenciosa que se apercebe das humilhações constantes sofridas pela população negra, obrigada a possuir “passes”, quase impossíveis de obter, para poder circular pelo país em busca de trabalho ou de melhores condições de vida. Esta perversa forma de escravidão, que aprisionava os cidadãos às miseráveis e degradas townships e os “ilegalizava” no restante território nacional, impulsionou-o a conceber uma forma de intervenção eficaz e simultaneamente cativante, onde não só se denunciasse a desumanidade implacável do regime sul-africano, como se devolvesse a estas populações o seu inalienável sentido de dignidade e de identidade. O teatro surge-lhe, pois, como estratégia perfeita para alcançar dois objectivos imediatos. Em primeiro lugar, recorrendo a elencos mistos de actores negros e brancos (realidade então inimaginável), captar populações previsivelmente apreensivas para uma ideia de nação partilhada. Depois, e dado que estas apresentações nas próprias townships de debatiam com uma inevitável escassez de meios económicos – tanto da produção, como do(s) público(s) –, avançar com remontagens simples e vibrantes de situações do quotidiano, por todos reconhecíveis, que estimulassem tanto a consciencialização ética e sociopolítica, como uma sadia interacção que afrouxasse ódios seculares. Sizwe Banzi Is Dead é um espectáculo que aparece quando Athol Fugard já fundara a companhia Circle Players, na cidade de Port Elizabeth, já se mudara para Joanesburgo e já regressara a Port Elizabeth, lançando um novo grupo teatral (os The Serpent Players). Neste percurso acidentado, Fugard seguiu sempre o rumo de um pedagógico teatro de intervenção, claramente inspirado pelo marxis-
Não se espere, todavia, uma escrita apenas engajada. A sua força e dinamismo resulta, ao contrário, de um olhar tão ácido e provocador, quanto poético e profundamente humano, sobre duas personagens que, antes de mais, se assumem como um qualquer outro excluído,
africanos Mothobi Mutloatse e Barney Simon. Foi com elementos que intervieram em ambos os trabalhos que Brook avançou para a peça de Athol Fugard, John Kani e Winston Ntshona, considerando que este olhar “…vindo do passado nos toca hoje ainda pelo rigor da sua magnífica derisão, infelizmente, premonitória.” É, aliás, na segunda parte da peça – quando Sizwe (Habib Dembélé) dialoga com Styles (Pitcho Womba Konga) – que se torna flagrante a rasura das suas identidades e o inconsciente consentimento das vítimas neste implacável processo de desumanização. Segundo Jean-Marie Wynants, que apresentou o espectáculo no jornal francês Le Soir, os dois actores assumem-se como pólos antitéticos face a este angustiante processo, pois enquanto Dembélé desen-
cena, quatro projectores, paredes de cartão unido por fita isoladora grossa, sacos de plástico verdes em forma de bidão e meia dúzia de objectos suspensos perfazem a cenografia.” Nesta produção de 2006 do Centre International de Créations Théâtrales (CICT) – sediado em Paris, no Théâtre des Bouffes du Nord –, Peter Brook utiliza a tradução francesa de Marie-Hélène Estienne, sua colaboradora desde 1977. Desde que, nos anos 70, se radicou em França e fundou o CICT, Brook persegue uma linha de criação que se afastou do cânone cénico do Ocidente – considerado gasto e excessivamente centrado na fabricação de imagens belas, mas destituídas de sentido –, trocando-o pelo “teatro vivo”, despojado, enérgico e suficientemente interpelativo que encontrou no Magrebe e na África negra. La Tragédie d’Hamlet, apresentado no Teatro Municipal Maria Matos, em 2003, foi um dos espectáculos onde este diálogo de culturas atingiu um superlativo grau de depuração e eficácia (basta relembrar o movimento “swingado” do protagonista, quase em desconstrução rap, desempenhado pelo excelente actor negro William Nadylam). Também sobre a patológica experiência do apartheid – tema agora retomado em Sizwe Banzi Est Mort –, Lisboa já vira em 2002, na Culturgest, a encenação de Peter Brook de Le Costume, peça dos sul-
volve um registo “folgazão, malicioso e vigoroso”, Womba Konga “joga a carta da sobriedade”, mais adequada à desarmante verdade da sua revolta. Gilles Rof chega mesmo a comparar Dembélé a “um Eddy Murphy africano” que, na sua interpretação de múltiplas vozes, atinge o “histrionismo profundo” de um bardo do Mali (país donde o actor é originário). O crítico do Marseille l’Hebdo enfatiza, porém, o ascetismo e simplicidade que preside a esta leitura de Brook, características que levarão Nicole Laffont, no Nice Matin, a falar de “felicidade reencontrada”: “… uma irrepreensível direcção de actores, uma subtil alquimia entre emoção e humor, um casamento feliz entre a vivacidade do trabalho e os silêncios do coração que nos familiarizam com este drama dos indocumentados fazem de Sizwe Banzi Est Mort uma proposta sedutora e irrecusável.” Deste projecto, podemos esperar, então, um equilibrado cruzamento entre a poesia árida do espaço vazio de Peter Brook com as cores variegadas e ostensivamente denunciadoras de um teatro que se quer inteligentemente comunicativo, politicamente comprometido com um multiculturalismo saudável e exigente.
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irremediavelmente marcado para falhar (interroga-se Sizwe: “Um negro não poderá viver em paz?”, concluindo logo de seguida: “Impossível! O problema é a nossa pele!). Esta diferença gritante e inapagável segue aqui o mais imprevisto dos trilhos. Na primeira parte do espectáculo, Styles relembra, num longo monólogo, os vários percalços que o levaram a adiar o seu sonho de partir e de abrir um estúdio de fotografia. Peter Brook contrasta a exuberância da personagem, o seu generoso apelo à participação do público e as superabundantes ironia e versatilidade com que matiza a sua própria frustração – antes de se tornar fotógrafo, fora operário numa fábrica da Ford – com um eloquente cenário de desolação. A crítica de teatro Anne-Sylvie Sprenger descreve-o incisivamente: “Em
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TEXTO MIGUEL-PEDRO QUADRIO
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
CARMEN DOLORES: RETRATO INACABADO COM DESCULPAS À ACTRIZ, TOMA-SE-LHE O TÍTULO DAS MEMÓRIAS PUBLICADAS EM 1984 (RETRATO INACABADO FOI O PRIMEIRO VOLUME DUM CONJUNTO, CUJO SEGUNDO VIRÁ A CAMINHO), JÁ QUE NÃO SE PODE PRETENDER, EM MEIA DÚZIA DE TRAÇOS, RETRATAR SEJA QUEM FOR. MUITO MENOS ALGUÉM, COMO CARMEN DOLORES, CUJO CONTRAPONTO ENTRE A DISCRETA ATITUDE E O IMPONENTE CURRÍCULO – REPARTIDO POR RÁDIO E CINEMA, TEATRO E TELEVISÃO – INDICIA FORÇA INTERIOR E DETERMINAÇÃO, SUBLINHADAS PELA INTENSIDADE DO OLHAR, MUITO PARA ALÉM DO QUE PODE DEIXAR SUPOR A SUA DELICADEZA DE MODOS, A ARTICULAÇÃO PAUSADA, A FRAGILIDADE FÍSICA APARENTE. Tanto mais aparente quanto, ainda em 2005, a intérprete de Copenhaga voltava a pisar o palco do Teatro Aberto, na reposição da peça, que já protagonizara, no mesmo espaço, em 2003. Como se não lhe pesassem os 80 anos de idade nem os 66 de actividade, desde que, aos 14 – em Outubro de 1938 –, se estreara aos microfones da Rádio Sonora, a dizer poesia. Poesia que Carmen Dolores ainda dizia, durante os anos de ausência em França (1976-1982), a acompanhar o marido, enquanto escrevia as memórias. De regresso, tomava-a uma ansiedade quase de estreante, na volta ao palco – em Comédia à Moda Antiga, de Alexei Arbuzov, encenação de Jorge Listopad, apresentada em 1983 no antigo Teatro Aberto –, que antes de partir inaugurara com o Grupo 4, integrando o elenco d’O Círculo de Giz Caucasiano de Brecht, encenado por João Lourenço, com quem já fizera As Espingardas da Mãe Carrar, na Casa da Comédia (outra sala onde actuou repetidamente) e em digressão pelo país, corria o tempo quente do PREC. No entanto, a actriz sempre veio dizendo que só na rádio se sentia “completamente à vontade”. Nascida em Lisboa, a 22 de Abril de 1924 – de mãe espanhola e pai português, jornalista no Diário de Notícias e tradutor –, Carmen Dolores Cohen Sarmento andava no 6.º ano do liceu (actual 10.º), com o curso de Filologia Germânica no horizonte, quando seu pai faleceu e a rádio se lhe atravessou no caminho – da Sonora passou à Renascença, aos poemas seguiu-se o teatro radiofónico, mais tarde viria o Rádio Clube Português, depois a Emissora Nacional. Seduzido pelo timbre claro dessa voz, António Lopes Ribeiro convidou-a para interpretar Teresa de Albuquerque, no seu filme Amor de Perdição (1943), que seria um sucesso e daria, à intérprete da ultra-romântica protagonista camiliana, sucessivos papéis no cinema, até à agonia da produção nacional, nos anos 50. Ao grande ecrã, só esporadicamen-
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te voltaria, nas décadas de 70 – n’O Princípio da Sabedoria de António de Macedo – e de 80 – em A Mulher do Próximo e Balada da Praia dos Cães, de José Fonseca e Costa. Foi também Lopes Ribeiro, produtor teatral além de cineasta, quem encaminhou Carmen Dolores, dois anos após a estreia no cinema, para Os Comediantes de Lisboa, companhia cujo director artístico era seu irmão Francisco Ribeiro, Ribeirinho. Passados três anos, a actriz transitou para a companhia de Amélia Rey Colaço no Teatro Nacional, onde se manteve uma década, até voltar a trabalhar com Ribeirinho, no então novo Teatro Nacional Popular (residente no Trindade), do qual saiu para a aventura do Teatro Moderno de Lisboa. Tal aventura manteve Carmen Dolores longe de uma outra, que foi a do Cinema Novo, nos primeiros anos 60. Por essa altura, dava a actriz o seu melhor – com Fernando Gusmão e Rogério Paulo, nomeadamente – ao projecto teatral citado, uma sociedade de actores com memoráveis sessões no Cinema Império, ao fim da tarde, de êxitos tão assinaláveis quanto os enfrentamentos com a Censura, que levariam ao fim da companhia. Esta fizera as temporadas 1961-62, 62-63 e 64-65, acabou com O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires, encenação de Fernando Gusmão. Outros “heróis” se seguiriam àqueles, daí a pouco formava-se o Grupo 4, mas, com este, Carmen Dolores só mais tarde iria trabalhar. Entretanto, após uma fase de assídua actuação em teleteatro, naqueles últimos anos 60, a actriz (das primeiras consagradas a integrar, mais tarde, elencos de telenovela) voltava aos palcos em 1969, dirigida por Jorge Listopad, um dos encenadores com quem mais trabalhou desde então, a par de Carlos Avilez e de João Lourenço. Mas também foi dirigida por alguns mais novos, como Mário Viegas (Três Actos de Beckett na Companhia do Chiado, após uma primeira experiência no Teatro Aberto) ou Diogo
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Infante (O Jardim Zoológico de Cristal de Tennessee Williams, no Teatro Nacional D. Maria II).Numa carreira tão longa que inclui duas participações no Frei Luís de Sousa de Garrett – a primeira como intérprete da jovem Maria de Noronha e a segunda no papel de sua mãe, Madalena de Vilhena –, Carmen Dolores, teleteatro à parte, interpretou, e não raro protagonizou, meia centena de peças, pelo menos. De autores tão diversos como Jean Giraudoux, Oscar Wilde, Shakespeare, Gil Vicente, Molière, Goldoni, Pirandello, Raul Brandão, Lorca, Adamov, Edna O’Brian, Strindberg, Alves Redol, Tchékhov, Beckett, Brecht ou Tennessee Williams, entre muitos outros. Detentora de múltiplos prémios de interpretação, também recebeu medalhas de Mérito Cultural – da Secretaria de Estado da Cultura (1991) e dos municípios de Oeiras e Cascais (2004) – e foi condecorada como Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (2005).
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TEXTO ELISABETE FRANÇA JORNALISTA
QUANDO O TEATRO FOI MODERNO cheio de gente. Não sei se entendi bem a peça — ainda hoje, leio-a com alguma perplexidade — mas aquilo encantou-me, a majestade que vinha do palco, a dignidade da representação, a tristeza da peça, a sobriedade dos efeitos, a força do espectáculo. E durante anos aquele espectáculo, com as suas cores pesadas, os castanhos e os negros da pintura realista, foi-me ficando na cabeça. Nem eu sabia como — mas não esqueci. E era um vento novo e fresco, um espec-
ARQUIVO DO MUSEU NACIONAL DO TEATRO
A homenagem que o Festival de Teatro de Almada presta a Carmen Dolores coincide com um conjunto de iniciativas que recordam a actividade do Teatro Moderno de Lisboa – Sociedade de Actores, do qual a actriz fez parte desde a fundação. O Museu Nacional do Teatro, em Lisboa, organizou, até 15 de Maio, uma exposição comissariada por José Carlos Alvarez, director do Museu, onde se reuniram fotografias, programas, cartazes, correspondência da companhia, maquetas de cenário, documentos, objectos, recortes de imprensa e “a memória de quem viu em cena ou trabalhou” na cooperativa que, de certo modo, fundou o teatro independente em Portugal, em Outubro de 1961. A sua curta existência, durou apenas até 1965, não é significativa da amplitude do seu trabalho, unanimemente considerado como dos “mais inovadores, estimulantes e importantes projectos teatrais no nosso país, durante a segunda metade do século XX”. O realizador Lauro António recorda que a companhia “pretendia acima de tudo rumar contra o marasmo, abrir horizontes, rasgar janelas”. A estreia, a 2 de Maio com O Dia Seguinte, de Luís Francisco Rebello, numa encenação de Rogério Paulo, respondia a necessidades de “adequação a actualizados padrões estéticos”, escreveu o próprio autor, anos mais tarde, em Breve História do Teatro Português. Apresentaram José Cardoso Pires, Carlos Muñoz e Steinbeck ao lado de Shakespeare, Ádamov e Strindberg, mas o trabalho iniciado pelos actores Fernando Gusmão, Armando Cortez, Costa Ferreira e Carmen Dolores foi traído pelas dificuldades financeiras. E “a vontade de fazer uma coisa nova”, escreve Jorge Silva Melo na sua biografia Século Passado, contrariada por um “fim triste e a amargura dos trabalhos finais”. A mais impressiva imagem que Silva Melo guarda é a da “dignidade e o equilíbrio de Carmen Dolores” Emocionado, o encenador garante: “não foi em vão, não foi inútil, foi tão bonito aquele gesto colectivo que veio no tempo certo, sempre cedo demais nesta terra ingrata, mas no tempo certo do coração”. E relembra a sensação que teve, muito novo, ao ver O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires, que a companhia apresentou em 1965 em encenação de Fernando Gusmão: “fui de autocarro um domingo de manhã — eram, ao domingo, sessões às 11h, e o Império estava
táculo de grandes meios, enorme elenco, muita matéria — e havia uma convicção no palco que me conquistou, uma dignidade, uma certeza: ninguém estava sozinho, o mundo era possível e o povo tinha razão”. Foi também em jeito de agradecimento que Frederico Corado realizou, a convite do Museu do Teatro, o documentário Teatro Moderno de Lisboa – Sociedade de Actores estreado a 24 de Março no 9º FamaFest – Festival de Cinema de Famalicão. Com depoimentos de quem dele fez parte, entre os quais e para além de Carmen Dolores, os actores Ruy de Carvalho, Morais e Castro, Rui Mendes, Armando Caldas e Clara Joana, o filme-documentário aguarda distribuição comercial. O programa de homenagens termina com um livro do crítico Tito Lívio, a ser editado brevemente pelo Museu do Teatro.
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
VIETNAME EM ALMADA NESTA VIAGEM PELO GLOBO, PARAGEM OBRIGATÓRIA NUMA GEOGRAFIA DISTANTE. DO VIETNAME, CHEGAM AS TRADIÇÕES ANCESTRAIS – AS MARIONETAS DE ÁGUA –, MAS TAMBÉM A PRODUÇÃO LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA – CONHEÇA A ESCRITA DA “ESCRITORA MALDITA” DUONG THU HUONG, AUTORA DE LES PARADIS AVEUGLES, A PARTIR DA QUAL A COMPANHIA FRANCESA M-G PESSOA MONTOU UM ESPECTÁCULO SOBRE A DIGRESSÃO DA MEMÓRIA. E, A PROPÓSITO DAS SESSÕES DE LEITURAS DE JOVENS CONTISTAS VIETNAMISTAS, A OBSCENA PRÉ-PUBLICA UM EXCERTO DE UM CONTO, DE PHAN HUYEN THU.
REGRESSO À INFÂNCIA DA ESCRITORA MALDITA Uma “puta dissidente” chamam-lhe os ex-camaradas do Partido Comunista do Vietname do Norte. E o insulto já dá para perceber que é de uma mulher que se trata em Les Paradis Aveugles, peça baseada em um romance de Duong Thu Huong, que vê o seu país com enlevo e desespero. Pelo nome dificilmente se chegaria lá. Duong Thu Huong tem 60 anos, vive em Hanói, é uma escritora maldita. A dor, costuma dizer, é o que a move. Talvez por isso, quando, há dois anos, foi entrevistada pelo New York Times falou menos da literatura do que do seu inferno pessoal. Disse, por exemplo, que o regime lhe ofereceu uma bela casa, por volta de 1987, na esperança de que moderasse a sua prosa. “O meu princípio é: pode-se perder tudo, até a vida, mas nunca a honra”. Não aceitou a casa. Nessa altura, já tinha publicado dois romances: Au delà des Illusions, em 1987, e, no ano seguinte, Les Paradis Aveugles, ambos best-sellers nomeados para o Prémio Fémina Étranger. Era membro do partido, tinha estudado na União Soviética, na RDA e na Bulgária e feito digressão, como cantora, na frente de batalha, durante a guerra contra os EUA, mas cansada da distância entre o discurso e a prática do partido único, protestou, em 1989, num congresso de escritores, enquanto assinava na imprensa artigos inflamados. Foi expulsa do partido e proibida de publicar e viajar. Dois anos depois, prenderam-na durante oito meses, sob a acusação de passar documentos secretos para o estrangeiro – o mesmo é dizer, manuscritos de romances seus, que, de outro modo, nunca veriam a luz do dia. Porém, ao contrário do que pretendia o regime, esses oito meses viriam a revelar-se fundamentais para a divulgação da sua obra no Ocidente. Terão sido aliás as pressões do governo francês e da Amnistia Internacional a determinar o fim do cativeiro. Seguiu-se uma onda de solidariedade, que incluiu a tradução dos seus romances tam-
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bém na América do Norte e na Europa, principalmente em França. Vem isto a propósito de Les Paradis Aveugles, adaptação dramatúrgica feita pelo fotógrafo e dramaturgo Philippe Malone e pelo encenador Gilles Dao, da companhia francesa M-G Pessoa, estreada no ano passado, em Paris. A peça passa-se na Rússia dos anos 1980. Gilles Dao diz que é um retrato de um Vietname desconhecido no Ocidente. Uma mulher, Hàng, parte da sua aldeia em direcção a Moscovo para visitar o tio Chinh, gravemente doente. Esta viagem real funciona como pretexto para uma outra digressão, memorial. Hàng há-de rever, a bordo do comboio, os dias da infância: “Emergem na minha memória centenas de rostos, dos meus amigos, das pessoas da minha geração. Rostos corroídos pela preocupação, degradados, desmoronados, sulcados, empoeirados. Rostos de medo... O medo de não poder comprar algumas mercadorias, de não as poder enviar, de saber que um velho pai e uma velha mãe não resistem à miséria, enquanto esperam por miseráveis subsídios”. A infância de Hàng, que não se sabe se corresponde à de Duong Thu Huong, está imersa nestes dramas. Malone e Dao procuraram por imagens na escrita poética de Duong Thu Huong. Construíram dois espaços simbólicos, correspondentes às viagens do comboio e da memória. A personagem principal aparece replicada, sob a forma de Hàng mulher, na Rússia, e de Hàng criança, no Vietname. O enfoque situa-se na analepse do contexto familiar: a infância é central, funcionando a viagem e a doença do tio como dispositivo narrativo. Também a alimentação age enquanto metáfora: da carência, ao espelhar a realidade social que se acentuou com a implantação do regime comunista, ou da abundância, denunciado um mundo em que só importa o que se come, isto é, os bens que se possui. Duong Thu Huong vive uma liberdade condicionada. A França ofereceu-lhe asilo político. Recusou. Prefere continuar a viver em Hanói e ser uma pedra na engrenagem: “No meu país, o medo esmaga tudo, ao ponto de bravos soldados se terem tornado cidadãos cobardes”.
