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ANO 1 Quando há um ano apresentámos esta revista prometemos “contribuir para a revitalização do debate, da reflexão exigente, da indispensável intervenção pública (…) enquanto fórum participado, em vez de observatório isolado, combinando crítica, opinião, reportagem, análise, ensaio, fotografia, actualidade e entrevista num conjunto de textos e imagens que possa abrir uma janela para o ar do tempo que se respira”. Um ano e nove números depois continuamos a assinar essa carta de princípios, tendo alargado a reflexão do campo das artes performativas para um plano cultural mais vasto. Foi sempre assim que vimos a OBSCENA, num trabalho de contextualização e reflexo que fosse para lá dos objectos artísticos. Passam por estas páginas autores da mais diversa índole, experiência ou opinião, num constante processo de exposição de um discurso assinado, liberto de correntes ou modismos. Tentamos que a partir dos seus olhares seja possível discutir sobre arte e cultura sem as pressas habituais e os entusiasmos perenes. Queremos lançar pontes que provem da transversalidade da cultura. O julgamento cabe a quem nos lê. Um ano depois, e com um percurso que – pese a sempre ambígua modéstia que caracteriza este género de afirmações –, nos surpreendeu em toda a linha, sabemos da nossa responsabilidade. Sabemos que há quem nos leia, quem exija mais, quem queira ser surpreendido. E, felizmente, quem não goste. Nesse editorial de início dizíamos também: “a OBSCENA surge sem promessas”. Reafirmamos essa intenção. Sem promessas não porque as receemos ou não queiramos ser julgados na eventualidade de falharmos, mas porque queremos uma revista permeável ao contexto, absorvendo-o ou devolvendo-lhe novos desafios que surpreendam e joguem com essa ex-
pectativa. Gostamos de pensar que a OBSCENA se regenera, reinventa e evolui de número para número. Quando perguntam se é difícil, preferimos dizer: já está feito! É por isso que pensamos cada número a partir de uma série de questões que são mais latas que os espectáculos que se irão apresentar, os livros que foram publicados ou os temas do momento. Perguntamos, primeiro do que tudo o resto: o que gostaríamos de ler? Não conhecemos os gostos do público, não sabemos sequer identificar “o público”. Sabemos que há pessoas que têm gostos, fazem escolhas e constroem percursos individuais por entre a imensa oferta. Acreditamos não estar isolados nesses gostos e escolhas e percursos. E, por isso, propomos uma selecção absolutamente ínfima do que achamos mais relevante. Sem regras, agendas, imposições ou calendários. Acredita-mos que é esta liberdade editorial que tem conquistado quem nos lê. É por tudo isso que continuamos. Mas também porque há colaboradores, parceiros e anunciantes que acreditam neste projecto e confiam em nós, num gesto de generosidade que nos comove e honra. Gesto que só podemos agradecer, sempre e uma vez mais. Este número é, por isso, o prolongar desse gesto. Convidámos vinte e um nomes para festejar este primeiro ano, dando-lhes o espaço possível para se darem a conhecer e falarem do que vão fazer no ano que entretanto começou. Libertámos a revista das secções habituais para mergulharmos nestes olhares, esperando partilhá-los com todos os leitores. É o nosso presente. O vosso está em aceitar, deixar-se desafiar e usufruir da OBSCENA. Obrigado. TBC
#9 - Fevereiro 2008 Publicidade | publicidade@revistaobscena.com André Dourado, António Pinto Ribeiro, Bandeira, Elisabete França, Emmanuel Veloso, Eugénia Vasques, Florent Delval, Francisco Valente, Franz Anton Cramer, Gwénola David, Jaime Conde-Salazar, Jean-Louis Perrier, João Carneiro, José Luís Neves, João Paulo Sousa, Martim Ramos, Mircea Cantor, Mónica Guerreiro, Paulo Pimenta, Pedro Manuel, Ramona Poenaru e Nuno Vaz de Moura David Sanson, Pedro Sena Nunes e SerCultur Design Pixel Reply | www.pixelreply.com Logotipo MERC
Assinaturas e informações | obscena@revistaobscena.com As informações devem ser enviadas até dia 8 de cada mês A OBSCENA-revista de artes performativas é uma revista de periodicidade mensal com distribuição electrónica gratuita através de assinatura. A OBSCENA aceita propostas de colaboração dos leitores. Os materiais publicados são da respon-nsabilidade dos respectivos autores, estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial www.revistaobscena.com A OBSCENA-revista de artes performativas é membro da TEAM Network (Transdisciplinary European Art Magazines) | www.team-network.eu A OBSCENA-revista de artes performativas é uma co-edição OBSCENA-Associação e Pixel Reply Lda. Tiragem 5000 exemplares. Impressão Sogapal - Estrada das Palmeiras, Barcarena
Isabel Alves Costa
1989-2006
RIVOLI
COXIA
MOTIM
OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO por Mónica Guerreiro
UMA OBSCENA COISA, DISSE O E.E. CUMMINGS Há algo de radicalmente audaz na superação de uma limitação que conhecemos e não deixamos que nos impeça de continuar. Quando se trata de uma limitação incorrigível, então, um tipo de limitação que nada nem ninguém consegue emendar, convocam-se forças sabe-se lá onde para seguir em frente, cabeça erguida, ignorar as pequenas vozes que dentro de nós nos apelam a desistir, abrandar ou, pelo menos, ser um bocadinho menos afoito. Excesso de confiança próprio da juventude, acharão uns; inconsciência pueril, rosnarão outros. Como diria cummings, assim se manifesta a plácida e mesquinha sensatez de “maioriadaspessoas”. Tenho pensado que as limitações que à partida se apresentavam a este projecto (públicas, todas: falta de experiência, meios e condições; ausência de tradição, acompanhada de falsa sensação de missionarismo) foram em si mesmas a alavanca para o arrancar sem olhar para trás, nem para a frente: para arrancar, apenas e só. Destemidamente. Com sangue na guelra. Há aqui qualquer coisa de incondicional, parecida com a intensidade de quem diz estar disposto a morrer por uma causa. Movido pela energia e comprometimento de uma pessoa, um grupo já considerável de profissionais reconhecidos – e outros tantos que aqui encontraram o espaço para se dar a conhecer – deixou e deixa envolver-se pelo propósito maior de provocar um fórum não moderado de discussão sobre artes cénicas, que chama para a mesa críticos e teóricos mas também criadores, ensaístas, estudantes, intérpretes e todos quantos continuam a ver problemas para resolver em cima e à volta do palco. Por isso, neste primeiro aniversário, e com todas as fragilidades e limitações, julgo prioritário salientar o trabalho que aqui foi investido, e faço-o transcrevendo integralmente um texto que achei propício: este poema de e.e. cummings (originalmente publicado em no thanks, de 1935), na tradução de Jorge Fazenda Lourenço para a edição bilingue xix poemas, da Assírio & Alvim. Pode pensar-se nele como uma declaração de interesses, ou como pretexto para chamuscar as pontas que este projecto ainda não conseguiu atar; em última instância, proponho publicamente que este poema seja erigido oficialmente em estatuto editorial. Já estava na altura de haver um.
“fundemos uma revista que se lixe a literatura queremos uma coisa com sangue na guelra piolhosa com pura fedendo com absoluta e destemidamente obscena mas deveras limpa estão a ver não estraguemos a coisa façamos a coisa a sério qualquer coisa de autêntico e delirante percebem qualquer coisa de genuíno como uma marca numa retrete agraciada com gana e esganada com graça” apertem os tomates e abram a cara
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NOVEMBRO 2007 / XU O 2008
www.centrocoreograÞco.org
ALFREDO MARTINS
A viver um período de intenso questionamento, Alfredo Martins só não quer que lhe voltem a dizer que isso já foi feito por alguém antes dele. E depois?, pergunta.
texto Tiago Bartolomeu Costa fotografia Martim Ramos
EM NOME PRÓPRIO
Porque antes da legitimação há uma pesquisa, se lhe perguntarem quais as suas principais referências, Alfredo Martins vai hesitar na resposta. Não porque não as tenha ou não as saiba identificar, mas porque sabe que a seguir à sua resposta, que ele diz nunca ir satisfazer por completo o seu interlocutor, lhe perguntarão como é que ele lida com elas, se liberta delas ou as assimila. E isso, não obstante a inevitabilidade dos diálogos, é algo que não lhe interessa discutir. Como também não lhe preocupa saber se o que faz é novo, inovador, original ou inclassificável, porque “o exercício artístico não deve viver esmagado pela necessidade constante da reinvenção”. Ele diz apenas, numa modéstia que não deve ser confundida com displicência e que caracterizará a sua relação com o legado performativo, que “qualquer proposta criada por uma nova pessoa é sempre uma nova perspectiva sobre algo”. E dá um exemplo, do mais simples e claro possível: “Eu não levanto o braço da mesma forma que a Vera Mantero ou a Pina Bausch”. Pronto, já estão dadas duas referências, minúscula parte de um imenso universo que não se extingue no circuito onde se move, e que não se encerra naquilo com que possa ter um contacto directo. Vai mais longe do que isso, rompendo as fronteiras entre o teatro, a dança, as artes plásticas e a música, e a incluir, prosaicamente, as várias viagens que faz entre Lisboa e Porto (e Viana do Castelo, de onde é natural). Cidades pelas quais se divide, ou pontos de partida para outras, como Dartington, na Inglaterra, onde estudou Devising Theatre. Mais uma referência, esta sim definidora do seu método de trabalhar “o” teatro – “forma reactiva de trabalhar, que acolhe os contributos de toda a equipa criativa. E também acolhe a sorte: o acidente, o acaso, o inesperado ou o imprevisível”1 . Interessa-lhe “desenvolver uma dramaturgia a partir de um conceito ou uma ideia” que possa “construir um teatro de imagens” que, sendo de matriz literária não tenha que ser “sempre a partir de um texto”.
Aos 28 anos, e depois de um curso de Direito deixado a meio, e uma licenciatura em Teatro na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, no Porto, Alfredo Martins vai buscar à realidade os elementos necessários para a construção de peças onde a palavra toma a dianteira, seja ela reprodutora de ecos vindos das ruas, como foi o caso de O Nome das Ruas – que criou em 2006 para a sua companhia, Teatro Meia Volta e Depois à Esquerda Quando Eu Disser, que dirige artisticamente e partilha com a actriz Sílvia Silva “quando nos apetece” –, ou construtora de universos metafóricos, como no exercício Lappin e Lapinova, a partir do conto de Virginia Woolf, apresentado em 2007 no Curso de Encenação do Programa de Criação e Criatividade Artística da Fundação Calouste Gulbenkian. Mas, e para melhor compreendermos o que entende ele por uma relação não-hierárquica entre os diversos elementos que um espectáculo pode comportar “na procura de uma articulação harmoniosa”, talvez sirva de exemplo a experiência 100 + 1, feita em colaboração com Sofia Ferrão e Simão Cayatte, também para a Gulbenkian, e que parte agora para uma residência no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, e prolongada no CaPA, em Faro, num colectivo aumentado e com a participação de artistas estrangeiros, antes de estrear em Abril, em Lisboa. As experiências descritas no seminal 101 experiments in the philosophy of everyday life, do filósofo francês Roger-Pol Droit serviram de base para uma deambulação narrativa e biográfica traduzida em pequenos clips de vídeo improvisados ou não entre cinco e sessenta segundos, mas todos próximos de um registo que prove os efeitos do duelo ficção/realidade. Nessa exposição está muito do que defende enquanto criador. “O trabalho acontece quando há uma conjugação de tempo e disponibilidade que o justifique” e se, como diz, está “numa fase de experimentação, à procura de muitas coisas, a produzir com pessoas e em contextos muito diferentes”, permanece atento à gestão e filtragem a que a própria realidade, “enquanto artista, mas sobretudo enquanto pessoa, te propõe constantemente”. É disso que se alimenta e é também por isso que, quando lhe perguntamos se vê essa posição enquadrável num discurso mais lato e necessariamente geracional, nos diz, conscientemente, não sentir necessidade de “tomar uma posição em relação a nada” porque não se sente a representar coisa alguma. “Há muito o juízo do que já foi feito, do que já foi visto, mas na verdade, e ao fim destes séculos todos, obviamente que já muita coisa foi feita. Só que não foi feita por mim. Pode ser?”. Pode. Nos próximos meses Alfredo Martins apresenta três peças, assinadas em colaboração com outros criadores: 20’ mostra-se dias 1 e 2 de Fevereiro no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. These words are not my own apresenta-se dias 7 e 8 de Março no Auditório de Serralves, no Porto. 101 tem data de estreia prevista para Abril, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa.
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ANNE JUREN texto Florent Delval
INTRÉPIDA ANNE
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Estamos em 2003, Anne Juren assina um primeiro solo na forma de um percurso de obstáculos: esquivas, armadilhas, desvios e mudanças de direcção. Um lugar a que está consignada uma lista de estratagemas para desviar a atenção do espectador. Quando uma peça se escreve na primeira pessoa (eu), instala-se uma relação de intimidade com o público, de um para um. Quando se trata de uma primeira obra, o artista forma-se tanto como um indivíduo debaixo do olhar de outros como também ao afirmar uma linguagem singular. Um primeiro solo é quase um ritual iniciático na carreira de um coreógrafo. Mas Anne Juren escreve o nome da sua peça, Oslo, dentro da desordem. O princípio desenvolver-se-á, portanto, um pouco ao contrário. O encontro não se fará cara a cara pois o espectador encontra-se perante uma linguagem espalhada sobre toda a superfície da cena. A dinâmica de Oslo poderia ser resumida da seguinte maneira: explorar as margens para esvaziar o centro. Anne Juren escala, esconde-se, utiliza corpos de substituição. Dá a volta aos limites da sala tal como uma luva, abrindo portas que dão para corredores ou trazendo os extintores para debaixo dos projectores. E depois foge do teatro, literalmente: vai beber um copo no café da esquina. É um desafio pessoal que lança à cena, como por afron-
tamento ou ironia. Ninguém sabe o que apenas ela mesma e um vídeo testemunham no fim. Mais tarde, divertida, terá gosto em descrever o espanto de uma funcionária do teatro ao encontrá-la encostada a um bar, enquanto o espectáculo continua na sala, sem ela. Não é fácil deixar de ocupar o centro de uma cena, e poderíamos ver nos primeiros trabalhos de Anne Juren uma tentativa de diferir do acontecimento fatídico do “eu”. É desde logo apaixonante ver os três solos de Anne Juren de seguida, como o percurso de uma artista a encontrar-se a si mesma. Oslo é a peça de maturidade à procura de si mesma. É um pouco como o ponto zero a partir do qual e contra o qual se desenharão as linhas claras das duas seguintes peças: A?, onde a presença se afirma mas é problemática; e depois Code Serie, onde ela está plenamente assumida. Uma frase dançada, matriz de um espectáculo a caminho, é mostrada a um público de convidados durante a criação. Cada um descreve à sua maneira a dança que vê. Os textos tornam-se, em seguida, em partituras, cuja execução em série forma o espectáculo. Esse espectáculo é A? (2003) mas nunca ninguém o viu. Na verdade, a frase e as suas variações são quase integralmente interpretadas na maior das obscuridades. O espectador imagina a partir das partições que lê e do tempo
Nagement (2006), um projecto de Anne Juren e Fouad Asfour/ Foto: Luís Firmo
Ao assinar peças que são desafios pessoais, a coreógrafa Anne Juren (Grenoble, 1978) busca nos espectadores os interlocutores que queiram pisar o risco das convenções.
que passa à frente dos seus olhos. A dança contrai-se e reinveste o centro da cena, mas o interlocutor sente-se ainda mais disperso. Já não sabemos quem se dirige a quem: poderá o espectador estabelecer uma relação directa com a bailarina? Não estará, porventura, a dialogar directamente com o espectador original, autor da partitura? Ou então, não estará ele simplesmente a falar sozinho ao estar mergulhado na escuridão? Anne Juren, contudo, está bem presente. Cada variação é precedida de um momento imóvel extremamente longo, ao ponto que uma vez que a escuridão cai, a imagem deste corpo cola-se à retina do espectador e vem sobrepôr-se a qualquer outra imagem mental. Qualquer coisa entre uma disseminação radical e uma presença inevitável. Tal como A?, Code Serie (2005) articula-se à volta de uma variação. Uma frase de dança de trinta segundos estende-se até ao infinito segundo vários parâmetros, velocidades, ritmos, qualidades e cores que evoluem constantemente. A dança, em plena luz, ocupa agora o centro por inteiro. Paradoxalmente, este centro absoluto comporta um risco: o da banalidade, tão habituado que o nosso olhar está a ser desviado. A proposta de Code Serie é imediatamente reconhecível enquanto “dança”. Nenhum golpe de magia ou viragem in fine virá perturbar este programa que se desenrola linearmente até ao fim. E, apesar de tudo, é esta aparente banalidade que faz dela uma peça de excepção: não se trata mais de educar um olhar, mas de reconhecer que, depois de quinze anos de desconstrução da linguagem coreográfica, o espectador sabe ver e não precisa de ser distraído. O espectador torna-se num interlocutor. Code Serie é um convite ao despertar do mais pequeno detalhe. É desde logo muito fácil passar ao lado desta peça: se a procuramos noutro sítio, o essencial, o que está aqui perante os nossos olhos, escapar-se-á. É uma dança que se retrai a ela mesma, mesmo sabendo tudo o que se passou antes dela. Pelas suas grandes linhas e o seu aspecto analítico, Code Serie não é ainda uma peça inteiramente na primeira pessoa, mas é uma tentativa generosamente única, coisa que, sendo rara, confia no espectador. Para encontrar um “eu” na obra de Anne, é necessário ir até J’aime (2004), um duo com Alice Chauchat. Por um olhar, passa-se a vez, como no hip-hop ou nas danças urbanas. Danças de afirmação da pessoa enquanto indivíduo. São quatro as questões que guiam este espectáculo: porque gostamos de dançar, porque gostamos de ver dança, porque gostamos de nos mostrar a dançar, e de que maneira estes prazeres dependem um do outro? E mesmo se o olhar do espectador, em ligação com o do seu parceiro, se encontra algo atenuado, Anne mostra-se a dançar pela primeira vez. E como já sabemos, não se trata de um gesto apaziguador. Esperamos agora para ver Komposition, uma peça de grupo iniciada por ela. Nos primeiros ensaios, o olhar circula dentro do palco entre Alix Eynaudi, Anne Juren, Marianne Baillot e Agata Maszkiewicz. Os corpos estão redobrados uns sobre os outros, ou não se deixam afastar. A questão central é agora a da constituição de vários indivíduos num só grupo. Uma nova etapa que se adivinha apaixonante. Tradução do francês: Francisco Valente
ANTÓNIO OLAIO
O PRIMEIRO QUARTEL DE
1983 - 2008
entrevista Nuno Vaz de Moura fotografia Emmanuel Veloso
António Olaio personifica a própria ideia de transdisciplinaridade: é performer, pintor, cantautor, videasta, professor e curador. Poderíamos dizer que tem desenvolvido uma séria pesquisa nestes campos, mas fica difícil tal palavra perante a persistente irrisão e ironia que atravessa toda a sua obra. Terá aprendido com Duchamp (que foi tema do seu doutoramento) e com a “confusa” (José Gil) geração de 1980 a fazer essa “irritante intromissão da banalidade no/do quotidiano no trabalho artístico”(Pinharanda). O Centro Cultural Vila Flor acolheu em 2007 uma exposição retrospectiva da sua obra, que ele mesmo comissariou. Lá pudemos constatar a consistência e qualidade do seu trabalho em pintura e vídeo (juntamente com João Taborda), obras que se complementam e legitimam de forma quase elíptica: as canções são o tema de quadros, que são o tema de vídeos que mostram as canções.
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Como é que aconteceu a sua actividade de curador? O que o levou à curadoria? Não foi um processo individual, foi em grupo. No segundo ano da faculdade formei, com os meus colegas, um grupo chamado Grupo Missionário. Éramos um grupo provocatório ou, pelo menos, queríamos sê-lo. E a nossa função, mais do fazer coisas, era desencadear situações. Começámos em 1984 pela “performance zero”, que consistia num grupo que realizou, à porta fechada, uma performance que depois foi mostrada em reportagem fotográfica à entrada da escola. A acção passava por pintar de branco os gessos da escola que estavam muito sujos. Estavam tão sujos que ficaram mais escuros em cima do que em baixo, o que baralhava as sombras todas. O acto estava associado à ideia de missionário, de querer a pureza. Mas mais como um jogo. Depois fizemos a exposição de arte postal, um festival de performance... E essa ideia de fazer coisas, de organizar coisas, evoluiu para o comissariado. Mas não estive sempre a organizar exposições. O que achava importante não era tanto a ideia de ser comissário, mas a ideia de juntar artistas para fazer acontecer. Não me reconheço na noção de comissário; não há um olhar exterior, é só uma espécie de curiosidade sobre os artistas. A questão do distanciamento parece-me ser um dos pontos essenciais da questão do artista-comissário. Tem de haver um distanciamento, um olhar exterior à obra de arte, expresso tanto nas escolhas como na maneira como as apresentam. Mas é sempre um olhar de fora, de uma espécie de receptor activo. No meu caso é o contrário: sou um participante. Lembro-me que quando organizei ao “Coimbra C”, no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, estranharam o facto de eu ser o organizador e também participar. Viam a coisa como se fosse também uma promoção; como se quem organiza não devesse autopromover-se participando. Não vejo as coisas assim. Para mim uma obra de arte não é um objecto para ser promovido ou que um artista tenha uma estratégia de promoção. Não me faz muito sentido. Tanto que nunca organizaria uma coisa em que não pudesse participar.
A sua última exposição que esteve patente em Guimarães é um caso muito curioso porque não só é organizada por si, como é uma exposição individual e quase com um cunho antológico. A exposição não tinha um sentido antológico, nem pretendia ser exaustiva. É uma apresentação minha sem tempo. Aliás, o convite que surgiu do Centro, e de Ivo Martins, foi no sentido de não mostrar uma coisa antológica, com fases… Porque até nem tenho fases. Pensei em fazer uma exposição em que me apresento, em que não ia mostrar coisas novas. Apesar de depois até ter feito uns desenhos porque achei que me faltavam alguns para a exposição. Montava a exposição para mostrar as minhas peças. O critério foi o da actualidade apesar de até mostrar obras dos anos 1980 e 1990, mas que são recorrentes. Uma das telas que lá mostrei, Swimming to Brasil é uma coisa que não me importava de fazer agora. Uma década mais tarde fiz uma canção a partir do quadro. Mas ainda não fiz o vídeo, talvez daqui a mais dez anos… Assim sendo, o que traria de diferente para esta exposição o trabalho de um comissário? Era uma outra exposição; melhor nuns aspectos, pior noutros. Se bem que gostei muito de organizar esta exposição, gostaria muito de vê-la – porque é reconfortante para o ego – feita por um comissário. Neste caso em particular houve na organização uma espécie de performance. Tive a sorte de ser um espaço difícil, cheio de janelas e com pouca parede em si. Foram criados painéis para serem usados como suporte mas eu não os quis. Usei esse espaço reduzido entre as janelas e abri-as totalmente para que entrasse o máximo de sol. Parece-me que, mais do que uma performance, foi uma clara opção curatorial. Sim, mas se não fosse um artista a fazê-la, poderia haver um certo receio de abrir as janelas e deixar os quadros em contra-luz. Mas eu acho que ficou muito melhor assim porque as obras passaram a ter que competir com a luminosidade exterior, o que me parece uma coisa positiva. Passou a haver uma contaminação com a realidade.