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MARIONETAS DE ÁGUA OU A ARTE VIETNAMITA DE CONTAR A VIDA
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O Teatro Nacional de Hanói traz ao Festival de Almada uma das mais antigas formas de arte do Vietname do Norte. Uma arte em que os dragões cospem fogo e os camponeses são acrobatas é o que se vai ver quando estrear em Portugal o espectáculo das tradicionais marionetas de água. É com o ribombar de tambores, gongos e flautas que pessoas e animais entram em cena. A música é tocada ao vivo, por uma pequena
costumam ser dominadas pela acção, como forma de substituir a expressão facial dos bonecos, que é sempre a mesma, pois apenas a cabeça e os braços se movimentam. E não é de estranhar que haja decapitações em cena. Essa é a imagem de marca da maioria das peças e tende a assinalar o clímax da narrativa. Em simultâneo, há fogo de artifício e a música cresce. Antigamente, uma apresentação podia ter até 200 cenas, mas hoje a norma são 25. Em artigo publicado no sítio thingsasian.com Steven K. Bailey escreve que o palco de um espectáculo da companhia de Thang Long, a que assistiu, estava ornamentado por uma estrutura dourada, imitando um pagode, e que à direita existia uma plataforma
orquestra. Há uma piscina com dez metros de largura – é o palco. E uma tela pintada com cores fortes – o cenário. Atrás dele, os marionetistas, com água pela cintura: através de varas e longas cordas, manipulam os bonecos anfíbios. As marionetas de água são uma das mais antigas formas de arte do Sudeste asiático. Apareceram há, pelo menos, oito séculos, durante a dinastia Ly, entre os anos 1010 e 1225 (as marionetas europeias nasceram no século V a.C., na Grécia). De acordo com Vietnamese Traditional Water Puppetry, de Nguyen Huy Hong e Tran Trung Chinh, foi nos lagos comunais de que se serviam e servem diversas aldeias (no Delta do Rio Vermelho, Norte do Vietname, perto de Hanói), que tudo começou. Os pagodes de Thay (dinastia Le, 1533-1708) e de Dong (1775) são os mais antigos vestígios de espectáculos desta natureza e ainda hoje são utilizados. Os vietnamitas chamam a esta arte mua roi nuoc, o que, à letra, significa “marionetas que dançam na água”. Feitas à mão, com madeira de figueira, e impermeabilizadas com resina do sumagre, podem ter entre 30 centímetros e um metro de altura e pesar cerca de cinco quilos. Em palco são controladas através de varas e cordas, que ficam debaixo de água, razão por que o líquido não pode ser cristalino, sob pena de denunciar o mecanismo. Os marionetistas, homens ou mulheres, ficam escondidos atrás do cenário, o que constitui uma das grandes diferenças em relação às marionetas e aos fantoches que conhecemos na Europa. As personagens são, segundo o mesmo livro, heróicas ou míticas, mas, a maior parte das vezes, representam apenas pessoas normais, aldeões, cujas casas são cercadas por enormes bambus. As peças
para os músicos. Referindo-se a uma das cenas que compunham a peça, onde os bonecos plantavam arroz e regavam o campo, o autor recorda que 80 por cento dos vietnamitas vivem em áreas rurais, o que explica o pendor rústico dos temas. No fim, apareciam para uma dança os quatro animais mágicos da mitologia local: o dragão, o unicórnio, a tartaruga e a fénix. “Os marionetistas lançavam no palco aquático dragões que cospem fogo, agricultores acrobatas e virgens dançarinas”, descreve. A fama destes bonecos tem vindo a crescer nas últimas décadas. As companhias de marionetas de água de muitas aldeias do país costumam fazer espectáculos na Europa, no Japão, no Canadá e nos EUA. E os actores têm vindo a renovar o reportório clássico, incorporando elementos da vida moderna com o objectivo de manter vivas as marionetas de água e, ao mesmo tempo, instruir os habitantes das zonas rurais, transmitindo-lhes informações sobre a organização actual da sociedade vietnamita. Os marionetistas são geralmente agricultores, cuja principal actividade é o cultivo do arroz, embora por todo o país, especialmente na capital, existam grupos de teatro que o fazem profissionalmente. O segredo mais bem guardado desta arte é o da forma como as personagens anfíbias são manipuladas – que nunca é revelada a estranhos. E apesar de os lagos onde a tradição nasceu terem sido trocados por piscinas rectangulares, a forma de operar estas marionetas é praticamente a mesma desde há séculos.
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TEXTOS BRUNO HORTA
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“A PESTE”, DE PHAN HUYEN THU O telefone toca. Olho para o relógio. São onze e um quarto. A minha mãe levanta-se e pergunta: “Quem é? – É a minha amiga Hanh que está à minha espera no Queenbee.” Ela diz: “Não vás!” Meto-me debaixo do cobertor. Ela diz: “Qual é a tua ideia com o Cuong? – Vou casar com ele. – Quando? – Quando eu me sentir ok. E o Quang? – Gosto dele. Quando é que te decides? – Não sei. – E se o Cuong soubesse? – Ele provavelmente já sabe. No pior dos casos será out… – Eu proíbo-te… Mãe, não te preocupes com essas coisas…Estas histórias não têm interesse, posso muito bem resolvê-las sozinha. – Não sei o que te fiz noutra vida...” Hanh chega e diz-me: “Vai mudar de roupa! (…) Hanh e eu somos duas “testemunhas históricas” da decadência. Será a moral temporal ou intemporal? O meu avô conta: “Fui excluído do Partido por causa do meu amor pela tua avó. O teu pai foi fruto das nossas paixões perversas…” Hoje em dia, as séries B americanas colam-no vinte e quatro horas por dia à sua cadeira de reformado. O meu pai diz: “Fui criticado diante de todos os meus colegas da universidade e castigado com uma semana a lavar as casas de banho por ter olhado para a tua mãe numa reunião do Movimento da juventude da repartição.” Depois vê as horas, antes de ligar ao motorista para o vir buscar. (…) A minha mãe diz: “És tão mimada que perdes o juízo. Então não lês os jornais? Arriscas a tua vida a namoriscar de um lado para o outro! Um dia encontrarás um homem irreflectido e arrepender-me-ei de me ter dado ao trabalho de te educar.” Respondo com um ar abatido: “Não estou apaixonada por ninguém. Na nossa época os rapazes são uma nulidade. Aqueles que ganham dez mil dongs gastam cem mil e aqueles que ganham milhares, gastam milhões... Aqueles que não ganham nada, refugiam-se nos livros, ou bocejam ou discutem assuntos que nem lembrariam ao Bill Clinton.” O meu pai diz: “Se a Nhi se apaixonasse por um rapaz e se fosse embora com ele, levando todos os nossos bens, concordavas?” A minha mãe troça: “Não precisamos dela para isso. Os nossos bens já estão a ser levados por outros!” O meu pai procura fazer as pazes: “Esta noite as velhas gagás não te convidaram para ir ao clube de dança clássica?” Hanh diz-me: “Em princípio vou para a Austrália. – Para estudar? – Vem comigo! – Porquê? Estás farta? – Sim. Os meus velhos querem que eu me case. – Com quem? – Um tipo que acaba de ser nomeado para os Negócios Estrangeiros. Aposto que é o segurança. Ontem veio ver-me. Disse-me: “Ello. Hao ariou?” Retorqui: “Sopa estragada” [Hanh responde ao segurança Canh thiu (deformação de Thank you) que significa “sopa estragada”]. Olhou-me pasmado, sem entender nada. Repeti: “Sopa estragada”. Ficou vermelho como um tomate. Sem esconder o meu espanto digo a Hanh: “só há imbecis no Vietname! – Esse gajo é primo do patrão. Ouvi dizer que tem apenas o diploma do liceu da sua aldeia. E depois de uma temporada na URSS, fez um curso de inglês intensivo... (...) Conheces a Nga? – Quem? – Nga, a vaidosa. Ah, o suposto modelo da virtude? – O amante dela, que é director numa empresa, afinal é casado e pai de dois filhos em Saigão. Ele emprenhou-a, mas recusa-se a casar com ela...” A minha mãe diz-me sempre: “A Nga faz-me sonhar. Ela é pura, simples, limpa. Tem menos habilitações do que vocês e no entanto trabalha como secretária e ganha cem dólares por mês…” Contesto: “Mãe, hoje em dia as aparências enganam. As raparigas simples, limpas, de camisa sintética e tranças vão abortar na maternidade C como quem
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vai ao supermercado. (...)” A minha mãe diz-me: “Vai ver-te ao espelho. Tens nós nos cabelos. As tuas roupas estão remendadas aqui, cerzidas ali. Rasgaste-as de propósito. Nunca te faltou nada. Por que é que te vestes dessa maneira? Envergonhas-me! Além disso os teus amores são ambíguos!” Replico: “Não me faças seguir o exemplo da Nga. Podes vir a arrepender-te”. Quando Nga provoca escândalo, a minha mãe deixa-me em paz durante uma semana, pois pára de cantar as suas virtudes. Mas ao fim de uma semana, diz-me: “Tens de tomar cuidado senão ainda ficas como ela...” Suplico-lhe: “Mãe, sê boazinha! Lutar o tempo todo para viver já é cansativo o bastante. Se ainda por cima me chateias o tempo todo com os teus conselhos e histórias, dou em doida. – Como queiras! Não sei o que te fiz noutra vida...” (...) Depois do jantar a minha mãe prepara as oferendas, pede-me que desligue a rádio e começa a salmodiar as suas orações. Mudo de roupa antes de sair. O Cuong está à minha espera. Vamos ao zoo, (...) que parece um curral com as suas tábuas de madeira. Ouvem-se ruídos... O Cuong pede: “Dois sumos de laranja bem frescos!” Digo-lhe que quero ir embora. “Responde à minha pergunta e eu levo-te de volta!” Diz ele. “Que pergunta? – Queres casar comigo?” Digo que sim com a cabeça. Ele diz-me: “Óptimo! Vamos embora!” Quando chego a casa a telenovela Osin [telenovela japonesa] já começou. Se a Hanh estivesse aqui diria: “Com que então voltas antes das nove e segues o exemplo da Nga?” Mas quem estava lá era o Quang. Cansado, pergunta-me: Ele também gosta de ti?” Faço que sim com a cabeça. Pergunta ainda: “E tu, gostas de mim?” Perguntolhe: É assim tão importante? – Não queres responder? – Gosto de ti. Quero ver-te todos os dias”, digo, baixinho. Ele suspira, aliviado: “Queres casar comigo?” Consinto imediatamente. De repente, Quang dá-me um beijo na bochecha e sussurra: “Amo-te loucamente!” Tenho o coração aos pulos. (...) Como é que o tempo passa tão rápido? Digo-me todas as manhãs: “Hoje já é um novo dia! Se a longevidade média é de sessenta anos, faltam-me apenas treze mil e quinhentas e cinco manhãs. (...) Não me apetece tomar o pequeno-almoço. Mudo de roupa e corro para a paragem do autocarro (sem gabardina, claro). Hoje já passou. E amanhã será um novo dia. Tomo a decisão de encontrar-me com Cuong e Quang para dizer-lhes a verdade e pôr fim a esta comédia de propostas de casamento. Amanhã será um novo dia! Eu, Hanh, Cuong e Quang temos tantas coisas por fazer, por viver. (...) Não! É preciso mudar! Despachemo-nos que o ano 2000 aproxima-se! Século XXI, estou à tua espera! O despertador toca. Levanto-me e compreendo que acabei de falar no meio de um sonho. O céu está de uma pureza incrível. Não há nem chuva nem nuvens cinzentas. Mas não mudo de ideias. Quem não concordar comigo que diga: “Não sei o que te fiz noutra vida...”!
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In Au rez-de-chaussée du Paradis – Récits vietnamiens 1991 – 2003; recolha, tradução francesa e apresentação de Doan Cam Thi. Paris: Philippe Picquier, 2005. Versão portuguesa de Lucy Delbreil. Poeta, novelista e cenógrafa, Phan Huyen Thu vive em Hanói e nasceu em 1972. Tornou-se célebre com esta novela, escrita em 1994, quando a autora tinha 22 anos.
NADA OU O SILÊNCIO DE BECKETT © DR
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MARIONETAS DO MUNDO NÃO HÁ SÓ MARIONETAS DE ÁGUA PARA VER EM ALMADA. O TEATRO DE MARIONETAS DO PORTO REGRESSA, EM DOSE DUPLA. COM NADA OU O SILÊNCIO DE BECKETT, DE 1999, CUMPRE A REPOSIÇÃO DO ANO ANTERIOR, NA QUALIDADE DE ESPECTÁCULO DE HONRA. E, COM CABARET MOLOTOV, APRESENTAM EM ALMADA A MAIS RECENTE ENCENAÇÃO DE JOÃO PAULO SEARA CARDOSO. E AINDA MAIS MARIONETAS: DO CHILE CHEGA GULLIVER, ESPECTÁCULO ILUSIONISTA DE JAIME LORCA A PARTIR DO ROMANCE AGRIDOCE DE JONATHAN SWIFT.
O ACTOR E O SEU DUPLO: BREVE APRESENTAÇÃO DO TEATRO DE MARIONETAS DO PORTO Talvez a fórmula mais exacta para definir o trabalho da companhia seja a que foi utilizada por João Paulo Seara Cardoso, o seu director artístico, quando disse que o Teatro de Marionetas do Porto (TMP) realizava, na verdade, um teatro com marionetas. A mudança de preposição serve aqui para evidenciar como os bonecos utilizados pelo grupo não obedecem à lógica tradicional. Com efeito, nunca nesta companhia foram utilizadas marionetas de fios, visto que elas são antes perspectivadas como objectos, como mais um elemento para a construção do espectáculo. Esta dimensão experimental, bem presente no propósito de construir as marionetas de maneira adequada à linguagem de cada criação, quase esconde as origens do grupo, que remontam aos tempos do Teatro Amador de Intervenção (TAI). Foi no final da década de 1970 que o interesse de Seara Cardoso pelo teatro de inspiração popular o levou à descoberta de um património cultural que incluía representações do Auto de Floripes, do Enterro do Judas, da Serração da Velha ou das Bugiadas de Sobrado. Ainda, o contacto com o mestre bonecreiro António Dias permitiu a definição de um modelo de teatro em que a marioneta desempenha um papel central, que foi sendo ensaiado até se chegar à apresentação de Miséria, em Charleville-Mézières, no Festival Mundial de Marionetas. A necessidade de atribuir aí um nome ao colectivo deu origem ao nascimento do TMP, em 1988, que herdaria assim um repertório do TAI, mais especificamente tradicional. O propósito de criar espectáculos de marionetas com uma dimensão contemporânea, dando expressão à vontade de reflectir sobre o mundo actual, esteve na base de uma progressiva mudança de regis-
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to, em trabalhos como Entre a Vida e a Morte (1989) e Vai no Batalha (1993) – em que, antecipando o actual panorama cinzento do teatro no Porto, a figura de La Féria aparecia, então, com o desejo de impor, através de decisões políticas, um “teatro nacional obrigatório”. O êxito desse espectáculo não desviou a companhia de um caminho em que a experimentação significa recusa da cristalização do projecto. Com o pequeno Teatro de Belomonte como sede, o primeiro espaço do género em Portugal, o grupo evoluiu no sentido de explicitar a artificialidade da utilização das marionetas, expondo em definitivo os actores que as manipulam. À marioneta é, assim, atribuído o estatuto ambíguo de objecto e, em simultâneo, de espelho ou metáfora do ser humano. A sua presença em palco ao lado do manipulador confere-lhe uma estranha efemeridade, como se a sua “vida” estivesse presa de um modo arbitrário às decisões daquele ser que detém o poder de a animar. Não surpreende, portanto, em função da existência absurda a que as marionetas, deste modo, aparecem condenadas, que Beckett tenha sido um dos autores a incluir no repertório. Confirmar o modo como os traços fundamentais do autor estruturam a peça sem texto Nada ou o Silêncio de Beckett (1999) é uma das melhores maneiras de aceder ao mundo destas marionetas e da forma como elas constroem um olhar sobre a existência humana, marcado pelo desencanto, mas também por um evidente sentido de humor. Se a ausência de texto não causou estranheza, tal poderá ter ficado a dever-se ao modo como as palavras são encaradas nos espectáculos do TMP: como signos cénicos, à imagem dos adereços ou da bandasonora, as palavras ultrapassam o registo naturalista impondo-se como elemento aberto a uma exploração polissémica. A excepção ao trabalho com um texto pré-determinado verifica-se nas peças para público infanto-juvenil, cerca de metade do repertório do TMP: Óscar
(1999), Os Três Porquinhos (2000), Polegarzinho (2002), História da Praia Grande (2003), ou o recentíssimo Bichos do Bosque (2007). No capítulo dos trabalhos para adultos, um dos espectáculos em que as palavras originais mereceram mais respeito na sua integralidade foi Macbeth (2001); outros resultaram de textos construídos durante os ensaios. O que todos esses títulos, como Exit (1998), Paisagem Azul com Automóveis (2001), Os Encantos de Medeia (2005), ou Cabaret Molotov (2006), têm em comum é o propósito conseguido de estabelecerem uma relação profícua com outras áreas da criação, como a dança, as artes plásticas e a música.Com uma intensa actividade de itinerância em Portugal e no estrangeiro, a par da participação regular em festivais internacionais, o TMP tem sabido fazer de cada espectáculo uma renovação do diálogo que estes actores estabelecem com os seus duplos, as marionetas.
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A VIAGEM TAMANHA DE GULLIVER
Estreado há um ano em Santiago do Chile, e em digressão pela Europa desde então, Gulliver tem cativado públicos de todas as idades em torno das aventuras narradas por Jonathan Swift, que transportam o espectador numa viagem ilusionista e encantatória, que se serve das escalas e das proporções para recriar em palco seres liliputianos e outros gigantes. A encenação de Jaime Lorca, a primeira com a sua nova companhia (depois de 18 anos de criações com La Troppa, de que saiu para fundar um novo colectivo, com o seu nome), reúne marionetas de fios e actores numa estrutura de ferro estilizada cujos anéis sobem e des-
TEXTO JOÃO PAULO SOUSA ESCRITOR
Mais do que um cabaré fictício, o espectáculo é um coquetel cénico que tem de tudo um pouco: marionetas, dança, teatro, circo, musichall, todos juntos numa reunião familiar em que os parentes próximos e afastados vêm das mais longínquas pátrias e tradições das artes cénicas, apresentando os seus números e falando versões macarrónicas de russo, italiano, alemão e espanhol, numa profusão de actos e línguas de palhaço. Há coristas, trapezistas, acrobatas, homensbala e funâmbulos, ursos e coelhinhas, […] criados por actores e marionetas alternadamente, num circo em miniatura que muda para a escala real, sempre que o olhar do espectador é focado nos manipuladores, e regressa a um mundo de sugestão […] pela manipulação dos objectos. […] Todos se encontram num lugar de lembrança popular: a área de jogo encimada pelo pano de boca que evoca tanto a arena de circo como os tablados mais escusos. […] Os manipuladores expõem os truques todos, como se na apresentação de um circo de pulgas o amestrador avisasse previamente que não existe pulga alguma, e ao espectador coubesse ver o invisível e fazer vista grossa ao que entra pelos olhos dentro. O público desfia em conjunto com os actores o rol de memórias de atracções de cena que, por magia, ganham corpo. […] As marionetas somos nós, parece, manietados pela projecção das figuras que nos calham. As referências escondidas ao cinema e as piscadelas de olho ao público mais cúmplice coabitam com o humor físico e farsesco. […] O espectáculo é tanto sobre o circo e o cabaré, e sobre essas memórias, como sobre o romance de Vladimir e Matrioska, como sobre o próprio acto da manipulação, numa síntese bem feita entre arte e entretimento. Manipulando ícones do nosso imaginário, Cabaret Molotov reproduz e materializa os sonhos pessoais dos autores, partilhando-os com o espectador mais ou menos anónimo. Nos claustros de um velho convento, convertido em sala de concerto, a memória do teatro encerra com um último olhar sobre o espectáculo da decadência de fim de noite no cabaré; e a manipulação dos objectos, representando continuamente a ilusão da arte e o fracasso do quotidiano, parece perguntar, mesmo quando nos rimos: o que fiz do meu sonho?
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O CIRCO DE PULGAS E O CABARÉ SUBLIME
cem, revelando planos diferenciados. A perspectiva é, assim, o principal recurso de Lorca, nesta montagem dinâmica e virtuosa: o crítico do Punto Final, Leopoldo Ibarra, escreveu que “a qualidade do movimento das marionetas, com as vozes dos actores, revela uma perfeita sincronia física, mental e emotiva. A peça utiliza a cenografia como um interessante território de jogo: reencontramos o desejo de contar uma história através de uma complexa maquinaria teatral, que impressiona pela grandeza e pela relação dramática que estabelece entre marionetas e humanos. Gulliver preserva os principais traços da trajectória artística de Jaime Lorca, como a dimensão da viagem do ser humano e a sua capacidade de sobreviver e de sonhar”. Outros críticos falam de poesia de imagens, humor, manipulação cénica e ilusões de óptica. Lorca deixou-se atrair pela “experiência da viagem, a sede de percorrer mundos imaginários” e trabalhou as dimensões da expedição e da descoberta em função dessas deslocações e mudanças de planos. “Os objectivos mesquinhos de Gulliver transformam a sua viagem numa transição, o seu universo sonhador numa prisão de pesadelo. O nosso propósito é apresentar Gulliver com os coloridos da sua alma doente, como um fiel espelho da vida: uma narrativa descarnada e afectada sobre a nossa sociedade, tal como foi o texto de Swift na sua época. O seu génio traça-nos um retrato detalhado e descarnado da frágil e volúvel natureza humana”.
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JORGE LOURAÇO FIGUEIRA, PÚBLICO, 23 DEZEMBRO 2006 TEXTO MÓNICA GUERREIRO
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ROMEU(S) E JULIETA(S) DURANTE O FESTIVAL DE ALMADA É POSSÍVEL ASSISTIR A DUAS VERSÕES CÉNICAS, RADICALMENTE DISTINTAS, DO DRAMA IMAGINADO POR WILLIAM SHAKESPEARE. A TRÁGICA HISTÓRIA DE JULIETA E DO SEU ROMEU É NARRADA NUMA ARROJADA PRODUÇÃO TEATRAL LITUANA, PELA MÃO DO PREMIADO ENCENADOR OSKARAS KORSUNOVAS, QUE, PELA PRIMEIRA VEZ, SE APRESENTA NO NOSSO PAÍS. ESTE CRIADOR DE 38 ANOS TEM ASSINADO ALGUMAS ENCENAÇÕES MAIS “EXCITANTES” (A CRÍTICA INTERNACIONAL ABUSA DO ADJECTIVO) DE SÓFOCLES A MAYENBURG, PASSANDO POR STRINDBERG, SARAH KANE OU OS IRMÃOS PRESNIAKOV. JÁ O ROMEU E JULIETA DE MAURO BIGONZETTI ESTREOU EM 2006, ENVOLVENDO TODO O ATERBALLETTO.
O AMOR AMADURECE ATÉ AO SEU CONTRÁRIO
O lugar comum é um ponto onde concordam vários caminhos. A encenação de um clássico faz convergir, pelo menos, dois sentidos: o do texto, canonizado como teatro, sendo obra literária, nas suas múltiplas leituras; o da encenação do texto, próximo das palavras, dos diálogos e das didascálias, que se constituem como partitura mínima do espectáculo. A isto acresce o confronto entre dois tempos, o do momento de criação do texto e o da criação actual do espectáculo. Assim, encenar um clássico é, desde logo, mais do que uma versão, um exercício de perversão, onde o espaço de jogo está delimitado pelo conhecimento prévio que gera um conflito de expectativas: por parte do público, que espera reencontrar o que conhece; e dos artistas, que esperam encontrar a sua particular nota de variação sobre o clássico, autorizando-os sobre o autor. Hitchcock dizia que mais vale partir do cliché do que chegar a um. No Romeu e Julieta de Oskaras Korsunovas, a nota de variação é a cozinha de alumínio. A acção de Verona é concentrada numa pizaria, algures nos anos 50, entre a massa de pão e muita farinha. A cozinha da pizaria, os figurinos dos fifties são o primeiro deslocamento, plástico, em relação ao contexto original da peça e resulta no desdobramento do espaço em vários espaços e na transformação dos objectos: o caldeirão que é usado com diferentes funções; o uso metafórico da farinha, sobretudo quando pinta os rostos de branco; um caixão ao alto; máscaras de alumínio.
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O segundo deslocamento é dramatúrgico. Nas palavras de Korsunovas: “o Romeu e Julieta é normalmente entendido como uma celebração do amor romântico. De facto, é um momento de drama social. Quis analisar como é que o ódio cria diferenças e se torna um plano comum. O amor nega a diferença, cria liberdade e na liberdade não há oposições”. Assim, mais que concentrar a acção na paixão e agonia de um amor, a encenação tende a destacar o conflito entre Capuletos e Montéquios como modelo mínimo de socialização, isto é, de que o ódio gera diferenças e é na defesa das diferenças que todos se assemelham. O sentido trágico da peça decorre de que o amor de Romeu e Julieta, não reconhecendo as diferenças entre as duas famílias, fica desde logo marcado pelo ódio, condenando os apaixonados à morte. Mas, como nota Korsunovas, “quando eles morrem, a família morre com eles. O sacrifício da liberdade arruinou não só os valores modernos que os amantes criaram mas também a tradição que os pais pensavam proteger”. De certa forma, como em O Leopardo, seria necessário que tudo mudasse para que tudo ficasse igual. Mas tudo isto se passa numa cozinha de alumínio, habitada por figuras dos anos 50 (e um frade), onde as famílias lutam com instrumentos de cozinha e há massa e farinha a voar. Com estes dois deslocamentos, plástico e dramatúrgico, a encenação do clássico fica inscrita na própria acção teatral, entre o metateatral e o teatro de objectos, entre a dimensão poética e o humor. A ironia atravessa o espectáculo, e serve-se crua. Buon apetit.
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TEXTO PEDRO MANUEL
Romeu e Julieta dos nossos dias, em pizarias concorrentes Valdas Vasiliauskas Crítica publicada no jornal Lietuvos Rytas, em 4 de Novembro de 2003 A mais inesperada descoberta de Oskaras Korsunovas foi a inovadora revelação do drama de Romeu e Julieta. Ódio e temperamento agressivo acumulam-se, antes de mais, dentro da família e entre amigos – os inimigos não são mais do que pretextos para o irromper de intolerância e fúria. Se não existem inimigos, há que os encontrar. Mercucio discute com Benvolio, Teobaldo com Capuleto e este com Julieta. Então, todos estão preparados para o ódio: procuram o inimigo como a uma droga. E também no sentido contrário: para o amor, a Ama preparou Julieta e o Frei Lourenço preparou Romeu. Agredido o amor com o seu ódio, o mundo não tem futuro: no final a farinha da morte espalha-se não apenas sobre Romeu e Julieta, mas sobre todos os cidadãos de Verona. Só um jovem artista poderá aclamar o amor desta forma, tão elevada: fico por isso muito satisfeito que Korsunovas não envelheça. O cenário de Jurate Paulekaite é uma obra-prima da cenografia: dois armários de cozinha em alumínio, munidos de caçarolas, púcaros, conchas e colherões. No século XX achava-se um experimentalismo insolente do teatro moderno representar Shakespeare em figurinos contemporâneos. Mais tarde, soube-se que essa modernidade era praticada pelo próprio Shakespeare: os actores do Globe Theatre interpretavam as personagens do grande bardo em roupagens suas contemporâneas. (...)
deirão cheio de farinha tornar-se-á lugar de morte, de matrimónio e de iniciação sexual. Como sempre nas produções de Korsunovas há cenas espantosamente poderosas. Por exemplo, a cena em que a Ama veste a Julieta o vestido de casamento enquanto esta dorme profundamente e, logo em seguida, dispõe os seus braços sobre o peito: o leito nupcial tornase em leito de morte. Surpreendente é também a cena final, em que Frei Lourenço, depois da morte dos protagonistas, tenta desesperadamente abrir o tampo do caixão num mausoléu familiar. Romeu e Julieta, cobertos de farinha, giram dentro do caldeirão no palco vanguardista. Que belo carrossel! O tampo do caixão descai. As personagens de repente dão de si. A morte parece ser mais forte que a vida.
A excelente história de amor, coberta de farinha Rita Bociulyte Crítica publicada no jornal Klaipeda, a 5 de Novembro de 2003
MORTE DE ROMEU E JULIETA Banda-sonora dos Cindy Kat edição Armazém 42, 2005
A estética do espectáculo assemelha-se à dos filmes de Vittorio de Sica. Como estes, está repleta do espírito italiano do neo-realismo. As guerras de massa e de farinha, o humor hesitante a roçar a obscenidade, as relações sociais, os figurinos dos anos 50 criados pela artista Jolanta Rimkute – tudo nos remete para o neo-realismo e classicismo do cinema italiano. A música composta por Antanas Jasenka enfatiza a estrutura da acção do espectáculo e as alusões ao passado e ao presente: eleva graciosamente o estrato romântico da história e faz do cenário uma banda-sonora, de uma forma, mais uma vez, típica da arte cinematográfica. (...)
É um álbum intenso, de música e palavras intensamente inflamadas, retomando a encenação de António Pires e a banda-sonora dos Cindy Kat do espectáculo apresentado em Janeiro de 2005, no Teatro do Bairro Alto. Não se trata apenas da música destes – o grupo que junta os “veteranos” Paulo Abelho e Pedro Oliveira (Sétima Legião) e João Eleutério (Comboio Fantasma) e se estreou nas edições discográficas em 2006, com Admirável Mundo Novo. Porque, longe de ser um musical, o espectáculo – protagonizado por Nuno Lopes, Carla Salgueiro e Margarida Vila Nova – integrava as canções e ambientes musicais dos Cindy Kat de forma envolvente, acentuando a tensão emocional com rigor, inventividade e sofisticação. A encenação revelava um dinamismo coreográfico para o qual a música terá contribuído. Assim, não será de espantar que também as frases e as réplicas, dirigidas por Pires em estúdio, se deixem ouvir nestas 17 faixas, explicitando o contexto e o desenvolvimento da trama, numa paleta vocal completada pelos convidados especiais JP Simões e Mitó Mendes. É já longo o percurso de colaboração dos músicos dos Cindy Kat em espectáculos teatrais e a maturidade desta banda-sonora atesta essa experiência.
Inclinação sexual Marina Davydova Crítica publicada no jornal Izvestia, a 6 de Novembro de 2003 A acção ocorre numa cozinha. Para ser mais exacta, na cozinha de uma pizaria, dado estarmos em Itália. Duas equipas, não famílias, mas efectivamente equipas, competem com inventividade e jovialidade. (...) A presença da massa das pizas – moldável, facilmente manuseada, obediente e pegajosa – torna-se na metáfora principal desta produção. O outro elemento metafórico dominante é a farinha. Representa talco, a máscara branca da morte, o veneno para Romeu e um soporífero miraculoso para Julieta. Lourenço será visto a espalhar farinha acima da cabeça como se de cinzas se tratasse. E o cal-
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
Há mais de uma década que as companhias de dança de reportório se tornaram estruturas curiosas. À luz de um presente que se foi formatando em práticas mais ágeis (mais sumárias, mais simples, mais versáteis e mais preparadas para um mercado de múltiplas formas de apresentação), as companhias de reportório têm modos de funcionamento que vão deixando transparecer o seu anacronismo em relação a uma velocidade que o mundo adquiriu recentemente, mas com grande rapidez. Têm um papel de reposição histórica na medida em que eram estas companhias que faziam, à sua maneira, a história ao vivo de um certo “mainstream” de dança à medida que encomendavam novas peças para incluir no reportório, que exibia ao mesmo tempo das montagens de sucessos criados para outras companhias congéneres. No centro da sua actividade está o elenco, o conjunto dos bailarinos que são tanto mais excepcionais quanto mais forem capazes de aplicar a versatilidade da sua técnica à interpretação daquilo que define a sua linha artística: as coreografias. E um bailarino está em constante formação. É evidente que este preâmbulo evoca o Ballet Gulbenkian cuja extinção, em Julho de 2005, fez deste país um país diferente. É também evidente que uma parte da dança que ali vimos ao longo de 40 anos não fez mais que entrar para uma lista de acontecimentos cuja importância artística o tempo se encarregou de arrumar de forma clara. “Fiz a Cantata para o Ballet Gulbenkian em 2000”, dizia Mauro Bigonzetti (Roma, 1960) numa entrevista a propósito de uma apresentação recente da companhia de que é director artístico, o Aterballeto, em Nova Iorque. A frase poderia ter sido dita a propósito de qualquer outra coisa, mas Mauro Bigonzetti tem a sua estreia em Portugal ligada à companhia que mais faria (e fazia) sentido apresentá-lo entre nós, o Ballet Gulbenkian. Mauro Bigonzetti goza dos louros de um coreógrafo que chegou à dança na geração em que muitas companhias de reportório começaram a poder transitar para a fórmula de companhia de autor. Não é exactamente o caso do Aterballeto, que dirige desde 1997, mas está lá perto: o método de trabalho de Bigonzetti é suficientemente consciente dos bailarinos com quem trabalha para que as suas criações o reflictam. Dito de outra maneira, é uma certa esquizofrenia das metodologias de trabalho que me confunde nos propósitos e maneiras de os realizar das companhias de reportório. Bigonzetti coreografa para o Aterballeto com a consciência da especificidade da qualidade de movimento dos bailarinos da sua companhia, que conhece bem, e acha entretanto normal coreografar para uma série de outras companhias de reportório, com os tempos curtíssimos de que dispõem os criadores nessas condições. Bigonzetti não é o único, claro que não. E também não é o único a não alcançar resultados tão interessantes como seria de desejar. O Ballet Gulbenkian deixou de existir, mas o circuito internacional das companhias de reportório ainda não. Por isso, e porque só nos restava uma companhia de dança que pudesse apresentar reportório contemporâneo internacional, a Companhia Nacional de Bailado acabou de incluir Bigonzetti no programa de Primavera (Teatro Camões, Março e Abril 2007), programando a peça Passo Continuo num programa partilhado com Olga Roriz, Gagik Ismailian e... William Forsythe! A segunda instância esquizofrénica é o critério de organização dos programas constituídos por várias peças, os espectáculos que obrigam a juntar num mesmo programa seres de planetas tão distintos.
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MAURO BIGONZETTI: SHAKESPEARE A PEDIDO
Digo-o com a consciência de quem nunca encontrou verdadeiramente uma solução eficaz para exprimir a distância abissal que há entre certos criadores. Mesmo independentemente do facto de aqueles que habitam os “planetas criativos menos solares” poderem ser possuidores de técnicas e maneiras de fazer muito para lá de competentes e até mesmo invejáveis (e também copiáveis). Não é uma questão de ordem de grandeza de estrelato: é que há criadores que são capazes de instaurar novos modos de ver, cujas criações exigem revoluções. Como tal exigem um novo vocabulário para falar sobre a nova técnica que tanto exige de novo nos bailarinos que a interpretam e que tanto mais é capaz de trazer ao público que a descobre. E como todas as coisas fundadoras, este novo “modo de ver” altera o universo de referências de quem olha. E este é o caso de William Forsythe e não é o de Mauro Bigonzetti. Também é verdade que, apesar de ser preferível, o mundo não se resume aos Forsythes. Por isso, o Festival de Almada programou, na sua edição 2007, o Aterballeto, e Mauro Bigonzetti regressa a palcos nacionais na que poderá ser a versão mais interessante. Veremos um programa de noite inteira (a tradução mais portuguesa do full-length ballet; o primeiro que fez foi Sonho de uma noite de Verão, em 2000), baseado no Romeu e Julieta de Shakespeare, com música de Prokofiev e cenários e figurinos de Fabrizio Plessi, estreado no Teatro Valli, em Reggio Emilia Danza, em Maio de 2006. Bigonzetti exprimiu mais ou menos o mesmo sobre o processo criativo de Romeu e Julieta que sobre Sonho...: que só pôde começar a coreografar quando encontrou os bailarinos com os traços de carácter exactos para as personagens e que lhe interessou muito mais as temáticas abordadas em Romeu e Julieta do que contar a história. Como esta já é conhecida de todos, felizmente, à partida, o público fica livre para apreciar o modo como é contada esta versão. E esperamos que seja este o objectivo do Festival de Almada ao incluir este espectáculo na sua programação.
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TEXTO CRISTINA PERES JORNALISTA
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LEAR NA TRITURADORA COM APENAS DOIS ACTORES SE CONSTRÓI UMA TRAMA. CLARO QUE SÃO ACTORES CUJA VERSATILIDADE EXPRESSIVA POSSIBILITA UM ESPECTÁCULO A DUAS LÍNGUAS, EM QUE REI, BOBO, FILHAS E OUTROS INTERLOCUTORES ALTERNAM ENTRE SI, ASSINALADOS AO SOM SIBILINO DA COBRA. SÃO ANTON SKRZYPICIEL E MIGUEL BORGES NA ADAPTAÇÃO – O TEXTO FEITO “CARNE PICADA” – QUE JOÃO GARCIA MIGUEL FEZ A PARTIR DE KING LEAR, DE SHAKESPEARE. A CONDIÇÃO HUMANA SOB AS VESTES DE UM CLOWN A coerência da releitura feita por João Garcia Miguel do clássico King Lear, de William Shakespeare, está na crítica ferrenha (fornecida pelo próprio autor e aqui potencializada) à valorizada figura do Rei. Seria um bobo o rei? Seria coerente sempre, mesmo na sua incoerência? Enlouqueceu o rei? Em inglês arcaico e em alemão, Burger significa cidadão. Em Burger King Lear, trata-se efectivamente de ir ao encontro do cidadão, do homem, do pai, que também é rei. Deparamos com um trono, erguido por um amontoado de cadeiras, no topo do qual está sentado o rei, Anton Skrzypiciel, e ao lado o seu “fiel escudeiro”, suas filhas, o bobo e outras personagens, na figura de Miguel Borges. As cadeiras de metal, actuais e frias, são o cenário móvel e incrivelmente polivalente: são trono, ponte, caminho, morro, arma e defesa, divisão de territórios, entre outras soluções pensadas por Ana Luena. Os figurinos, também de Luena, são opostos na cor, com losangos como os da roupa do arlequim da comédia dell’arte: o branco contornado de preto, o preto contornado de branco, o que nos dá a indicação da íntima relação das personagens, nas relações entre rei e filha, rei e súbditos, ou na identificação que acaba em troca de papéis, bobo e rei. Além das cadeiras, existe uma coluna pintada, de material leve e também móvel, que faz vez de esconderijo ou de uma terceira pessoa. E essa transformação contínua ajuda-nos a embarcar no estado de loucura e angústia crescente experimentado pelo rei Lear, já velho, que se vê sob a necessidade da partilha do reino entre suas três filhas, sendo que a mais honesta e virtuosa acaba por não receber nada de um pai, também rei, que não suporta a sua falta de lisonjeio e a sua verdade ácida. Os actores estão maquilhados como clowns e seus figurinos beiram os de bufões, principalmente o rei, que carrega uma barriga falsa. O bufão (aqui também lembrado na figura do bobo da corte) traz-nos a crítica perversa, sem volteio, e o clown remete-nos ao ridículo sincero – arquétipos da comicidade que têm o poder de reconhecer o extraordinário e o simples, trazer à tona os podres da sociedade e arremessá-los à altura do nosso nariz, despindo a hipocrisia e revelando-a risível. Nesta encenação, a arma do humor intensifica o humano e as suas verdades, tal qual o próprio autor que privilegia os seus conflitos existenciais do homem. Os actores possuem um domínio físico criativo, capaz de nos oferecer
a multiplicidade de personagens na figura polivalente de Miguel Borges, mas também nas gradações do rei de Anton Skrzypiciel, rígido e flexível, criança e bobo, irado e louco. As intervenções musicais e sonoras acentuavam a mudança de personagens, de forma subtil e sem excesso algum. A rescrita do texto, num contexto de recriações contemporâneas dos clássicos, faz-se numa encenação ritmada, que mantém vivos e pertinentemente incómodos os questionamentos originais, humanos e por isso reais e actuais.