As relações que se criam entre as obras de arte são centrais na problemática da curadoria. Os curadores estão conscientes da emergência de novos conteúdos semânticos que resultam das suas escolhas. Mas aqui as opiniões divergem: para uns o curador pode (e deve) deixar uma marca autoral na exposição, outros falam do dever de invisibilidade do curador. Acho que pode ser muito interessante o curador ser alguém que tem de criar novas situações e transformar as coisas na maneira como as mostra, acabando por ser um criador nesse sentido. Mas por vezes pode assumir dimensões caricaturais. Quando o Achille Bonito Oliva fez todos aqueles statements em torno da Transvanguardia, por exemplo. Isso fez muito mal aos artistas desse movimento, que não mereciam ter caído no esquecimento a que os votaram. Esse esquecimento foi o preço que pagaram pela arrogância do Achille Bonito Oliva. Ficaram conotados com o pior que houve nos anos 80. Foram um sucesso que resultou num fracasso devido à presença excessiva do curador e da afirmação de uma tendência. Sobretudo porque lhe pode limitar conteúdos, porque a delimita. E a obra de arte não pode ser circunscrita. Embora ache que é estimulante que as coisas consigam acontecer em paralelo. Acontecimentos que se tocam mas sem promiscuidades. Eu resolvo a questão da teoria da arte fazendo canções, o que até me dá uma certa autonomia. E um certo gozo que me liberta da necessidade de ter que provar alguma coisa. Tendo em conta que os estudos curatoriais só surgiram na década de 1990 e que o próprio conceito de curador/comissário abrange um largo espectro de posições possíveis, qual é, no seu entender, o papel do curador hoje? Penso que será como um manager, mas pela ironia da coisa. É a atitude mais decente. Mais do que achar que é um crítico ou algo assim. Pode ser um manager das peças ou pode ser um manager de ideias, de trabalhar a matéria prima que são os artistas e de lhes dar visibilidade. O curador também pode ser entendido enquanto manager no sentido mais comercial, ou seja, aquele que faz as coisas acontecerem: que contacta as instituições, que contacta os artistas, que consegue os fundos… Nesse sentido também é válido. Mas acho que até em relação às próprias ideias e à própria substância da coisa deve sentir-se como manager: alguém que põe a tónica nos artistas. É um manager de cabeças: faz uma combinação de personalidades (e de obras) e essa combinação tem algo de novo. Neste sentido também é algo artista, mas só porque enquanto manager tem que assumir uma atitude criativa. Uma atitude que até pode deixar a sua marca porque re-organiza e cria sentidos através de outras coisas. Mas será tanto melhor quanto mais sensível ao que já está imanente nas peças.
Eu se fosse curador gostaria de dizer que era um manager; mas não era para me rebaixar, era para criar um maior distanciamento. Eu vejo a exposição comissariada pelo próprio artista como uma extensão do seu atelier; como uma coisa feita para os seus amigos, para os artistas com quem convive ou com quem gostaria de conviver. Falou do sentido imanente das peças. Deve o curador ser alguém que desvela os sentidos ocultos? Sim, porque os artistas nem estão para isso. Até porque lhes perturba o sistema criativo terem que se preocupar com essas coisas. Mas os sentidos estão lá para alguém os ir buscar. As ideias de que o curador se poderá servir serão as ideias que retira da própria experiência que tem com as obras que conhece. Retira essas ideias e reorganiza-as; cria com elas novas situações de leitura. Mas é sobretudo um gestor dessas ideias, dessa matéria prima. E agora que já conversámos sobre o tema e foram lançadas algumas propostas do que é um curador, consegue fazer uma definição sintética? Um curador deve ter muita curiosidade pelo que os artistas estão a fazer. Tem de tirar o máximo dos artistas, mesmo dos que não gostam de falar do seu trabalho. Tem de ser muito rigoroso. Não no sentido cinzento do termo, mas no sentido de estar atento para não subverter o trabalho do artista. Tem de ser criativo, mas com uma criatividade que nasça do trabalho do artista sem que o transforme em algo completamente diferente. Isto é necessário para que a curadoria seja interessante. A exposição deve ser mais do que o somatório das peças. Não se deve limitar a fazer uma recolha de obras, mas antes deve criar situações estimulantes para o público e para os artistas. Até pela proposta de novas peças que não fariam caso não houvesse esses conceitos. Por outro lado, o pior defeito será o curador entender o artista como algo descartável. Temos situações onde quando há um excesso de peso da curadoria, os artistas podem passar para um plano secundário. Serem, eventualmente, parasitados. O que nós queremos é um parasitismo, mas positivo. O artista deve sentir que há um grupo de curadores que o vão sempre acompanhando, que estão sempre lá. Que exista uma certa constância e fidelidade. Notamos uma certa tirania do novo. E as coisas não são assim tão fugazes. Não considero o novo como um valor em si. Gosto de me entusiasmar pelas coisas e para isso tem que haver uma certa novidade, só que não gratuita. Posiciona-se contra a atitude, sobretudo britânica, do gosto pelo choque? Sim, pese embora o choque ser também um condimento. Penso que se me apetecer fazer uma coisa que já fiz há imensos anos (porque acho que o conceito não está esgotado) então faço-o. Pode haver algo mais interessante no nosso trabalho que é mais do que apenas afirmar uma diferença. Não chego ao ponto de dizer como o Marchel Duchamp que “o crítico é uma tolerância do artista”, mas também o é. E será tão mais interessante quanto mais consciência tiver disso. Mas é uma tolerância muito desejada, o crítico dá um jeito do caraças. E, como o crítico, também o comissário!
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CHRISTOPH MARTHALER
INQUIETAÇÕES Perfil de um encenador polémico que radicaliza as leituras sobre os clássicos a partir das suas encenações mais recentes
Fotografia: S. Mathé/ Opéra National de Paris
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texto João Carneiro
prenúncio da morte que vai acontecer no acto seguinte. É ainda durante essa que entram as ciganas e os matadores, divertimento e quase estranho momento de euforia numa ópera das mais sombrias. Golpe de génio: as ciganas e os matadores são os convidados que já lá estavam, elas de ‘couture’ entre anos 30 e 80, eles de escuro e camisa branca, simples ‘tenue de soirée’. Basta que uns e outros cantem as respectivas partes, e se organizem em amplas e eficazes coreografias; afinal, tudo se passa, nesta ópera, entre convenções sociais, sejam elas marcadas pela mais pesada ideologia e preconceito, sejam elas mero divertimento.
1. Na Traviata que Christoph Marthaler encenou para a ópera de Paris (na fotografia), o início passa-se numa espécie de foyer de um teatro, aliás inspirado na Kulturhaus de Chemnitz, que hoje já não existe. Os candeeiros, contudo, comprados por Anna Viebrock, a sua colaboradora habitual para a cenografia e figurinos, são autênticos. É, simultaneamente, estranho e familiar. Quem está a assistir a uma ópera, se não é a primeira vez que vai ao teatro, é natural que reconheça aquele tipo de espaço e de lugar; ainda por cima, existe no meio daquilo tudo um bengaleiro em tudo idêntico aos bengaleiros da Opéra Garnier; foi para essa instituição e para essa sala que esta encenação foi concebida.
3. Ainda um aspecto desta encenação: o palco, pequeno, pindérico e algo surrado, ao fundo, dentro do cenário. É nesse palcozinho que Alfredo irrompe para cantar uma das suas tão inflamadas como inconsequentes árias, e onde, no final, está a cama da moribunda Violetta.
2. Com algumas alterações de decoração no segundo acto, que se passa na casa de campo para onde Violetta e Alfredo vão viver o seu romance, o espaço mantém-se. No início está lá o bengaleiro, é onde as pessoas, os convidados de Violetta, deixam os casacos, na festa em que a anfitriã conhece o jovem Alfredo. No terceiro acto, quando Violetta volta a frequentar a vida social parisiense, depois de deixar Alfredo e depois de voltar a ser amante do barão, o espaço é o mesmo, sem bengaleiro. É lá que decorre outra festa; é lá que volta a acontecer o encontro entre Violetta e Alfredo, um encontro marcado agora pela violência da humilhação a que a mulher é sujeita,
4. É uma curiosa encenação, esta, em que a morte de uma personagem está directamente ligada a uma teia de convenções sociais que regem, com a banalidade do quotidiano, a vida das pessoas médias. A tensão entre memórias de poder ligadas a classes dominantes e aristocráticas, deslocação desse poder para outra gente, e circulação do dinheiro em moldes novos anuncia, tanto na Traviata como no romance de Dumas que está na sua origem, a vida democrática que hoje conhecemos nalgumas partes do mundo. Entretanto, entre o século XIX e o século XXI, muita gente estrebuchou e morreu por diferenças de opinião acerca dos direitos e do lugar de cada um.
5. Finalmente, a luz. Quando Violetta, dá largas à expressão dos seus sentimentos, a luz muda sobre ela. É a sua única prerrogativa, para além de exibir a voz. Num mundo onde algumas pessoas têm tão poucos direitos que acham normal que outras decidam tudo sobre elas, a luz dos projectores é o substituto possível para a aura e o brilho dos poderosos, dos privilegiados, e até dos santos, uma coisa reduzida a imagens e estatuetas de gosto cada vez mais duvidoso. 6. Em Winch Only, espectáculo que Marthaler criou em 2006, e que se mostrou em Lisboa no Fórum Cultural O Estado do Mundo em Maio passado, uma família pertencente a uma classe média mais ou menos alta vive paredes meias com um tribunal, de onde as filhas da casa roubam, de vez em quando, alguns móveis, com a maior naturalidade. A vizinhança promíscua e algo inusitada entre os dois edifícios remete-nos para um tipo de relação entre a lei e os indivíduos que tem tanto de suspeito como de inesperado. Uma casa paredes-meias com o tribunal, seja. Mas a comunicar com ele? E quando precisamos de uma mesa nova vamos ao tribunal buscar uma, porque é mesmo aquela que nos convém? 7. Já em Murx den Eureopäer (1993) e Die Stunde Null (1995), apresentados em Portugal em 1998 numa co-apresentação CCB/Culturgest, se verificava uma inquietante banalização de um exercício de funções de poder quase desumanizado e memórias de um mundo cuja amabilidade vinha referida quase sempre pela música. A representação era, em qualquer caso, marcada por um rigor técnico quase maníaco, e um elevadíssimo apuro da componente musical. Marthaler, que nasceu na
Suíça em 1951, exerceu a profissão de músico durante muito tempo, antes de iniciar as suas incursões no teatro. Trabalhou em Basileia, dirigiu a Schauspielhaus e Zurique, trabalhou na Volksbühne de Berlim, e um pouco por toda a parte na Europa. A música nunca deixou de estar presente nos espectáculos, e encenou muitas óperas – Mozart, Debussy, Verdi, Wagner, Beethoven, Schönberg, Janacek. 8. O que de mais interessante existe no trabalho de Christoph Marthaler talvez não seja só a invenção dramatúrgica, a qualidade da cenografia, a direcção dos actores, a sofisticação da dimensão musical, características que tornam os seus espectáculos tão sedutores como originais. O mais intrigante talvez seja, para além de todas aquelas qualidades, aquilo que na Traviata era evidente: o facto de durante toda a representação termos a levemente estranha sensação de estarmos a ver em cena os lugares onde estamos, onde vivemos, que acabámos de atravessar antes de nos sentarmos. De nos estarmos a ver, a nós e a outros. É isso que acontece na Traviata: aquele ‘foyer’ onde tudo se passa, aquele bengaleiro que por vezes está em cena, são estranhamente semelhantes a tudo o que atravessámos até ao momento em que começa o espectáculo. 9. É esta relação entre o espectáculo e o que não é espectáculo, entre o lugar em que se vive e o lugar em que se passa a história, a continuidade entre o que está antes da bilheteira e o que está depois, ou entre o que está antes de nos cortarem o bilhete e o que está depois, ou entre o que está depois da porta da sala de espectáculo e o que está antes dessa porta que nos remete, sem alarde e sem darmos por isso, para a situação em que as relações entre a arte e a vida são evidentes, problemáticas e difíceis de destrinçar. Alguns efeitos da arte derivam deste tipo de relações; por vezes, até mesmo alguma inquietação. O sítio da Opéra de Paris disponibiliza excertos da encenação de Traviata em http://www. operadeparis.fr/Accueil/Actualite.asp?id=316. Christoph Marthaler estreia a encenação de Wozzeck, de Alban Berg de 29 de Março a 19 de Abril na Opéra Bastille, Paris. A reposição de As Bodas de Fígaro, de Mozart, acontece no Théatre de Amandiers – Nanterre, França, de 11 a 27 de Abril.
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IVANA MÛLLER
PASSO A PASSO texto Florent Delval
onde um se apaga para que o outro se ilumine. Este instante é aquele onde tudo é possível, como diz Ivana em Into the night: “mesmo que numa centena de espectáculos apenas um ou dois, em média, preencham as minhas expectativas, espero sempre que seja um dos que vá ver”. Se não o bloquearmos, o dispositivo gera o desejo por si mesmo, que acaba por circular apesar de a proposta ser das mais minimalistas. Esse processo nunca poderá ser, assim, um trabalho de desconstrução severo e radical. Bem-disposta e comunicativa, Ivana não hesita em se descrever como ingénua em relação a questões centrais que a marcam. Trata-se simplesmente de dar luz aos perturbadores e evidentes detalhes que não sabemos ou já não sabemos ver. A expansão de superfícies secas poderá, certamente, dar a impressão de um deserto árido: a cortina do teatro, o ecrã de projecção (How heavy are my thoughts?), mas também o do computador (You are there but I cannot see you), do quadro (vivo) (While we are holding it together), da obscuridade total (Into the night) ou ainda o da pele (Under my skin). Mas chegamos sempre a um ponto onde estes cedem e acabam por entornar algo. São simples suportes que acolhem uma escrita em desenvolvimento até ao momento onde esta os penetra. Ivana Müller encontrou a sua grafia nos estudos literários, mas decidiu pouco tempo depois juntar-lhe o prefixo coreo-. Como todas as boas alunas de Letras, descobre o pós-modernismo e entra em cheio na “era da suspeita”(1). Mas decidindo, pelo jogo, que a coreografia seria para ela a origem de todas as outras escritas, investe num campo onde o desejo e a crença resistem custe o que custar, quase como anormalidades. Mas é graças a este apoio que ela consegue pôr corpos em movimento. Para ela, o seu trabalho consiste nisso: pôr corpos em movimento. Mas o corpo pode ser muitas coisas: um texto, um grupo de pessoas, um contexto... Alguns, com certeza, já inquietos, murmuram: mas ainda será dança? Ivana Müller decidiu não se colocar ao serviço das definições, mas escrevê-las e não dever nada à dança, servindo-se sim desta de forma lúdica e descomplexada. É uma questão de escolha. (1. Ensaio da escritora Nathalie Sarraute. Verdadeira arte poética do escritor contemporâneo cuja problemática poderia ser: de que maneira o escritor poder-se-ia livrar do sujeito, das personagens e da intriga?)
Tradução do francês: Francisco Valente
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Não fosse o ecrã suspenso e estaria a cena vazia. Nada a virá preencher excepto um pouco de luz. E depois, um olhar ao qual os nossos olhos se agarram. O espectáculo começa quando o projector de vídeo se liga e projecta a imagem de Ivana Müller na superfície branca. Tão imóvel que nos fixa. A sua voz, descolada dos seus lábios, enche o espaço. O espectador, hipnotizado, escrutina este rosto espelhado. E depois, por vezes, ela articula palavras e estas encontram um lugar, um ponto no centro do ecrã. Com a atenção posta em movimento, o público é apanhado num vai e vem: entre a superfície que nos inspira e as suas palavras que regressam a nós. É nesta proposta simples que esta ligeira vibração cria o movimento. Mas o ecrã romper-se-á quando, na verdade, Ivana perguntará: diga-me, mesmo sabendo que não eu estou aqui, será que não sente a minha presença? Em cheio. Com efeito, tal como perante um prestidigitador hábil, apenas podemos responder com um espantado sim. E sem que nos apercebamos, tece-se uma relação de intimidade com a ausente. O espectáculo chama-se On Belief. As crenças, as que são partilhadas por um grupo de indivíduos que olha na mesma direcção num dado momento, e que se encontram à mesma hora para viver uma experiência que só ocorrerá uma vez. O espectáculo é um dispositivo único que não tem igual em nenhum outro lado. Mas trata-se, antes de mais, de um dispositivo mental. Como será possível uma projecção cumprir o papel de um espectáculo? É que trata-se mais do que apenas um vídeo: mesmo parado por um ecrã, o desejo do espectador continua a circular, a fugir pelas margens, e o espectáculo, mesmo que minimalista, toma lugar. O enquadramento do ecrã é apanhado pelo enquadramento da cena e isso chega para que algo aconteça. Mesmo vazia, a cena agita-se. Mesmo quando apenas se é dada a ver a sua possibilidade, pois ela existe imediatamenente a partir do momento em que alguns indivíduos aceitam constituir-se num só público, e definem, assim, as coordenadas de um espaço partilhado. Talvez o espectáculo nasça nesse breve instante, antes que tudo comece, quando o silêncio é um acordo comum. O levantar da cortina, ou os seus avatares, são um ponto onde se junta o mundo e a cena e
© Nils De Coster (retrato) / © L. Bernaerts/ I.Müller /Driest ontwerpen (foto de grupo)
A coreógrafa que dá luz aos perturbadores e evidentes detalhes que não sabemos ou já não sabemos ver, revela-se ingénua em relação ao que a marca.
JOANA CRAVEIRO texto Tiago Bartolomeu Costa fotografia Martim Ramos
Uma das mais secretas encenadoras e dramaturgas portuguesas revela um discurso preocupado com o indivíduo e um teatro identitário sem ser expositivo.
Joana Craveiro pertence à geração que fez 25 anos em 2000 (tinha 26, para sermos exactos), definição-chave dada por Alain Tanner nesse filme-manifesto que previa um mundo mais democrático, tolerante e optimista. Mas a actriz e encenadora, precisamente por ter nascido em 1974 não pinta o mundo com tanta esperança: “ter nascido no ano em que nasci marcou-me politicamente para o bem e para o mal”. Começa por
dizer que “vivemos num país difícil onde é cada vez mais vago definir-se esquerda e direita” e, por isso mesmo, o teatro que faz e quer continuar a fazer empenha-se politicamente por uma identificação mais próxima daquilo que são os desejos do indivíduo, não tanto de uma massa generalizada e anónima. Joana Craveiro não tem dúvidas quando afirma que “o mundo já não é o que era e eu não sei o que é mundo, mas interessa-me saber o que é”. É essa busca que materializa sob a forma de peças de teatro, na sua maioria dentro de um colectivo que fundou em 2001, com Susana Gonçalves, e ao qual deu o nome de Teatro do Vestido que até ao final do ano ocupou um espaço no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, e agora se encontra sem sede. Pela raridade de colectivos no feminino depressa foi tomado como uma reivindicação de um teatro de género, mas para a também dramaturga essa colagem “não tem fundamento”. “Estamos sempre à procura de colar às pessoas uma ideia qualquer”, diz, sublinhando que quer “viver num mundo onde as pessoas não sejam sexistas; onde são valorizadas pelo que são, sejam homens ou mulheres, artistas ou sapateiros”. E reforça, no pragmatismo que lhe reconhecem: “não quero ser valorizada por ser mulher”. Contudo, a problemática do uso da identidade na criação – que Joana considera ter chegado a um nível que apelida de “pornografia da memória” – não é algo a que se escuse no seu processo de trabalho. “A investigação começa no que nos interessa e o que me interessa particularmente é a recombinação da dramaturgia da memória com a ficção. Quero trabalhar material biográfico naquilo que isso ressoa na vida de quem me vê”. São exemplo disso os recentes exercícios Nº 33, apresentado no final da 2ª edição do Curso de Encenação do Programa de Criativa e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian, e um outro, O desaparecimento de uma cidade, mostrado no Sítio das Artes do fórum cultural O Estado do Mundo, bem como a peça Passeio ao Norte, 1963 que estreará no dia 1 de Fevereiro, no Centro de Arte Moderna da mesma Fundação. Os três partem da sua própria história pessoal – e a da sua família – para criarem ficções que “reinventam o passado”. São histórias que reinventa, num processo de colagem entusiasmante que acaba, inevitavelmente, por nos envolver e evocar memórias também elas pessoais. Joana Craveiro acredita que “é possível o particular tocar o colectivo” e é esse poder que mais reconhece ao teatro. “Quando fazemos arte, ou outra coisa qualquer, não tenho ilusões nenhumas de que estamos a agir sobre um público. E quer trabalhemos sobre cartas [como aconteceu com CartaOceano, a última peça do Teatro do Vestido, a partir do escritor francês Blaise Cendrars] ou sobre nós mesmos, estamos a fazer uma afirmação política onde só importa o que se consegue imprimir naquele momento”. Porque “o acto teatral é um acto de partilha de uma identidade”, coloca-se a questão da consciência dos efeitos produzidos por esse poder, mas para Joana “criar é errar e às vezes perdemo-nos”. É por isso que ao chegar à mítica idade dos 33 anos, só tem um receio: “Do que tenho mais medo é de estar sempre a fazer a mesma coisa e não me aperceber disso”. Passeio ao Norte, 1963 apresenta-se dias 1 e 2 de Fevereiro no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Carta-oceano é reposto a 13 de Março no Instituto FrancoPortuguês, em Lisboa, no âmbito da Festa da Francofonia.
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CAMAROTE PAR
CAMAROTE PAR por André Dourado
MECENATO CULTURAL
UM PASSO ATRÁS, DOIS PARA A FRENTE? Numa discussão organizada por esta revista no passado Dezembro, o mecenato cultural irrompeu como tópico de discussão, tendo sido pacífica entre os seus participantes a ideia de que o Estado, em Portugal, é o seu principal beneficiário. Poucos dias mais tarde foi anunciado pelo Ministério da Cultura o “Novo Enquadramento do Mecenato Cultural”, na realidade o fim do enquadramento autónomo deste mecenato e a sua incorporação plena no Estatuto dos Benefícios Fiscais, logo no Orçamento de Estado. Não iremos aqui comentar a diferença entre o anunciado no Programa do Governo e o novo enquadramento: Augusto M. Seabra fê-lo em termos muito claros no seu blog Letra de Forma, a 23/12/07 (http://letradeforma.blogs.sapo.pt/6072.html). Vamos sim, brevemente, analisar a situação corrente e algumas mudanças previsíveis que correspondem a outros tantos desafios para os actores deste processo: um Estado simultaneamente legitimador e beneficiário, as empresas mecenas e os criadores/projectos beneficiários. O Estado, primeiro beneficiário. Numa realidade que não é um exclusivo nacional, o mecenato privado foi sempre visto pelo Estado como uma forma de completar os défices orçamentais da Cultura ou financiar projectos especiais lançados por si. O Estado está em melhor situação para pedir porque tem acesso permanente ao decisor privado, e é quem pode dar mais em retorno (e não só em prestígio). Durante anos, o seu sector empresarial financiou o que o Estado central não queria ou podia. Com as privatizações, as empresas onde o Estado se conservou directa ou indirectamente (golden share, etc.), mantiveram os costumes vigentes, só seriamente afectados naquelas – a que poderíamos chamar pós-estatais – em que os novos accionistas se interrogaram sobre o valor acrescido, para as acções, de gastos em instituições públicas muitas vezes à deriva. Historicamente, as empresas concentraram-se nas áreas mais visíveis – o património histórico, os grandes equipamentos (Teatros Nacionais, Cine-Teatros, CCB) interessando-se pela contemporaneidade apenas na vertente das artes plásticas, muitas vezes numa inexplicável concorrência entre si que comprometeu a qualidade e visibilidade desses apoios (o facto de a decisão residir sobretudo nos departamentos de marketing explica-o em parte, mas factores como moda e o próprio interesse da imprensa também). Por outro
lado, os criadores com projectos médios ou pequenos, habituados a um sistema no qual o MC e as autarquias têm um peso desproporcionado na estrutura de apoio financeiro, e por incapacidade em investirem tempo e recursos em outros processos nuns casos, ou por pura falta de hábito ou imaginação noutros, nunca sentiram a necessidade de olhar para o lado e procurar novos parceiros financeiros. Ora, no momento em que a concorrência dos outros tipos de mecenato – o desportivo e social, e os mais recentes ambiental, científico e neo-tecnológico – cresce, e a tendência para diminuição dos apoios públicos é internacional (vide polémicas com o Arts Council e British Council britânicos), é preciso pensar em mudar. Pedir ao Estado para deixar de pedir é irrealista, mas pode-se pedir-lhe para desburocratizar – o reconhecimento prévio do Estatuto de Utilidade Cultural para os projectos de associações ou grupos constituídos devia desaparecer, substituído por uma fiscalização posterior, aceitando-se o princípio da honestidade dos proponentes, que já vigora na fiscalidade em geral. Clarificar a aplicação da lei também seria bom: quantas vezes o fisco quis impor o IVA a doações considerando-as publicidade? Do lado dos mecenas, a mudança é necessária na forma como vêem a sociedade civil e se articulam com ela – quem vive da pequena poupança e do pequeno consumo deveria estar mais aberto aos projectos culturais de menor dimensão – valorando a vertente cultural e não apenas a publicitária. Mudanças necessárias também do lado dos criadores – melhorar a organização, aceitar a avaliação por resultados (baseados em critérios culturais mas não só) projectar também a pensar em comunicar e ser escrutinado. O futuro passa por explorar cada vez mais o mecenato de proximidade, por interagir à escala local com empresas de média dimensão, hoje muitas vezes dirigidas por empresários (veja-se, por exemplo, a relação da Bienal de Cerveira com o Grupo DST de Braga) que percebem a importância da cultura para a economia. “Rever e regulamentar a lei do Mecenato, de modo a torná-la mais amiga dos projectos culturais de pequena e média dimensão”, diziam-nos. Para que estes sejam viabilizados, é preciso mais do que palavras, mas por uma vez não é só ao Estado que cabe actuar: todos terão/teremos de mudar…
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EMMA DANTE entrevista Jean-Louis Perrier
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Emma Dante decidiu instalar o seu teatro no sítio de onde vinha: Palermo. O nome da sua companhia, Sud Costa Occidentale, ondula como uma bandeira pelas baixas de uma cidade que ainda não mudou de século. Vinda do Sul, Emma trabalha sobretudo na densidade das sombras, o que se corta com o continente e o nosso mundo a partir da costa. As famílias pobres de M’Palermu, Carnezzeria e Vita Mia derramam ainda o veneno das convicções ancestrais, servidas em doses precisas por uma cultura mafiosa. Algumas frases em dialecto não chegam para afirmar a plenitude da sua existência, entre o silêncio e os gritos. Compensam pelo empenhamento físico dos familiares, pelos gestos de amor das mães, pelo exarcebamento dos ritos. Deixadas em zonas ainda não cobertas pela comunicação globalizada, agarram-se à “omertà” [a recusa de colaborar com a polícia] como uma forma de heroísmo. Tiram orgulho da sua submissão a regras que as nossas mesmas desaprovam e que as fazem andar de mão dada com o que as tortura. As suas errâncias suscitam compaixão e uma revolta imediata, aquelas que se associam aos eternos perdedores. O teatro de Emma Dante, dedicado à sua causa, reproduz eficazmente o seu isolamento comunitário, a estreiteza das suas perspectivas, a sua ligação a poderes e casualidades que apenas se sabem denominar como uma fatalidade. Nos seus interstícios, a vida naufraga, contraria-se, está sempre à beira de uma explosão sangrenta, à qual seria uma ilusão opôr-se, tanto como pretender-se rescrever a história. Pois é ela que reaparece, a cada vez, debaixo da máscara do quotidiano; e o seu rosto doloroso, da mesma maneira que os seus intérpretes são jovens, é aquele em que Sciascia já vê a permanência em Lampedusa: “a morte como garantia definitiva, como última síntese deste modo de viver que é a Sicília”.