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TEXTO CAELI GOBBATO ACTRIZ
QUANDO ALMADA TEVE UM OFF Como qualquer festival de relevo, também Almada teve, em tempos, um Off. Mas ao contrário de Edimburgo ou Avignon, cujas secções integrariam a programação oficial, o Off-Almada não vingou. Falamos do Festival X, dirigido por João Garcia Miguel, que realizou em 1995 a primeira de seis edições e trouxe a Almada – ao agora mítico Espaço Ginjal, ao fim do pontão de Cacilhas – nomes como Angela Konrad, Alain Béhar e Geneviéve Sorin. Para o director, havia “uma carência de iniciativas que promovessem o encontro e a troca de experiências, e uma grande dose de ignorância em relação ao trabalho que cada um estava a fazer” (Netparque, 26/11/2000). O X foi a montra para artistas emergentes: em 1996 Miguel Pereira mostrou lá Sou um gajo decadente; em 1997 Lúcia Sigalho estreou a peça que daria nome à sua companhia, Sensurround. No X de 1998 nasceu o Útero, o colectivo dirigido por Miguel Moreira, com Mil 999 e o Pénis Voador. E no X de 2000 João Galante estreou o seu primeiro solo, S. Freud, o terceiro ouvido. O festival teve vários formatos, um deles em co-produção com a Visões Úteis. A partir de 2000 passou a bienal, alternando com manifestações alargadas no tempo, as OrgaX. A saída do Ginjal, em 2001, sob promessa de obras, acabou consumada no costumeiro silêncio institucional. Actualmente, João Garcia Miguel tem residência artística no Espaço do Tempo e na Casa d’Os Dias da Água, mantendo ainda em Lisboa o Espaço do Urso e dos Anjos. A “minoria feliz” deixou de intervir em Almada.
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LA ESTUPIDEZ DR
TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
LATINA AMÉRICA O TEATRO ESPANHOL E DA AMÉRICA LATINA INVADE ALMADA: EM CASTELHANO E EM CATALÃO. DE BUENOS AIRES, RAFAEL SPREGELBURD E A COMPANHIA EL PATRÓN VASQUES TRAZEM LA ESTUPIDEZ, ESPECTÁCULO TRÁGICO-CÓMICO QUE SE INSPIRA NOS ROAD-MOVIES E NO POLICIAL. DE BARCELONA, O HUMOR DOS CASCAI TEATRE ESTÁ PRESENTE EM LIVING COSTA BRAVA, ESPECTÁCULO PARA QUATRO ACTORES E UM CÃO MALÉVOLO. A COMPLETAR A PRESENÇA LATINA, UM CONTADOR DE HISTÓRIAS, NICOLÁS BUENAVENTURA VIDAL, NARRA LOS CUENTOS DEL ESPÍRITU, NUMA SESSÃO INTIMISTA CUJO SEGREDO É RESISTIR À TENTAÇÃO DE REPRESENTAR.
Inspirado em personagens que gravitam no nosso quotidiano, Living Costa Brava é um espectáculo de humor que, muito embora se sirva de tiques e rotinas para fazer o retrato polaroid, não resvala para os clichés habituais a puxar a gargalhada fácil. Três rapazes, uma rapariga e um cão, encafuados num espaço exíguo, tentam sobreviver ao seu dia a dia feito de absurdos e de situações que poderiam ser vividas por qualquer um de nós ou por alguém que até conhecemos bem. Baseado num trabalho, sobretudo gestual, que recupera a tradição do clown – um clown moderno e contemporâneo que há muito abandonou o nariz de batata vermelho e as roupas folclóricas – esta comédia pode considerar-se uma paródia de costumes em que os protagonistas facilmente se identificam com pessoas que nos rodeiam. Vizinhos, amigos, parentes ou conhecidos, gente cujas obsessões e exageros, apesar de primários, nos são familiares. Eis o anti-herói. Com os seus sonhos, com a sua necessidade de ganhar a vida, com o seu riso ou choro, com a sua vontade de reinventar o mundo. Eis a história de um animador musical que quer sobreviver como artista de rua e que gostava de dormir tranquilo, de um inventor simplório que confunde velocidade com toucinho e que empenha toda a sua energia no arranjo de uma caldeira, de um fanático do tuning que reparte a vida entre música tecno, a sua moto e uma desconcertante vontade de rir, de uma maníaco-depressiva que habita no sótão por prescrição médica e de Snoopy, o cão malévolo e idiota que nunca obedece à voz da dona. Quatro imbecis e um cão partilham este microcosmos, sítio à parte do mundo real, em que tudo pode acontecer. E acontece. Começando na capacidade de improviso dos actores, que ainda assim contracenam em harmonia, e acabando nos efeitos especiais em palco, verdadeiros e inusitados happenings em que as mãos são o mais complexo dos recursos técnicos. Originário de Girona, na Catalunha, o Cascai Teatre existe desde 1999, tendo na bagagem vários espectáculos em que a linguagem
DR
UMA COSTA BRAVA IMPROVISADA
gestual é a grande protagonista. Marcel Tomàs, director e fundador da companhia, assume o risco e dá novos usos a uma expressividade que se poderia dizer em desuso. Pondo em cena espectáculos em que o humor absurdo e o surrealismo andam de mãos dadas com o trabalho de clown, o Cascai Teatre soube “modernizar” e trazer para os dias de hoje um género teatral que muitos consideram datado, ou em vias de extinção. Iniciado em projectos como O Homem Incompleto, de 2001, ou Cascai, de 2002 – espectáculo cómico baseado em filmes mudos e desenhos animados, cujo sucesso ditou nome à companhia – o toque distintivo desta trupe de resistentes parece ter vencido, e convencido, públicos em toda a Espanha. O humor, sempre o humor, trabalhado de forma inteligente, e o gesto, no auge da sua grandiloquência. Living Costa Brava é o quinto trabalho desta companhia que, em 2004, com Le Paradis – espectáculo poético de humor gestual e máscara – deu um passo decisivo em direcção ao crescimento. Literalmente. De um só actor para quatro actores em cena. Que mais irá acontecer-lhes?
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TEXTO PATRÍCIA BRITO JORNALISTA
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OS PECADOS CAPITAIS COMO MATERIAL CÉNICO em 2003 e estreada em Berlim, na Schaubühne, numa leitura dirigida pelo autor. Correspondendo ao pecado da avareza, a acção decorre num hotel em Las Vegas, lugar emblemático da paixão pelo jogo e pelo lucro fácil, tema que a peça desdobra em várias acções simultâneas: um grupo de pessoas tenta ganhar à roleta, usando um método baseado na terrível equação matemática exposta no Livro do Apocalipse; dois criminosos devem vender um quadro roubado antes de saírem do hotel; a máfia siciliana cria uma nova estrela pop; e uns polícias, de mota, vivem uma intensa história de traições. Tudo isto se cruza num dinamismo surpreendente. O espaço cénico – representação convencional duma casa, a que se acede pelo pátio do hotel – assume uma dimensão simbólico-alegórica que multiplica os focos de acção, em consonância com a fragmentação das sequências. Todos os conflitos se organizam em torno do dinheiro, símbolo máximo da ambição materialista. O motor semântico da peça é o pecado da avareza, tornado virtude por obra e graça da sociedade de consumo. Ninguém é poupado nesta corrosiva caricatura – dos discursos científicos, artísticos e mediáticos, aos laços familiares e sociais –, que vê na expansão dos media e na multiplicação dos seus códigos e possi-
parecem reduzi-los à mais absoluta passividade. Spregelburd recupera a dimensão lúdica do teatro, a sua vocação de entretenimento, numa lógica do devir cénico, limitando-se, pois, a reproduzir o seu próprio discurso, sem recorrer a referentes externos que o confirmem. Isto não significa, no entanto, que os textos se alheiem do contexto sociopolítico. De modo oblíquo, a crítica inscreve-se na sua poética, especialmente por via do humor, da paródia e da ridicularização dos discursos institucionais, dos comportamentos estereotipados e dos papéis sociais. Inspirando-se no quadro Os Sete Pecados Mortais, do pintor holandês Hieronymus Bosch, Spregelburd cria uma heptalogia onde reinventa uma hierarquia pessoal e contemporânea de novos pecados. A Estupidez é a quarta obra desta série – começada em 2000, a convite do Deutsches Schauspielhaus, de Hamburgo –, tendo sido escrita
bilidades expressivas a impossibilidade de uma comunicação autêntica. Esta Estupidez apresenta uma dimensão auto-referencial – que remete para as convenções teatrais, bem como para a obra do próprio encenador –, onde se incluem géneros canónicos da literatura, do cinema e da televisão, como o policial, o melodrama, o drama familiar e o road-movie. Esta lúcida e perspicaz versão da estupidez, e das suas vicissitudes trágico-cómicas, sustenta-se numa excepcional e intensa experiência teatral, multiplicadora das suas potencialidades dramáticas e das leituras do espectador.
DR
Criativo e inesgotável dramaturgo, actor, encenador e tradutor, Rafael Spregelburd (Buenos Aires, 1970) destaca-se entre as tendências do teatro argentino surgidas nos anos 90, como alternativa ao modelo realista predominante. A sua maquinaria cénica assenta no actor, que não é, segundo ele, um “simples ardina” de ideias alheias, mas antes o elemento mais capacitado para desenvolver uma linguagem cénica, já que “somente [ele] conhece em profundidade o que é especificamente inerente ao momento da representação”. A poética de Spregelburd alterna o realismo das situações com uma questionadora transgressão caricatural. Dos seus textos mais conhecidos podem citar-se Cucha de Almas (1992), Dos personas diferentes dicen hace buen tiempo (1994-1998), Raspando la Cruz (1997), Canciones Alegres de Niños de la Pátria (1998) e Un Momento Argentino (2000, estreada no Royal Court House, em Londres). Em 1994, Spregelburd fundou, com a actriz Andrea Garrote, a companhia de teatro El Patrón Vázquez, cujas produções, apresentadas em festivais nacionais e estrangeiros, lhe têm valido numerosos prémios. Recusando as grandes histórias, Spregelburd produz um teatro de situações banais e individuais. A valorização que delas faz parte da criação de personagens desdramatizadas, seres instáveis que se encontram, quase sem vontade própria, frente a encruzilhadas que
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TEXTO HALIMA TAHAN E SILVINA DÍAZ CRÍTICAS
Texto publicado em colaboração com a Teatro Al Sur – Revista LatinoAmericana (Argentina).
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© THOMAS WALGRAVE
TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
A PROPÓSITO DE “ANATHEMA” A companhia belga tg Stan tem sido presença regular em Portugal desde 1997, em workshops ou espectáculos, um dos quais, Berenice, criado e apresentado na Casa dos Dias da Água, em 2005. Agora, regressam, pela terceira vez, ao Festival de Almada, depois de, em 1997, interpretarem Um Inimigo do Povo, de Ibsen, e, em 2003, Está Tudo Calmo, de Thomas Bernhard. Trazem uma criação de 2005, que este incluída na programação da temporada passada da Culturgest, mas a doença súbita da actriz Jolente De Keersmaeker adiou para este Verão a encenação do primeiro texto teatral do romancista José Luís Peixoto e que, em ano de estreia, se apresentou no Théâtre de la Bastille, em Paris, integrado no Festival d’Automne. Foi por intermédio do actor Tiago Rodrigues, com o qual a tg Stan trabalha regularmente, que Jolente De Keersmaeker descobriu José Luís Peixoto. “Li o seu primeiro romance [Nenhum Olhar] e adorei. Tem uma linguagem que mergulha fundo na raiz das coisas. A sua escrita aponta para a recorrência dos motivos, desenterra feridas, histórias dolorosas, escondidas ou dissimuladas”. O primeiro contacto aconteceu em Setembro de 2004, em Lisboa. Keersmaeker, irmã da coreógrafa Anne Teresa, propôs a Peixoto escrever um texto que ela e Tiago Rodrigues pudessem interpretar. [Na altura, Peixoto já recebera o Prémio Saramago e tinha apenas publicado dois livros (Nenhum Olhar e Morreste-me, escrito antes daquele) e algumas recolhas de poesia. O teatro estava ainda longe mas teve sequela: Peixoto já escreveu, para o Teatro Meridional, À Manhã (2006), e, para Marco Martins, Quando o Inverno Chegar (2007), ambas produção Teatro São Luiz]. “Foi a primeira vez que ele abordou a escrita dramática – diz Keersmaeker – e não queria adaptar um dos seus textos, mas dar-nos algo novo. Encontrámo-nos várias vezes depois disso durante o processo de escrita. Não era algo de habitual para ele, mas isso não o tornou menos exigente”. Não foi nas memórias de infância que o autor se inspirou, como é habitual, mas na Tchetchénia. A questão central da peça é o terrorismo visto por dentro. Até onde se pode ir para defender um ideal? Quando a causa é justa, quais os meios que podem ser usados para a servir? Como responder à violência que nos atinge? A situação do povo tchetcheno entregue, depois de 1994, às mãos do exército russo
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e abandonado pela comunidade internacional, levanta uma série de interrogações. Mas uma resposta violenta, quando se manifesta através de actos terroristas como a tomada de reféns na escola de Beslan, em Setembro de 2004, é também algo de desconcertante. “Atenção que este espectáculo não é um documentário sobre a Tchetchénia, mas sobre uma questão mais geral, a da violência e do terrorismo”, diz a actriz. Um tema quente, difícil, que motivando a companhia a investir cada vez mais em processos de escrita de autores contemporâneos.
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TEXTO HUGUES LE TANNEUR CRÍTICO Texto gentilmente cedido pelo Théâtre de la Bastille.
UM JOGO SEM PATHOS
Anathema sustenta-se num diálogo entre um homem e uma mulher, uma troca que desde o início se transforma num monólogo onde cada um fala, expondo-se, da impossibilidade de amar, apesar do desejo, a guerra. Um jogo que exclui todo o pathos, onde os corpos se aproximam, mas não se tocam, como num estranho bailado protagonizado por cegos. Podemos ficar desconcertados por o texto ser escrito de um modo tão dessacralizado. Podemos mesmo achar demasiado a presença, no chão, junto de um monte de roupas, de uma Kalashnikov e de um cinto de explosivos (que explodirá, como um petardo húmido). Pequenas hesitações dão origem a uma violência irremediavelmente contida, [sendo os monólogos] duas passagens [que] evocam o tempo – “Estou tão cansada” repete a actriz numa longa litania – deixando-o escapar num trabalho de desconstrução-construção. MARIE-JOSÉ SIRACH, L’HUMANITÉ, 21 NOVEMBRO 2005
© JORGE GONÇALVES
LAGARCE E VIEIRA MENDES EM DISCURSO DIRECTO Quando os Artistas Unidos o convidaram a estrear-se na encenação com História de Amor (Últimos Capítulos), de Jean-Luc Lagarce (JLL), José Maria Vieira Mendes não compreendeu porquê. Explica: “interessam-me outros autores, como o [Harold] Pinter e o Jon Fosse. O Lagarce tinha uma escrita muito mais poética e abstracta que a minha”. Aceite o desafio começou a leitura “enquanto dramaturgo. O primeiro que fiz foi cortar diálogos. O texto não se quer deixar perceber, tem muitas armadilhas”. Envolveu-se e percebeu que a escrita de J-LL é “mais intensa e mais reduzida” e ao invés de ser um jogo teatral, como poderia ser interpretado, “é sobre a escrita”. Coisa que, assume, é o que mais lhe interessa. “Muito mais do que questionar o teatro”. Diz ainda que “nas peças contemporâneas os autores procuram um meio para se encaixarem nas artes do espectáculo” e ele não quer ver “cinema em palco”. Para Vieira Mendes a peça é um prolongamento do seu mais recente tema: as relações entre pais e filhos, não no sentido estricto de filiação, mas ligado a uma noção ampla que, em sociedade, toma diversas formas. “Fi-lo em A minha mulher, está em O Avarento e vai até Onde Vamos Morar [a estrear, respectivamente, pelo Teatro Nacional D. Maria II (Setembro), o Teatro Praga (Julho) e os Artistas Unidos (Janeiro 2008)]”. E o olhar “antropológico, social e pessoal” é, ao momento, o que mais lhe interessa. A recente biografia do autor francês desaparecido em 1995, assinada por Jean-Pierre Thibaudat, (Le Roman de Jean-Luc Lagarce, Les Solitaires Intempestifs), contextualiza o processo de escrita da peça, estreada em 1991 numa encenação do próprio autor e já numa segunda versão. O original remonta a 1983, ano de quase todos os inícios, e certamente da mais íntima e intensa relação entre Lagarce (O Primeiro Homem), François Berreur (O Segundo Homem) e Mireille Herbstmeyer (A Mulher), a quem a peça é dedicada. Esta era uma peça especial porque o jogo de espelhos que estabelecia com a vida deste trio confundia todos. “A peça não era sobre nós”, esclarece Mireille. Mas Berreur diz que de todas “é a mais difícil de
encenar”, e disse-o a Vieira Mendes que usou “a distância” para encenar o texto que o próprio autor classificou de “erro colossal” quando começaram os ensaios. “Difícil, terrivelmente difícil”, escreveu no seu diário. Mas foi “o maior – e mais desproporcionado – sucesso crítico” que conheceu, escreveria depois. Explica o biógrafo: “para o público que tinha vindo oito anos antes [assistir à primeira versão] havia ecos evidentes. Os actores que estavam em cena preparavam-se para representar uma nova peça com os diálogos da antiga. Os espectadores ficaram perturbados”. Remetendo, nitidamente, para Jules e Jim, o filme de Truffaut, também sobre um ambíguo trio, a peça esteve para ser um filme. E um livro. Acabou em peça, “minimalista”, diz Mireille ou A Mulher que a termina dizendo que, no início, “era outra história”. Eles nunca viveram juntos, eles nunca se tocaram (mas J-LL, abertamente homossexual, vivia fascinado por François), mas ele esteve, de facto, doente de sida, que acabaria por vitimá-lo. Quando estreou a primeira versão, chamada Repérages, J-LL tinha ainda ainda adoecido, o que o mantinha a uma distância conveniente das personagens e das interpretações. Depois, em 1991, era já outra a realidade. Thibaudaut descreve as semelhanças entre um mundo e o outro: “Isso vê-se. Os dois são escritores, os dois escrevem, e dizem que estão a escrever, Histórias de Amor, os outros dois lêem aquilo que se escreve, dizem que o fazem, representam, representando, comentando. Nunca Jean-Luc esteve tão perto do espelhamento do teatro e da escrita”. “Esta é uma peça sobre o processo de escrita”, diz o encenador, que acabou por encontrar um texto que o deixou “protegido” e que por falar de emoções “recusa o realismo falso imposto pelo cinema”.
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A 12 e 13 o Instituto Franco-Português recebe encontros sobre a obra de Jean-Luc Lagarce, com a presença de Jean-Pierre Han, crítico, e François Berreur, encenador. TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA
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© EDWARD STACHINNI
TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
OS ESPAÇOS ÍNTIMOS DA CIRCOLANDO NO MOMENTO EM QUE O FESTIVAL DE ALMADA ACOLHE CAVATERRA, SEGUNDO ESPECTÁCULO DO CICLO DAS MINAS, ANDRÉ BRAGA E CLÁUDIA FIGUEIREDO DESENHAM O PERCURSO DESTA CRIAÇÃO E ENSAIAM OLHARES DIAGONAIS SOBRE O PERCURSO DA CIRCOLANDO.