Com M’Palermu em 2001, Emma Dante surge brilhantemente numa paisagem teatral italiana em busca de autores. Três peças mais tarde, confirmou a originalidade e o poder das encenações baseadas no quotidiano de famílias deserdadas. Com um dialecto reinventado por um grupo de jovens actores, eleva as cores e as dores de Palermo à escala universal. Depois de em 2004 ter apresentado no Porto, integrada no PoNTI 2004/13º Festival da UTE, as peças M’Palermu e La Scimia , a encenadora siciliana regressa a Portugal com três novas abordagens ao universo particular do sul de Itália. A ver no CCB, em Lisboa, de 28 de Fevereiro a 9 de Março.
O que é Palermo para si? Palermo é uma cidade moribunda, uma cidade que se aproxima constantemente da morte, sem nunca a atingir. É a mesma coisa nos meus espectáculos. Palermo é o meu teatro e o meu teatro é Palermo. A cidade está moribunda e os meus espectáculos são moribundos. Conduzem-nos à morte, aproximam-se sempre dela, sem nunca a atingir. Palermo é uma cidade eterna. É tão velha que nunca se tornará moderna. Pertence a uma outra época. O que a torna ainda mais fascinante. Isso é uma declaração de amor? De amor e de ódio. Os méritos de Palermo estão também na sua brutalidade. É fascinante e assustadora. É maravilhosamente horrível, irresistível na sua beleza absoluta. Os grandes temas das suas peças, como o isolamento, a honra, a morte, são tratados de forma explícita ou serão apenas o resultado da narração? A vontade de os contar é a causa e não o resultado. O resultado é o espectáculo. Tenho vontade de afrontar temas tabu, universais, que nos são incompreensíveis. A morte não pode ser compreendida. A nossa passagem por este mundo não pode ser compreendida. As relações íntimas não podem ser compreendidas, sobretudo as de sangue: mãe e filho, irmãos e irmãs. Tudo isto é misterioso. “O teatro serve para levantar um véu que se colocou por cima do mundo, no tempo entreaberto”, disse Romeo Castellucci. Estou de acordo com ele. O teatro não pode servir para mais nada, apenas para levantar um pouco a poeira e interrogarmo-nos. Alimenta o nosso pensamento, ajuda-nos, por vezes, a afrontar a nossa própria vida, a agitá-la, criando uma guerra interior que nos põe em movimento. Para mim, o espectáculo existe para formularmos
essa interrogação no momento em que ele se desenrola. Mas nada nos diz que a questão será esquecida amanhã, que não permanecerá viva. Tem uma vontade particular de testemunhar, através do teatro, uma vontade de autenticidade? Essa autenticidade está dentro de si, ou fora de si? O lado denunciador existe. As histórias contadas também, infelizmente. Testemunham situações de limite, as do sub-proletariado urbano. Os factos são reais, tal como a ausência de água potável é real, ainda hoje controlada pela máfia. As famílias fechadas nas suas casas, o incesto com as filhas, as mulheres que sofrem de violência, reclusas, que não podem ter uma vida normal, tudo isso existe. Em relação à autenticidade: não, não fui violada pelo meu pai, mas sim, perdi o meu irmão num acidente. Vita Mia é autobiográfico. A violência sexual e física não é autobiográfica. Tudo se mistura num sonho, que tem tanto de pesadelo como de felicidade. As personagens estão sem consciência social ou política, tal como se permanecessem numa consciência arcaica. Têm uma consciência instintiva que está ligada aos códigos de honra, logo também uma consciência política no interior desses mesmos códigos. Pertencem a uma outra sociedade que não é a nossa, uma sociedade que não é reconhecida oficialmente, estão casados com uma causa. As suas famílias não reconhecem as leis da sociedade, mas também não são anarquistas. Têm uma consciência muito clara em relação às regras que se podem chamar de mafiosas. Não poderia escrever sem a consciências destas famílias. Elas têm uma linguagem secreta, muito precisa. Secreta e mafiosa, é a mesma coisa. Falo sobre estas famílias do interior, no seu vocabulário. Têm todas uma série de símbolos privados a partir dos quais os meus espectáculos são feitos. Que lugar ainda se dá à religião? Ainda demasiado, infelizmente. Pergunto-me ainda se acredito em Deus, mas não na Igreja como instituição. Os rituais, as cerimónias estão ainda presentes na minha vida como em qualquer outra vida no Sul. Os símbolos religiosos entram nos meus espectáculos mas estão desprovidos de sentido, como simples objectos. O crucifixo ainda não tem Deus. Os símbolos da Igreja não representam nada. O que tem valor é a minha interrogação à volta de Deus. Foi educada com o dialecto palermitano? O dialecto era proibido na nossa casa porque era a língua dos pobres. Aprendi-o através do contacto com as outras crianças na escola. A minha família não o queria, então falávamo-lo às escondidas, entre nós. Era a língua secreta das crianças. Como é que o dialecto se impôs nas suas peças? Nasceu ao mesmo tempo que o meu teatro. É a língua do meu teatro. Um dialecto que evolui, que se modifica ao longo da encenação. Muda a cada dia. Inventamos uma nova linguagem em cena, baseada no palermitano, o “palermitano-dantesco”. Os actores falam o dialecto? Todos. Faço-os entrar em cena neste dialecto de “palermitano-dantesco”. As palavras nascem através da improvisação. Não são pronunciadas, mas sim trabalhadas pelos actores. É >>
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EMMA DANTE >> uma língua que se desenvolve pouco a pouco. Nunca se en-
contra finda. Normalmente recuso a legendagem porque tanto em Milão como em Paris as pessoas não compreendem o palermitano. Nestes casos faço uma tradução em italiano, um compromisso, que reduz a poesia do texto mas que preserva a poesia em cena. Como é que se juntou a Compagnia Sud Costa Occidentale? Depois de anos em Roma, voltei a Palermo para me juntar à minha mãe doente. Estava revoltada, desesperada, sem dinheiro, queria parar com o teatro. Mas o que fazer? Palermo é uma cidade da província para quem vem de Roma. Uma cidade vulgar e estúpida. Tornei-me também vulgar e estúpida. Agradava-me. Em Palermo não faltam desempregados. Organizei um laboratório onde veio gente nova. Durou um ano inteiro. Trabalhámos sobre um tema preciso: O Amor nos Tempos de Cólera, de Garcia Marquez. Não fiz uma encenação, não escrevi, procurava pessoas que me pudessem acompanhar neste inferno que é, para mim, o teatro.
Vendo as suas peças, fiquei com a sensação que se tratava de um teatro pré-pirandelliano. Daí a divisão das personagens. As personagens de Pirandello estão divididas porque a psicologia está na base da sua obra. Está muito longe da minha escrita. As minhas personagens são mitológicas, não psicológicas. São idiotas. Não pensam por aí além. As personagens de Pirandello pensam tremendamente. Existe maior dificuldade para uma jovem mulher que emerja da Sicília? Já emergi. Tudo é difícil. Todo o empreendimento é difícil e o meu é um grande empreendimento, mesmo que seja um pequeno grupo. Tem a impressão de estar sozinha? Não, estamos todos sozinhos. Todos os que têm uma relação com a arte estão sozinhos. Um artista está sozinho. Não se deve submeter a quem quer que seja. Isso não quer dizer que não dialogo com os outros: dialogo, mas estou sozinha. Tradução do francês: Francisco Valente Texto publicado em colaboração com a revista Mouvement
Fotografias de Carnezerria © Sud Costa Occidentale
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De que maneira evoluiu a sua escrita entre M’Palermu, assinado pelo colectivo, e Mishelle di Sant’Oliva, onde também faz a cenografia e figurinos? Mishelle... apresenta uma diferença substancial em relação às peças precedentes: as duas personagens estão sentadas e falam muito. Há um trabalho importante sobre o texto. Porque conta duas histórias ao mesmo tempo. Uma história real e uma história que é evocada: a do amor por uma bailarina francesa que deixou a sua família parlemitana. Não assinei M’Palermu, mas escrevi-a como as outras. E se hoje assino a cenografia e os figurinos de Mishelle..., não é por um desejo de omnipotência, mas porque o teatro é uma experiência exclusiva, para onde tudo deve convergir. A escolha dos figurinos é importante. A roupa de um actor. Não está ali para vestir uma réplica. Devo poder dirigir o figurino, e para dirigi-lo, devo escolhê-lo, tal como escolho o actor.
ENRIQUE DIAZ
texto Gwénola David
Enrique Diaz, um dos mais reconhecidos encenadores brasileiros, apresenta-se pela primeira vez em Portugal. O CCB mostra, entre 3 e 13 de Abril, duas leituras de clássicos do teatro, A Gaivota e
Hamlet.
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TEATRO EM APNEIA Companhia Dos Actores… O nome ecoa como um manifesto: em Enrique Diaz, o teatro é antes de mais uma história de actores. Aquela que há quase vinte anos se escreve no palco com uma companhia unida numa vagabundagem colectiva. Aquela que se mostra em cena com as personagens. Jogo de duas faces, onde o intérprete faz tanto o seu papel com uma naturalidade que não se descose, como manobra os seus artifícios espectaculares e desfaz à distância as aparências enganadoras. “Comecei com 16 anos e aprendi o meu trabalho como um autodidacta, como actor e depois encenador”, explica Enrique Diaz. “Fundámos a companhia em 1992 com alguns camaradas e um desejo de abrir um campo de discussão e da prática teatral, em oposição à visão comercial e repressiva do Brasil.” O teatro puxa aqui por uma aventura fora de cena: traça uma linha de vida ao mesmo tempo que um caminho artístico. As personagens, fantasmas familiares que habitam nas sombras dos corpos, acabam por vezes por se confundir com as cores da existência... Com Ensaio.Hamlet, a Companhia Dos Actores roçava o verbo de Shakespeare contra a pele do presente, unindo acções reais a acções ficcionais, a representação e o que foi vivido por ela. Prossegue hoje com a pesquisa com Tchékhov e disseca A Gaivota até às suas mais profundas
Texto publicado em colaboração com a revista Mouvement Tradução do francês: Francisco Valente
tiva, onde a ficção se fortalece debaixo do olhar dos espectadores muito próximos, onde as interrogações que Tchékhov coloca se incorporam no próprio gesto artístico. O jovem escritor Treplev defendia a invenção de “novas formas”: A Gaivota responde-lhe magistral e insolentemente pelas convenções e o artesanato do teatro, pelo poder da representação perturbadoramente “verdadeira”. Confundindo o alfabeto naturalista que queria confundir o nome e o objecto, os actores fazem o espectáculo que se vê com objectos reciclados e contrastantes com a situação. Uma vassoura ou um ventilador tornam-se em armas de combate, uma couve transforma-se numa gaivota... É precisamente nesta estrutura entre o significante e o significado que cada um pode mergulhar com o seu imaginário para fazer dele um lugar de simbolismo, trazer “a parte que falta” e criar a “sua” representação. A forma não deixa de desafiar o poder da ilusão. Enrique Diaz desconstrói com humor as retransformações da mistificação, mostra a sua burla; a magia, contudo, avança... Uma vingança da metáfora sobre a obsessão do real? A personagem, aqui sustentada por várias vozes, perde a sua identidade de sujeito, duramente ferida pela análise psicológica, e torna-se numa constelação de possibilidades, reflexo de um “eu” fragmentário que se procura e que se tenta tornar nele. O actor entrecruza-se num jogo figurativo, metafórico ou realista, deixa-se cair na cavidade do papel por um momento, partilha-o com os outros, abandona-o, volta a si mesmo: um artista a trabalhar. Livre e soberano, inventivo e abundante. A arte e a vida ecoam juntas num eco perturbador. A Gaivota apresenta-se como uma “mise en abyme”, excepcional e lúdica, do procedimento do escritor Trigorine, que retira amostras da realidade para alimentar a sua escrita. “Parece que devoro a minha própria vida”... A Companhia dos Actores dá-nos a possibilidade de viver através da arte com a prática e o quotidiano. Dá-nos um seguimento infinito e afamado de ensaios que é a vida... tentativas de criar, de existir.
Fotografia de Ensaio.Hamlet © Debora /Companhia dos Actores
camadas, para auscultar a ligação entre ficção e realidade, mentira e verdade, arte e vida. “Lemos muito Tchékhov e muito sobre Tchékhov. Escolhemos A Gaivota porque a peça evoca o teatro, a criação, o conflito entre gerações, o problema das formas... Oferece um prisma para interrogarmos as nossas práticas, depois de vinte anos de um exercício quase quotidiano. Queríamos partilhar as nossas dúvidas, lançar o nosso olhar sobre o nosso trabalho”, afirma Enrique Diaz. “Descamámos o texto, cavámos os temas subjacentes para percebermos o seu significado em nós, hoje. A partir do método Suzuki e da técnica de improvisação por “viewpoints”, que estudámos em Nova Iorque com a SITI Company da Anne Bogart, desenvolvemos “composições” à volta de temáticas ligadas ao texto mas também à nossa vida de actores, da companhia. O corpo é a ferramenta essencial do nosso trabalho enquanto articulador da presença no espaço e também mobilisador da emoção, da memória, dos estímulos externos e da linguagem.” Estes estudos preparatórios, concebidos a sós ou a vários no espaço de um dia, serviram de esquissos para construir as linhas fortes de A Gaivota. Durante cinco meses, estas traçaram os fios de uma reflexão sobre o processo de criação, que entretanto se confundiu com os temas da peça. Didascálias, comentários, lembranças de Hamlet, extractos do jornal de Stanislavski, ensaios em vídeo ou ainda diálogos dos ensaios que se juntam às réplicas e desviam o rumo da história de um caminho traçado por um fio, como é hábito. Tanto colocado por questões como na cena, este teatro desmonta a mecânica dramática e observa a palpitação da vida no pulsar das palavras. Os sete actores limpam a pátina dos anos que alisa os estalos de A Gaivota debaixo de uma melancolia encoberta, talham a quente a carne viva do texto para se fazer ouvir aqui e agora. Um chão branco, alguns acessórios e ferramentas, uma floresta de plantas verdes, uma fila de cadeiras... O palco apresenta-se como um espaço de intervenção colec-
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FRANCISCO LUÍS PARREIRA entrevista Mónica Guerreiro fotografia Martim Ramos
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Principalmente ligado à escrita dramática, não obstante a formação em Filosofia, e Teoria da Cultura, Francisco Luís Parreira vem construindo um corpus de trabalho ligado ao teatro, com especial insistência na tradução. Artistas Unidos, Primeiros Sintomas, Pogo Teatro, Teatromosca, Teatroesfera, Teatro Meridional e Assédio são companhias que têm encenado originais e traduções suas (de Samuel Beckett, Joe Orton, Mark O’Rowe e Sharman Macdonald) publicou ainda poesia (Manual de Jardinagem Metafísica), que também traduz, e é autor de guiões (ficções e documentário). Há poucos anos, uma famosa missiva sua – destinada a um dos protagonistas da cena teatral portuguesa – levantou polémica e revelou uma voz temerária que vale a pena continuar a ler. E a ouvir. Há poucos dias – a 14 de Janeiro – passou na Antena 2, no programa “Teatro Sem Fios”, realizado por Pedro Coelho, mais uma das suas peças radiofónicas: Três Parábolas da Possessão. Mas não seriam precisos pretextos para falar com Francisco Luís Parreira.
Tradicionalmente, chamar-lhe-íamos primeiro tradutor e depois escritor e depois guionista e depois cineasta. Parece ser assim por uma perspectiva apenas mercantilista – da quantidade de trabalho produzido – mas qual é a ordem que o Francisco prefere? Ou antes, veio o teatro antes ou a filosofia? E como lhe apareceu a tradução? Em primeiro lugar, tenho que contestar a sua interessante enumeração tradicional. Não sou guionista e muito menos cineasta. Quanto a ser escritor, reservo-me o direito de ser o primeiro a sabê-lo. Como não sei, nunca digo que sou, nem ninguém pode por enquanto dizê-lo por mim. Tenho escassamente feito traduções, mas não sou tradutor. Não quero (neste como nos restantes casos) usurpar um perfil profissional a que não tenho direito. Por conseguinte, não prefiro nenhuma ordem, porque nenhuma existe. Sou um professor de filosofia, se é isso que quer saber, e um investigador universitário. Pergunta-me o que veio antes. Dou-lhe uma resposta impessoal. O que vem antes é sempre a filosofia – e só por uma razão: porque é a forma radical do desejo. Se não for assim, nada vem depois. O teatro, por exemplo, enquanto desconheça este princípio, isto é, enquanto parte do chamado sistema das artes e, por conseguinte, como modo de vida, é totalmente destituído de interesse. A mim só me interessa como ontologia. Embora leia Shakespeare talvez há mais tempo do que leio filosofia, fi-lo sempre imbuído desse espírito, como também ao traduzir Beckett. Entretanto, que me associe ao teatro deve-se unicamente ao facto de contar entre os meus amigos um grande número de actores. É uma consequência de uma juventude de dissipação e, nesse sentido, um erro que terei que corrigir. A minha primeira tradução foi de Yeats. Sugeriu-ma um editor conhecedor das minhas inclinações irlandesas. Dá então a entender ser, de certa forma, produto das circunstâncias: a proximidade ao teatro faz-se por via dos amigos, à tradução por sugestão também alheia... Erros a corrigir, determina o tradutor-não-tradutor. Onde cabe, então, a dedicação tão intensa a projectos que parecem ser, para si, meramente contingentes? Para quem do lado de cá observa e – mais que isso – usufrui do seu trabalho artístico (possa ou não pensá-lo como modo de vida) é difícil estar de acordo com tal demissão dos “perfis profissionais”, ainda que se lhe possa reconhecer a humildade. Tenho de dizer, nesta fase, que das minhas melhores experiências teatrais de sempre, três estão-lhe associadas: Agá o Piolho, Tristão e O Aspecto da Flor e Mainstream. Nos seus (tão diferentes) lugares, a memória do prazer é em todos vibrante. No caso de Tristão e O Aspecto da Flor, resigno-me a aceitar a sua decerto imerecida apreciação. Nos outros espectáculos que menciona, porém, a minha participação foi muito reduzida. No primeiro caso, limitei-me a traduzir o texto e, embora não de forma premeditada, a contribuir para a reputação portuguesa de um autor que, desgraçadamente, está longe de me entusiasmar. Já no caso de Mainstream, nenhum dos seus muitos méritos me pode ser atribuído. Apenas escrevi um pequeno texto que integrou o espectáculo já na sua forma tardia e participei uma noite como actor (digamos assim). Quanto ao resto, creio que não me expliquei satisfatoriamente. A minha relação com o teatro não é contingente. Isso seria conceder ao acaso uma importância que não posso reconhe-
cer-lhe e, em todo o caso, a demitir a criatura da vida de que ela é o centro. Pelo contrário, essa relação é bastante natural, na medida, precisamente, em que não se alimenta de si mesma e não foi forçada por nenhuma espécie de vínculo ou aspiração profissional. Reconheço que isto pode ser um problema num meio em que a autonomia criativa é tão restrita e que, por essa razão, necessita angustiadamente de situar os indivíduos que o integram e as aptidões que os legitimam. A “dedicação intensa” a que alude teria que ser entendida por aqui, quer dizer, na sua dimensão ética: será tanto mais intensa quanto maiores os obstáculos inerentes à minha exterioridade profissional. Mas também talvez na sua dimensão de conhecimento. Há em toda a linguagem o princípio, por assim dizer, de uma crise poética (é esta, digamos, a intuição de Próspero). Sou desagradavelmente obstinado na tentativa de ver essa crise inteiramente desdobrada no espaço e, desse modo, animada. É um imperativo de conhecimento a que o teatro, quando entendido com correcção, se presta maravilhosamente. Julgo entender onde quer chegar. Mas como então conciliar a vocação (essa, aparentemente, pacífica) de investigador universitário, actividade que lhe desconhecia, com a visibilidade concedida pela prática artística? Como se tocam, no seu caso, a investigação e a escrita? E será a tradução a forma mais consequente de explorar essas relações, pela sua capacidade de se revelar enquanto mediador? Não sabia que tinha visibilidade, pelo menos fora do meu bairro. Suspeito que esteja a ser muito generosa, mais uma vez. Mas, se é verdade o que me diz, tenho que encarar a situação com o maior alarme. Espero que essa visibilidade não resulte de um interesse pela minha pessoa. O total desinteresse público da minha pessoa, aliás, é uma causa pela qual estaria disposto a lutar com todas as forças. Consola-me apenas o facto de que o meio em que essa visibilidade opera é ele mesmo uma espécie de bairro ainda mais restrito do que aquele em que vivo, trezentas ou quatrocentas pessoas em Lisboa e no Porto que frequentam os teatros, mais afincadamente as estreias, sobretudo para, de forma pitoresca, “verem o trabalho” umas das outras. Para ir à sua pergunta, não há qualquer contradição entre a actividade académica (prefiro chamar-lhe ensaística) e a artística. Em princípio, não devia ser interdito a uma sensibilidade artística exercer a curiosidade; em todo o caso, não a creio incompatível com uma biblioteca universitária. Uma pessoa que só sabe de teatro ou, como é comum em Portugal, que nada sabe além daquilo que a faz escrever poesia, é obviamente uma pessoa que não pode saber o que é a poesia ou o teatro. Tem assim de existir alguém que lhe explique o que anda a fazer, necessidade que entre nós deu origem, sobretudo na poesia e nas artes plásticas, a uma muito fraudulenta indústria da explicação. Também proliferam entre nós encenadores que não sabem por que é que Hamlet estudou em Wittenberg ou por que é que Othello é soberano de Chipre, mas que consideram Shakespeare um grande “desafio” para as suas carreiras. O seu trabalho é a prova de que nada há mais maçador do que uma arte assente no repúdio do conhecimento e firmada nos chamados valores da “existência” e da “espontaneidade” ou, pior ainda, “estéticos”. Outra coisa que ignoram é que, desta forma, estão a condenar as suas obras, em especial por não saberem referi-las a uma
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FRANCISCO LUÍS PARREIRA >> tradição ou ao movimento geral da cultura. É um tipo de con-
denação a que eu desejaria furtar-me. Quanto à tradução: não lhe atribuo o papel que sugere. Todo o tradutor, mal ou bem, faz uma experiência de heteronímia. Assume, por instantes, o nome de Beckett (digamos) e usa-o para se confrontar, manhosamente, com a própria língua. Pode assim redescobri-la. E, se tiver sorte, após esta bela redescoberta, pode um dia ouvir a sua voz autêntica e detectar nela, perfeitamente harmonizada, uma particularidade beckettiana.