Como foi o processo de pesquisa de Cavaterra? Visitámos primeiro minas esquecidas (Borralha, Argozelo, Vale das Gatas, Panasqueira, Lousal, Aljustrel, São Domingos). Depois recolhemos textos e imagens, procurando a descrição objectiva do trabalho mineiro. Coleccionámos, ainda, fragmentos de vários autores que falam da solidão, da noite, do escuro, do elogio da luz; da vertigem e do desequilíbrio; da terra, da pedra, do minério; da intimidade com a terra e de aparições vagas. O trabalho de corpo partiu duma ideia de deformação. Numa abordagem nada realista, quisemos inventar alterações físicas para homens que passam uma vida a cavar, a carregar, a subir e descer escadas, aliando-as à dança, à manipulação de objectos (ferramentas, carrelas, pedras, minérios e terra) e de formas (as marionetas ou a corda vertical). Na pesquisa musical cruzámos géneros e repertórios, chegando a uma banda sonora que passa por Arvo Pärt, John Zorn, Kevin Volans, Foday Musa Suso, Rob Burger, Emil Tabakov, e pelos cantos populares portugueses recolhidos por Giacometti. O que procuravam e o que encontraram no processo de criação? Atraiu-nos no universo das minas as suas cores, a desolação das paisagens, a ruína, o silêncio, a suspensão do tempo, a sensação intensa de fim... Associamos-lhe traços que foram os nossos motores de pesquisa: as sensações/emoções extremadas ali vividas (escuridão, solidão, exaustão, fragilidade), os homens com muito de bichos da terra. Sem procurar, encontrámos o acidente, a tragédia, a morte, a sobrevivência e a entreajuda. A par desta negrura, buscávamos também as crenças e os sonhos que a contrariassem. Nesse sentido, apesar de Charanga, o primeiro espectáculo do Ciclo das Minas, ter estreado primeiro, ambos foram pensados em conjunto. Para chegarmos ao elogio da luz, do vento, da viagem de Charanga era imprescindível enchermo-nos deste mundo negro, opressivo e fechado. Já com Quarto Interior, por exemplo, que é posterior, demo-nos conta de que usávamos muitas das coisas do Ciclo das Minas. Voltávamos a estar no reino dos espaços mínimos e interiores que desejam a imensidão, dos espaços de solidão onde estamos com as nossas memórias e devaneios. Num, inventamos o sonho, seguindo o caminho do desejo do que está ausente nas profundezas da terra; noutro,
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aceitamos o convite de Bachelard e fomos procurar sonhos de ninho. Em ambos, viemos parar às paisagens dos nossos sonhos de infância. Desde Caixa Insólita até Quarto Interior, do primeiro ao último espectáculo, o que se transformou na linguagem artística da Circolando? Mais que em transformações, pensamos em consolidações. O cruzamento de áreas artísticas, a linguagem visual, gestual e próxima da poesia, as histórias sem palavras e com múltiplas leituras possíveis, a recriação permanente dos espectáculos, a itinerância nacional e internacional estão na Circolando desde a sua origem e com vontade de permanecer. Olhando para trás, sentimos que o que talvez distinga mais profundamente os projectos seja a opção rua ou sala. Queremos mantermo-nos em ambos os contextos e, ainda naquela terra de ninguém que são os espaços não convencionais. Será mesmo este o terreno do próximo projecto, Casa-Abrigo. A Circolando é frequentemente designada por novo circo, enquanto criação multidisciplinar. Revêem-se nessa designação? Começamos por nos situar próximos do novo circo, mas, com o tempo, o domínio das técnicas circenses foi perdendo relevância. Passamos, então, a preferir falar nas formas híbridas do teatro dançado e do teatro de imagens. Queremos manter o que nos atraiu no novo circo – a vocação transdisciplinar, a linguagem visual e sensorial, a utopia do público total – e atenuar a sua essência: o domínio absoluto de técnicas específicas. Não queremos criar falsas expectativas no público e tememos que o rótulo “novo circo” anuncie proezas que depois não integram os espectáculos. Não identificamos princípios nem regras no diálogo interdisciplinar. Escolhemos uma matéria de trabalho, um tema, um universo, e depois é um constante vaivém entre o corpo, o texto, o objecto, a música... estando sempre a variar os pontos de partida.
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ENTREVISTA PEDRO MANUEL
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
TRAGÉDIAS CLÁSSICAS REVISITADAS IFIGÉNIA EM ÁULIS: PRECEITOS E PRETEXTOS
O JOVEM DRAMATURGO E ENCENADOR NORUEGUÊS FINN IUNKER APRESENTA IFIGENEIA NA 24 EDIÇÃO DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE ALMADA. PARTINDO DA TRAGÉDIA IFIGÉNIA EM ÁULIS, DE EURÍPIDES, IUNKER REGRESSA AO NÓ GÓRDIO DE UM DOS MAIS NEFASTOS EPISÓDIOS DO CICLO TROIANO PARA REPENSAR A IMPORTÂNCIA DO MITO NA IDENTIDADE CULTURAL EUROPEIA O mito de Ifigénia, ao contrário dos que primeiro surgem em Homero ou em Hesíodo, só foi largamente explorado pelos tragediógrafos, especialmente por Eurípides, que lhe dedicou Ifigénia entre os Tauros e Ifigénia em Áulis. Partindo da Ifigénia em Áulis, assim o fez também Finn Iunker (n. Arendal, 1969), em Ifigeneia, onde dirige o grupo Verk Production, uma das mais entusiasmantes jovens companhias do teatro norueguês. O autor, mais representado fora do que no seu país, recebeu em 2004 o prémio de melhor autor dramático norueguês, e, em 2006, o Prémio Ibsen. Em Portugal Finn Iunker estreou-se, em 1999, com O Atendedor de Chamadas, numa encenação de António Simão apresentada na Culturgest; depois, em 2004, no CCB, viu-se a peça infantil Peça Alter Nativa, também dirigida por Simão, numa produção do Teatro de Inverno; sendo, por fim, um dos autores trabalhados na Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices, criação de Jorge Silva Melo (Teatro Nacional D. Maria II, 2005). Ifigeneia data de 1996, mas a primeira encenação só aconteceu em 2003, pela companhia flamenga SkaGeN, a par de Dealing with Helena, também desse ano. O autor propõe uma crítica à insanidade e irracionalidade da guerra, lidando “com pessoas aparentemente calmas e afáveis que, num momento de crise, são expostas na sua superficialidade e cobardia”, explica Therese Bjørneboe, num texto sobre a cena norueguesa, publicado no sítio dos Artistas Unidos. Mediante a reconstituição dos acontecimentos em Áulis, um grupo de palhaços ridiculariza, numa atmosfera evidentemente satírica, os grandes heróis da literatura, questionando episódios que estiveram na
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fundação da cultura europeia: rapto de mulheres, assassínio de crianças e negócios indecorosos. A conclusão é perturbante: pouco ou nada há a fazer, dependendo a guerra da motivação que lhe outorgamos. Isso mesmo apontou Jon Refsdal Moe, na crítica que publicou no jornal Morgenbladtet, aquando da estreia flamenga: “Muito estará em jogo quando um norueguês politicamente incorrecto decide entrar no património mundial dramatúrgico com uma questão: o que acontece quando se perde o motivo de uma guerra? Rapidamente chegamos a uma terrível conclusão: provavelmente não interessa. A guerra segue a sua lógica própria independentemente do motivo que lhe quisermos dar”. Ifigeneia é apenas uma das leituras que Finn Iunker fez das tragédias gregas, estabelecendo, ainda segundo Bjørneboe, um “diálogo com diferentes modelos dramáticos, com dramaturgos clássicos e as correspondentes visões do mundo”. A investigadora esclarece que “a escolha do material é bastante fora do comum para um dramaturgo norueguês. As tragédias gregas são apresentadas na Noruega com uma frequência irregular, para não dizer rara. Juntando a isso a enorme influência de Ibsen na escrita, e olhando para o teatro norueguês como um todo, não é possível falar de uma continuidade de uma ‘negociação com os gregos’, nem sequer de um diálogo. Este “território amplamente negligenciado” é um aspecto que surpreende Bjørneboe, “dado o volume restrito de peças que são produzidas na Noruega”. Apesar do tempo que mediou entre a escrita da peça e a sua apresentação na Noruega, fazendo diminuir a sua actualidade política, Ifigeneia – continua a especialista – “segue a história tal como é, mas Iunker faz alguns pequenos e significativos acrescentos. Por exemplo, quando Agamémnon faz alusão ao topos moderno da ‘escrita para o silêncio’, como um crítico alemão notou. Enquanto que, em Eurípides, a intenção de Agamémnon de escrever uma carta é tida como o seu desejo de evitar que a sua mulher e a sua filha Ifigénia cheguem a Áulis. Que falha, dado que a carta não alcança o seu objectivo. Mas podemos dizer que a ironia das adaptações de Iunker tem origem na ambiguidade do próprio texto de Eurípides. Aí, as personagens masculinas são representadas de uma forma a que se tem chamado o trabalho mais demolidor com os heróis gregos até ao Troilus and
Cressida, de Shakespeare. Tal como no tratamento das personagens, Iunker joga com a linguagem, numa aproximação aos filmes americanos. Contrapondo deste modo ao laconismo moderno ao euripidiano, Iunker parece querer amplificar a queixa de Agamémnon: Oh deuses, que confusão!”
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TEXTO LUÍS RODRIGUES E TIAGO BARTOLOMEU COSTA
DA ORIGEM DO MITO Com as Bacantes e o Alcméon em Corinto, Ifigénia em Áulis integrava uma trilogia levada postumamente à cena na Primavera de 405 a. C., pelo filho de Eurípides, nas Grandes Dionísias de Atenas. Apesar das incongruências e anacronismos estilísticos, o texto é muito belo. É verdade que, a meu ver, os coros pouco se relacionam com a acção; que o apelo de Clitemnestra peca por formal; ou que Aquiles se revela moralista. Momentos há, porém, que adquirem contornos de grande mestria: a hesitação de Agamémnon entre os deveres políticos e os apelos do amor paterno; a confusão com que recebe as saudações da filha, que ele próprio está a ludibriar; o embaraço de Clitemnestra e de Aquiles perante o capcioso pretexto do casamento.
pois a deusa detivera os ventos. A fim de vencer esta barreira e aplacar a ira da deusa, o adivinho Calcas revela que Ifigénia, filha mais velha de Agamémnon, deveria ser sacrificada. Este recusa mas, por pressão de Menelau e Ulisses, acaba por ceder e pede a Clitemnestra, sua mulher, para mandar vir a filha de Micenas, sob o pretexto de a casar com Aquiles. Depois de chegar a Áulis, Clitemnestra encontra-se com Aquiles e ambos descobrem que não virão a ser genro e sogra. Apercebendo-se do engodo, Aquiles promete ajudar Ifigénia, a pedido de Clitemnestra. Mãe e filha confrontam Agamémnon com o seu estratagema e tentam em vão impedir a morte da jovem, pois ambição e a conveniência política ultrapassaram o amor paterno. Todavia, em súbita reviravolta – assinalada por Aristóteles como “paradigma de carácter incoerente” (Poética, 1454a) – Ifigénia decide sacrificar-se voluntariamente, transpondo a barreira social que impedia as mulheres gregas de escolher, e fazendo jus à etimologia do seu nome de mulher de “raça forte”. Na verdade, Ifigénia não foi imolada. Na parte final do texto, um mensageiro relata a Clitemnestra que Ártemis, no derradeiro momento, se apiedou da jovem, substituindo-a por uma corça, e levou-a para a Táurida, na Crimeia, onde a tornou sua sacerdotisa. Permanecesse ou não em Micenas, teria Ifigénia evitado o preceito do sacrifício e, assim, a Guerra de Tróia? Provavelmente não. Em Áulis, os gregos tiveram muitos motivos para voltar. Nada os demoveu, tamanha era a vontade e ambição de pilhar e devastar a cidade de Tróia. O rapto de Helena e o sacrifício de Ifigénia mais não foram do que simples pretextos políticos. Seja como for, resta-nos Sophia de Mello Breyner Andersen: “Ifigénia levada em sacrifício,/ Entre os agudos gritos dos que a choram,/ Serenamente caminha com a luz,/ E o seu rosto voltado para o vento,/ Como vitória na proa de um navio,/ Intacto destrói todo o desastre” (Coral II, 1950).
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TEXTO LUÍS RODRIGUES
MORTE ÀS PORTAS DA CIDADE
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O actor e encenador Diogo Dória está de regresso ao Festival de Almada, dirigindo Sete contra Tebas (467 a.C.), de Ésquilo. O espectáculo, que se apresentará na Culturgest, utilizará a versão portuguesa de Manuel Resende, terá cenografia de Elsa Bruxelas e figurinos de Paulo Mosqueteiros. Nesta tragédia paira ainda a sombra do desditoso Édipo, que, desterrado por um destino irónico e cruel que o levou a matar o pai e a desposar a mãe, não encontra amparo nos filhos Polinices e Etéocles. Maldi-los, então, três vezes: que jamais viveriam em paz, que cada um deles mataria o outro e que combateriam pela herança que lhes legava (a cidade de Tebas). Diogo Dória propõe-se tornar nossa contemporânea uma peça que parece ter sido remetida para a leitura silenciosa, onde só se pode apreciar a “poesia do texto” (nos últimos anos, não se assistiu em Portugal a qualquer produção desta guerra fratricida, que é essencialmente um delicado e pungente estudo do ódio e dor humanos, sobre os quais triunfa a implacável vontade dos deuses).
A tragédia inicia-se com Agamémnon rememorando os antecedentes da Guerra de Tróia e o castigo de Ártemis, por ele haver morto um cervo sagrado e alardear ser o melhor caçador. A punição recaíra sobre toda a frota aqueia que, a caminho de Tróia, parara de repente,
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
NO CEREJAL, 18 ANOS DEPOIS explica Jorge Pinto. “Tchékhov esteve sempre muito ligado a uma certa indolência, a uma certa forma de deixar passar o tempo. O que fizemos desta vez com o Rogério foi procurar o que está ali em confronto”, acrescenta Emília Silvestre. Houve mesmo muita coisa a mudar desde 1989, mas houve ainda mais coisas a mudar, para nunca mais ficarem na mesma, desde 1904, ano em que Tchékhov escreveu O Cerejal: “A nossa vantagem sobre Tchékhov é que nós sabemos o que se passou com aquelas personagens depois. Tchékhov viu o capitalista a substituir o nobre e nós sabemos que esse capitalista faliu e foi engolido por uma revolução. Mas a vantagem de Tchékhov é que ele não diz se ficamos a perder ou a ganhar, limita-se a observar um mundo em vias de extinção, a dizer que há um mundo russo a desaparecer. Nós também assistimos ao desapareci-
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Nunca se deve voltar a um lugar onde se foi feliz, mas eles foram felizes em 1989, no cerejal de Tchékhov, e são felizes agora – no mesmo sítio, com as mesmas pessoas, 18 anos depois. Eles são dois actores (Emília Silvestre e Jorge Pinto, o núcleo duro do Ensemble – Sociedade de Actores) e um encenador, Rogério de Carvalho, e nenhum outro trabalho diz tanto acerca do que eles são e do que fazem aqui como este O Cerejal, que se estreou há dias no Porto, incluído no programa do 30º FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, e que chega agora a Almada. É disso que Jorge Pinto quer falar à OBSCENA: do que não mudou, e não do que mudou, nestes últimos 18 anos (Tchékhov também o grande dramaturgo disso, das coisas que mudam para que tudo fique na mesma). “Há maneiras de regressar. Uma maneira é ‘Ah, vamos juntar as pessoas que estiveram na tropa’. Outra é juntar pessoas que seguiram um percurso comum, que não se limitaram a estar no mesmo sítio à mesma hora. O nosso primeiro Tchékhov, O Jardim das Cerejeiras, é uma memória num percurso que continua a ter muito a ver com o que éramos nessa altura. Quando fizemos essa peça, estava a acabar aquele modelo das companhias fixas, sujeitas a uma direcção artística externa, e as coisas começavam a passar pela iniciativa dos actores. E o Rogério foi muito importante na formação desse novo actor para os anos 90”. Os Ensemble continuam aí – como toda a geração de actores que veio a seguir. Rogério de Carvalho também. Fizeram coisas diferentes juntos (dois Koltès) e coisas parecidas separados (Rogério de Carvalho “fez mais cerejais, mais tios vânias” com outros actores, os Ensemble fizeram um Tio Vânia com outro encenador, Nuno Carinhas), e por isso regressar ao início, ao sítio onde tudo começou, tem um significado particular. “A ideia foi do Rogério. Convidámo-lo para vir fazer um espectáculo ao Ensemble e um dia ele ligou a dizer que já sabia o que íamos fazer juntos: queria refazer O Cerejal connosco. Aceitámos na hora. Um trabalho a partir de um autor genial como Tchékhov exige muito dos actores – e essa disponibilidade, essa entrega, foi muito do que aprendemos com o Rogério nesses idos de 89. Temos uma memória muito querida desse O Jardim das Cerejeiras”, diz Emília Silvestre. Muita coisa ficou na mesma, mas também houve muita coisa a mudar: “O nosso primeiro Tchékhov era muito romântico, muito nostálgico – o que tinha a ver com a maneira de fazer Tchékhov nessa altura. Continua a haver nostalgia em Tchékhov, mas a maneira de a fazer é que não pode ser nostálgica”,
mento de muita coisa nestes últimos 50 anos em que Portugal viveu um século. Habituei-me a ver essa ideia de progresso associada a destruir jardins para construir avenidas. Muitos não percebemos que o nosso mundo também estava a desaparecer”, continua Jorge Pinto. Este segundo O Cerejal é sobre isso mas é sobretudo sobre as pessoas que ficam ali enquanto tudo desaparece. “Pessoas normais, porque não há heróis ali; só pessoas pequenas, que não conseguem, que vão acabar por ficar ali. O Rogério usou muito esta imagem: aquela família é um conjunto de náufragos à deriva”, esclarece Emília Silvestre. Fazer O Cerejal mais uma vez também podia ser assim: visitar uma casa de família e a família já não estar lá. Não foi: eles continuam a sentir-se em casa.
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TEXTO INÊS NADAIS JORNALISTA
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
RABIH ABOU-KHALIL COMUNHÃO DE BENS
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escreveu João Lisboa – “uma elasticidade formal das composições que oferece aos solistas o terreno favorável para confrontar pontos de vista e ideias no decurso da improvisação, contrastar e partilhar identidades musicais e inventar uma nova geografia musical que, não procurando os efeitos de ‘exotismo’ fácil, propõe algo de consideravel-
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A tentação de pensar em exotismo, com todas as suas consequências, principalmente as más, é grande, sem dúvida, quando se observa o elenco do concerto programado, no âmbito do Festival de Almada, para o Teatro de São Luiz, nas noites de 5 e 6 de Julho (apresenta-se também no Porto, no Teatro Nacional São João, dias 13 e 14). Em palco, The Rabih Abou-Khalil Band, Ricardo Ribeiro e Tânia Oleiro interpretam canções com música do compositor e intérprete libanês Rabih Abou-Khalil e letras de Jacinto Lucas Pires inspiradas em Silva Tavares e no mundo protagonizado por Alfredo Marceneiro. A tentação de pensar exotismo – escreveu-se – é grande mas, neste caso, radica em um preconceito, pois aqui não existe nenhum cruzamento entre a Europa e o Médio Oriente nem qualquer tentação de misturar fado e música árabe. Existe, sim, um corpo de canções que, como muitas vezes antes, parte de referências reconhecíveis que Abou-Khalil transforma em obra nova. A guerra civil no Líbano, a Alemanha e o ano de 1978 são o acontecimento, o local e a data. As circunstâncias que permitiram a Rabih Abou-Khalil ser quem é: “um compositor e intérprete musicalmente poliglota e verdadeiramente multicultural” – como escreveu o crítico João Lisboa por ocasião da apresentação do músico no TNSJ em 2004. Voltemos à Alemanha e a 1978 para reparar que, nesse tempo, trocar Beirute por Munique não era propriamente sair do terceiro mundo e entrar no admirável mundo novo. A capital libanesa era então, antes da guerra civil a tornar sinónimo de conflito constante entre as forças do mal, uma cidade cosmopolita e moderna, onde um jovem estudante de oud encontrava com facilidade discos de Thelonious Monk ou de Frank Zappa, lado a lado com as obras de Oum Kalthoum e Mohamed Abdel Wahab. Por isso, não terá sido com certeza um grande choque para Rabih Abou-Khalil trocar o alaúde árabe pela flauta transversal e as melodias tradicionais pela composição clássica ocidental. Passado o tempo de aprendizagem, sem aparente confronto de civilizações ou sequer conflito interior a obstar ao desenvolvimento da criatividade, o compositor parte da linguagem tradicional da música árabe, cruza esse vocabulário com outros géneros, linguagens, tradições e experiências, criando um universo musical, bastas vezes único, que progride por mais de 30 álbuns e em uma música onde se cria – como
mente distinto das categorias convencionais”. O desalinhamento de Rabih Abou-Khalil já o levou a colaborar com (e de certo modo a alimentar-se de) músicos tão distintos entre si como são Argentina Santos, Camané, Glenn Moore, Charlie Mariano, Balanescu Quartet, Jakob Wertheim, Michael Riessler, ou a World Music Orchestra, antes ainda do encontro marcado com Lucas Pires, Ricardo Ribeiro e Tânia Oleiro – que, visto deste ângulo e na perspectiva do trabalho do compositor libanês, parece ser encarado mais como uma comunhão de bens do que como uma dessas desgraçadas colaborações “inter-civilizacionais”. Por isso não parecem estranhas – antes eventual antevisão do espírito do concerto – as palavras recolhidas por João Lisboa (Duas Colunas, Setembro 2004) quando Abou-Khalil se apresentou no TNSJ: “A expressão do fado sempre me pareceu muito próxima da expressão na música árabe. Não estou, evidentemente, a falar de um ponto de vista estritamente musical, isso é outra questão. (...) Ouço um fado e, mesmo sem compreender o idioma, consigo acreditar no cantor. (...) Como o vejo, é uma forma de expressão. E é isso que me parece ser traduzível para a minha música”.