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Suponho que a visibilidade, a existir fora da minha esfera de “wishful thinkingness”, resulta mais da curiosidade pelo trabalho do que pela pessoa. O Francisco não pode furtar-se a admitir a intensidade com que se serve da língua e como a espreme e estica tão vigorosamente que parece aumentar-lhe a resiliência, se resiliência for coisa que as línguas tenham. E que nessa resiliência cabe a bela redescoberta da própria língua, como diz. Ao que não é escritor, pode chamar-se escrevinhador? Pergunto porque penso que seja a escrever que se sente mais feliz. E pergunto ainda como se sente na escrita de outras matérias - são conhecidas epístolas suas que o relevam como polemista, particularmente a que endereçou a Jorge Silva Melo e cuja publicação o Expresso declinou [o caso pode ser recordado em http://omelhoranjo. blogspot.com/2005/11/debate-1.html]. Já agora: a “muito fraudulenta indústria da explicação” será aquilo que em certos circuitos se designa por “exercício crítico”? Se não posso furtar-me, então não vou tentá-lo. Escrevi-nhador não. É um tanto humilhante, não lhe parece? Quanto à questão de se ser feliz por escrever. Oxalá não. Há já demasiada felicidade no mundo da cultura. Vivemos numa época em que, a todo o momento, somos forçados a concluir que a felicidade acabou de ser descoberta. Essa felicidade apoia-se na convicção, também recente, de que vamos viver para sempre. É o que se conclui quando se observa o modo mais ou menos indiferente como a maior parte das pessoas ocupa o seu tempo, o modo como gosta de perdê-lo com os espectáculos que frequenta (ou produz), os livros que lê (ou escreve), as conversas ou os objectivos gerais a que se devota. E já é certo, por outro lado, que o nosso zeloso governo se prepara para abolir a morte no próximo mandato. O público da cultura, em especial, assemelha-se à excitada debutante que corre do espelho para o guarda-vestidos sem saber o que vestir: todos os vestidos lhe assentam bem. Não sei quem compõe a vanguarda dessa felicidade. Noto porém que os poetas gostam muito de escrever sobre o acto de escrever poesia e que esse pueril e feliz narcisismo (ou ausência de mundo) é muitas vezes o foco de interesse da crítica correspondente. Escrever talvez se tenha tornado o objecto final da literatura e o teatro, o objecto final do teatro. Não seria surpreendente que alguma voz se levantasse e, perante este estado de coisas, declarasse que a História chegou ao fim e que o projecto cultural perdeu todo o sentido. É por isso doentio o subsidiado teatrinho feliz e auto-centrado que se propõe nos nossos palcos e que só posso apelidar de teatro de Estado, na gestão e promoção do qual, aliás, entre encenadores e comissários culturais, está há muitos anos instalada a classe mais ignorante e mal educada jamais produzida neste país: a burguesia lisboeta. O papel deste grupo tem sido o de tudo reduzir ao ritual, isto
é, o de cancelar o mundo, promovendo-se a si mesma, e de neutralizar o poder da arte, opondo-lhe a feira. E quando estas mesmas pessoas, concentradas frente ao Teatro Nacional com velinhas e um abaixo-assinado, ou redigindo propostas de assalto ao poder, se queixam de que não as deixam ser felizes nas condições em que o exigem, estamos já lançados no meio de uma mistificação medonha. Tem aqui a minha resposta à questão da polémica e, em particular, da carta a que alude. Em todo o caso, uma pessoa de bom senso não pode sentir-se muito feliz ao escrever, na medida, justamente, em que não pode sentir-se muito feliz de maneira nenhuma. Não ser feliz, nos tempos que correm, é uma precaução necessária. Por fim, nada tenho contra a explicação: é com ela que ganho a vida. Considero-a aliás a condição originária da criação, como, se propõe na teologia judaica, em que toda a criação tem uma estrutura explicativa. Por isso, lamento os casos em que a crítica (muitos vezes imitando o criador) se demite de toda a explicação. Quase me deixo convencer pela sua defesa da não-felicidade. Movida assim por um recém-adquirido cepticismo, que não me é nada natural, termino por ora esta nossa breve conversa com uma pulguinha que me ficou atrás da orelha: aquando do meu primeiro telefonema, em que lhe propus esta entrevista, pareceu-me – por assim dizer – bastante surpreendido por ter dito que o havia escolhido. Por que terá sido que o senti? E, claro, a obrigatória questão final. Planos para 2008? A sua percepção é correcta. Terá, no entanto, que me dar o devido desconto. Recebo poucos telefonemas, quase sempre de pessoas que não me escolheriam para coisa nenhuma e cujo discernimento costumava admirar. Em compensação, também não fiquei perplexo ou escandalizado, o que talvez possa apresentar como atenuante. Quanto aos planos, reduzem-se a um só, o de sempre: tornar-me num homem melhor. Persistirei, para isso, em guiar-me pela sábia lição de um velho poeta espanhol: com poucos mas doutos livros juntos, viver em conversação com os defuntos. Talvez queira, uma ou outra vez, mudar de fantasmagoria e conversar com os vivos. A vida de um leitor é tempo contraído. Ocasionalmente, gera-se nessa contracção o potencial de uma obra, isto é, de um repetido gesto de expansão.
A peça Agá, o Piolho está editada na revista dos Artistas Unidos nº5 ; A História do Escrivão Bartelby no nº7 da mesma revista e ainda no volume duplo, da Errata, com Tristão e O Aspecto da Flor. As peças radiofónicas podem ser ouvidas em http://tv1.rtp.pt/wportal/ multimedia/index.php?prog=2263
FORCED ENTERTAINMENT / TEATRO PRAGA
COPO MEIO CHEIO – COPO MEIO VAZIO entrevista Tiago Bartolomeu Costa
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No final de 2005 correu um e-mail por grande parte da comunidade artística assinado por um(a) enigmático/a Mata-Hari, estabelecendo uma comparação entre o Teatro Praga e a Forced Entertainment. Na verdade, a acusação era de plágio. O divertimento ficou por ali, pois a/o espia(ão) desapareceu. Mas a ideia ficou. Durante sete semanas, enquanto preparavam as estreias de Discotheater (Teatro Praga) e The World in Pictures (Forced Entertainment), que se apresentariam no Alkantara Festival 2006, as duas companhias foram desafiadas a responder à mesma pergunta, nas mesmas condições. Uma vez por semana André e. Teodósio e Pedro Penim, pelo Teatro Praga, e Cathy Naden e Robin Arthur, pela Forced Entertainment, recebiam, por e-mail, uma pergunta, à qual respondiam e depois trocavam as respostas, reescrevendo-as, se quisessem. No final as companhias, que nunca se tinham cruzado antes, conheceram-se. Durante o processo de escrita nunca falaram do que estavam a fazer. Mas as suas peças eram, de facto, muito parecidas.
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Por mais voltas que dermos, a verdade é que parecemos todos obcecados em saber o que é que é “teatro” e qual o seu papel hoje. Iremos algum dia ser capazes de nos libertar-nos? FE: Nos primeiros anos de trabalho, houve um período de tempo em que parecia que todos (actuantes, fundadores, promotores, académicos) estavam muito concentrados em abordar essa questão. Surgiram topos os tipos de etiquetas para definir o tipo de trabalho que estava a emergir na altura – visual, experimental, performance art, não-narrativo, por aí fora. Quanto a nós, acho que queríamos evitar essa colagem. Sabiamos o que não queríamos que o teatro fosse – algo escondido por detrás do quarto muro do drama convencional. Viver numa cidade pós-industrial, onde a cena musical estava mais viva que qualquer outro tipo de cultura, foi uma influência grande. A performance que fazíamos na altura mostrava o mundo que víamos à nossa volta: um caos organizado, colagens de fragmentos, bandas sonoras contínuas, marcadamente urbanas no seu toque. Mais recentemente, tal como reflectido nos últimos dois espectáculos e em Practical, o espectáculo que estamos agora a preparar, tornámo-nos muito interessados no teatro. O teatro que se faz em salas médias e grandes, a sua vida e o seu público. Hoje em dia, interessamo-nos muito pelo público, jogando com eles ou subvertendo as suas expectativas. À medida que passamos mais tempo e nos vamos comprometendo com os rituais privados da prática teatral, as tournées, os ensaios, etc., ficamos cada vez mais afastados daquele mundo específico (isto é, no nosso caso, a cidade inglesa nortenha de Sheffield), e o que o teatro é acaba por se tornar muito importante, perversamente, talvez, na mesma altura em que o lugar desse teatro no mundo que o rodeia se torna menos importante do que era. TP: Bem, nós nunca andamos à procura de “redefinir” seja o que for. Muito pelo contrário, andamos sempre à procura de conseguir definir algo. Como por exemplo, a palavra “Teatro”. A maioria dos dicionários contêm definições que têm como base determinadas técnicas, mas a única definição possível é a definição espacial: “local onde alguém observa algo”[1]. Assim sendo, definimos a nossa acção como uma tentativa de: “Devolver ao Teatro, aquilo que é o do Teatro”. Aquilo que sempre foi do teatro por direito próprio. Com o tempo, temos descoberto que muitas das coisas do teatro que achávamos ter um determinado sentido (porque assim nos ensinaram quando éramos mais “novos”), se revelaram outras completamente diferentes. O processo de um determinado sentido se transformar noutro não é o problema ou a tragédia, mas sim a quantidade de transformações (e quando
dizemos muitas queremos mesmo dizer muitas, como: pressionar a superfície de uma tatuagem-decalque, levantar a folha branca e encontrar uma imagem totalmente diferente na nossa pele). É verdade que a maior parte destas novas ideias e sentidos tornaram-se muito mais interessantes que as antigas, mas também é preciso dizer que a maioria tornou-se muito mais perigosa do que o seu véu queria mostrar. Mas não falemos de política. De novo, o Teatro. Quando frequentávamos a escola de teatro, ensinavam-nos muitas teorias de merda como: a importância do texto [a) “já viram há quanto tempo foi escrito” - aka “respeitinho é muito bonito!”, b) “como este texto fala sobre nós” - como se fossemos todos iguais, como se os serial-killers não tivessem de partilhar o mesmo pedaço de “chão redondo” que os nossos pais e todos os MC Hammers do mundo, c) “não há cá semiótica” - tínhamos portanto de seguir o autor, mesmo que não fosse possível conhecê-lo de todo, d) “olha a narrativa” - sempre a narrativa], merdas sobre a agilidade e a/os “justesse/redondos” do corpo (o síndrome do “que bonito!”, ou do “TeatroInfantilParaAdultos™”[2]), merdinhas sobre o “behaviourism” do actor e, para acabar, superstições como “usar cuecas novas em cada espectáculo” ou como “tornar o teu camarim num santuário personalizado”. Um verdadeiro pesadelo. Claro que muitos de nós fugíamos depois das aulas e instalávamo-nos a ver filmes ou ler livros, embebedava-mo-nos numa qualquer discoteca ou simplesmente viamos televisão e digeriamos uma e outra vez a histórias repetida de como-funciona-o-cérebro (embora não seja ainda muito claro porque é que a imagem da totalidade do cérebro é dada como exemplo quando 10 segundos antes foi dito aos espectadores que o ser humano só usa cerca de 5% do mesmo), ou histórias de como “uma celebridade qualquer se tornou alcoólica acabando por ficar sem dinheiro e sem fama” (ou então com um tipo de fama que ninguém gostaria de ter…). Dado que em todas as técnicas artísticas, como a literatura, cinema, dança, música, etc., as coisas não são lineares (o “síndrome da mediocridade”), sempre vimos o mundo como um rizoma, onde a diferença é vista como sendo uma coisa boa e não necessariamente má, onde alto e baixo são na realidade medidas diferentes. Para nós é importante poder rir e chorar, colar “high brow” com “low brow”, ser-se funcional enquanto se é entretido (e vice-versa), como uma montanha-russa (seria fantástico, se pudéssemos ter num qualquer parque de diversões, uma montanha russa dentro de um ser humano gigante onde toda a gente poderia atravessar em fracções de segundo diferentes partes do corpo…). Achamos que as denominadas “pessoas do teatro” não compreendem que a vida e o ser humano não são lineares e, se fazemos o que fazemos, não é por estarmos numa crise criativa ou porque queremos ser diferentes, NÃO, o problema não
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FORCED ENTERTAINMENT / TEATRO PRAGA >> é esse, o problema é toda
a gente andar a fazer a mesma coisa, e por isso mesmo, não andamos numa crise, andamos a fazer exactamente o que queremos fazer, e assim a definição (e não a “redefinição”) da palavra teatro é um assunto que nos é muito caro. Teatro como um edificiobomba-relógio. Teatro como um monstro mutante.
Com base num ensaio de Ortega y Gasset (A ideia do Teatro), andamos a escrever um texto sobre a nossa ideia de teatro, e esta é a base do discurso: - Theatron: lugar onde alguém observa algo. (Thea: ver, tron: lugar). Assim sendo, o teatro não é uma técnica, mas um lugar onde técnicas se desenrolam. Ao contrário de outras artes, onde o foco é no material (quer seja som, texto, corpo, ou qualquer outro material) e onde há sempre um exteriorização implícita do objecto, no teatro o que interessa não são necessariamente os objectos (embora existam), é a interiorização que é todo o objectivo, o “edificar” de uma relação usando diferentes técnicas artísticas. Infelizmente, durante a sua História o teatro perdeu o direito de se apresentar as técnicas anteriormente mencionadas (ou de incluir outras novas) devido às lutas pela especialização e separação. Ainda para mais, no fim do século XIX, de forma a proteger uma suposta crise do teatro, esta Arte foi confinada a uma série de regras que só muito raramente foram ultrapassadas por alguns dos “Mestres do Teatro” (como Brecht e Artaud). Mas, infelizmente, para cada um que tenta revolucionar e elevar o padrão do “Teatro” (isto é, “devolver ao teatro, aquilo que é do teatro”), temos um milhão de encenadores de estilo tardio do século XIX que são muito eficazes no disseminar e no liderar de tropas de forma a perseguir uma espécie de ideia-mediana-de-teatro-como-sendo-uma-leitura-etnológica-de-um-texto-antropológico-como-se-faz-no-cinema-mas-pior. [1]
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TeatroInfantilParaAdultos™: é um síndrome teatral que temos andando a tentar compreender. Nesta era “cor-de-rosa” (uma era onde todos podemos comprar felicidade, onde as pessoas não têm de lidar com a dor, dor que está normalmente associada ao mal), a maioria das pessoas/público/programadores prefere ter espectáculos de teatro onde os adultos se podem recostar nas suas cadeiras de uma forma muito passiva, onde se podem esquecer de todos os seus problemas/trabalho/maneira de ser (normalmente os adultos têm problemas em lidar com o facto de que são adultos, de que têm responsabilidades e de que criaram uma “persona apolínea”, e assim tentam encontrar momentos milagrosos de liberdade, o que é compreensível e normal se e só SE esses momentos de liberdade não tiverem intenção de manter as pessoas distantes do acto de poder pensar). As características gerais destes espectáculos são: a) Não há possibilidade para mais de um significado, nestes espectáculos não há lugar para a semiótica. Se se vê algo, então esse algo só acontece porque “nós somos especiais” e porque o que vemos “é lindo”. O conteúdo é a forma e a forma é o conteúdo, e não há como sair disto. Hoje em dia a interacção é muito usada neste tipo de teatro, embora estejamos seguros de que esta não é de todo necessária. b) Sendo que o conteúdo é a forma e a forma é o conteúdo, tudo existe para ser visto, tudo tem de ser explícito em vez de implícito. Se as coisas fossem implícitas, estaria aberto um espaço para interpretação, logo pensamento, e este tipo de teatro deseja evitar isso a todo o custo. Por exemplo: botões grandes… Botões grandes são muitas vezes usados, porque podemos vê-los claramente, muito coloridos num casaco ou numa saia. E em termos de conteúdo, botões grandes querem dizer botões grandes. Também os gestos devem ser redondos e anunciados. Se se vai olhar para algo, o público quase-adormecido-pelo-tédio tem de ser alertado de que a personagem vai olhar para algo. c) Neste tipo de teatro acha-se que todos nos assemelhamos (aka burguesia de classe média). Logo, todos partilhamos uma maneira de ser. De ser parvo, isto é. [2]
#2
Quão política pode uma performance ser? FE: Quão política pode uma performance ser? Esta pergunta implica que o teatro tem de ter um papel público ou moral? Que este tem de ser consciente, informado e estar em sintonia com o mundo que se encontra para além das suas quatro paredes, para que não seja assim acusado de elitismo ou ex-
clusividade? Estará talvez a política mais relacionada com o teatro do que com as outras formas de arte? Será que é porque este se desenrola ao vivo e em tempo real? Será devido à teatralidade inerente aos eventos políticos no mundo real? Não faço ideia, mas o teatro parece conseguir gerar controvérsia, talvez porque seja uma das formas de arte mais precária em termos financeiros e porque não tem outra maneira de existir excepto tal como é. Também nós já tivemos algumas más críticas, sendo que várias frases das mesmas acabaram por ser utilizadas em espectáculos da companhia. Em Showtime, um Robin moribundo cita um relatório do Arts Council sobre uma das peças antigas, relatório esse que dizia que a arte deveria juntar as pessoas, não apenas esfregar a cara das mesmas na imundície. Desferindo um golpe fatal no estômago com uma lata de conserva de esparguete, o último discurso que o Robin faz é um apelo em relação aos valores clássicos do teatro, nomeadamente, a unidade do espaço, tempo e lugar, uma actriz e actor principais bonitos, um enredo, e também diálogos inteligentes. Este afirma que eles não querem isto. Eles não querem isto. Sendo isto a confusão que é a vida humana, a inadequação da representação, da linguagem. Talvez a pergunta “quão politico” deva ser apenas debatida pelos comentadores, filósofos, críticos e académicos. No que diz respeito ao público estes apenas têm de responder à pergunta “O que quero ver?”. Em relação aos criadores podem existir outras responsabilidades interessantes, por exemplo, quão reconhecíveis são as coisas apresentadas no palco? Quão compreensível ou inapropriado, quão inesperado, quão relevante, quão irreverente, quão cativante, quão distante, quão humorístico ou assertivo ou indesejável? Quão diferente ou qual o nível de semelhança em relação a outras coisas que conhecemos? Quão lento, ou rápido, é o passar do tempo? Quanto tempo vai durar? Será que vai ser recordado? Quão política pode uma performance ser? A resposta mais óbvia será, quão politica é que quer que esta seja?
TP: (um texto em duas partes: Eu e os outros) Parte 1: EU (quão políticos conseguem eles ser?) Neste poster-tipo-manifestação está escrita uma frase de Steiner: “Vou-te fazer gostar de um belo texto”. O actor (Pedro, o “mau” do espectáculo) erguia-o no meio de um diálogo (uma colagem de entrevistas dadas por George Steiner, encenadas de uma forma muito mass-mediática) depois de ter escrito muitos outros posters (com insultos, deixas antigas de teatro, pedidos/ordens, declarações de amor, etc). As suas intenções eram de dar a volta à cabeça do público informando-os de que ele (directa ou indirectamente) os iria fazer (ao público) gostar de um belo texto. Achamos que isto já é em si bastante político.
Da mesma forma: É-se político sendo colectivo mas também sendo individual. Ser-se político por atrasar (em cada espectáculo) o tempo produtivo capitalista do público. Ser-se político por baixar a taxa de desemprego a baixo custo. Ser-se político dando uso ao lixo (Ana Hatherly diz: “lixo|luxo”). Ser-se político ocupando o tempo livre do público. Ser-se político desmascarando a representação e a representatividade. Ser-se político por misturar* todas estas coisas, ao mesmo tempo, no mesmo lugar, pelas mesmas pessoas. Como se todos os nossos espectáculos fossem o mesmo espectáculo como resultado da escrita contínua de um diário. E agora para animar, uma citação de Deleuze: “Mas há uma coisa que me impressiona: os que acham que este livro [Anti-Oedipus] é sobretudo difícil são os que têm mais cultura, e, nomeadamente, mais cultura psicanalítica. Esses dizem: o que vem a ser isso do corpo sem órgãos, o que vem a ser isso das máquinas desejantes? Pelo contrário, os que sabem poucas coisas, os que não foram corrompidos pela psicanálise têm menos problemas e põem de lado sem preocupações aquilo que não compreendem. Foi por isso que dissemos que este livro, de direito pelo menos, se dirigia a tipos entre os quinze e os vinte anos.” Achamos que eles podem ir muito longe politicamente. *Aceitamos o “não-questionar” do teatro tradicional, assim como aceitamos o não questionar do experimental, da dança, da música, do mass-mediático [incluindo a gastronomia], do literário, do etc… Para alguns somos ousados, para outros “politicamente” ligados ao “novo”. Somos filhos do Zeitgeist, sim, mas não queremos fazer nada de novo. Simplesmente não questionamos as diferentes formas que estão disponíveis, não questionamos o tradicional e não questionamos o AGORA [Jetzt]. Fragmentação, experimentação e mass-media não são questões para nós. Não há “angústia” perante todas estas influências. Ainda bem que existem. Não ter consciência de que existem, isso sim, é realmente ousado, mas não é político. E sim, como na frase de Thomas Hirschhorn, que toda a gente de repente começou a usar como uma espécie de PASSWORD para a nova geração artística bla bla bla bla bla, “Eu não faço arte política, eu faço arte politicamente.” Parte 2: Eles (quão políticos conseguimos nós ser?) No outro dia encontrámos isto na internet, e pode funcionar como um muito bom exemplo para esta segunda parte. Pode ser encontrado em: http://new-art.blogspot.com/2005/07/ very-forced-entertainment.html
“Tuesday, July 19, 2005 A very forced entertainment I have just mistakenly erased a very large review of Agatha Christie, a show by Teatro Praga. The below text is all that’s left. Teatro Praga is currently the most popular - and renowned - “experimental” theater in Portugal. The sort of work they do actually aims at being experimental. The formula is the following: take a play (or a text that can be adapted into one), present it in a fairly traditional way making it occupy about 1/3 of the show (time-wise or importance-wise), then add 2/3 of a “cha-
otic” “experimental ambience, with people saying nonsense, running around, laughing madly and crying (very important!), add some cardboard signs with things hand-written on them (very important, could be a way of identifying the “character”, e.g. “sad”, or “king of the castle”, or “Foucault”, or all three), add as many references to contemporary philosophers as you can squeeze in (Foucault, Deleuze and Derrida are welcome no matter what the circumstances), add a story about some “scientific” fact with loads of fiction interwoven into it in such a way that the audience doesn’t know what the truth is, and finally, the most important factor: add some profound thoughts about what theater is and isn’t. (The conclusion was something along the lines of: Praga are still scared to abandon the classical theater, or to stop thinking about it and asking questions that are neither original or really relevant for anyone but the theater people themselves (though in Portugal nearly only performing arts people go to theater, so this is not surprizing). They don’t make for an excessively good classical theater, and they don’t dare to follow the often interesting, fresh and new leads they discover in their work. Instead, we are left with some sort of left-overs from all the Forced Entertainments and Wooster Groups that have done the experimentation work much more extensively, and gone much further. It’s a pity. And hopefully they will focus more on the research & development, and aim at creating things, and not just scattering them around.) posted by vvoi at 12:09 AM. “ Embora achemos que este texto é até muito lisonjeador, para nós já se é suficientemente político quando se é atacado por todos os lados com críticas e comentários (especialmente daqueles em que se acha que se está a louvar os trabalhos quando, na verdade, o que se está a fazer é nada mais do que levá-los [aos trabalhos] para sítios muito tristes), e se continua a perseguir fazer o que se quer fazer, ou o que se acha necessário, ou simplesmente o que se consegue fazer. Tentamos fazer isso, sempre com felicidade (embora também com muita berraria), e com a consciência completamente limpa. O mais importante nisto tudo é ter algumas pessoas interessadas no que se quer fazer, e ter apoios para se fazer o que se quer (é verdade que não há muita gente, mas também é verdade que não há muito apoio, portanto as coisas estão bastante bem balançadas). Os apoios também são um bom assunto político para esta segunda parte. Embora recebamos apoio do estado, não nos sentimos obrigados a fazer arte estatal ou arte politicamente engajada. Primeiro não há obrigações porque não há garantias. E portanto, se virem os nossos espectáculos nunca ficarão desapontados, porque também nunca houve quaisquer promessas. E neste sentido: Achamos que podemos ir politicamente muito longe. >> + Pedro
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38 JOSÉ LUÍS NEVES
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#3
À primeira pergunta o Teatro Praga respondeu com o “teatro infantil para adultos” e a Forced Entertainment falou de como começaram a desenvolver uma relação com a envolvente. Portanto, parece-me que estamos a falar do que pode ser um público perfeito. O Teatro Praga tem até uma frase-chave: “a responsabilidade máxima do espectador”. E eu lembro-me de uma análise feita às críticas do Roland Barthes, que gostaria que comentassem: “Barthes gostou sempre de uma dramaturgia implicada [textos que promovam uma intervenção política], daqueles que inscreviam na sua estética um papel activo para o espectador, um papel ‘responsável’. Essa procura encontra forma na oposição criança/adulto, que podemos encontrar em muitos dos seus textos. Mas o que significa ‘ser adulto’?”.
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FE: Esta é uma pergunta complicada, especialmente para nós que nos comportamos de forma tão infantil no palco. Penso que esperamos que o público seja receptivo em vez de ser informado, isto apesar de um público bem informado (os que são bem-intencionados, e não os temíveis “amantes do teatro”), são regra geral os mais receptivos. Procuramos um público que possa lidar com um certo lado incomodativo, que consiga ver o lado humorístico quando por exemplo uma personagem diz, tal como a Cathy disse na peça First Night, “Gostava de enfiar a minha cabeça num balde cheio de mijo, beber o mesmo completamente, e depois mijá-lo todo outra vez sobre as vossas cabeças”. Na Alemanha e na Áustria, regra geral países que são receptivos ao nosso trabalho, muitas das pessoas não conseguiram ir tão além em relação a este trabalho. Na Bélgica e em França as pessoas entenderam. Em Estocolmo estávamos a falar a mesma linguagem. Adulto? Não sei. Sim, na medida em que temos de ser um adulto para apreciar uma piada feita às nossas custas, no entanto as pessoas que realmente entendem o espectáculo têm um lado infantil, uma vontade de apreciar a simplicidade e o idiotismo, bem como o sofisticado e inteligente. Apreciam ambas as coisas simultaneamente. Á medida que vou escrevendo esta resposta, mais convencido fico de que sim, em termos fundamentais pedimos muito ao nosso público. Estes têm de ser, se não adultos, então “crescidos”, se é que este tipo de distinção faz algum sentido (associo sempre a palavra adulto a alguém muito empertigado). Colocando a questão de outra maneira e citando (ou parafraseando) o coreógrafo francês Jerôme Bel, que nos disse uma vez sobre a sua experiência de trabalho e o público: “Algumas vezes penso que estamos a fazer trabalho que é cada vez mais estúpido para que o público possa ser cada vez mais inteligente.” TP: |--|ospital(lidade) |Antes de mais, existe uma grande diferença Barthesiana entre o que é político e ideológico (um produzindo voluntariedade e o outro induzindo involuntariedade). E sim, teatro é político no sentido em que te lembra constantemente de que és um indivíduo, um humano atirado para o meio do mundo (um mundo complexo e cruel, diga-se).
iAceitas Tal como a medicina nos mostra que partes do corpo uma qualquer doença vai afectar, ou tal como a matemática nos ensina como alguém pode perder anos atrás de uma secretária por ter escolhido um determinado carro vermelho, o Teatro (como todas as outras Artes) é útil no sentido em que se está sempre a comportar-se como mediador para uma possível RELATIVIDADE Einsteiniana. Logo, um adulto é aquele que voluntariamente reconhece-se como tendo sido atirado para o mundo e que tem de ter alguma “relatividade” como ser humano (enquanto que uma criança é induzida para a involuntariedade aka “o espectacular” aka “o divertimento” aka “continua a comer pipocas!”). iiA Muito recentemente numa conversa com Richard Foreman, eu (André) ouvi-o dizer (com palavras bastante diferentes, claro), uma frase de Deleuze, frase que dá muito jeito para usar como “resposta-feita”. Deleuze estava sempre a dizer que o livro (Anti-Oedipus) era melhor lido por adolescentes do que por filósofos. É uma frase muito bonita. É o nosso objectivo. Quem nos dera que isto fosse sempre verdade e com todos os nossos espectáculos. Mas não. Às vezes sim. Mas muitas vezes não. Concordamos com os Forced Entertainment quando dizem: “I
think we expect audiences to be open rather than informed, although well-informed audiences (truly well-informed audiences, rather than the dreaded ‘theatre-lover’), tend to be amongst the most open.” Isto é: quando são adultos.
Achamos ser possível definir o “ser-se adulto”. Não o descrevendo fisicamente, mas pelo contrário, indo na direcção oposta. Se soubermos o que ele não é, com certeza teremos alguma luz sobre o que ele é/poderá ser. Por exemplo, um ser humano que só sabe escolher o tipo de bolo que vai comer de manhã, que só sabe escolher o que vestir (quer seja para escola ou para o escritório), que não aforra e só desforra (noutros putos ou no banco), que gasta metade do dia a ver coisas na televisão que acha ser de boa qualidade (quando muitas das vezes se aprende mais com as coisas de pior qualidade), não é de todo um “adulto qualificado”. Achamos que todos podemos concordar com isto.
iiiMinha Também, a expressão: “Tens uma linda criança dentro de ti” (que é muito comum na intelligentsia) é bastante horrorosa. Achamos que adultos que não estão livres de formatos e preconceitos e expectativas artístico/as, não são adultos. São máquinas produtivas que perpetuam a reprodução de um simulacro social. Portanto, o Teatro é político por relembrar ao público que existe um mundo, por despertar consciências (esse é afinal o sentido das artes). Se um ser humano perder a consciência do mundo, então um dia palavras e frases e fórmulas e ciências como: braço, terra, cancro, Eu amo-te, 2+2=4, Deus… etc, deixarão de fazer sentido. E uma criança não pode/deve lidar com isto tudo (existem coisas mais importantes para fazer do que ter de pensar em quanto dinheiro é que trouxeram para casa), e seguramente a maioria dos supostos chamados adultos (sendo que a maioria deles são esses “dreaded ‘theatre-lovers“) também não conseguem lidar com isto tudo. Assim sendo, num adulto tudo é, ou melhor deveria ser, voluntário (mesmo que seja pura intuição) e numa criança tudo é, ou melhor deveria ser, involuntário. E deveríamos ter medo disto: 1º) Se tudo num adulto for involuntário, provavelmente um dia ele ou ela tornar-se-ão num desses vizinhos que franzem o sobrolho quando nos vêem sair do elevador a fumar, e que começam a gritar alto: – Não devia fazer isso… - e que se enervam ainda mais depois de se responder: - Calma calma, estamos vivos, vamos lá a ter um pouco de relatividade; 2º) Se tudo numa criança for voluntário, então há grande probabilidade de ele/ela se tornar um dia num/a puta/cabrão de um/a cheerleader invejosa/rapaz da pizza serial-killer. -| Mas voltando ao público. Müller dizia que no teatro se devia “encarar o público como pessoas potencialmente à beira da morte.” Como grupo de teatro que trabalha num armazém dentro de um Hospital Psiquiátrico e tendo algumas vezes uma plateia cheia de pessoas-que-querem-ver-a-mesma-coisa-que-já-virammilhares-de-vezes-na-televisão-mas-pior-e-sem-pipocasesperando-no-entanto-ver-no-intervalo-alguém-conhecidoque-por-acaso-também-ali-está-e-só-pode-ali-estar-porser-amigo-de-um-dos-actores-a-julgar-pela-merda-queeles-estão-a-fazer dá muito sentido a esta frase. Müller tinha razão. Mas morrer nesta sociedade é muito fácil; tudo tem a morte como objectivo. O que Müller se esqueceu de dizer é
que cada um desses potenciais espectadores à beira da morte é também um potencial amigo. iiiiMão Tentamos ter Hospitalidade para com o público, isto é, dar e receber, cada um ser refém do outro. E isto nada tem a ver com alinhamento de chakras. É muito simples. Somos amigos. E como amigos não explicamos coisas uns aos outros, o que seria muito paternalista. Negociamos. Somos amigos. Eles vêm a nossa casa, e nós entramos pelos seus corpos dentro. É simples. E depois do processo de negociação, tal como posso redecorar a minha casa como quiser, também eles podem fazer o que quiserem com os seus corpos de novo. O objectivo do processo é a negociação; pôr um fim a uma sociedade transparente; olharmo-nos olhos os olhos; ouvir a distância entre nós, deixando entrar respeito e paz de forma a reduzir a hostilidade original. E depois há o destino, dentro de regras edificadas passo a passo. Com cautela. O público não está lá só para se divertir, mas também para nos ajudar. Entretemo-los, entretêm-nos; ajudamo-los, ajudam-nos. Achamos tudo isto justo. Não existe dinheiro suficiente no mundo que nos pague a vontade de fazer aquilo que queremos. Portanto, e no que diz respeito a ser espectador nos nossos espectáculos, o público não está a pagar nada (num deles até dávamos ao público o dinheiro da bilheteira como prémio). Não nos vemos como “objectos de troca”. Queremos uma relação. Basta de um mundo transparente sem relacionamentos. iiiiiEm Claro que os espectadores têm de inserir-a-moeda de forma a esta relação poder acontecer. Música gratuita na rua não é de todo ouvida. Inserir-a-moeda = querer realmente algo. E nunca, mas nunca, queremos insultar, ou gozar, ou usar o público (embora por vezes os nossos actos sejam percepcionados dessa forma). Nem “terror” nem “piedade” artistotélicos. Nem cadeiras passivas. iiiiiiCasamento Nem síndrome de “aventura amorosa”, porque nós queremos tudo, não só uma fatia do bolo; queremos o bolo do casamento todo. E antes de cada espectáculo a mesma pergunta angustiante persiste: “Aceitas-me como o/a teu/tua leal marido/mulher?” iiiiiii?
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Da esquerda para a direita, de cima para baixo: p.34 – Agatha Christie (TP); p. 35 - The World in Pictures (FE); p. 36 - Discotheater (TP); Bloody Mess (FE); Sobre a mesa a faca (TP); p. 37 - Discotheater (TP), Eurovision (TP); Quizoola! (FE); p. 40-41 – Exquisite pain (FE); p. 42 – Private Lives (TP); p. 43 – The World in Pictures (FE); p. 44 – Agatha Christie (TP); p. 45 – Bloody Mess (FE); p. 47 – The World in Pictures (FE), Agatha Christie (TP), Sobre a mesa a faca (TP), Discotheater (TP), Bloody Mess (FE), © (TP). Fotografias do Teatro Praga por Ângelo Fernandes. Fotografias da Forced Entertainment pela companhia.
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#4
Discutamos agora a retórica no teatro contemporâneo. Por exemplo, não será verdade que estamos sempre a brincar ao faz-de-conta quando se pede ao espectador para participar num espectáculo e se sabe que ele continuaria mesmo que ninguém aceite o repto? A teatróloga alemã Erika FisherLichte diz que qualquer intervenção do espectador, mesmo que solicitada, representará sempre o fim do espectáculo. E o dramaturgo francês Jean-Philippe Domecq diz que a retórica da desconstrução na desconstrução permite-nos evitar a qualidade do objecto e ainda assim continuar a chamar-lhe obra. Podem quantificar o nível de retórica dos vossos discursos e espectáculos?
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FE: …Tal como muitos outros artistas modernos ou pós-modernos desconfiamos da retórica, ou da ideia inerente à mesma. Tal como todos artistas modernos ou pós-modernos somos profundamente cúmplices em relação à mesma. A crítica australiana Susan Melrose desenvolveu a ideia de “contrato” entre o intérprete e o público, onde a questão fundamental no teatro se resume ao seguinte, “O que esperam eles de mim e o que espero eu deles?”. Gostamos desta análise, mas, como acontece com todas as abstracções, esta não abrange tudo (além disso, a urgência em adoptar uma linguagem económica para descrever uma experiência artística soou sempre… Impulsiva? Cobarde?) Seria talvez útil falar sobre alguns aspectos observáveis desta prática: reconhecemos sempre a presença do público. Para nós, talvez o pior crime do teatro convencional seja o de que este finge que o público não está presente, ou o facto de que num teatro em Londres estejamos a ver a costa marítima da Boémia. As peças Forced Entertainment são quase sempre direccionadas ao público, ou sendo mais honesto e mais preciso, a “um” público (muitos dos nossos espectáculos têm intérpretes que pensam que as pessoas que estão perante eles são diferentes deles próprios, não sendo um público de teatro experimental, mas sim pessoas que vieram assistir a um espectáculo de cabaret com mau aspecto e sub-erótico, ou a uma rotina de vaudevile fora de moda, ou a um acto de confissão pública, etc. Esses espectáculos acabam sempre por criar um espaço em que o público se sente bem-vindo e ao mesmo tempo constrangido, comentando ou reagindo em relação ao que está a ver. Não se trata de um erro. Somos obsessivos em relação à busca do “presente”, o facto de “estarmos na mesma sala”. Ao mesmo tempo os cenários contêm sempre algum tipo de barreira entre ”nós” e “eles”, uma linha de luzes, a maioria das vezes um dispositivo que indica que “nós” somos as pessoas na sala que irão falar, representar, e manter uma postura. É claro que tudo isso é retórica arraegada, e uma contradição que nunca conseguimos solucionar em qualquer uma das nossas peças. Talvez essa tensão, esse desejo de estar na mesma sala com o público em conjunto com uma recusa em ceder o controlo, a vontade democrática de proclamar a nossa humanidade como intérpretes (muitos dos espectácu-
los contêm a incompetência como motivo central), recusando resolutamente permitir que outro qualquer possa tentar (isto para além do espaço mental aberto pelas peças), seja onde se encontra afinal todo o poder do trabalho. TP:
It’s all for you
song/lyrics: Scout Niblett (do album ‘I am’)
“Oh sweet lifer I tremble but my course does not. Oh sweet lifer ripe with flesh and matter I tremble but my course does not. Give me an M. Give me an A. Give me a G. Give me an I. Give me a C. For magicians. Give me an M. Give me a U. Give me an S. Give me an I. Give me a C. For musicians. Give me an L. Give me an O. Give me a V. Give me an E. For lovers. Give me a T. Give me an R. Give me a U. Give me a C. Give me a K. For the truckers. It’s all for you. It’s all for you. It’s all for you. It’s all for you.” P.S. - Letra usada sem permissão, como sempre. Adoramos roubar amor.
#5
E o dinheiro? Como é que lidam com ele? Particularmente com o financiamento público das artes? E como é que se posicionam quanto à ideia de quanto mais pobre o artista, melhor o seu trabalho (criativa, honesta e verdadeiramente)? FE: Vou começar pela situação/história económica. A Forced Entertainment tem sido apoiada pelo Arts Council desde 1986, ano em que recebeu o seu primeiro subsídio para um projecto. Continuámos a ser subsidiados em cada projecto subsequente até ao momento em que nos foi concedido um estatuto de apoio público há alguns anos atrás. Este nível de apoio
mais institucional, que tem por base um ciclo de três anos, engloba as nossas práticas artísticas, um escritório permanente, administração, marketing, trabalho educacional, e um desenvolvimento permanente dos nossos objectivos artísticos e profissionais. Para além disso, somos subsidiados regionalmente e temos recebido apoios provenientes dos lucros dos jogos de lotaria. Apesar de nos encontrarmos numa situação melhor do que a grande maioria, pois temos o apoio de instituições públicas, uma grande parte (por vezes a maior parte) dos nossos rendimentos é proveniente das digressões no estrangeiro, sem contar com o investimento financeiro por parte de co-produtores no Reino Unido e no estrangeiro. Este apoio alternativo tem sido crucial para o crescimento da companhia, dando-nos um grau de autonomia em relação ao sistema de apoio público. A nossa relação com as instituições que nos apoiam ao longo dos anos tem sido precária, e tem sido sempre necessário ter uma determinação feroz e ocasionalmente uma atitude de confronto. Por exemplo, o apoio para o espectáculo Speak Bitterness, um espectáculo que esteve em digressão em 1994, foi inicialmente recusado pois não estávamos a apresentar progressos suficientes, ou seja, o experimentalismo, a dificuldade, e a não existência de um final prédefinido eram algo de positivo durante algum tempo, mas nunca poderiam ser por si só o objectivo final. Como se após dez anos de experiência teatral, o trabalho tivesse de apresentar maturidade ou algo desse género. Conseguimos fazer com que a decisão fosse revogada, tendo sido o ponto de viragem para nós, pois o trabalho tinha de ser aquilo que realmente era, e nós recusámos virar as costas a essa questão. Estas flutuações reflectem, penso eu, as mudanças no tipo de apoio nos últimos vinte anos. Mudanças no governo ou políticas governamentais significam abanões nas instituições que fornecem apoios. A substituição de colaboradores numa área específica pode fazer com que o trabalho que era alvo de antipatia passe a ser apoiado. A longevidade também tem algum peso nos dias que correm. Mas mesmo tendo obtido uma posição confortável em termos de apoio e visibilidade cultural, o sentimento de precariedade nunca se encontra muito distante (o apoio regular durante um período de três anos implica tipos diferentes de pressão e de expectativas artísticas, nesse sentido alguma da espontaneidade e flexibilidade é inevitavelmente perdida). É nesta precariedade que reside a chave, mais do que na ideia de que o dinheiro (ou seja, o sucesso) implica menos integridade, (a pobreza e a luta não são pré-requisitos para um bom trabalho), e de que existe sempre uma fragilidade em relação a este negócio e à arte de fazer teatro fora do âmbito económico. Na realidade, pensando novamente na questão da “pobreza”, tenho a certeza de que para nós uma certa estabilidade económica foi uma questão essencial para a continuidade como grupo durante estes 22 anos, e também de que a continuidade é algo que é pouco comum no teatro “experimental”, talvez porque muitos grupos apresentam uma relação ambígua em relação à estabilidade económica. Penso que a maioria a despreza. E até acho que nós também o fazíamos quando
começámos a trabalhar juntos, isto quando tínhamos 21 anos de idade. No entanto hoje em dia, e à medida que vamos ficando mais velhos e vamos criando famílias e tendo outro tipo de responsabilidades, o ideal romântico de trabalhar na pobreza deixa de ser possível. Por outras palavras, um dos efeitos do mito da pobreza é o de que muito poucas pessoas são capazes de trabalhar até aos trinta ou quarenta anos de idade (e esperançosamente cinquenta e sessenta anos de idade – só que ainda não chegámos lá), e como resultado existe a tendência para pensar que o trabalho relacionado com a performance radical (ou seja, o trabalho performático efectuado fora da arena protectora do teatro e do texto) é simplesmente algo que apenas as pessoas jovens fazem. O que não é necessariamente o caso. Uma das nossas peças, Hidden J, termina com uma pergunta, “Seria este um bom lugar para criar um filho? Seria este um bom lugar para fazer uma festa?”. Sempre quisemos que o teatro fosse ambas as coisas, isto apesar de algumas vezes tal ser extremamente difícil. TP: Teoria do Banco Nunca concordaremos que quanto mais pobre o artista é, melhor será o seu trabalho. É como dizer que se aprende melhor a tocar piano num piano sem cordas. Ou que amamos mais aquela pessoa que nos berra esbaforidamente, que nos grita incessantemente ao ouvido. Claro que muita da “merda espectacular” que nos rodeia só existe por haver muito dinheiro presente; mas na verdade o problema não é causado pelo dinheiro mas sim pela falta de cérebro. Em vez de cérebro, muitas dessas pessoas têm “dinheiro que atrai dinheiro”. E logo não é arte. E também não seria nenhum problema se muita dessa “merda espectacular” fosse uma indústria (recebemos sempre algo de volta quando gastamos dinheiro). Mas não é. Nesta “merda espectacular” não recebemos nada de volta. É só um banco. Um tipo de banco novo e fodido. Em vez de te emprestar dinheiro, empresta-te um certificado de que “és humano”. E como num banco verdadeiro, tirar-te-ão o certificado quando não te comportares de acordo com as regras viciadas e circulares que o contrato te obriga a obedecer. Outra notas sobre dinheiro No nossos doze anos de existência, o dinheiro e os apoios têm crescido como rugas têm crescido, as nódoas-negras têm crescido, a agressividade tem crescido, os convites para cocktails têm crescido, novas criações para lugares institucionais têm crescido, como prémios têm crescido, mas é só mesmo isto. Nenhum de nós vive desta companhia (temos ou de trabalhar fora da companhia ou de ter pais ricos), não temos equipamento de iluminação nem máquinas-de-fumo nem máquinas-devento, não temos mais do que um produtor (que obviamente é maravilhoso e tenta fazer o melhor melhor melhor que consegue e que é humanamente possível), não conseguimos ter visibilidade noutros países (aparte iniciativas pontuais), não há dinheiro para uma divulgação decente, não conseguimos convidar muitas pessoas para os nossos espectáculos ou realizar >>
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FORCED ENTERTAINMENT / TEATRO PRAGA >> outros projectos que não espectáculos de teatro.
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Aos olhos dos nossos pais/famílias somos pessoas lindas mas economicamente falhados. E assim, por poucos Euros, concordamos em representar algumas ideias: 1º De que há apoios para “jovens artistas experimentais”; 2º Que há emprego, e logo, ajudamos a descer, a baixo custo, a percentagem de desemprego, tudo em nome da arte. Somos românticos. Ou melhor, Medievais. Gostamos de teatro pobre no sentido em que o foco é no intelecto que depois tem uma tradução imagética, e não na imaginação simples e totalitária onde o significado pode ser o que se quiser (dependendo do nosso humor ao observar um espectáculo). Estamos fartos de cartão mas não queremos mesas douradas. Adoramos robots de luz mas não queremos largar as lâmpadas. Temos apoio do Ministério da Cultura com base num contrato de dois anos (que acaba em 2008 e, até à data, não fazemos ideia o que vai acontecer) mas não nos sentimos na obrigação de fazer Arte Estatal. Não nos sentimos obrigados a fazer nenhum favor ao estado. O Ministério da Cultura existe porque nós existimos. Por esta mesma razão “cultura” faz parte do seu nome e não outra coisa qualquer. Achamos que por vezes, ou melhor muitas vezes, políticos ligados a assuntos culturais, curadores, críticos, suplementos artísticos de jornais e revistas etc, esquecem-se que só existem porque existem artistas (e acreditamos que o contrário não é válido, embora tenhamos consciência de que vivemos num mundo mass-mediático. Mas mesmo assim, deveríamos ter algum sentido do zeitgeist em relação a esta situação: com a Internet quem é que hoje em dia precisa de jornais?!). Há alguns anos atrás eu [André] e a Patrícia fomos apanhados a roubar fita-cola-dupla-face muito cara para um espectáculo. Foi muito triste. Um segurança apareceu e confrontou-nos. Negámos tudo, claro está. Ele irritou-se com a Patrícia por estar a tirar fotografias o tempo todo (no fundo a produzir material para um outro espectáculo). Enfim, a única coisa
que conseguíamos dizer-lhe era: “Pedimos desculpa… mas repare… tente perceber… temos um grupo de teatro pobre, e estamos a estrear, e precisamos mesmo de colar um material prateado ao chão… portanto…”, mas, claro, ele estava-se a cagar, embora no fim nos tivesse convidado para tomar um café. E isto foi a última vez que aconteceu. Não o roubar, mas sermos apanhados. Então, temos espectáculos para fazer, não há tempo para sermos apanhados. Não queremos que isto tudo seja um lamento económico e facilmente estas linhas se poderão transformar nisso mesmo. Todos sabemos que no que toca a este assunto, a história repete-se em todos os lados e com toda a gente (talvez em Portugal estejamos sempre mais dentro do assunto do que noutro sitio qualquer). Portanto queremos partilhar algo realmente feliz, que tem a ver com dinheiro e miolos. Acabámos de comprar seis perucas lindas e barbáricas que são muito muito compridas. Do topo da cabeça ao rabo. São para o nosso próximo espectáculo. E foram bem caras… É sempre a mesma coisa, assim que temos dinheiro, gastamo-lo num qualquer adereço estúpido. Portanto aqui está um inventário daquilo que temos e que foi comprado com o NOSSO dinheiro (temos muitas outras coisas que foram ou encontradas ou roubadas): - Um leitor de cd duplo deck + mesa de som - Cartão (toneladas) - Um placard em led - Centenas de lâmpadas - Material de escritório - Cabos, cabos e cabos - 10 iodines - Um computador - Roupa e mais roupa (mas nada de coisas finas, excepto um par de sapatos Dolce&Gabbana comprados por 5€) E pronto, é isto mesmo. Portanto, se estiverem interessados em alguma destas coisas, provavelmente os sapatos D&G usados e destruídos, são 20€ por favor.