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© TNSC
UM CANCIONEIRO POR CUMPRIR demonstrando uma enorme qualidade musical. O Graça está lá de corpo e alma, e nesse sentido não são populares, o que não quer dizer que não tenham sido instrumento de luta; cantavam-se na prisão antes do 25 de Abril, os grupos corais mais empenhados politicamente pegaram nas Canções e levaram-nas a todo o país.” Fernando Lopes Graça considerava a obra trabalho de equipa, e aspirava a que outros compositores também dessem o seu contributo, coisa que nunca aconteceu. O próprio Graça dizia: “este trabalho de equipa é muito difícil de alcançar entre nós, povo de líricos introvertidos e de retorcidos sentimentalistas”. O trabalho de equipa aconteceu mas com grandes poetas de então, como Joaquim Namorado, José Gomes Ferreira, Silva Santos, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira e o próprio Cochofel. As Canções Heróicas não entraram no cancioneiro popular, que se foi esbatendo, e foi mesmo perdendo o sentido, numa sociedade cada vez mais uniformizada, cada vez mais longínqua da ruralidade do Portugal provinciano, salazarista e tacanho que Graça conheceu e recusou. Não seria também este Portugal triste e com medo de existir de hoje que Graça sonhava nas suas canções “Acordai” e “Jornada”,
© TNSC
O Festival de Almada repõe a curiosíssima leitura das Canções Heróicas, de Fernando Lopes Graça, que fizeram Duarte Guimarães, Luís Miguel Cintra, Luísa Cruz e Mário Redondo, acompanhados ao piano por João Paulo Santos, no Salão Nobre do Teatro Nacional de São Carlos, em 30 de Outubro de 2006 (evento integrado no ciclo Ao Fio dos Anos e das Horas, comemorativo do centenário do nascimento do compositor). As Canções Heróicas de Lopes Graça levaram-me à conversa com o maestro José Luís Borges Coelho, director do mítico Coral de Letras do Porto, amigo de Lopes Graça e músico que estreou à frente do Coro da Faculdade portuense inúmeras obras do mestre. Borges Coelho fala com entusiasmo da génese destas obras, em 1945, cuja ideia surgiu como uma revelação ao compositor enquanto passava férias na Casa do Pinhal, propriedade do poeta João José Cochofel, no Senhor da Serra, perto da Figueira da Foz. Eram “marchas, danças e canções” que seriam “próprias para grupos vocais ou instrumentais populares”, afirma. Destinavam-se a uma “apropriação pelo povo, como se do povo emanassem”, eram obras para serem “libertadas”, poderiam ser arranjadas, alteradas, adulteradas. Graça encoraja o destinatário, o povo, a usar como suas estas músicas e a fazer delas o que quiser. O compositor, no prefácio, cita-nos a Grécia, Roma, os alvores do Cristianismo, Lutero, a Revolução Francesa e todas as grandes marchas da humanidade que foram sempre acompanhadas de músicas que marcaram os momentos da História. A primeira parte das Canções Heróicas data de 1946, numa edição da Seara Nova, a segunda parte da colecção data de 1960, “pelos cinquenta anos da república”, esta última numa edição de autor, cujos direitos revertiam para a escola oficina nº 1 de Lisboa e o Asilo S. João do Porto. Ambas as edições foram apreendidas pela PIDE, como nos recorda Borges Coelho, embora, felizmente, muitos exemplares escapassem ao crivo da polícia política, chegando, assim, aos destinatários. Toda a produção das Canções Heróicas é fortemente condicionada pela luta política e social. Lopes Graça, comunista assumido, faz destas canções uma forma de “despertar o povo”, uma afirmação de liberdade. Será por isso um conjunto menos perfeito, ou musicalmente inferior? Borges Coelho nega veementemente: “as Canções Heróicas são o mais puro Graça, uma linha melódica perfeita, que o compositor por vezes reprime ou interrompe em composições mais eruditas. O acompanhamento de piano, por exemplo, é requintado e elaborado,
ou na lírica “Mãe Pobre”, cantada na Grécia foi como se de um anónimo tema popular se tratasse. Fica o sonho do grande músico que foi Lopes Graça, delírio onírico feito sem perder o Homem de vista, agora reencarnado nas palavras, notas e silêncios deste singular agrupamento.
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TEXTO HENRIQUE SILVEIRA CRÍTICO
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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA
OLHARES CÉNICOS DE COSTA PINHEIRO
DESDE 22 DE JUNHO – DATA DA DIVULGAÇÃO PÚBLICA DA PROGRAMAÇÃO DA 24ª EDIÇÃO DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE ALMADA – E ATÉ 2 DE SETEMBRO, A CASA DA CERCA / CENTRO DE ARTE CONTEMPORÂNEA ACOLHE A EXPOSIÇÃO “ASPECTOS DE UMA RETROSPECTIVA. OBRA GRÁFICA 1953-2007”, DE ANTÓNIO COSTA PINHEIRO. O AUTOR DO CARTAZ DO FESTIVAL DESTE ANO NASCEU EM MOURA, EM 1932, SENDO SOBEJAMENTE CONHECIDO PELAS SÉRIES DEDICADAS AOS REIS DE PORTUGAL (1964/66) OU A FERNANDO PESSOA (1974/81). DESTA MOSTRA, QUE A OBSCENA ANTECIPA EM EXCLUSIVO, CONSTAM 60 TRABALHOS, ENTRE GRAVURAS, SERIGRAFIAS, POSTERS E CARTAZES, ABRANGENDO UM PERÍODO QUE VAI DE 1953 AOS NOSSOS DIAS. 70
Sem Título, 1958 Gravura (Água-forte e ponta seca) 53,5 x 38 cm
Paisagem, 1965 Gravura (Água-forte e ponta seca) 54 x 36 cm Do calendário editado por Bruckmann Verlag, Munique
Colombe de la Paix, 1968 Serigrafia 62 x 87 cm
Fernando Pessoa Não-Ele-Mesmo, 1974 Serigrafia 92 x 72 cm
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PONTO CRÍTICO Eugénia Vasques
FEITAS AS CONTAS
2. Vamos, enfim, procurar outra “crítica de teatro”. Claro que não descobri “outra crítica de teatro”, que não mudei coisa nenhuma e que, até certo ponto, desisti de algumas convicções e de alguns exercícios de “braço de ferro” contra bonzos velhos e bonzos novos. Todavia, houve, neste afastamento da crítica jornalística, um ganho surpreendente. E este ganho traduziu-se, inesperadamente, numa conquista, interior, de liberdade. Liberdade de locus (ou de status) – assim como uma
espécie de Nirvana para onde vão (represso o limbo do nosso imaginário colectivo) todos os críticos, vivos, que escreveram o suficiente para dar algumas dores de cabeça a gregos e a troianos (assim como o Carlos Porto, agora, também ele nesse Nirvana, decorridos 50 anos de zurzimentos e abraços solidários) –, liberdade de voz, liberdade de acção, liberdade de pertença. E liberdade de escolha e de silêncio. 3. Tal como deixava perceber nalgumas des-
modos como acedemos à arte, que as questões políticas se colocam. Daí que o autor alemão defenda, muito geracionalmente, que a política do e no teatro radica numa política da percepção! Onde e como colocar, então, o crítico de teatro neste tempo de arte totalmente mediada e massificada? 4. Fazendo raccord, parcial embora, com Kalina Stefanova no seu texto sobre a crítica teatral (“Pode a Crítica Teatral Ser ‘Pós-
OS JUSTOS, ENCENAÇÃO DE JORGE ANDRADE, MALA VOADORA, 2005, DR
1. Corria o ano de 2000 e eu, com a arrogância compreensível de quem acaba de sair vitoriosa de mais um repto da vida, acreditava ainda que a “crítica de teatro” era uma actividade de salvação. Num texto que inaugurava um locus, invejado, de colunista na página do teatro do Expresso (“Lugar Cativo”), e que intitulei, pomposamente, “E a Crítica de Teatro?”, bradava eu, entusiasmada, contra o fim da crítica com função social e propunha-me, nem mais nem menos, lutando contra o estado das coisas, proceder a uma caracterização global do exercício, mais ou menos jornalístico, da crítica que, a partir de 1995, teria passado “a prescindir, quase toda, da análise e investigação dos problemas que atravessam – e até configuram – o actual campo teatral”. E, não contente com a promessa de diagnóstico, anunciava uma profilaxia: “Pois bem. É justamente para criar um caminho paralelo ao da análise estetizante, falsamente neutra ou descomprometida, [para criar alternativa] ao do rol de informações sobre espectáculos [eu queria era referir-me ao tipo de crítica “descritiva” que me é particularmente irritante, ainda que corrente em culturas como a anglo-saxónica], ao da crónica anódina ou ‘irreverente’, que surge este ‘Lugar Cativo’”. E terminava, cheia de fé missionária: “Aqui se procurará, com a regularidade que o acesso a fontes ou a agentes permitir, discutir criaturas e criadores, programações e programadores, documentos, números, espectáculos e instituições. / Procuraremos ampliar as categorias identificadas, em estudos recentes, sobre as vozes críticas no seu “diálogo” com a criação (…), ainda quando em contracorrente ou ao invés de interesses estabelecidos. Vamos, enfim, procurar outra ‘crítica de teatro’.”
sas crónicas do “Lugar Cativo”, havia dois pontos de vista que recorrentemente utilizava para ler os acontecimentos teatrais: o enquadramento e o debate de política cultural ou a reflexão estética e histórica que esses acontecimentos ou intervenientes me suscitavam. Sem manifestos nem desígnios programáticos é nesse terreno que me coloco a mim e a este novo espaço de crónica da revista OBSCENA. Aliás, nada de original nesta determinação: Hans-Thies Lehmann, o “papa” do “teatro post-dramático” do final dos anos 1990 (que os jovens e menos jovens artistas de teatro “descobrem”, neste momento, entre nós), é meu parceiro mais antigo nesta batalha. Diz ele, no seu muito citado Postdramatishes Theater de 1999, mais ou menos isto: não são os temas que veiculam, no teatro, as questões políticas; é na percepção, nos
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Dramática’”), patente no número 1 desta revista, também eu acredito que, se se conseguir escrever crítica sobre as formas do teatro actual com uma atitude de frontal honestidade e num tipo de prosa sem pedantismo (o que não é sinónimo de ligeireza) – almeje essa prosa, ou não, o cume extraordinário de “arte” –, poderá, quem sabe, a voz dos críticos ser, continuar a ser, indispensável para o Teatro. Porque essa voz de mediação continua a ser a testemunha incómoda onde, a um tempo, se fixa um momento irrepetível de fruição (do crítico) e se garante, ainda que dolorosamente, a procura do ponto crítico que faz avançar o engenho (do/a artista).
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DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS
De Janeiro até fim de Maio o Auditório de Serralves, programado por Cristina Grande (dança e performance) e Pedro Rocha (música), apresentou um conjunto de espectáculos que, à margem da exposição Anos 80: uma topologia, quis voltar a olhar para alguns nomes fundamentais dessa década. A grande mais valia desta programação especial, que nunca quis ser genérica mas apenas indicativa, foi ter proporcionado, tanto aos criadores como ao público, um espaço de reflexão mais alargado do que aquele que resulta da apresentação de um espectáculo. Porque as peças pediam um outro trabalho de contextualização, que deveria afastar qualquer onda revisionista, praticamente todos os espectáculos faziam parte de um programa mais vasto onde era dado a conhecer o seu autor, o seu universo e, em particular, o modo como determinada peça marcou o caminho que viria a percorrer anos mais tarde. Este programa – e esta ideia de programação – inteligente e raro, meticulosamente desenhado pelos dois programadores, soube combinar os vários anos 80, de Nova Iorque a França, da Alemanha a Londres, dando a conhecer numa paleta muito breve, mas essencial, esse tempo vital para as várias rupturas de então, e seguintes. Não descurando a relevância, entre outros, do total de cinco concertos, de nomes como o do trio nova-iorquino Borbetomagus (15 de Março), o inglês Mark Stewart (14 de Abril), ou os alemães FM Einheit & Caspar Brötzmann (21 de Abril), no que respeita ao campo das artes performativas houve a oportunidade de assistir a remontagens, algumas exclusivas. Foi o caso de Blauvelt Mountain (A Fiction), de Bill T. Jones e Arnie Zane (2 de Maio), ou o resultado de processos de pesquisa feito pela francesa Compagnie Louma/Alain Michard (28 de Abril) que em Retransmissions, trabalhado em residência em Serralves, exploraram o legado do coreógrafo Dominique Bagouet. Houve ainda oportunidade para ver essa extraordinária conferênciaperformance do alemão Raimund Hogue, justamente intitulada Lecture Performance (12 de Janeiro) e, no cruzamento transdisciplinar tão caro a um discurso de ruptura que tomava contornos trágicos e afirmativos nessa altura, à instalação multimédia/manifesto político Itsofomo, de David Wojnarowicz e Ben Neill (28 de Abril a 6 de Maio). A fechar o ciclo, Il tempo degli Assassini (22 de Maio), peça de juventude (e iniciática, como foram as de Jones/Zane e Hogue) do encenador italiano Pippo Delbono. Criada em 1986, a peça usa como título o famoso ensaio de Henry Miller sobre o poeta Arthur Rimbaud, pungente retrato publicado em 1962, em plena guerra do Vietname e, por isso mesmo, menos sobre o poeta francês e mais sobre toda uma concepção de artista e de arte de resistência, de audácia e de revolta. Porque, tal como escreveu o autor norte-americano no prefácio da obra, “à medida que a voz do poeta é sufocada, a história perde o seu significado e a promessa escatológica irrompe sobre a consciência humana como numa nova e aterradora aurora”. O que é extraordinário nesta peça para dois actores e uma crença é perceber-se como Pippo Delbono foi, de facto, uma lufada de ar fresco na paisagem cultural italiana. E que o seu lugar hoje, como seria de esperar mas ainda assim com um misto de lamento e evidência, foi
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ocupado por nomes como os da encenadora siciliana Emma Dante (a necessitar ser revista urgentemente em Portugal, já que data de 2004 a sua única apresentação, com mPalermu e La Scimia, no âmbito do Po.N.T.I’04/XIII Festival Union des Théâtres de l’Europe) ou Fausto Paravidino (de quem os Artistas Unidos apresentaram o fundamental Dois Irmãos, 2004, para além de terem publicado outras duas peças no nº 11 da sua revista). Esta peça de Delbono não é sobre coisa nenhuma, mas é sobre “nós quando éramos tão novos”, como não poderia deixar de ser numa peça de juventude. Cabe tudo neste longo plano-sequência agridoce: o boneco que não se encontra, as cartas à mãe, as tropelias e as desilusões, o peito aberto, feroz e militante que enfrenta a autoridade, a sexualidade ou a consciência de que tudo se desmoronará, contra-
© ANA LUANDINA
ÉRAMOS TÃO NOVOS
riando o poeta – que, provavelmente consciente disso abandonou cedo a poesia e foi traficar armas para África. Sendo evidente que a frescura (discursiva e física) de Delbono e Pepe Robledo, o actor argentino que o segue desde então, não é a mesma de 1986, joga-se aqui, através do texto e sua elocução, num plano algo instável, mas nem por isso saudosista ou nostálgico (o que é de relevo, considerando o percurso em direcção à irrisão demagógica que Delbono fez): a reinvenção de um passado (ou de uma aura de passado) que projecta um futuro, tanto desconhecido como experimentado, que dá a este espectáculo atemporal uma caução trágica, tal como Henry Miller previu.
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TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA
DO DESEJO DA DANÇA AO LIMITE DO MOVIMENTO
DR
O Festival da Fábrica teve origem na necessidade de preencher um espaço em aberto na cidade do Porto. Como referem os seus directores, Alberto Magno e Guilherme Garrido, o festival surgiu, em 1999, como uma tentativa de responder à fragilidade da programação de dança na cidade, e também pela vontade de trazer ao Porto criadores com um trabalho alternativo que não tinham expressão em Portugal. Outro propósito era ainda confrontar os coreógrafos locais com novas propostas, estimulando desta forma a reflexão e o debate. Ao longo destes nove anos a realidade do festival transmutou-se, perdendo o carácter pedagógico das primeiras edições, fruto da expansão no tecido artístico da cidade que, entretanto, se verificou. Contudo, esta edição do Festival da Fábrica deparou-se novamente com uma cidade descaracterizada na criação-recepção de dança (limitada apenas à programação de Serralves e do Balleteatro). Neste sentido, o festival, que este ano deu ênfase ao conceito de performance através de trabalhos assumidamente de pesquisa, de linguagens de movimento e composição coreográfica, foi vivido como uma lufada
de ar fresco. Aspecto que ficou claro na grande afluência de público, demonstrando, uma vez mais, que o há para a dança na cidade do Porto; assim como na representatividade na programação de criadores que desenvolvem o seu trabalho no Norte e que, neste momento, se deparam com dificuldades para apresentar as suas obras. Mário Afonso abriu o festival com dois trabalhos que se complementam: Framework e Fame. Explorar o signo e o código quotidiano através do uso de uma referência geracional (caso da letra da música Fame, da série televisiva homónima) e de signos universais previsíveis (a borboleta em lugar do coração) foi a proposta deste criador. Dois trabalhos essencialmente performativos em que o propósito do objecto artístico passa essencialmente pela explanação ao público da metodologia de criação adoptada.
“Sabes mamã, se não fosse a Pina Bausch nós não existíamos” diz a dada altura a coreógrafa Sónia Gomez a sua mãe (Rosa Vicente), após um dueto em que cada uma tenta dar o seu melhor a imitar Tina Turner. My Madre y Yo é um espectáculo despretensioso, surpreendentemente honesto, lúdico e que questiona os limites da exposição do criador. Um trabalho que toca as fronteiras do Clownesco, pela dilatação da ingenuidade, espontaneidade e ridículo que há em cada um de nós. Mãe e filha são em palco personagens de si mesmas e, na verdade, não há muita diferença entre elas. Ambas são, na sua essência, profundamente humanas. Em Samba do Crioulo Doido, o brasileiro Luíz de Abreu assumiu uma tomada de posição política evidente ao sublinhar a dimensão cultural de gestos específicos que encarnam valores ideológicos paradoxais. O samba, na sua vertente musical e dançada, é aqui questionado como formação de uma consciência nacional, ao ser um modo de expressão de grupos sociais, um instrumento de integração/exclusão social e um mecanismo de formação de uma memória colectiva. O coreógrafo busca uma definição para o corpo social e performativo do negro brasileiro, num olhar etno-antropológico e de intervenção social. Joclécio Azevedo prosseguiu, em Inventário, a sua pesquisa sobre a depuração do movimento numa ausência absoluta de registo emocional, construindo uma espécie de cerimónia cénica com a sua ritualidade específica, em que se invertem mecanismos tradicionais de composição coreográfica. Mais do que com emoções ou sensações, o espectador foi confrontado com figuras no espaço, ritmos e ambientes de uma forte intenção narrativa. Ausência, de Vera Santos, foi seguramente o trabalho mais poético desta edição. Partindo de um universo afectivo pessoal, a coreógrafa e intérprete criou no espectador uma respiração sensorial assente em espaços metafóricos: as casas habitadas e por habitar. Vera Santos propôs com este solo uma viagem pelo corpo dançado, feito de imagens, sensações, instantes efémeros e experiências íntimas que a coreógrafa desejou partilhar com o público, colocando assim Ausência em um importante lugar que vai rareando na criação coreográfica recente: convidar o espectador a criar com a cena um imaginário próprio. Roberto Ramos, em Continuum, apresentou uma proposta exaustiva sobre as possibilidades de composição do corpo num mesmo padrão geométrico, em que cada gesto acontece apenas do estímulo necessário para existir. Os três intérpretes (Catalina Cappeletti, Gustavo Ramos e Roberto Ramos) contaminam continuamente os seus gestos numa associação imediata entre movimento e imagem, determinando desta forma um mapa inscrito no espaço cénico por correlações tão precisas que nenhuma modificação pode inviabilizá-la. O aspecto interessante deste trabalho é a investigação do corpo em movimento como um signo por si próprio, contendo em si todas as explicações em relação ao que enuncia.