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Quando a Sophie Calle decide que para poder falar de prostituição, tem que se prostituir (e eu acho que ela está coberta de razão, a prostituição é a súmula dos actos performativos), temos que nos perguntar sobre o peso da identidade na afirmação de um discurso artístico. Por isso: que importância tem o sexo (e a orientação sexual) na determinação de um discurso? E como é que se relacionam com o uso do sexo no teatro (a sua explicitação, o teatro militante por uma opção sexual, etc.)? FE: Estão a fazer perguntas sobre sexo aos britânicos! Tornámo-nos notoriamente reprimidos depois dos Vitorianos. O sexo para nós é um inuendo, postais picantes à beira-mar, pensamentos lascivos, um pretexto para o embaraço ou uma oportunidade para fazer comédia. Nunca deve ser tomado a sério, pelo menos não em público (em privado tomamo-lo terrivelmente a sério). Acho que não gosto de falar sobre sexo em palco – como acção, assunto ou provocação entre quem actua e quem vê. Já se sente isso demasiado no ar. O público gostar de olhar e os actores gostam de ser olhados. Funciona também ao contrário. Não gosto de ver espectáculos onde me sinta excluído do palco. Gosto que quem actua me encontre, da fricção na troca de olhares que parece encontrar-me ou de palavras que me digam algo directamente e parecem dizer-me respeito. Da possibilidade e do poder de atracção consentido mutuamente entre dois adultos que não precisa de ser lembrado. E daí, devido ao meu crescimento na classe média britânica, sou um voyeur óbvio. Por ser um intérprete, seduzo a identidade. Actuo contra o protótipo e com todas as minhas forças (gosto de fingir que sou um idiota e gosto de fingir que sou esperto; finjo que não gosto de perder a batalha pela atenção do público e finjo que isso não me incomoda). Em Quizoola!, jogamos um jogo de perguntas que são tanto escritas como improvisadas. Trocamos de vez e respondemos por pares. A peça de seis horas é feita para públicos pequenos, que entram e saem como lhes apetecer. É algo de íntimo e revelador. Estar próximo das pessoas e estender a actuação por um longo período de tempo dá a impressão que estamos num encontro estranho com o público, tentando conhecermo-nos um pouco melhor: o que for engraçado, o que for chato, o que já é um pouco arriscado. Naturalmente, o sexo é uma deixa conhecida para perguntar e humilhar, para expôr ou provocar o nosso parceiro. De que tamanho é a tua pila? Se tivesses que fazer alguém vir-se, como o farias? Quem é a pessoa mais atraente nesta sala? Quando coloco ou respondo a perguntas como estas em Quizoola!, o paradoxo é explícito. Quero ser tanto atraente como repulsivo. Ponho-me interessado e na defensiva. A questão do sexo é atirada de volta ao público. Como estamos a lidar com ela? Afinal, o sexo nunca está assim tão longe. Falo como mulher agora, como alguém que se calhar gosta de se ver, antes de mais, como uma maria-rapaz (assexuada) quando está a trabalhar ou a actuar. Acho que este é um desejo de transcender o género, ou confundir as expectativas de como as mulheres são vistas ou como se comportam em palco (bonitas, desejosas, sexy, remotas, medrosas, vazias, fortes, confiantes, emocionais, vituperadoras, tontas). Mas é impossível fugir a quem somos, assim como ao desejo de sermos essas coisas todas ao mesmo tempo. O desejo de ser assexuado ou
algo impossível de se categorizar é, provavelmente, apenas uma recusa de se envolver com as políticas sexuais e de género, ou as complexidades do desejo e o seu sentido entre o palco e o auditório. O sexo nunca está assim tão longe. É algo bastante ubíquo, um alvo fácil, uma máscara conveniente e, por fim, impossível de confiar – o desejo é sempre efémero. Fica melhor sozinho. Ou deixado para os profissionais. Um pensamento. Emanuelle Enchanted (vimos os três filmes porno de Sylvia Kristel como pesquisa). 1992. Andámos em palco só com roupa interior, tirando roupas de uma pilha de coisas enquanto mudávamos de identidade em cartazes (“O duplo de corpo de Bridget Fonda”, “um homem com medo de sair do seu quarto”, “Pequena Miss todos os rapazes gostam dela”). Dávamos muito atenção a como nos parecíamos na altura. O Robin, em Pleasure, de gatas pelo palco, todo nu, tirando uma cabeça pantomímica de cavalo. Foi um avanço lento e sem alvo, como morrer, como estar podre de bêbado, como um passivo decadente no Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare, numa produção amadora que foi longe de mais na noite de estreia. O Robin, aquecendo antes do espectáculo (algo que nunca fizemos, sempre fomos muito machistas em não querer cair nesses preciosismos), para se manter em forma. O Richard [Lowdown] e o Robin estão frequentemente nus no palco de The World in Pictures. O corpo diferente, agora que envelheceu, é uma amostra, ou uma maneira de se dizer que isto não é, definitivamente, sobre sexo, agora e aqui. É sobre o que usamos entre as máscaras, sobre como apresentar caricaturas históricas da sexualidade. Sexo, desejo, género, estereótipos. É difícil escapar a isso tudo. O Sexo nunca está longe. Nem a morte. (Os britânicos não estão interessados em sexo. Esta pergunta leva a maior resposta) TP: (Um actor entra no palco.) Desejados Amores, Não nos interessamos nada por pontos de vista sexuais feministas, gay, heterossexuais, pedófilos, sadomasoquistas, necrófilos, animalescos (etc.) em manifestações artísticas. Achamos que diferenciar as orientações sexuais leva muitas vezes ao comum (e inconsciente) “proclamar poder sobre os outros”, ao direito de haver “leis infinitas” (quando, com o passar do tempo, deveriam ser cada vez menos), edificando um maior fosso entre pessoas, e impondo assim uma diferença em algo que deveria ser indiferente; numa só frase: começa uma guerra. >>
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FORCED ENTERTAINMENT / TEATRO PRAGA >> Assim como somos filhos de Thanatos (todo o espectáculo
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definha) também somos filhos de Eros (todo o espectáculo começa). E como tudo começa pelo verbo, que é a coisa mais erótica: a minha língua lambendo o teu ouvido, tendemos a gostar da erotização da arte. Começa com a Hospitalidade (entras dentro de mim e eu entro dentro de ti). Mas de repente é como se todos os doentes se despissem e se começassem a lamber uns aos outros. Uma orgia hospitalar. Uma orgia social. E nesta verdadeira relação tendemo-nos a esquecer de coisas, como algumas fronteiras sociais (por exemplo, que se está no teatro, e que portanto há expectativas teatrais). Erotização com homens, mulheres, gays, lésbicas, crianças, animais, pessoas mortas, árvores… Somos putas porque nos estão a pagar para os entreter num determinado tipo de pensamento tautológico burguês. Somos chulos porque ficamos com o dinheiro. Somos bordéis porque aceitamos todo este frenesim orgiástico de olhos-bem-abertos. Somos contraceptivos porque temos alguma noção da realidade, e sabemos que toda esta demência terá um fim imediato. Aceitamos que nos fodas em frente de toda a gente… porque gostamos. Devoramos-te com os olhos. Devoramos-te com palavras. Devoramos-te com música. Devoramos-te com as luzes. Devoramos-te com o aqui-e-agora (nunca nos conseguimos ausentar da realidade). Queremos a tua atenção. Queremos que te apaixones pelo/a actor/actriz. Se num espectáculo de Dança temos um profundo desejo de ver o bailarino falhar (caindo, ou escorregando, ou morrendo); no Teatro tem-se o profundo desejo de se amar e de se ser amado. Embora seja de opinião geral que os actores/actrizes são amantes terríveis e instáveis, tem-se sempre o desejo de se ouvir o desligar das luzes no teatro e, num abrir e fechar de olhos, e antes que nos apercebamos, estamos na cama com a companhia toda. As pessoas têm um relacionamento diferente com o James Dean, Nureyev ou Nicholas Ray… Querem que Nureyev morra (e está morto), querem que Nicholas Ray se eclipse (e aconteceu), e querem imortalidade para James Dean (como se os seus olhos fossem pistolas que, em vez de tirar a vida a alguém, dessem imortalidade). Existe uma exacerbação sobre o tema do sexo. É tão fora-demoda falar-se disso quando o zeitgeist te pede para que simplesmente o faças. “O meu grande medo é que a arte contemporânea se tenha tornado uma arte opticamente correcta” – Paul Virilo. Arte frígida, isto é. Temporariamente teus, P.S. E, sim, achamos que a Sophie Calle é uma puta. Sempre que ficamos a conhecer um dos seus novos projectos, dizemos. – Fogo, que puta de merda. Donde é que lhe vem isto tudo!?!
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E diz Hamlet: “Deixa que o bom senso te guie. Que o gesto sirva a palavra como esta ao gesto sirva e a acção explique; com esta nota especial: Se violentas o pendor da Natureza exagerando, infringes a finalidade do teatro que até hoje, desde o seu princípio, foi e é ser espelho da Natureza, mostrar a virtude tal como ela é e da Infâmia dar o seu cariz exacto; dar à idade e às vidas o corpo, o tempo, a forma que mais lhe convém.” Para terminar: alguma vez param para pensar se estão a fazer o que realmente querem? E se o resultado final era o que esperavam? E o que é que vos justifica quererem continuar? FE: Isso é uma coincidência. Há uma semana, estava a pensar sobre aquela frase e em querer espreitar o seu significado. Estava-me a lembrar daquilo como algo parecido com - “diz as deixas como eu as escrevi, rapidamente...” Na verdade, acho que isso é um discurso diferente. De qualquer maneira, pensei que poderia ser bom citá-la ou roubá-la como um conselho para dar no princípio do espectáculo. O espectáculo abre com ofertas de conselhos a um actor só que vai actuar no seu princípio. Conselhos na linha de, sê ti próprio, usa o que treinaste, sê preciso, deixa a actuação de ontem para trás e concentra-te na de hoje. Acho que pensamos muito em como correu o espectáculo, não apenas em cada actuação, mas sobre o que foi o espectáculo – se tirou o máximo do seu conteúdo e de quem actuava nele. Se há algo mais a deitar abaixo nesse caminho, em direcção ao próximo. Se houve erros dos quais poderemos aprender. É mais fácil olhar para trás e analisarmos alguns espectáculos do que outros. Alguns deles (como The Travels) são bastante contidos, feitos para uma única e pequena tournée. É mais difícil avaliar do ponto onde estamos agora. Andamos a fazer, como chamamos, “grandes espectáculos” com 8 ou 10 pessoas desde First Night em 2001, Bloody Mess em 2004 e agora The World In Pictures em 2006. Estes projectos de maior dimensão em teatros maiores são mais confusos e mais caóticos, como se fizessem parte de um ciclo maior do qual teremos que encontrar uma saída. Falamos muito sobre coisas não acabadas e acho que é isso que nos mantém vivos. Nenhum espectáculo faz-nos sentir como se soubéssemos tudo ou como fazê-lo. Às vezes achamos que fizemos algo de bom – algo como Bloody Mess, por exemplo, mas por outro lado, quando fizermos a próxima representação de The World in Pictures, veremos as coisas, de repente, de maneira diferente, e como as ideias nos podem levar numa direcção inesperada. TP: (em fragmentos) Fragmento 1 (..)“Let it begin. / Enough of words. / No more. An end. / Art is
our aim. / Art is what matters here. / It sounds so old – yet it is so new.” / Hans Sachs em Die Meistersinger von Nürnberg (usado no Discotheater) (..) Fragmento 2 (..) Isto foi teclado no meio do ensaio. Estamos em countdown absoluto para a estreia. Eu (André) estou a começar a escrever
esta última resposta, o Pedro e o Vasco estão a tentar unir umas plataformas que já se partiram vezes demais devido ao peso das árvores, a João foi às compras, o Diogo e a Jardim estão a descansar para o turno da noite (das 12 p.m. às 3 p.m.), a Pati também está às compras com o Nelson. A Rita (a cadela) está a dormir. Muitos técnicos correm de um lado para o outro a tentar por tudo em ordem. E, porque o espectáculo vai decorrer num ginásio, estão cerca de 13 pessoas num varandim de cima a praticar Aikido e em berraria louca. Está calor, estamos cansados, temos as unhas pretas. Supostamente tudo está no caminho certo, embora um dia pudesse ter mais horas para ensaiar. Como estava a dizer, aparentemente tudo está a correr bem. E ainda assim, sabemos que o espectáculo provavelmente não vai correr como planeámos. Não é o que o espectáculo seja mau, pelo contrário, acho que todos estamos apaixonado pelo Discotheater. Mas a fadiga, o nervosismo, a falta de foco, os desnivelamentos, os pés tortos, a sede, a fome, as irritações, o aborrecimento, etc (..). Fragmento 3 (..) Um espectáculo nunca está bem quando estreia, e nunca está bem no fim da sua carreira, e nunca está bem no meio. Por essa mesma razão é que temos de fazê-lo uma e outra vez. É uma mea culpa. Às vezes, e nalguns dias, algumas cenas atingem as suas intenções. Quer dizer que são bem executadas (de acordo com aquilo que impusemos a nós mesmos). Mas ter tudo no caminho certo durante todo o espectáculo, isso raramente acontece. Estamos sempre a ser entretidos (ou outra coisa qualquer) com os outros actores. Muitas vezes damos por nós a pensar onde é que, durante o espectáculo, podemos ir à casa de banho, ou dar uma trinca, ou beber um pouco de água, ou a pensar porque é que não pusemos cortinas para que pudéssemos ter espreitado o público antes do espectáculo ter começado, ou a tentar levantar a energia do espectáculo que, sabe-Deus-como, se perdeu. Mas então, à parte de tudo isto continuamos o processo de “diário-eterno-do-mea-culpa” a tentar perceber se da próxima vez conseguimos acertar, se tudo o que analisámos como sendo parte do processo do grupo faz algum sentido. E depois dizer, d’aprés Satie: “Diziam-me que ia perceber quando tivesse trinta, pois tenho trinta e ainda não percebi nada.” Ainda temos muitas coisas para experimentar. Há sempre alguma coisa que nos vem à cabeça (ou em casos mais estranhos, ao coração). (..) Recusamo-nos a ser comparados com false gauges. Aceitamos ser destruídos por verdadeiros mestres… mas depois, não seguimos a sua religião. (..) Fragmento 4 (..) O cão acabou de acordar e está agora a cheirar os cabos. A João comprou uma fita muito linda. A Pati e o Nelson chegaram com os seus carros abarrotados de tralha. O Diogo e a Jardim ainda não apareceram e provavelmente continuam a dormir; desta vez as árvores
não partiram as plataformas (..) Devo dizer que o teatro “whose end, both at the first and now,
was NOT and is NOT, to hold, as ‘twere, the mirror up to nature” mas a humanidade no sentido cultural. (..) Fragmento 5 (..) Os espectáculos acabaram.
“The show was a great success, but the audience was a disaster”. (Oscar Wilde)
Antes da estreia, eu (André) dizia que às seis da manhã não haveria ninguém a ver o espectáculo. Que a plateia só deveria ter 10 cadeiras. E o que aconteceu é que dos 200 espectadores diários, às 6 a.m. cerca de 50 pessoas continuavam lá, partilhando a “espera pelo aufklarung”. Tomando o espectáculo como um tipo de manifesto-anárquico-da-nova-geração. A frase de Deleuze (e o nosso desejo) tornou-se realidade no Discotheater, conseguimos atingi-lo (não na totalidade, claro está, porque queremos diferença e não similitude). Os críticos perderam os direitos de ser detentores da propriedade intelectual dos artistas (e não apenas agora, há já muito tempo). (..) Fragmento 6 (..) Conhecemos a Cathy e o Robin e vimos os seus espectáculos. Em curtos encontros falamos do Zeitgeist, lojas de Chineses, público, publicness, tournées, subsídios, outras companhias de teatro, respostas curtas e longas, institucionalização, novas gerações, Berlim, plágio, mão partida + cicatrizes, bebemos maus vinhos e comemos comida sensaborona. Esta resposta está muito atrasada, talvez seja um sinal. Lançámo-nos numa coisa e não queremos largá-la. Talvez seja porque o nosso percurso é um percurso solitário. E isto é como ter um amigo imaginário e uma mesa de jogo imaginária e um “commonwealth artístico” imaginário: Utopia é o Rei e Zeitgeist a Rainha. …e é por isso que fazemos o que fazemos. Tradução do inglês: José Luís Neves e Francisco Valente
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MIRCEA CANTOR
MIRCEA CANTOR - STRANIERI - 2007, bread, knives, salt, wooden table. Pormenor da instalação individual mostrada na FRAC Champagne Ardennes, May 2007. Créditos: Aurélien Mole
A FACE OCULTA
A FACE OCULTA por António Pinto Ribeiro
DIÁRIO DE VIAGENS
LISBOA – MAPUTO JANEIRO 08
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Dia 1 Poucos dias antes de partir, leio no idança.net, numa curta notícia, que Augusto Cuvilas tinha sido assassinado no seu apartamento em Maputo. Notícia breve, directa, factual e tão absurda. Cuvilas foi morto por equívoco pela polícia, depois de ele próprio a chamado porque o seu apartamento estava a ser assaltado. Augusto Cuvilas era um dos mais jovens e talentosos coreógrafos africanos. Nos últimos anos vinha contribuindo para a criação e difusão de uma dança contemporânea nova e estruturada na África Austral. Parte desta energia criativa vinha da dimensão ética que Augusto Cuvilas impunha no seu trabalho. Em 2003, quando participei como membro do júri dos 5ºs Encontros Coreográficos de África e Oceano Índico, em Antananarive, capital de Madagáscar, pude constatar esta dimensão pessoal de Cuvilas. Premiada em 2º lugar, a sua obra - “um solo para cinco” –, foi, contudo, sujeita a uma censura do governo local, porque as bailarinas dançavam completamente nuas em alguns momentos. Ao Augusto foi sugerido pelas autoridades que vestisse as suas bailarinas, pelo menos em parte, sugestão que ele recusou liminarmente, tendo por isso sido impedido de mostrar a sua criação ao grande público na noite da consagração dos premiados. Foi uma decisão difícil, mas da qual não abdicou por ser um artista de princípios. Não é só a dança que fica mais pobre em África, é também a sociedade civil. São 10h da manhã e fazem 30º à chegada a Maputo. Esta luz, como lhe é próprio, incandesce. Dia 2 Nas vésperas da partida tive ainda a oportunidade de ver O Avarento ou a Última Festa, pelo Teatro Praga, com texto de José Maria Vieira Mendes, a partir do texto de Molière. Registo: índice de actualidade, com o dispositivo de vídeos, fluxo permanente de imagens, referências claras a Alain Platel, Forced Entertainement, Thomas Hirschhorn, o dispositivo de citações de autores de culto da cena internacional, músicas dos djs globais, cenografia excessiva muito comum nos festivais de teatro alternativos em Bruxelas, Berlim, Londres. Actualidade portanto, e internacionalização: “o estrangeiro já é aqui”. Depois, há o jogo com os índices da cultura erudita, num processo que ora joga na plataforma do iconoclasta, ora é predador para ocupar o vazio que absorve, como uma força centrípta, toda esta actualidade discursiva dos Praga neste espectáculo. Sempre à beira do desastre e glosando com ele, a peça é bem uma festa, como diz o anúncio do título. Não saberemos se é a última, mas a dramaturgia joga com esse efeito, o efeito do desgaste ideológico e do não retorno. Não se trata de nostalgia da época revolucionária e das vanguardas dos sixties; lá estavam o CV2 cavalos amarelo, ícone da revolução de Maio de 1968, de Godard, os livros, muitos, a confirmar uma tradição intelectual de um teatro de intervenção,
os gestos dos actores retirados da BD. Trata-se de fazer uma combinação de materiais do passado e reutilizá-los na Festa que já é pouco de teatro, mas é muito performance, o prazer do jogo, a elegia do presente. Entre a catástrofe, como dizíamos, e lá estavam a enquadrar as imagens do King Kong e da Guerra dos Mundos de um lado, e o turismo cultural das imagens de Praga do outro, assim se passa a festa, com “deixas” e citações que são links a abrir para todo o lado e para lado nenhum, e assim se faz a festa. Pena é que às tantas se perca o controlo. Alguns dirão: é próprio das festas... Será assim também para o público? Dia 3 É tão bonito este português cantado que se fala no Maputo... Dia 4
O Fazedor de Utopias, uma biografia de Amílcar Cabral da au-
toria de António Tomás (edição da Tinta da China), é um livro fundamental para entender porque é que o fim do Colonialismo português era uma inevitabilidade. Mas também porque, simultaneamente, destrói o que era a propaganda nacionalista sobre o terrorismo, e revela a excelência da pessoa que foi o líder Amílcar Cabral. António Tomás inicia esta narrativa de jornalismo, resultado de um trabalho de anos de investigação, ainda no século XIX, em Cabo Verde e na Guiné, e termina-a no 25 de Abril de 1974. Ao longo das suas 337 páginas é-nos permitido conhecer a formação dos nacionalismos africanos, os seus fundadores e textos, a biografia exaustiva de Amílcar Cabral, a formação do PAIGC, a luta pela Independência e a resposta dos governos de Salazar e de Caetano, as lutas internas do Partido, as cumplicidades internacionais, o quotidiano da guerrilha, o assassínio do líder e as querelas e posteriores divisões entre Cabo Verde e a Guiné. Alguns dos aspectos abordados são de uma importância sociológica e política fundamentais, como a descrição da sólida preparação intelectual de Amílcar Cabral, da sua formação como engenheiro agrónomo e investigador, dos seus planos agrários e de geografia social aplicados a Cabo Verde e à Guiné, do seu talento diplomático, bem como a importância dos livros, das fotografias, dos filmes realizados durante a guerrilha e a importância da rádio. A par das preocupações antropológicas do autor, nota-se o seu gozo jornalístico na descrição de alguns episódios, como o do funeral de Amílcar Cabral, notável pela capacidade imagética do tratamento. Uma questão central, e ainda hoje determinante nas questões africanas, é a que relaciona o tribalismo e as suas práticas ritualísticas com a impossibilidade de gerar modernidade. E este aspecto foi, e é, bastante mais vulgar e inquietante do que ainda hoje pode parecer, como o sabia e o previu Amílcar Cabral. À hora a que escrevo fazem 39º a norte do Maputo. Dia 5 Régis Debray acaba de publicar Un mythe contemporain: le dialogue des civilizations (CNRS Éditions). O livro resulta de uma conferência dada a 28 de Junho de 2007, em Sevilha,
organizada pela “Fundação das Três Culturas”, no âmbito da discussão sobre o Mediterrâneo como região cultural em conflito. Absolutamente céptico em relação a este tipo de acontecimentos culturais “fastidiosos e estéreis”, que apelam ao diálogo das culturas e nada dizem ao “homem de rua”, Debray interroga-se por que, a seguir à religião como ópio do povo, devemos colocar “a teologia civil do diálogo”?! Apesar de ter aceite o convite, o autor resume a organização dos trabalhos e a sua própria intervenção da seguinte forma: a) é preciso questionar o termo cultura e esclarecer que ele contém, na sua raiz etimológica, a palavra conflito; b) que não havendo uma sociedade de estados cristãos, existe contudo uma organização de estados islâmicos, o que torna desde logo o diálogo desequilibrado e pouco entendível para cada uma das partes, que partem de pressupostos e de planos dogmáticos radicalmente diferentes; c) para discutir a religião – como o fizeram os representantes das três religiões monoteístas presentes - é necessário o confronto com os arqueólogos, juristas, diplomatas, cujos pontos de vista esclarecem as zonas tidas como adquiridas; d) entender que nem sempre laicidade quer dizer o mesmo que democracia, e que religião não quer dizer necessariamente clausura; e) que para entender a liberdade é preciso perceber que esta não é uma invenção jurídica, um tesouro filosófico, um bem que umas civilizações têm e outras não, mas que resulta da relação objectiva entre o indivíduo e o espaço que ele ocupa, entre o consumidor e os recursos de que ele pode dispor. Do conjunto destes itens então sim, pode passar-se a discutir sobre cultura e civilizações. E há uma reflexão fundamental, que subjaz a estes preceitos discursivos de que Debray se socorre como núcleo da sua lição. Trata-se da relação entre a técnica e a cultura, sobre a qual afirma que “one-world” tecno-económico parece opor-se à multiplicidade dos mundos culturais, como o planetário ao vernacular e o sempre-novo ao sempre-o-mesmo e que, na verdade, técnica e cultura não são de todo a mesma coisa, e confundi-las é o primeiro passo para não entender o conflito entre as civilizações, que usando a mesma tecnologia, têm culturas diferentes. Dia 6 No Índico, estes pequenos barcos com suas velas triangulares... e é assim há tantos séculos... Dia 7 Acácias rubras floridas de um lado da avenida e do outro jacarandás já sem flores porque as acácias só florescem quando os jacarandás perdem as suas flores. E que ambas as árvores floridas era beleza em excesso e há dúvidas de que a cidade suportasse... Dia 8 O Mercado do Pau está diferente. Começam a aparecer novas formas, novos objectos, novas figuras de design que já não são do artesanato tradicional e muitas vezes kitsch; é sinal da dinâmica desta sociedade e muito por efeito das organizações do preço justo que incentivam a qualidade e a imaginação... Dia 9 O Índico imenso e calmo...
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LÍDIA JORGE
(EN)CANTOS DE MULHER NUMA OFERENDA MUSICAL destacada, num concerto da Orquestra do Algarve, em Faro, no Teatro das Figuras texto Elisabete França fotografia Martim Ramos
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“A ideia de abrir novos caminhos para a música”, “pondo ênfase nas palavras”, foi de Cesário Costa, director artístico da Orquestra do Algarve (OA) e participante em múltiplos projectos, como Evil Machines em Lisboa, que acabou por falar-nos de Badajoz, onde ensaiava a Orquestra da Extremadura. No sentido citado, o maestro convidou a escritora Lídia Jorge para “conceber um concerto na perspectiva da abertura de públicos, [que costumam ser] sobretudo estrangeiros” no Algarve. Quem começamos por ouvir aqui é a ficcionista, sobre a génese do concerto de 8 de Fevereiro, no Teatro Municipal de Faro – Teatro das Figuras, a transmitir pela RDP2. Por que figurará ali a autora-revelação de O dia dos prodígios (1980), destacada, num concerto intitulado Oferta das mulheres aos homens, constituindo, afinal, uma oferta ao público? É que, apesar da presença de duas cantoras (Sónia Alcobaça, soprano e Maria Luísa de Freitas, meio-soprano), em árias dos séculos XVII-XIX e numa canção em estreia absoluta (segundo poemas de Maria Teresa Horta, musicados pelo jovem compositor João Antunes), Lídia Jorge será voz solista singular, não cantando mas lendo, contando e comentando os (en)cantos femininos de sua escolha – cujas palavras o público recebe impressas, em português e inglês, além de italiano nas óperas de Vivaldi (Ercole sur termodonte, La fida ninfa) e Puccini (Madama Butterfly), francês na de Bizet (Carmen), norueguês para a Canção de Solveig no Peer Gynt de Grieg. O espectáculo estrutura-se, pois, num entrançado: apresentação dos textos pela autora de A costa dos murmúrios com as interpretações cantadas e as de trechos orquestrais, seleccionados pelo maestro como “separadores”: do último entreacto da Carmen a um intermezzo da Cavaleria Rusticana de Mascagni, passando pela marcha nupcial de Peer Gynt. Tal formato e, antes, o seu convite a Lídia Jorge, visaram “desenvolver projectos ou conceitos de concerto em cooperação com outras áreas”, de modo a “apresentar a visão musical de pessoas dessas áreas”. Da literatura, no caso da primeira convidada, para aquilo que o maestro espera prolongar como série noutras temporadas. DIVULGAÇÃO MUSICAL A favor da personalidade escolhida, Cesário Costa acentua “a qualidade reconhecida à escritora” e “a sua ligação ao Algarve” (n. 1946 em Boliqueime, onde passa temporadas, Lídia Jorge concluiu o ensino secundário no Liceu de Faro e a licenciatura em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, onde mora desde 1964; ausente em Angola e Moçambique, no
âmbito da guerra colonial). Valem os motivos extra-literários do maestro por acrescentar conhecimento do ‘espírito do lugar’, dos hábitos de recepção ou da falta deles, numa “zona cosmopolita mas recuada do ponto de vista cultural”, para a escritora. Vendo já, contudo, “mudança extraordinária, também pela mão da orquestra que existe só desde 2002, convidada para o Concerto Europeu de Dezembro último, por reconhecimento do que tem feito pela divulgação musical para um público que está sendo cultivado”. A contista de O belo adormecido acentua, entretanto, a “modéstia” do seu contributo: “Uma espécie de iniciação, num serão para receber amigos”. Esta premiada autora, ainda com actividade pedagógica e didáctica, durante anos, a leccionar línguas e literaturas no ensino secundário, classifica como “extraordinária” a actividade da OA também “na motivação de públicos”. Nessa linha, a proposta da romancista de O cais das merendas partiu de “árias conhecidas do reportório mais comum, que entrassem facilmente no ouvido e pudessem encontrar poemas” a apresentar, uma vez seriadas cronologicamente e traduzidos os textos a imprimir, para acompanhar a intervenção falada e a cantada, contra a incompreensão, a perda de palavras moduladas nas vozes do canto lírico. DAS MULHERES AOS HOMENS Além do critério anterior, Lídia Jorge explica “outro, mais apertado, o das árias femininas em que as mulheres falam do seu amor”. Aí, começando a seriar, a autora de O vale da paixão encontrava “uma oferta das mulheres aos homens, a oferta do seu sentimento”. Pareceu-lhe “um bocado irónico” mas manteve “a referência” e criou “uma coerência” nesse contexto. No programa, refere a possibilidade de “reunir alguns dos momentos-luz mais intensos da música lírica ocidental e ilustrar através deles a modulação que os sentimentos tomam em momentos históricos diferentes”. Segundo o director de orquestra, exprime-se assim a visão “de alguém apaixonado por música, que foi buscar um reportório diverso, [feito daquilo] que serão as ofertas [musicais e poéticas] das mulheres aos homens”. Em palavras de homens até ao final, anotamos, fossem eles libretistas usuais ou não (como Prosper Mérimée e Enrik Ibsen, cujas obras Carmen e Peer Gynt foram adaptadas à cena operática, embora pelo próprio autor no segundo caso) e isso desde as composições antigas de Vivaldi às oitocentistas de Bizet e de Grieg. A “coerência” de textos em contexto caminha do que se diria, à partida, no barroco italiano, séculos
XVII-XVIII, uma atitude passiva de quem espera o amado (Zeffiretti, che sussurrate) e sofre (Alma opressa), atitude ainda patente na Solveig sang, vida gasta à espera do que se aventurou pelo mundo (já no último quartel do século XIX… talvez com crítica implícita, dê-se benefício da dúvida ao autor de Casa de Bonecas e Hedda Gabler). Passa-se pelo fresco e floral dueto feminino Scuotti quella fronda, numa Butterfly que por abandono de amor se suicidará (trânsito séculos XIX-XX) e são atitudes afinal intemporais, mesmo se já iludidas, não assumidas, como Lídia Jorge releva. A fechar, todavia, ressoam insubordinadas palavras de rebelião e duma máquina desejante posta ao trabalho, nos dois poemas (Ponto de honra e Segredo, reunidos sob o primeiro título) do livro de Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim (1971) – para a programadora, “expressão poética da sensualidade e da emancipação feminina, antecipando desde os anos setenta, a linguagem comum das mulheres dos nossos dias”. Linguagem de poetisa feminista militante (três vocá-bulos proscritos como o tabaco, por agentes de colonização portuguesa-suave na comunicação social). Versos que ecoam árias da Carmen, menos a duma Micaëla tentando fazer das fraquezas forças (C’est des contrebandiers), evidentemente a da protagonista e sua rival, a sedutora operária tida por mulher fatal, precursora (em novela de 1845) duma atitude livre que começa no amor (La Habanera, verso inicial: “L’amour est un oiseau rebelle”/”O amor é um pássaro rebelde”). Um concerto mais lírico do que Lídia Jorge gostaria, na falta doutro “canto novo, pela Turandot”, na ária da ópera homónima de Puccini, In questa reggia, “a voz da independência” para cuja interpretação não houve cantora disponível. Talvez no reatar do projecto em desejada digressão…
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OLD JERUSALEM texto Francisco Valente fotografia Paulo Pimenta
UM CONCEITO DE AMOR Old Jerusalem lançou The Temple Bell, o seu disco mais sólido, em 2007, esperando-se agora um ano de concertos e, talvez, novos caminhos e experimentações. Olhando para a música portuguesa dos últimos anos, encontram-se projectos de variadíssimas vertentes e de origens dispersas. Mas entre toda a nova música que se tem feito em Portugal, um nome destaca-se tanto por si mesmo como pelo reconhecimento crítico e público de que tem sido alvo: Old Jerusalem. Armado de uma guitarra acústica e pouco mais, Francisco Silva, mentor do projecto, tem-se lançado na criação de músicas reveladoras da sua intimidade - composições que espelham emoções, pequenas anedotas, contradições e mutações de espírito. Old Jerusalem são, portanto, Francisco Silva, e uma banda que cresce e decresce, dependendo das ocasiões. Contam com três discos na editora Bor Land: April de 2003, Twice The Humbling Sun de 2005, e o recente The Temple Bell, lançado no ano de 2007. Neste último, o compositor e cantor alarga a sua sonoridade em instrumentos e arranjos. O resultado é um disco mais vasto em som e mais sólido em composição, sem fugir à sua conhecida imagem: a de um singer-songwriter em espírito folk. The Temple Bell funciona como um retrato progressivo de uma relação amorosa, mutável portanto, por vezes mais nervosa, outras mais em introspecção. No fundo, um relato de imagens não tão literato, apesar de confessional. “Uma parte considerável da comunicação pela arte baseia-se na evocação dessas imagens, na exploração das ressonâncias emocionais que elas possam ter (...) a eficácia desse processo é aquilo que todos procuramos”. Em onze músicas, Francisco Silva canta sobre o amor, o medo de perdê-lo, as suas incidên-
cias e dúvidas, fruto de vontades de querer amar (melhor) ou esquecê-lo e admitir as suas fraquezas humanas. “We fabricate the concepts but fundamentally fail to connect”, canta em Love & Cows, retrato surpreendentemente rico em contexto e nas imagens directas do falhanço de uma relação, dos seus dias felizes, melancólicos, impossíveis ou mesmo caricatos. Mais que por um lamento, são histórias comuns e poéticas em música que iluminam tanto a simplicidade como a imensidão dos seus sentimentos. E sobretudo, um tratamento brilhante e invulgar da língua inglesa no nosso país, uma característica marcada da componente lírica e melódica das suas composições. “Tenho bastante interesse na componente lírica das canções e de forma mais geral nas palavras, independentemente do idioma”, afirma o músico. Uma inclusão de palavras como versos na musicalidade, entre poesia e melodia, entre uma linguagem por vezes requintada e a frontalidade do diaa-dia. Apesar da sua singularidade, Old Jerusalem encontrou o seu lugar na música que ouvimos, já não estando, aos olhos de Francisco Silva “tão isolado (...) nem me parece tão raro nos últimos tempos ver músicos portugueses a trabalhar em ambientes próximos do que adoptei”, um ambiente discreto na produção e familiar na sua escrita. A sua música é absolutamente natural, talvez devido ao facto de não se atirar à composição de forma necessariamente premeditada ou planeada. Um processo instintivo, como espelho de um rosto em autocontemplação, que facilita, também, a identificação de quem o ouve nessas mesmas imagens. Uma linha até agora constante em três discos, se bem que ricos e individuais nos seus temas, à espera de outras colaborações e, quem sabe, experimentações – “gostaria de experimentar abordagens diferentes, se sentir que fazem sentido, se as circunstâncias o favorecerem e se tiver capacidade de o fazer”. Para já, esperam-se novas composições já este ano. Em 2008, veremos Old Jerusalem em palco no nosso país, assim como as primeiras gravações para o próximo disco. Uma actividade cada vez mais natural, “de preferência [este ano] com alguma dinâmica acrescida”. Apenas esperamos a mesma sinceridade.
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OLGA MESA
Regresso a Portugal de uma coreógrafa que encontrou em Lisboa uma dança feita de labirintos da linguagem e de ossos contra solo.
SÓ
© Olga Mesa
texto Jaime Conde-Salazar
Se olhássemos para a história recente e a organizássemos em diferentes relatos, seguramente que um eles contaria que entre 1991 e 1997, aproximadamente, a dança teatral viveu uma brevíssima “idade de ouro” em Madrid. Os artistas formados nos anos oitenta da chamada “dança contemporânea” começaram, então, a desenvolver discursos críticos que questionavam as linguagens estabelecidas na última modernidade, as suas formas de produção, a posição do espectador, etc. Pela primeira vez na história, as propostas que surgiam em Madrid tinham o mesmo que ver com o que ocorria, no mesmo período, em Paris, Lisboa, Berlim ou Londres. Olga Mesa (juntamente com La Ribot, Mónica Valenciano, Blanca Calvo, Juan Domínguez, etc.) foi uma das protagonistas da agitação insólita que marcou um horizonte de referência fundamental para todos os artistas que se seguiram. Podemos achar, de muitas maneiras, que Olga Mesa se sentiu iluminada em Lisboa. Regressou a Madrid depois de participar, durante os anos oitenta, na mítica Bocanada Danza com La Ribot e Blanca Calvo, e após viver e começar a criar as suas próprias obras em Nova Iorque. Chegou a uma cidade em crise, onde se começavam a instalar políticas culturais ultraconservadoras que ainda hoje assolam a capital do Estado. Os artistas encontravam-se mais desprotegidos que nunca, o seu trabalho converteu-se num puro esforço de sobrevivência. Nessa situação, perdiam sentido as companhias, as produções, e sobretudo as linguagens acéticas da “dança contemporânea”. As artistas estavam sós. Cada uma teve que encontrar a sua forma de ir em frente. E foi então que Olga Mesa encontrou em Lisboa uma luz que não existia em Madrid. Em 1993, estreou Sem imagem ou outra coisa qualquer; em 1994, Des/aparições com Paulo Henrique; e em 1995, o vídeo Europas com Francisco Camacho e La Ribot. Sobrevoando tudo, as referências constantes a Pessoa. Era como se, naquele tempo, Olga Mesa tivesse encontrado um túnel subterrâneo que ligasse Lisboa a Madrid: de alguma maneira, fez com que as capitais se incorporassem pelas suas carnes. E desse encontro nasceu o solo Esto no es mi cuerpo (1996). Com alguma distância, não é difícil perceber que se trata de um trabalho fundamental para a artista. Não só marca um primeiro momento de maturidade,
como revela todo um universo iconográfico e, inclusivamente, linguístico, que desde então acompanha Olga Mesa. A solidão, a crueldade, o peso do corpo, os labirintos da linguagem, o cinema, os ossos contra o solo, o giz, os sonhos... está tudo ali numa espécie de fórmula magistral. E é este universo que faz inevitavelmente pensar nas suas irmãs lisboetas: Olga Mesa regou a seca manchega de Madrid (a que fez com que La Ribot reduzisse a sua obra a gestos mínimos, chamados peças distinguidas; e a que fez Mónica Valenciano entregar-se às alucinações provocadas pela fome) com um lirismo que só poderia ter vindo da foz onde desagua o Tejo. Olga Mesa viu a luz em Lisboa, nasceu com Vera Mantero, João Fiadeiro e Francisco Camacho, e os seus ossos chocaram no solo de Madrid. Depois, veio o exílio. Mas não de forma imediata. As descobertas de Esto no es mi cuerpo serviram de alimento para as experiências que se desenvolveram nos anos seguintes, juntamente com outros artistas que formaram a trilogia Res, non verba: desórdenes para un cuarteto (1997) e 1999 L-imitaciones mon amour (1999). Mas a situação já era demasiado difícil em Madrid. E a França esperava. Foi assim que, em forma de despedida, Olga Mesa voltou a ficar só para falar do amor. Daisy Planet (2000) foi a nova entrada, o planeta a partir do qual, uma vez instalada em França, começaria a explorar novas qualidades. O novo solo anunciava um humor, uma sensualidade e um optimismo que eram difícil de intuir em Esto no es mi cuerpo. A crueldade e a nudez converteram-se, assim, em algo mais, como numa inocência surpreendente. E assim, a partir do exílio francês, a cena antes escura, tornou-se branca. Na companhia de Daniel Miracle, Nilo Gallego e Juan Domínguez (entre outros), Olga Mesa começou a explorar aquelas outras galáxias hedonistas que se viam desde Daisy planet. Assim chegaram Más público, más privado (2001), Suite au dernier mot (2003) e On cheRchE uNe dAnse (2004). Este ano, Olga Mesa regressará a Lisboa com um novo solo. Encontrar-nos-emos, quem sabe, sobre um novo umbral, com uma nova promessa dos novos anos que virão. Diz que lhe estará a custar encontrar-se, neste momento, com a dança. Que volta a sentir o peso dos ossos depois de todos estes anos sem se submeter à rotina do treino. Que paisagem se adivinhará com este novo solo? Solo a Ciegas (con lágrimas azules) apresenta-se dias 7 e 8 de Março na Blackbox do Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, e dias 14 e 15 na Culturgest, em Lisboa.
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RAIMUND HOGHE
Raimund Hoghe é um caso à parte na dança europeia e as suas peças revelam a complexidade de sentidos que um corpo pode produzir. Perfil de uma das mais enigmáticas figuras da dança contemporânea.
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PRÍNCIPE PERFEITO texto Franz Anton Cramer fotografia Rosa Frank
Desde os anos 90 que Raimund Hoghe, a viver em Düsseldorf, no Estado de Nordrhein-Westfahlen, trabalha como coreógrafo independente. A princípio, o seu trabalho era seguido com interesse e encorajado na Alemanha, mas o seu ponto de apoio central acabou por se deslocar cada vez mais para a Bélgica e para França, onde se encontra hoje a sede da sua companhia. O mercado alemão acabou por se distanciar cada vez mais do trabalho de Hoghe. As peças, cuidadosa e minunciosamente trabalhadas, marcadas por um prosaísmo e cujos rituais cénicos se reflectiam em peças como Lettere Amorose (1999) e Another Dream (2000), ou, por último, a sua actuação em Régi (2006) com Boris Charmatz, eram vistas com estranheza por uma comunidade que considerava que a dança e a representação eram dissociáveis. Segundo William Forsythe, Johann Kresnik ou Pina Bausch, apenas quando o homem e o seu corpo se movem em grande estilo é que surge a dança. As peças de Hoghe, mais ligadas à poesia e a trabalhos musicais, como Tanzgeschichten (2003) e Young People, Old Voices (2002, apresentada na Culturgest, Lisboa, em 2006) – nunca houve um convite para as apresentar na Alemanha –, baseiam-se, pelo contrário, numa espécie de fôlego prolongado, ajustando-se conforme a duração e perspectiva, sem nunca se esgotarem no efeito causado. Que o aspecto físico de Hoghe – resultado de uma deformação da coluna vertebral: a sua postura encurvada, o seu passo desajeitado, a sua gesticulação por vezes acanhada – não se enquadre à imagem de um mundo de dança perfeita (uma situação à qual ele próprio reage com agressividade), acabou por determinar o resto. No meio artístico alemão, o aspecto cicatrizado e o desvio são considerados ilegítimos e apenas aceites no meio circense. Em França, pelo contrário, essa particularidade é vista de forma distinta e Raimund Hoghe é considerado um verdadeiro artista, obviamente não devido à sua estatura física, mas sim pelo trabalho realizado na área da coreografia durante mais de dez anos. O seu aspecto físico, apresentado em qualquer trabalho cénico, não é sistematicamente visto como uma ofensa à norma e à integridade física, tal como é na Alemanha. Muito pelo contrário: foi essa mesma deformação que cau-
Tradução do alemão: Sónia Silvestre
sou sensação e agitou o meio artístico da dança parisiense. Boris Charmatz, a par de Jérôme Bel, um dos mais influentes representantes da coreografia contemporânea e radical em França, voltou a fazer uma peça para palco seis anos depois de ter estado fora do meio artístico. E para a peça Régi conseguiu a participação do coreógrafo alemão Raimund Hoghe enquanto actor. Charmatz tem um fascínio por Hoghe e transfere-o para o ponto central da sua peça. Após um primeiro e misterioso encontro a meia-luz, Charmatz e Hoghe, como casal desigual, passam a entreter-se um com o outro. Nota-se que se despem. O que se segue é uma quase escandalosa curiosidade por parte de Charmatz, com o seu bonito e atlético corpo de dançarino, pelo corpo repugnante de Raimund Hoghe. Timidamente, Charmatz confronta a sua pele com o toque do seu oposto, refastelando-se em torno de Hoghe, que permanece de costas, imóvel e estatelado no chão. É como se a simetria psíquica não se cansasse de olhar para a caricatura do corpo, como que pretendesse incorporar a experiência do ser distinto debaixo da própria pele. Charmatz pega na mão de Hoghe, passando-a pelas suas costas; ele busca, provoca, põe em cena um movimento que, na sua qualidade erótica e sensual, deveria, no fundo, ser considerada imprópria, escandalosa e impensável. Mas, na verdade, acaba por ser uma manifestação de apreço, uma afirmação do ser possível, uma encenação do todavia. Numa preenchida mas nunca clara luz, Charmatz gira o objecto do seu desejo para outro lado e a “vítima” de um fetiche estranho transforma-se num corpo desnudo e deitado, cuja anatomia distinta se acaba por transformar em sensualidade escultural. Por fim, Charmatz levanta a ressuscitada marioneta, o manuseador de marionetas (Hoghe), desaparecendo com ele no fundo do escuro. É como se a superioridade da sua curiosidade tivesse vencido, como se a perfeição de um se tivesse regozijado na estranheza do outro, transformando Hoghe em figura-causa. A peça foi poucas vezes representada na Europa e já não se encontra em cartaz. Depois, Hoghe conseguiu da peça Sacre – The Rite of Spring (2004), em que apresenta um duo com um jovem flamengo de nome Lorenzo De Brabandere, e da comovente peça Swan Lake, 4 Acts (2005), cuja cena final consiste no coreógrafo apresentado simultaneamente como solista, a forma enfática como aceita a sua situação de pessoa solitária, melancólico e colocado à parte pela sociedade, mas que agora, com a peça Bolero Variations (2007), acaba por regressar novamente à ribalta, depois de 36, Avenue Mandel, também deste ano, e inspirado em Maria Callas. A relação especial entre a música, a gesticulação e a sua duração acaba por expressar uma evidência típica. Bolero Variations é uma espécie de síntese das primeiras peças de Hoghes; aí descobre na certeza da composição, do equilíbrio da expressão e da transcrição, de sentimentos e sobridez , da ilustração e referência a si próprio, uma maior e mais formal clareza para compor. A imagem final resume essa complexa estrutura: os participantes, como que num exercício para aquecimento, aguardam com as pernas levemente a baloiçar, enquanto que a luz se apaga. No final dos movimentos históricos e coreográficos, todos permanecem no seu lugar, mas a peça, com todas as suas lembranças, apelos e formas, permanece… Swan Lake - 4 acts mostra-se na Culturgest, Lisboa, a 8 e 9 de Fevereiro. A peça foi
considerada pela crítica francesa como o melhor espectáculo estrangeiro da temporada 2005/06. Mais informações sobre o coreógrafo em www.raimundhoghe.com (textos de espectáculos, fotografias, bibliografia). Leia na OBSCENA #8 excertos do texto da peça Meinwärts.