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TEXTO CLÁUDIA MARISA OLIVEIRA INVESTIGADORA
Festival da Fábrica 2007. Produção: Fábrica de Movimentos. Porto, Teatro Helena Sá e Costa & Espaço Maus Hábitos, entre 10 a 19 de Maio de 2007
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DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS
Em 1813, apenas com 21 anos, Gioachino Rossini (1792-1868) compõe L’Italiana in Algeri, ópera cómica, com libreto de Angelo Anelli. Rossini já não é um novato: A Italiana foi a sua 11ª ópera, composta – segundo o músico – em apenas 18 dias! No Teatro Nacional de S. Carlos viu-se, em Maio passado, uma produção do Festival de Aix-enProvence, encenada pelo actor e encenador italiano Tony Servillo. As co-produções com Aix têm sido um problema: apesar de largo, o palco deste festival, no antigo palácio dos arcebispos de Aix, é pouco profundo e as entradas de actores/cantores fazem-se lateralmente ou através do chão do teatro. No S. Carlos, o palco tem uma boca de cena estreita, mas é mais profundo do que o de Aix. Uma encenação que aí se desenrola no plano bidimensional terá de ser profundamente revista para funcionar em Lisboa. É um erro cortar apenas na largura e concentrar todo o plano cénico no centro. Foi o que aconteceu, reduzindo-se as três torres originais para uma, colocada à boca de cena, o que inutilizou a profundidade do palco lisboeta. Perderam-se também os simbolismos dos espaços das personagens principais: Mustafà, o Bei argelino (baixo), personagem primária, farto da mulher Elvira (soprano) e das amantes do seu serralho, o escravo italiano Lindoro (tenor), que chora a sua amada, a italiana Isabella (mezzo), que desembarca inesperadamente nas costas argelinas, acompanhada do dandy Taddeo (barítono), seu admirador importuno. A estas juntam-se os criados do Bei, Haly e Zulma, e os coros masculinos de escravos italianos e eunucos mouros. Uma única torre serviu, então, de palácio do Bei, de serralho e do barco, usado na fuga dos italianos, que se despedem dum Mustafà, tão farto da conquista frustrada da italiana que até volta para a sua mulher. Esta mudança de palcos levou a uma pobreza de marcações cénicas e a um estatismo verdadeiramente confrangedores. Sobreviveram alguns momentos mais marcantes – como o rondò de Isabella (Pensa alla Patria) ou o triângulo formado pelo Bei, Lindoro e Taddeo em torno de Isabella, excelente na sua carga teatral – numa encenação truncada e imóvel, com cantores especados a esbracejar para o público enquanto cantavam solos, cenas de conjunto e recitativos. Os figurinos resultaram de forma muito cómica. O coro masculino do S. Carlos, agora um pouco recuperado dos anos terríveis em que João Paulo Santos esteve à sua frente, apresentou-se em tronco nu. Imagine-se os risos abafados de toda a plateia e um bruaá imenso mal a luz pousou nas barrigas amplas dos pobres cantores que, mesmo cantando pobremente, não mereciam este castigo. O primeiro elenco desta produção contou com o mezzo Kate Aldrich em Isabella. Esteve magnífica: subtil na interpretação, densa nos graves e com agudos muito bem timbrados, foi um modelo de solidez e de composição do verdadeiro motor da ópera, face a personagens masculinos fracos e sem personalidade. O Mustafà de Lorenzo Regazzo foi também muito bom em termos teatrais (a vocalidade muito ligeira e rossiniana deste baixo italiano, a que apenas faltam
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agudos, foi quase perfeita). O tenor John Osborne comportou-se como um bárbaro, sem subtileza, sem distinções dinâmicas, sem postura em palco: abria a goelas para produzir sempre demasiado som. O Taddeo de Paolo Rumetz foi equilibrado e divertido. Lara Martins em Elvira mostrou-se capaz embora demasiado estrídula nos agudos. Paula Morna Dória em Zulma foi mais consistente. Cantando com musicalidade e prazer esteve Filippo Morace no papel de Haly. Donato Renzetti à frente da Sinfónica Portuguesa esteve atento aos cantores mas a orquestra foi pouco idiomática, desafinada nos violinos, demasiado pesada e pouco ágil. Dias mais tarde, no segundo elenco, esteve francamente melhor, mas na estreia é obrigatório que já esteja ao melhor nível.
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© TNSC
UMA ITALIANA ESTÁTICA NO SÃO CARLOS
TEXTO HENRIQUE SILVEIRA
A Italiana em Argel / Dramma giocoso em dois actos, de Gioachino Rossini. Direcção musical de Donato Renzetti; encenação de Toni Servillo; remontagem de uma produção do Festival Internacional d’Art Lyrique d’Aix-en-Provence. Estreou-se em Lisboa, no Teatro Nacional de São Carlos, a 2 de Maio de 2007
/ EXPOSIÇÕES
FLEURS © FISHLY & WEISS
ISTO NÃO É UMA PIPA
Serei alguma vez feliz? Onde está a minha alma? Mas sobretudo, quem é que vai pagar a minha cerveja? Estas são algumas das questões que nos podem ser atiradas à cabeça durante o percurso de Fleurs & Questions, retrospectiva do trabalho da dupla Fischli & Weiss no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris. Muito para além de filosofia de supermercado ou de objectos que preenchem as gavetas de uma casa, trata-se de recolocar todas essas pequenas coisas que devemos possuir numa vida (martelos, candeeiros, pneus, isqueiros, sapatos, ou uma escultura de alcatrão da nossa altura) numa pós-modernidade crítica do nosso imaginário, ou noutro local devidamente merecido. Ou seja, num museu, em cima de um pedestal, com uma etiqueta por baixo, e para que se pague pela imitação tudo o que um coleccionador nunca conseguiria imaginar por si. Ou seja, pura arte. E assim, tratar uma fotografia de uma paisagem de férias românticas com o devido valor que o cliché merece – uma obra-prima vinda do percurso de uma qualquer vida. E para isso, tudo é importante. Um candeeiro é um candeeiro, e por isso deve ser homenageado como tal, banal, universal e utilíssimo como ele é, como sempre imaginamos que um candeeiro seja. Ou na reprodução rudi-
mentar e imaginária dos grandes momentos da humanidade em mini-esculturas, uma panela a ferver marcando o “acontecimento importante para a descoberta da máquina a vapor”, perto do “último dinossauro”, figura ridiculamente minúscula com ar de quem sabe que vai morrer, ou “Sr. e Sra. Einstein pouco tempo depois da concepção de seu filho, o génio Albert”, assim como “Dr. Hoffman no seu primeiro trip de LSD”, tão marcante como um “pão”, um “tijolo”, as ideias opostas de “possível” e “impossível”, “interior” e “exterior”, ou ainda algumas “pipocas”. E por que a pequenez do Homem é a sua grandeza, todo o nosso medo de existir encontra-se espetado na cara do doente estendido na cadeira do dentista, ou na reprodução simbólica da “visão popular do medo” – um avião tragicamente caindo no oceano, sem salvação física. Os objectos, portanto, ao mesmo nível que as ideias e que a criação do artista, libertos de uma prateleira ou de uma tomada eléctrica, na oportunidade de serem e reagirem uns contra os outros, vivendo mas autodestruíndo-se para além da função que cada um comporta. Numa cadeia improvável, louca, burlesca, ou sem qualquer espécie de sentido ou objectivo, deixa-se tudo correr, the way things go, sempre sobre a mesma linha,
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aquela que define a própria arte – o risco. O risco de tudo correr bem ou de tudo se destruir, melhor, de se conseguir ver entre uma coisa e a outra. Como uma garrafa e uma cenoura unidas no ar por utensílios de cozinha e um pedaço de cordel, elevados à eternidade da sua condição e da sua forma de arte em fotografia, talvez momentos antes do desmembramento desse corpo, antes de se suicidarem como explosões em cadeia. Entre a sua utilidade e o seu desperdício, entre o seu valor e o seu absurdo, entre a sua estupidez e sua genialidade. E se uma garrafa dentro de um frigorífico é uma nave espacial para o destino congelado da sua comida, um conjunto de salsichas serão manequins num desfile de moda das últimas tendências culinárias, ou ainda dois carros depois de um acidente rodoviário, rodeados de peões que não são mais que beatas. É ver o humano no pimento que é um marido e no chouriço que é a mulher, ou deixar os sapatos fumarem para mostrar que também são gente. Mostrar um atelier inteiro em uso e criar uma intimidade ao visitante que pagou para tê-la, e perceber que das prateleiras de madeira aos sapatos ou fita adesiva, tudo é falso e feitinho à medida, exposição de uma exposição, em toda a sua verdade e corrupção. São os opostos que dominam o percurso da instalação, o “visível” e o “invisível”, o “verdadeiro” e o “falso”, como um rato gigante e um urso em discussão sobre a arte, ou uma rádio de marquise em pleno caminho, emitindo êxitos dos anos 90 no off. E do que nos é proposto, incluiremos as nossas dúvidas ao lado das acima mencionadas. Uma estratégia para a melancolia, uma inteligência artificial, a figuração de um tempo à nossa disposição, ou simplesmente “uma tarde tranquila”? Tanto se sai mentalmente em pânico como numa lentidão pacata, perturbados nos sentidos ou sentidamente perturbados (com que sentido?). Entre uma e a outra estará um gatinho à saída bebendo leite de um prato – e o que seria do gato sem o prato?
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TEXTO FRANCISCO VALENTE CONSULTOR A exposição esteve patente entre 22 de Fevereiro e 13 de Maio no Palais de Tokyo/ Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris
DIAS DO JUÍZO / LIVROS
I AM HERE, JOÃO FIADEIRO (2003) © PATRÍCIA CALDEIRA/ RE.AL
TEMAS E VOZES DA LITERATURA E OUTRAS ARTES EM “CONCERTO” DE ESTREIA
Como nos é dito na introdução deste
Concerto das Artes, saído recentemente na Campo das Letras, a edição surge para colmatar uma falta no âmbito dos estudos “interartes” em Portugal, situados para além do campo mais restrito da Literatura Comparada, em que também se inserem. A iniciativa e organização da antologia em questão são prolongamento das actividades de investigação que têm sido prosseguidas pelo Centro de Estudos Comparatistas, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Os trabalhos aqui reunidos, entre inéditos e ensaios traduzidos, alguns já publicados anteriormente em diferentes contextos mas considerados e apresentados pelos organizadores como “incontornáveis para os estudiosos ou curiosos da área”, são agora apresentados de forma integrada, num só volume que se abre a um domínio da crítica e da ensaística ainda pouco explorado entre nós. Se é verdade que, também no meio universitário das Artes e Humanidades, há uma nova abertura à reflexão sobre a transdisciplinaridade, com respostas, nos últimos anos, de novos programas desenhados a partir desse
entendimento de transposição de fronteiras entre áreas do saber tradicionalmente circunscritas, as novas perspectivas e visões do mundo em que vivemos não só nos levarão a reconhecer que essas novas práticas ganham sentido como também carecem de suportes teóricos que as possam enquadrar e consolidar como novos campos de investigação. Para além do contexto académico em que esta obra se insere, ela interessará também a um público mais vasto, afecto a manifestações nos vários campos artísticos e a uma reflexão adjacente, teórica e interpretativa, muito particularmente à comunidade de criadores que, cada vez mais, nas suas práticas, interpela e recorre a linguagens diferentes mas próximas numa correlação que busca, na diversidade, o sentido do acto criativo. Depois de um preâmbulo teórico, incluindo textos que interpelam as significações e contornos do conceito de arte, segue-se uma segunda parte em que os temas e vozes convocados para esta interacção acompanham, como é afirmado na introdução, o maior destaque que tem sido dado, ao nível dos estudos já publicados, à literatura e artes visuais,
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concretamente a pintura. E aqui a literatura surge enquadrada, enquanto poética, ao lado das outras artes, numa dimensão estética única, participando de uma mesma qualidade, o que permite a Gérard Genette, no primeiro artigo desta antologia, defender e abrir caminho ao “exercício quase ilegal” de um “literário” desembarcar sem aviso prévio no campo de especialistas de determinadas práticas artísticas ou habitualmente atribuídas aos filósofos, defendendo que através dela poderemos saber mais de Arte em geral. No que respeita às áreas abordadas, para além das mencionadas, estão também contemplados o diálogo da literatura com a música, o teatro e o cinema sem que outros campos, como a escultura, dança e fotografia, apesar de menos trabalhados neste estudo, que necessariamente se confronta com limitações materiais, deixem de ser considerados partes do mesmo todo. Entre as artes performativas, o artigo de Maria João Brilhante sobre Teatro e Literatura destaca a reflexão de Osório Mateus, desenvolvida entre nós de forma inovadora, entre a importância de ver e a matéria verbal de que se compõe esta arte do palco e releva ainda a sua
evolução, ao longo dos anos firmada na forte ligação dos dois sentidos, “o que se atribui ao texto” e “o que o espectáculo transmite”. O presente volume pressupõe ainda uma articulação destas múltiplas linguagens com uma perspectiva diacrónica, tendo em atenção as manifestações artísticas das várias épocas, desde aquelas que são aqui consideradas como mais “negligenciadas pelos estudos comparatistas”, como é o caso das épocas medieval e clássica, até à contemporaneidade, numa perspectiva que, atravessando os séculos, desperta novas interrogações face ao tempo, para além das suas limitações entre passado e presente – pondo em evidência não só inter-relações num plano semântico mas também fenómenos de transposição intersemiótica. No que respeita aos estudos medievais, o texto de Teresa Amado refere o interesse hoje renovado pela imagem e destaca, enquanto diferente de todos os géneros de pintura praticados noutros suportes, a “estranheza irredutível” das pinturas de várias dimensões que cobrem as páginas de muitos manuscritos e cujo estudo deverá ser conduzido como fazendo parte de um todo que abrange a/s letra/s e a imagem. Nesse caminho, de procura de novos conteúdos, por ventura mais híbridos, dever-se-á ultrapassar, segundo a investigadora, a relutância na aproximação de certas áreas do saber, concretamente entre a história da arte e os estudos literários e filológicos. Neste fio condutor de épocas, o século XIX assume-se, através do texto de Bernard Vouilloux, eixo fundamental, pelo legado da modernidade “baudelairiana”. Entre o século XX e a contemporaneidade sobressai, a par de manifestações e movimentos de vanguarda das primeiras décadas, um olhar sobre a arte portuguesa contemporânea que se dá a conhecer pela obra da pintora Paula Rego em diálogo com um dos expoentes da literatura portuguesa. O estudo comparativo que Kelly Basílio, a coordenadora deste volume, faz de um conjunto de quadros de Paula Rego, expostos no Centro de Arte Moderna Azeredo Perdigão em 1999, a par do romance O Crime do Padre Amaro de Eça de Queirós, que a pintora toma como referência, projecta e denota, numa abordagem de aprofundamento simbólico, um mundo movido por desejos e paixões. Mas o cinema, que nesta antologia se assu-
me como um “farol dos tempos contemporâneos”, “realizando esse sonho de fusão das artes que outrora tinha ambicionado a ópera”, também ele se apresenta como um pólo agregador, de forma a equilibrar aqui o centralismo da literatura que, como é dito na
apresentação da obra, reflecte os interesses e temas de especialização dos próprios organizadores. Da imagem literária e visual passamos para a imagem em tempo real, para o “espectáculo por excelência do século XX”, em que as imagens cinematográficas se fundem e reinventam com a música, a pintura e a arquitectura, sejam “arquitecturas” abstractas e efémeras, feitas de luz e sombra, concebidas por cineastas puristas como Bresson ou Dryer, sejam “arquitecturas” urbanas em realizações que, desde os irmãos Lumière, elegem a cidade em toda a sua complexidade como protagonista central de “um cinema por vir”; desde um cinema construído com cenários em tamanho natural, “palácios de cinema” em que coabitavam estilos e imaginários (onde se inclui The Phantom of the Opera com a gigantesca Ópera de Paris reconstruída em escala real), ao cinema hiper-estilizado que, como é o caso de Eric Rohmer, em Perceval le Gallois (adaptação de um texto do século XII), recusa qualquer ilusão naturalista buscando formas na iconografia e nas iluminuras medievais. Partindo do mundo natural, as várias artes entroncam as suas raízes no domínio da ficção, num “como se” denominador comum a todas elas. Como nos diz George Steiner, cujos estudos comparatistas interartes tam-
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bém caberiam, como referência, neste volume, todas elas nos trazem interpretação que é “compreensão em acção”, simultaneamente analítica e crítica, tornando o sentido sensível, pondo em evidência a inteligência criadora, no que respeita ao processo intelectual. Apesar de algum constrangimento estrutural que advém do carácter englobante do projecto há, por parte dos organizadores, um entendimento da importância e alcance dos vários questionamentos que vão sendo levantados no domínio das inter-artes. Neste sentido, para além das relações semânticas ou intersemióticas entre diferentes domínios artísticos e épocas, surge como fundamental o próprio processo de busca que resulta desse olhar cruzado e deslocalizado relativamente às nomenclaturas mais tradicionais, com novos ângulos de abertura, desbravando uma hermenêutica em processo, seja pelo artista, por exemplo pelo actor ao interpretar um clássico, seja pelo trabalho da crítica em geral, que põe em acção as matérias com que se confronta, repensando a arte como apreensão activa, incorporação e referência. Essa busca, acto e experiência do acto de criação no seu sentido pleno, que Genette, a partir da sua formação literária, lança como desafio no início deste livro (muito para além das matérias que são convocadas), torna-se, ela própria, uma manifestação tão subtil quanto concreta da inquietação que alimenta o projecto enquanto “conhecimento estético”, como o designa Schaeffer. No momento em que está a decorrer na Gulbenkian o importante fórum cultural O Estado do Mundo, questionando os novos caminhos do pensamento e respostas face “ao que é ser humano”, há um espaço que se abre também aqui para aprender a “experiência do sentido” resultante do enigma da criação, tal como, seguindo ainda o pensamento de Steiner, “se nos depara no poema, na pintura, na afirmação musical”, sugerida esta última como estando “mais próxima das nascentes do ser” que engendram as formas vitais. Ouçamos então o que estas Artes nos oferecem a ler, em promissor concerto de estreia (Campo das Letras, €21).
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TEXTO ROSÁRIO SANTANA PAIXÃO Docente Universitária (F.C.S.H. - U.N.L.)
DIAS DO JUÍZO / LIVROS
O RESPIGADOR DE MEMÓRIAS
Não é um diário, nem uma autobiografia, muito menos uma ficção. São notas, apontamentos, uma deriva, coisas que foi vendo, ouvindo, crónicas dos passeios pela cidade, coisas de livrarias, cafés, jardins, cinemas, teatros, coisas de praças e calçadas, de jornais. Coisas tão marcantes, desde as bolasde-Berlim da pastelaria do senhor Aires aos pratos de caril do Canas, em Campo de Ourique, às tertúlias do Saldanha, no antigo café Monte Branco, com a Luiza Neto Jorge até, mais recentemente, aos filetes de peixegalo oferecidos aos dramaturgos Jon Fosse, David Harrower ou Judith Hertzenberg, no restaurante Primavera, no Bairro Alto, perto da que foi a casa dos Artistas Unidos. Desde o êxtase perante O Vale Era Verde, de John Ford, ou Play Time, de Jacques Tati, à comoção perante Strehler, Pasolini, Brecht, Renoir ou Hitchcock, aquilo que a memória não deixou morrer. E também Fiama, Ruy Belo ou Carlos de Oliveira. Um montão de gente, de ideias e de obras. Jorge Silva Melo (n. 1948) chama ao seu livro Século Passado um “calendário privado sazonal”. É um registo para que se lembrem de que houve um princípio e há uma continuação. Que houve bons e maus, deus e o diabo, como deve ser. JSM é um respigador, no sentido em que Agnès Varda quis mostrar no seu filme Respigadores e a Respigadora, os recolectores daquilo que cai, que é deixado para trás. O que se conquista com as mãos e os olhos para se lhe dar serventia.
JSM dá serventia aos acontecimentos, fixaos, envolve-os e projecta-os num universo seu, irremediavelmente cinematográfico e literário. Ou seja, fá-los viver no texto. Arruma-os, constrói-lhes uma memória futura. É uma espécie de anti-Robert Walser, o escritor que tentou desesperadamente desaparecer do mapa, que lutou até ao fim pelo apagamento de si mesmo, caminhando, caminhando para o vazio, para a neve, para o escuro de João César Monteiro, cineasta muito caro a JSM. Ao ler este conjunto de textos saídos em jornais e revistas, folhas de sala, mostras, catálogos, a maior parte no extinto Mil Folhas do Público, fica-se com a feliz sensação de que JSM andou estes anos todos na apanha da fruta, nas vindimas, neste caso, à caça de filmes, de teatros, de livros, de pessoas, de quadros, de músicas, andou na apanha da literatura. Fala de si o essencial para se perceber quem é, mas fala sobretudo dos outros, do que deles fica. Da vida real, na acepção que Simone Weil dá à vida, “mais de três quartos, composta de imaginação e de ficção”, frase que surge em epígrafe. Todos os textos deste livro de mais de 500 páginas são cenários literários, a linguagem é literária, as questões que coloca, as dúvidas e as explosões de raiva são literárias. E tudo aquilo aconteceu. Tem o mérito de dar ao leitor a impressão de que podia ter sido tudo inventado – e nós gostaríamos na mesma –, de que nada disto se passou, que aqueles filmes não existiram, nem as pessoas, nem os teatros, nem a Almirante Reis, o Prevért, a Sophia, o Bresson, a Glicínia, o Bergman, o Rex, o Chaplin, a Isabel de Castro, o Antonioni, o café Monte-Carlo, o Mário Dionísio, a Cornucópia, o António Sena, os Artistas Unidos. Mas existiram, existem. Não é mentira. As fotos a preto e branco não mentem. E as do Augusto Brázio e do Jorge Gonçalves são também imensamente literárias. O livro de JSM é circular. O passado e o presente pertencem ao mesmo bolo. Um livro iniciático e de maturidade. A sua escrita, sendo ao mesmo tempo confessional, poética, ideológica, ensaística e memorialista, não altera o registo muito pessoal e envolvente do autor, ágil, escorreito, entre o jornalístico e o ficcional, o que para o leitor é um bónus. Lê-se de uma assentada. Vai do
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deslumbramento à desilusão, da utopia à revolta, da liberdade à denúncia da cegueira partidária do pós-25 de Abril. Nele volta-se sempre ao início, ao dia em que o autor comprava cromos na papelaria Beautex, da Rodrigo da Fonseca, em que lia a Ilha do Tesouro na cama, convalescente, enquanto o sol primaveril chegava com o “cheiro a sabão azul e branco, barrelas e banhos ao domingo de manhã”, ao dia em que foi suspenso do colégio dos Maristas, por ter feito uma redacção sobre Patrice Lumumba, quando ele foi assassinado ou ao dia em que, com 19 anos, esteve preso em Caxias, por manifestar-se pelo Ho Chi Min, por não ter “ligeireza nas pernas” para fugir à polícia. Era o JSM, míope, pouco atleta, carregando o seu Barthes pelo Campo Grande abaixo. Entre Letras e as cercanias do Jardim das Amoreiras, o seu espaço vital, de miúdo, de crescimento e de agora, a “sua casa de sempre”. Degraus, muitos degraus, uma soma de gestos e de vozes, muita gente dentro, muita comoção, algumas mortes e também centenários. Muita literatura e muitas fitas, muitos actores, actrizes, poetas, pintores, um armário com um grande espelho dentro. Magnífico. Um livro a quente, muito próximo de nós, um tratado dos dias passados, pode dizer-se assim, num século tão próximo e já tão antigo. Encontramos aqui também um livro corajosamente político, bastando para isso ler o texto “Eu vi nascer o 25 de Novembro muito antes”, datado de 1999. Ali se conta, citando a Morte de Danton, de Büchner, como em Portugal a “cegueira doutrinária mata a vida das ideias” e como essa lógica já havia começado na esquerda, em 1968, na Alameda da Universidade, quando um dirigente estudantil, hoje um conhecido político do PS, meteu no bolso, à socapa, uma moção, em nome dos “altos interesses estratégicos”. Era a golpaça, um gesto que para JSM marcou o “início do fim de uma luminosa inquietação”. Como escreve o Rossellini, “as coisas estavam ali, para quê manipulá-las?”. JSM não fez mais do que pôr neste livro o que ali estava (Cotovia, 2007, €30).
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TEXTO JAIME ROCHA POETA E DRAMATURGO
Levantam-se múltiplos problemas quando a reflexão é sobre as limitações inerentes à criação e divulgação de propostas performativas: a sua essência rejeita a documentação e, como tal, impede um acesso posterior, diacrónico e histórico à maior parte das propostas cujo lastro objectual é inexistente. Neste sentido, a organização de uma bienal de per-
formance (e não é demais lembrar a amplitude de que o termo se reveste na língua inglesa, que diferencia a performance art das demais formas de espectáculo, a que chama indistintamente performances) serve um duplo propósito: por um lado, concede destaque mediatizado a um conjunto de intervenções artísticas de âmbito alargado (ocorriam em diversos locais da mesma cidade e em modelos tão antagónicos como as grandiosas apresentações de Marina Abramovic
durante uma semana no foyer do Guggenheim Museum ou uma série de apontamentos radiofónicos de uma hora inventados por treze artistas plásticos). Por outro lado, abre caminho – por ser uma bienal concebida pela principal historiadora da performance art, RoseLee Goldberg – para se repensar a problemática da documentação em artes cénicas e de que forma a memória e o trabalho crítico (não apenas “dos críticos”) exercem aqui funções incontornáveis. Não é portanto de espantar que, seguindo-se à edição inaugural da bienal Performa, em finais de 2005, sob direcção de Goldberg, surja com naturalidade a organização de um livro. A historiadora e curadora dirige igualmente esta publicação, intitulada Performa | New Visual Art Performance, que retrata cada um dos momentos que invadiram a cidade de Nova Iorque entre 3 e 21 de Novembro de 2005. Estão lá as instalações, os espectáculos de dança, os concertos, os filmes musicais, as conferências-demonstração, as transmissões de rádio, as reconstituições históricas. Por ordem de estreia na bienal, documenta-se de forma vária o trabalho de perto de uma centena de artistas. Desde logo, é curioso verificar como a distanciação crítica é absolutamente rejeitada nesta hipótese de documentação: aproximando-se do modelo de antologia, a publicação reúne fotografias dos espectáculos (nas 320 páginas há cerca de 300 fotos a cores), descrições, stills dos filmes, entrevistas com os artistas, notas de trabalho, esboços e guiões, partituras manuscritas, folhas de sala, textos da comissão de curadores apresentando os projectos e a sua consecução, convites, até as amostras de sedas para confeccionar o vestido que Meryl Streep vestiria em The Music of Regret, o filme musical de Laurie Simmons no qual a actriz contracenava com bonecos animados. Ou seja, o livro integra tudo o que esteve em torno da fabricação de um festival destas dimensões, num projecto editorial que Goldberg diz ser “o panorama definitivo da performance contemporânea: catálogo, guia cultural, diário de artistas e ferramenta de referência” (a vertente “guia cultural” explica-se pelo facto de o livro incluir uma ficha de cada uma das instituições parceiras que acolheram os projectos, com um mapa e a história do espaço). Mas, como dizia, são os próprios artistas, ou
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os comissários que lhes encomendaram as obras, os chamados a reflectir sobre o sucesso e importância dos projectos. A presença do público e a visão da crítica especializada não são prioritários nesta antologia “por vezes directa, por vezes oblíqua”, escreve Goldberg, assumida enquanto prolongamento de uma experiência de carácter artístico e, dessa forma, assimilando as idiossincrasias daquilo que poderia ser um “diário colectivo de artistas”. Porém, é a própria presença do público aquilo que Hal Foster, no prefácio, enuncia como sintoma da especificidade da bienal: “Embora consciente da existência de um mercado da arte, Performa não se lhe submete, e por isso consegue misturar artistas relativamente emergentes com os consagrados. Também não está demasiado dependente das instituições, embora não tenha fobia delas, e por isso atrai públicos diversos a vários espaços, mais ou menos familiares, que são ocupados de formas inesperadas. Pelo caminho, Performa não apenas reactivou um lugar para a performance art como também recriou uma comunidade em torno
LAURIE SIMMONS, THE MUSIC OF REGRET (2005). FILM STILLS
DOCUMENTAR EM PERFORMANCE
disso”. Portanto, a reanimação de um público é um dado fundamental para aquilatar a pertinência de tamanha empresa; já a recepção crítica, que permitiria afinal “ler” o alcance desta bienal, não participa na documentação oficial. Mas não será isso já um programa? (Performa / Distributed Art Publishers, 2007, €29,90).
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TEXTO MÓNICA GUERREIRO
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BOLONHA UM CONTRIBUTO PARA PENSAR A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PÓS-BOLONHA TEXTO GIL MENDO
A TRANSFORMAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR EUROPEU, PROVOCADO PELO PROCESSO DE BOLONHA, SÓ AGORA COMEÇA A REVELAR AS SUAS POTENCIALIDADES. GIL MENDO, REPUTADO ESPECIALISTA NA ÁREA DA DANÇA, REPENSA AQUI AS IMPLICAÇÕES DESTA MUDANÇA PROFUNDA NO ENSINO ARTÍSTICO, CONSIDERANDO-A UMA OPORTUNIDADE ÚNICA PARA APROXIMAR A ESCOLAS DE UM TECIDO CRIATIVO, TAMBÉM ELE, EM MUTAÇÃO CONSTANTE.
Desde há alguns anos que o ensino superior vem sofrendo, na Europa, um processo de reorganização que visa o reconhecimento mútuo de cursos e graus, facilitando-se, assim, a mobilidade de estudantes, de professores e de profissionais no espaço da União Europeia (UE). Este processo foi desencadeado pela Declaração da Bolonha – assinada a 19 de Junho de 1999 – e tem sido acompanhado e aprofundado nos subsequentes conselhos europeus de ministros do Ensino Superior (Praga, 2001; Berlim, 2003; Bergen, 2005), numa tentativa de harmonizar os sistemas universitários dos diversos países, nomeadamente quanto ao número e duração dos respectivos ciclos (definiram-se três, que se estendem por um período não superior a oito anos: Licenciatura – três a quatro anos; Mestrado – um a dois anos; Doutoramento - 3 anos); à definição clara do perfil e habilitações profissionais exigíveis no primeiro ciclo, baseadas no tempo investido pelo estudante em cada matéria (aferição através do sistema europeu de transferência e acumulação de créditos, ECTS, que facilita o reconhecimento do percurso já efectuado noutra instituição de ensino); e quanto à implementação de um diploma oficial bilingue, que fornece-
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rá a cada graduado uma descrição detalhada do curso e respectivo plano de estudos. Parte deste projecto já se encontra implementado – há muito que é uma realidade a mobilidade de estudantes e de professores, através do Programa Sócrates e da Acção Erasmus –, embora alguns desconfiem que todo o esforço tem como alvo principal a redução do investimento no ensino superior (problema efectivo naqueles países onde somente o primeiro ciclo é financiado por fundos públicos e onde as universidades estão sob a pressão para reduzir para três cursos de quatro e, às vezes, de cinco anos). Pessoalmente, penso que este processo cria uma oportunidade para rever e actualizar os curricula dos cursos, que de outra maneira dificilmente seriam alterados, devido ao peso da rotina; e, num campo como o da dança, proporciona uma ocasião única para a implementação de novos cursos, enformados segundo uma perspectiva efectivamente contemporânea. Ora, interessa-me antes de mais perceber se este esforço de harmonização favorecerá igualmente a diversidade. Em minha opinião, a diversidade é o principal incentivo à mobilidade. Que outra razão,
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senão a enriquecedora experiência da diferença, terá um estudante para decidir frequentar uma instituição estrangeira? A diversidade encontra-se também no âmago das artes contemporâneas e é, simultaneamente, causa e consequência da transdisciplinaridade. O cruzamento das diversas disciplinas gera objectos artísticos inclassificáveis segundo os cânones tradicionais, mas que não apontam necessariamente para a instituição de novas áreas. Se pensarmos em exemplos de disciplinas artísticas recentes – como a fotografia, o cinema, o vídeo, a multimédia e as artes digitais –, reconheceremos que se encontram interligadas pelo modo como os criadores se apropriam dos avanços tecnológicos. Para aceitar que a criatividade que um artista desenvolve numa dada área possa ser também aplicada noutra, julgo mais relevante, pois, que o sistema facilite a mobilidade entre cursos e disciplinas, de modo a que quem invista numa perspectiva transdisciplinar possa ir tão longe quanto deseja. Igual princípio se aplica a diferentes abordagens e organizações curriculares de uma mesma disciplina. No caso do ensino superior da dança, e considerando que uma Escola Superior de Dança se integra num instituto, numa faculdade ou num campus universitário, onde se leccionem muitas outras licenciaturas, é expectável que os seus curricula manifestem abordagens diversas, conforme se incluam em faculdades de Artes Performativas, de Artes Visuais ou de Motricidade Humana. E esta multiplicidade não é necessariamente nociva. Perspectivas divergentes permitirão que, no início do primeiro ciclo, os estudantes optem pela formação que mais lhes convier, possibilitando-lhes, ainda, uma correcção de escolhas ao longo do seu percurso académico sem que desaproveitem o tempo e o esforço já investidos. Naturalmente, esta abertura só se concretizará mediante a definição de um sistema apropriado de créditos ou, em caso de mobilidade, se se puder substituir uma matéria do curso original por outra, leccionada pela escola de destino, que melhor sirva as finalidades do estudante. A mobilidade, note-se, não envolve obrigatoriamente viagens de longa distância. Implica, isso sim, a possibilidade de avançar, sem ficar preso às escolhas ou possibilidades passadas. A minha experiência como professor de uma escola superior de dança permite-me supor que a mobilidade e a diversidade serão mais eficazes no segundo ciclo (Mestrado) que no primeiro (Licenciatura). Devido ao tempo que um estudante passa na escola no primeiro ciclo e à quantidade de trabalho de grupo exigida, não penso que seja realista, embora não deva ser de todo impossível, que complete noutra escola secções inacabadas da licenciatura (ser-lhe-á obviamente mais fácil fazer aí os ciclos seguintes). Os cursos devem, todavia, ser idealizados para permitir que o aluno adquira uma autonomia progressivamente mais ampla, incentivando a definição de objectivos no decurso do plano de estudos. Sublinharia, então, algumas das aptidões que, a meu ver, deveriam ser desenvolvidas no primeiro ciclo: criatividade, improvisação, bases
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técnicas sólidas, trabalho em grupo, integração – em sentido lato – da dança na cultura, conceptualização, análise e fruição da dança, mecanismos de produção, concretização de um projecto concreto. Acrescentaria que, numa escola superior de dança, este ciclo se deveria concentrar na prática e na experiência artísticas contemporâneas. Acrescentaria, também, que este seria o momento para a escola promover um relacionamento próximo com o meio, mais ainda com os artistas e os profissionais, que maior impacto e aceitação encontram entre os alunos. Por fim, incluiria cadeiras pedagógicas nos seus curricula, acrescentando-lhes também um trabalho de campo de alcance pedagógico. Acrescento esta vertente didáctica por duas razões fundamentais: alargamento da perspectiva social do futuro artista que, testando a comunicabilidade e adequação das ideias e conceitos por si imaginados, solidifica a sua posterior integração na comunidade; acautelamento de uma prática e pesquisa artísticas fortes para aqueles que, mais tarde, optem pelo ensino. Nem sempre é fácil manter a renovação permanente do quadro do ensino artístico universitário. Sê-lo-á mais, certamente, em países menos burocráticos, como a Holanda, o Reino Unido, ou os países escandinavos. De onde eu venho, devo dizer, é bastante difícil. A rotina é assassina e os procedimentos de uma instrução universitária exigem muita rotina… Necessitamos, então, de um contacto regular com os artistas que já se profissionalizaram, embora nem sempre haja verba para pagar estas colaborações pontuais. Não obstante, atreverme-ia a sugerir que o ensino superior de dança se organizasse à semelhança das práticas seguidas na formação em exercício, isto é, que a maioria da aprendizagem se fizesse através de uma sucessão de workshops, onde se trabalhasse a técnica, a improvisação e a composição/coreografia, e não, como hoje acontece, pela frequência, semana após semana, das diversas disciplinas. É impossível conceber uma escola superior de dança que se dedique à dança e à performance contemporâneas mas que funcione à velha maneira de uma companhia de reportório. Àqueles que estejam a considerar a hipótese de fundar uma escola superior deste género, aconselharia que reduzissem o corpo docente permanente, optando por convidar, cada ano, o maior número de professores externos, mantendo assim uma relação permanente com o meio, ao mesmo tempo que evoluem com as suas transformações. O segundo ciclo, pelo contrário, deve ser mais flexível, embora naturalmente mais exigente em termos académicos e artísticos; é neste, também, que se pode antecipar uma aplicação mais maleável dos princípios da mobilidade, da diversidade e da mais efectiva autonomia do estudante. Um Mestrado pode organizar-se em colaboração com uma outra escola ou universidade, mas também com o próprio meio artístico (espera-se, aliás, que o processo da Bolonha estenda a todos os países europeus a possibilidade de creditar a experiência artística profissional para aceder directamente a um Mestrado, hipótese que
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resolveria muitas situações bicudas). Igualmente devem ser aceites neste novo espaço universitário os Mestrados e os Doutoramentos em artes, cujo objecto seja o processo da criação e, a tese, o espectáculo propriamente dito. Uma nota final para confessar que, embora tenha tentado ser optimista, me sinto bastante insatisfeito – senão mesmo frustrado – com o fosso que, em muitos países, entendo existir entre o ensino superior de dança e o campo profissional da performance contemporânea. Há certamente razões para esse divórcio, algumas das quais já enunciei: a rotina, a burocracia, as faculdades que, esmorecidas, prosseguem como se o tempo tivesse parado e, também, os preconceitos de ambos os lados. Alguns dos actuais projectos de educação profissionalizante mais estimulantes e bem-sucedidos optaram por se desenvolver à margem do ensino universitário ou, por outro lado, não encontraram o devido acolhimento nesse mesmo sistema. Espero que a actual reorganização do ensino superior europeu permita vencer algumas destas distâncias, pois os artistas e profissionais da dança, como qualquer outra pessoa hoje em dia, podem ver-se na posição de necessitar, mais cedo ou mais tarde, de um reconhecimento académico, de um grau, para aceder a lugares para que têm especial vocação (ou arriscam-se a vê-los preenchidos por quem possua
menos preparação, mas qualificação superior). Não deixa de ser verdade que muito do trabalho e da pesquisa levados a cabo pelas companhias não será nunca substituído pelo labor académico. É importante que se reconheça esta evidência para que nos possamos concentrar no que deve ser contemplado por uma formação superior, bem como as matérias que, parcialmente abordadas, devam ser objecto de parcerias a estabelecer entre as instituições académicas, as companhias e os artistas que trabalham individualmente. Esta colaboração permitirá ultrapassar a rigidez da educação universitária, que se espera não resumida a ciclos, graus e instituições, mas centrada apenas na arte, nos artistas e no seu crescimento, na sua necessidade de aprofundar a pesquisa e de partilhar resultados. Pois só se pode estudar o que efectivamente acontece e, sem a proliferação de objectos artísticos, todo o discurso académico se tornaria irrelevante.
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Versão portuguesa de Miguel-Pedro Quadrio de uma conferência que Gil Mendo proferiu no dia 5 de Março de 2005 no âmbito do congresso “Inventory: Dance and Performance”, organizado pelo Tanzquartier Wien e comissariado por Martina Hochmuth e Georg Schöllhammer.
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