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TEATRO REGIONAL DA SERRA DO MONTEMURO
PÃO, AMOR E MÁSCARAS
texto Pedro Manuel
Mais do que teatro comunitário, a singularidade do Teatro Regional da Serra do Montemuro reside na liberdade de influências, tendências ou etiquetas, preferindo a companhia um dinamismo de criação constante que se volta a provar em Amor, a mais recente peça. lebração e da festa, indo ao encontro da comunidade no espaço público; por fim, Os Gregos, Fraga das Fàbulas ou Mãos Grandes, que são espectáculos para a infância, são paralelos a projectos como Canto da Cepa, com a comunidade escolar de Lamego, Hotel Tomilho com a companhia belga Laika ou Da minha vista ponto a partir de oficinas com doentes mentais em Viseu, na medida em que são aproximações a comunidades específicas enraizando o TRSM à escala local. Outros exemplos desse enraizamento são o Espaço Montemuro, espaço de trabalho e ponto de encontro, e o Festival Altitudes, festival de teatro que se tem vindo a realizar anualmente desde 1998, ambos na aldeia de Campo Benfeito. Em 2008, o Teatro Regional da Serra do Montemuro tem em cena o espectáculo Amor, e prepara as novas criações, O Anjo de Montemuro e Da minha vista ponto, para além da itinerância de Qaribó, Splash e Mãos Grandes. Amor apresenta-se, em Fevereiro em Castro Daire (2), Penedono (3), Viseu (Teatro Viriato, 9 e 10), Faro (Teatro Municipal, 14), Tomar (15) e em Março, em Coimbra (Museu dos Transportes, 13 a 15), e Santa Marta de Penaguião (29). Quaribó mostra-se em Torres Novas (Teatro Virgínia, 29 de Fevereiro e 1 de Março) e em Março em Aveiro (Teatro Aveirense, 7 e 8)
Na imagem: Quaribó © Lionel Balteiro
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O Teatro Regional da Serra do Montemuro é um dos melhores exemplos da influência que um grupo de teatro pode ter numa comunidade. Dezoito anos depois de uma oficina de teatro na aldeia de Campo Benfeito (perto de Castro Daire, no Distrito de Viseu), o Teatro Regional da Serra do Montemuro afirma-se hoje com um perfil artístico singular em relação à maioria das companhias portuguesas e bem preparada para responder ao mercado de circulação de espectáculos. Apesar do desequilíbrio estético de alguns espectáculos, todos parecem ter a honestidade de quem experimenta por curiosidade, e a maisvalia de defender, desdobrar, tornar visível a riqueza cultural do folclore serrano português. E mesmo sendo esta a imagem de referência do TRSM, e aquela que a distingue de outros grupos, e a protege, o grupo não se tem mostrado preocupado com influências, tendências ou etiquetas, preferindo um dinamismo de criação constante. No início dos anos 90, os habitantes mais velhos de Campo Benfeito, os pais dos actores, viam o teatro como uma desculpa dos filhos para fugir ao trabalho no campo. Hoje, o grupo conseguiu legitimar a sua actividade como uma saída profissional e, sobretudo, ao definir-se como mediador cultural, entre campo e cidade, entre passado e presente, definiu o espaço geográfico e afectivo dos seus espectáculos: a serra, a ruralidade, o teatro como agente comunitário. A título de exemplo, recorde-se o espectáculo Lobo – Wolf, de 1995, escrito por Abel Neves e interpretado por Graeme Pulleyn e Paulo Duarte, fundadores do projecto, e onde se apostavam já as linhas directrizes do trabalho do TRSM: cenografias modulares e itinerantes criadas com materiais orgânicos, recriando lugares reais da vida serrana ou imaginários folclóricos; a modulação da presença do actor, através de personagens burlescas, das figurações de animais, dos figurinos e das máscaras; o desenvolvimento de um repertório dramatúrgico original, apostando na criação colectiva, convidando autores nacionais e estrangeiros, sempre em estratégias de familiaridade, e procurando manter a sonoridade fonética do português de Montemuro. As linhas deste perfil desdobram-se então em diferentes tipos de espectáculo ao encontro de diferentes públicos: Lobo-Wolf, Alminhas, Eira dos Cães são exemplos de espectáculos de sala, onde o imaginário serrano sintetiza dramaturgia e espaço cénico; já Fénix e KotaKota, Carrada de Bestas ou Splash são espectáculos de rua que correspondem ao desejo da ce-
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PONTO CRÍTICO
PONTO CRÍTICO por Eugénia Vasques
A TRADUÇÃO DE «PERFORMANCE» 1. Existe, no campo das artes, um nome - «performance» que, dada a sua pertença ao léxico do inglês corrente (com o significado de desempenho; espectáculo, actuação, representação, etc.) ao mesmo tempo que pontua na conceptualização Linguística (performance vs competence), nas Ciências Sociais em geral e na conceptualização das artes contemporâneas (designação de um «género» artístico), tem suscitado, mesmo como conceito operativo, não poucas confusões e ambiguidades e tem oferecido muita resistência à definição. Alain Accardo, tradutor da obra de Erving Goffman (Mise en scène de la vie quotidienne: La présentation de soi, Paris, Minuit, 1973; Paris, Le Seuil, 2001), ousou traduzir performance por representação e caiu-lhe em cima o carmo e a trindade, neste caso, Yves Winkin que considera a opção uma autêntica «traição» ao pensamento do sociólogo! 2. Mas se o uso lexical de tão amplo nome levanta abundantes problemas de tradução e de adequação a cada realidade linguística para onde é importado, aparentemente mais tranquila será a observação da sua evolução de substantivo a conceito artístico. Nesta ordem de coisas, o conceito de performance é um conceito-mala (à Lewis Carrol?), expansivo, que abarca qualquer disciplina artística e coloca no seu centro o corpo do/da «performer». E se a performance tem como centro o corpo (a característica de ser um corpo «vivo» é actualmente uma questão abalada pelo uso intensivo das tecnologias, elas próprias como instâncias mediadoras do discurso artístico), é porque a «acção» é, igualmente, um dos seus traços distintivos fortes. Que uma Body Art ou um Aktionismo ou uma Action Painting (para já não falar de Actions, Acts e Re-Enactments) tenham sido ramos da performance conceptual originária só vem acentuar o que de mais estável poderemos reconhecer neste terreno polimorfo encontrado mais pelos artistas do que pelas artes para se questionar e aos tempos e contextos da criação. 3. A genealogia deste «género» artístico – e abstemo-nos, por impossibilidade, de confrontar esta questão com o entendimento que dela faz a Antropologia Cultural ou a Sociologia (aliando a performance à globalização e ao hibridismo) - é outra questão susceptível de debate. Apesar de se encontrar assaz fixada uma genealogia da performance que liga, significativa-
mente, o género às vanguardas dos anos 10-20 do século XX (Futurismo, Dada, Surrealismo...) – veja-se RoseLee Goldberg em A Arte da Performance: Do Futurismo ao Presente, obra que acaba de ser lançada em Portugal (Orfeu Negro, 2007) -, a verdade é que se situarmos o nascimento da performance no atelier americano de Allan Kaprow, berço dos happenings, em meados dos anos 50, e a sua fixação como género estabelecido nos EUA no decurso dos anos 70, não perderemos uma das suas características evolutivas mais perturbantes: a sua evolução de discurso da Contra-Cultura mais experimental a produto transfronteiriço da indústria cultural. 4. O que acabo de sublinhar, e nem sequer é original, não visa tapar o sol da realidade com a peneira de qualquer preconceito. Basta visitar atentamente a exposição temporária Teatro Sem Teatro (16/11/2007-17/02/2008, no Museu Colecção Berardo no CCB, para verificar quanto a performance, no seu amplo sentido de transversalidade, permeia toda a arte contemporânea até alcança a proeza de desapossar o «teatro» de alguns dos seus conceitos como os de teatralidade ou encenação. O artista Juan Muñoz (1953-2001) até afirmava (como se lê no programa) usar a palavra «teatro» para descrever coisas que nada têm a ver com teatro e o que designa por «encenações» não eram senão modos de trabalho próprio activando a presença da figura humana em experiências a um tempo visuais e físicas do espaço. 5. É, porém, a noção de presença na performance a questão que mais se me afigura produtiva ainda que sujeita a muita contestação. Michael Fried, um «clássico» do debate sobre o tema, sobretudo num seu artigo, incontornável, de 1967, «Art and Objecthood», é quem mais se insurge contra a intolerável dependência da arte do seu público, caso, por definição, do teatro. Mas se entendermos a presença num sentido não-teatral, isto é, se não confundirmos presença com personagem (que é o lugar onde o actor performa uma realidade não necessariamente coincidente com a sua presença física), então também o teatro pode – como aliás tem tentado fazer – reivindicar-se como fazendo parte da performance sem qualquer estigma ou desvio.
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VISÕES ÚTEIS
HERANÇA E MODERNIDADE texto João Paulo Sousa
Nesta viagem pelos trabalhos do colectivo Visões Úteis ressalva-se uma relação profunda entre o desenvolvimento das peças e uma envolvente, em que o segundo elemento determina e condiciona o primeiro na sua integralidade.
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Para se compreender a lógica inerente ao percurso da companhia de teatro profissional Visões Úteis, é fundamental activar o conceito de experimentação, sobretudo se ele for perspectivado como um sinal da recusa, que o grupo sempre manifestou, em se deixar prender em modelos já testados, independentemente do êxito obtido. Fundada em 1994, na cidade do Porto, a companhia assumiu os cinco primeiros anos da sua existência como um processo de natural aprendizagem, que os seus responsáveis quiseram diversificado, embora com linhas orientadoras bem determinadas. Por esse motivo, optaram então por trabalhar com encenadores convidados e enfrentar alguns dos mais exigentes autores dramáticos do século XX, como Genet, Ionesco ou Beckett. A manifesta coerência que estes nomes conferem aos primórdios da actividade do grupo torna-se ainda mais visível quando verificamos a inclusão, no seu repertório, de escritores como Dostoiévski ou Kakfa, com textos narrativos utilizados como base de espectáculos não destituídos de humor, onde os li-
mites do ser humano eram problematizados de um modo eficaz. Se O Subterrâneo, estreado em 1995, a partir da obra do autor russo, pode bem ser considerado um momento emblemático da fase inicial dos Visões Úteis, até porque também haveria de se constituir, anos mais tarde, como a primeira peça com que o grupo faria uma itinerância por estabelecimentos prisionais, levando o teatro a espaços onde não é habitual ele chegar, deve equacionar-se igualmente a importância, nesse período, da abordagem heterodoxa de A Cantora Careca, de Ionesco, que desnaturalizava o comportamento das personagens e as aproximava de um registo clownesco e histriónico, de Vozes na Lama, reunião de quatro peças breves de Beckett, obrigando a um exercício de despojamento e de rigor minimalista a que o grupo ainda não havia sido submetido, ou de A Metamorfose, original adaptação do longo e célebre conto do escritor checo. De certo modo, este último espectáculo representou um ponto de viragem no trajecto da companhia, não só pelos indícios nele contidos que assinalavam uma vontade de ir para além da
espectador a um grau limite de proximidade com os actores e a cena, já ensaiado em momentos anteriores, mas agora mais radical do que nunca. Por esse motivo, O Resto do Mundo aparece como um momento paradigmático do percurso da companhia, ao reunir a apropriação livre de um texto literário com a utilização de um espaço não convencional para a prática do teatro, ao inserir a noção de movimento na apropriação desse espaço, sem nunca abdicar do extremo rigor que caracteriza a apresentação dos espectáculos dos Visões Úteis. Aliás, não se compreende a totalidade deste projecto se não se souber que houve um trabalho de campo realizado previamente, junto dos habitantes das zonas que iriam ser percorridas pelo táxi, no intuito de os integrar na dinâmica da peça, de os tornar elementos activos da mesma, sem, todavia, ceder a qualquer lógica de facilitismo ou de simplificação do que estava em causa. Há uma profunda dimensão ética num projecto teatral que se estrutura nestes alicerces, bem a contrapelo de um tempo em que os propósitos de massificação conduzem a simplismos redutores e demagógicos. Estreado já em 2008, o mais recente espectáculo dos Visões Úteis dá continuidade a alguns dos traços que definiam O Resto do Mundo, a saber, a utilização de um texto narrativo como base verbal da dramaturgia e a opção por um espaço não convencional para a prática do teatro. Na verdade, Adúlteros Desorientados parece capaz de se adaptar a palcos bem distintos, de tal modo se sustenta em poucos adereços e vive do trabalho notável de apenas um actor, Pedro Carreira, que constrói um monólogo divertido e crítico, em tom só aparentemente menor. Nada disto obsta à presença do espírito colectivo do grupo, bem visível na ficha técnica, com os restantes três directores artísticos a assinarem a dramaturgia, a partir de Cuentos de Adúlteros Desorientados (2003), de Juan José Millás. O espectáculo serve ainda para lembrar a versatilidade de uma companhia que é capaz de alternar um momento de enorme risco, caracterizado por uma tensão muito acentuada, em crescendo, como O Resto do Mundo, com um humor vincadamente irónico, nunca destituído de um agudo sentido de crítica em relação ao seu tempo. O catálogo de situações de adultério que é desfiado à medida que o protagonista recompõe a sua aparência e apaga os vestígios do acto clandestino constitui-se como uma análise descritiva da duplicidade inerente às relações humanas. Não há aqui uma perspectiva moral, pois os apelos da personagem e a inserção dos conflitos descritos em situações do quotidiano motivam a empatia do espectador. O riso é a estratégia utilizada para uma aproximação eficaz ao mundo contemporâneo, do mesmo modo que o horror cumpria essa tarefa na peça anterior. Em ambos os casos, como, aliás, nos outros trabalhos da companhia, esse propósito de comover o espectador é a herança assumida das origens do teatro, da sua vocação antiga de elemento perturbador de cada indivíduo, na certeza de que só assim encontraria uma plena justificação para existir. É precisamente nessa herança, reforçada pela ética e pelo rigor do trabalho do colectivo, que os Visões Úteis encontram a razão da sua existência. Adúlteros Desorientados apresenta-se, no Porto, às terças-feiras, até 25 de Março no Espaço Serv’Artes. Muna, em co-produção com o Teatro Nacional S. João, estreia em Junho nesse teatro e mostra-se, em Outubro, no Teatro da Politécnica, em Lisboa.
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Na imagem: Adúlteros Desorientados © Visões Úteis
dramaturgia convencional, sobretudo na utilização conjunta de diversos procedimentos técnicos e artísticos, mas também porque fechou um ciclo de trabalho com encenadores convidados e abriu o caminho à exploração de territórios cada vez mais marcados por uma vertente colectiva e multidisciplinar. Antes, já houvera Porto Monocromático, explosão de sons, movimentos e afectividades que se constituía também como um momento de reflexão ou de balanço do trabalho até ai desenvolvido. Fechado o ciclo dos primeiros cinco anos, as criações colectivas assumiram a boca de cena, com os quatro directores artísticos e fundadores do grupo (Ana Vitorino, Carlos Costa, Catarina Martins e Pedro Carreira) a assinarem a encenação e a adaptação de textos de Al Berto, Kafka (de novo), Tchékhov ou Gregory Motton. Era dado aqui um sinal claro, aliás já bem visível para quem acompanhava o trabalho dos Visões Úteis, de que a repetição de fórmulas, por mais gratificantes que estas houvessem sido, não era o caminho a seguir, que uma orientação fundamental do grupo residiria na recusa do autoplágio e do comprazimento pelos resultados artísticos conseguidos. O contexto político e cultural de então, com o Porto como capital europeia da cultura, possibilitaria a experiência mais radical de Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque, uma deriva pela Europa, interrogando o conceito de fronteira, com dois espectáculos, um à partida e outro à chegada, que perspectivavam a viagem ou reflectiam a partir dela. O trabalho colectivo passou, então, a abranger todos os domínios, incluindo a própria escrita dos textos, quer estes fossem originais, quer se tratasse de adaptações. A ideia de viagem ou deriva permaneceu no grupo, embora não em exclusivo, e marcou decisivamente alguns dos trabalhos que viriam depois a ser concretizados, como Coma Profundo (um «audio-walk», como eles o definem, por ruas do Porto), Errare ou o díptico conradiano, composto pelos espectáculos A Frente do Progresso e O Resto do Mundo, ambos de 2007. Em boa verdade, talvez a palavra espectáculo não seja adequada para nos referirmos ao último destes trabalhos. Para o abordar com mais precisão, prefiro invocar um conceito proveniente do cinema, designando-o como um exemplo de teatro-verdade. O que este qualificativo sugere é uma relação profunda entre o desenvolvimento da peça e uma determinada realidade envolvente, em que o segundo elemento determina e condiciona o primeiro na sua integralidade. Em O Resto do Mundo, essa verdade é o universo citadino esquecido do Porto, da cidade em que os Visões Úteis estão sediados, o que confere à peça um carácter eminentemente político, no sentido etimológico da palavra. A polis desprezada pelo poder instituído é o cenário por onde, no interior de um táxi, deambulam Marlow e Kurtz, personagens do romance Heart of Darkness (1902), de Joseph Conrad, articulando as suas falas com as gravações de vozes de moradores dos locais percorridos. Proveniente da literatura, o horror narrado contamina e modela a visão que o espectador, transformado em cliente do táxi, vai construindo do espaço envolvente, num processo eminentemente dinâmico, em que os riscos assumidos pelo grupo são proporcionais à intensidade das imagens propostas. Importa salientar aqui que esta força não resulta de uma lógica esteticista, mas de um sólido comprometimento com o espaço público e com a vida que aí se desenrola, conduzindo o
RAMONA POENARU (1972, Simleu-Silvaniei, Roménia) Meeting Portraits, projecto desenvolvido no quadro de sweet & tender collaborations in PAF - Performing Arts Forum, St Erme, França, 2007
Koen Vandendriessche, Marko Milic, Perrine Bailleux, Mia Haugland Habib, Tim Darbyshire, Christoph Leuenberger, Lucie Eidenbenz, Sayaka Kaiwa, Jean-Baptiste Veyret-Logerias, Jenny Beyer, Pieter Ampe, Min Kyoung Lee, Pedro Bastos, Tommy Noonan, Marianne Baillot, Ant贸nio Pedro Lopes, Mariella Greil, Domenico Giustino, Valentina Desideri, Pavlos Kountouriotis, Beg眉m Erciyas, Hajime Fujita, Monica Gillette, Arvand Dashtaray, Tala Motazedi, Thelma Bonavita, Guilherme Garrido, Sara Reyhani, Montserrat Payr贸, Ramona Poenaru
Da esquerda para a direita e de cima para baixo:
de Isabel Alves Costa
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Isabel Alves Costa dirigiu artisticamente o Rivoli Teatro Municipal até à sua entrega, pela Câmara Municipal do Porto, a uma empresa privada em 2006. Pré-publicamos o livro Rivoli 1989-2006 que descreve, com reflexão e minúcia, a história de um espaço fundamental para a cidade do Porto. Modelo de programação e exemplo de uma estratégia de formação de públicos, o Rivoli foi, durante anos, palco para as mais diversas manifestações artísticas, tendo sido pioneiro na apresentação regular e concertada de áreas cuja recepção não era de todo previsível, como foi o caso do novo circo. Hoje, o Rivoli está fechado numa programação monolítica e desfasado da sua função primordial: ser um espaço que, a partir de uma cidade, sirva de referência para o país. A ser editado brevemente, este livro fixa a história de um teatro que foi também o princípio de uma ideia de política cultural. A sua pré-publicação, numa altura em que se discute, nos tribunais, a legalidade dessa cedência camarária é também um contributo para a denúncia do que ficou pelo caminho.
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“Devia ser em Dezembro. À entrada da Casa das Artes, onde íamos assistir à antestreia de Vale Abraão do Manoel de Oliveira, cruzei-me com a Manuela Melo que me disse de rompante: “Vou-te nomear Directora do Rivoli”. Fiquei meia “atordoada”, sem saber o que dizer ou pensar” (in O Desejo de Teatro, Porto, 2003). (…) Lembrar-me-ei sem-
pre do Sr. Marinho, que levava a chave do Rivoli consigo para casa! Ou do Sr. Moreira, que era porteiro e que achava que o Rivoli estava “doente” e precisava de “tratamento”. Ou da D. Maria Cândida que só deixou a “sua” bilheteira quando as obras começaram, e foi-se embora para nunca mais voltar. Ou do Sr. José que conhecia o Rivoli como as suas mãos, e que ficou connosco na primeira fase da obra porque se sentia ainda útil, mas faleceu sem nunca lá ter entrado depois, ou do Sr. Delfim que ainda hoje lá está e com quem gosto de lembrar “aqueles tempos” que, na sua opinião “eram outra coisa”, ou a D. Augusta, tão bem retratada por Pedro Sena Nunes no livro 3 + 3 Olhares, que nos acompanhou na Rua de Entreparedes enquanto decorriam as obras e que só muitos anos mais tarde aceitou ir para casa com a reforma, ou do Sr. Luís, cuja história se confunde com a do filme Cinema Paraíso, ou... (…)
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A Culturporto iniciaria formalmente a sua actividade a 18 de Fevereiro de 1997 e viria a fixar a sua sede no Teatro Rivoli. Por ser a primeira a ser criada no contexto português, esta gestão foi considerada, na altura, completamente inovadora, pioneira e exemplar. Finalmente, viria a ser assinado o primeiro contrato-programa entre a Câmara Municipal do Porto e a Culturporto, que nos permitiria programar com um horizonte de três anos, dado que se revelaria crucial para o êxito futuro do Rivoli. (…) Em relação ao tempo de apresentação, as características duma Casa como o Teatro Rivoli, vocacionada para a apresentação de uma multiplicidade de espectáculos onde o Teatro, dado o contexto existente (Teatro Nacional S. João, ANCA, e Festivais – FITEI, PoNTI e FIMP), não era considerada uma área prioritária, nem nos permitiria nunca fazer longas carreiras (entre cinco a dez apresentações no máximo). Este factor levar-nos-ia a dar prioridade às co-produções com, em primeiro lugar, os grupos de teatro da Cidade, mas também com grupos ou Instituições nacionais e internacionais – o que garantiria à partida uma circulação das obras e consequentemente um maior número de apresentações –, às encomendas específicas feitas a criadores e/ou a companhias com o objectivo de serem enquadradas nos Ciclos ou nos Quadros Temáticos privilegiando os novos encenadores, dando-lhes o direito à experimentação e ao “erro” e às propostas que melhor se enquadrassem na nossa concepção de “projectos integradores e desmultiplicadores de actividades”. (…) [No dia da abertura da exposição 3+3 Olhares, de Pedro Sena Nunes] Em declarações ao jornal Primeiro de Janeiro (21/06/2000), relembrava esse momento único, inesquecível: Foi talvez o primeiro grande momento de
emoção. Normalmente abrem-se os cadeados para as pessoas saírem (da prisão, seja ela qual for), mas, naquele dia, os cadeados abriram-se para que as pessoas entrassem. Era a liberdade vista de fora para dentro. Grades de ferro a serem abertas para um espaço que é o da arte... E lembro-me do desgosto que foi o não haver um fotógrafo para fixar aquele irrepetível momento!
Hoje é o primeiro dia! Os dias que antecederam a abertura foram absolutamente frenéticos, como é natural. (…) Mas também uma grande emoção e uma alegria transbordante por termos conseguido. As primeiras páginas de todos os jornais. Os telegramas e mensagens (a dos Artistas Unidos chegou-nos nos primeiros minutos do dia!) a cobrirem por completo as janelas do pátio da administração. Os ramos de flores que iam chegando. E, na hora marcada, acenderam-se todas as luzes e as portas abriram-se “para deixar entrar a Cidade”. – 16 OUTUBRO – Só temos ouvidos para a vossa concha; Só temos olhos para as vossas fachadas, vossos tapetes, vossas belezas; nossas mãos não chegam para vos aplaudir; nossas laringes não sobreviverão a nossos gritos, nossa imensa solidariedade amolece-nos... Acho que vamos todos de férias para vos frequentarmos OBSESSIVAMENTE!!... Ricardo Pais
Ouviram-se os primeiros acordes de música. O Rivoli renascia. Uma chuva de pétalas de rosas brancas, caírem sobre os espectadores que, de pé, aplaudiam calorosamente. (…) “Era
na realidade um desafio enorme para uma equipa que pouco mais tinha do que vontade de aprender. Pouco é a medição feita à distância de oito anos. No departamento de Iluminação tínhamos a noção de que defrontaríamos um enorme desafio, não sabíamos era qual era a sua dimensão”, escreveria João Guedes (Cadernos do Rivoli nº 5, não publicado). (…)“Pretendíamos que o Rivoli Teatro municipal fosse um lugar de apelo à curiosidade do(s) público(s). Queríamos estabelecer relações com um público que não se contentasse em assistir aos espectáculos, mas que deles falasse. Pensamos que é esta relação que dá a este Teatro a sua personalidade exemplar. (…) Jan Fabre fez questão de me dizer uma coisa que não poderei esquecer: “apresentar um espectáculo em Berlim,
Paris, Nova York ou Lisboa é sempre a mesma coisa. Apresentar um espectáculo no Rivoli é uma verdadeira experiência humana”. (…) [Já nesse ano fomos] “forçados” a receber o programa do Herman José, uma vez por semana, já não me lembro durante quantas semanas, o que nos obrigaria a alguma
ginástica no calendário da programação. Mas a produção pagava bem (e nós precisávamos de dinheiro…) e era, pensava-se, mais uma forma de divulgação junto do grande público, do Teatro Rivoli. Para nós, “aquilo” era uma “facada na nossa programação”. Houve protestos, choro, ameaços, mas não se conseguiu demover a Câmara a alugar a sala ao Herman José. Hoje, a esta distância, acho que não teve importância nenhuma. Nem pela positiva – não foi por isso que o nosso público aumentou; nem pela negativa – isso não desmobilizou minimamente o nosso público. A equipa de produção alugara um apartamento ao lado do Rivoli onde o grosso da confusão se passava, eram todos extremamente atenciosos e cuidadosos na utilização do nosso espaço e as respectivas equipas técnicas entendiam-se às mil maravilhas. Comparado com a vergonha que foi, anos mais tarde, a apresentação do indecoroso programa Levanta-te e ri, o programa do Herman era um “menino do coro”.
Teatros e Arenas
É impossível conceber, hoje, a existência de uma rede de criação, produção e difusão artística, actual e actuante, em que a figura do Programador não tenha um lugar próprio. (…) É desta constatação que nasce, com a cumplicidade do IPAE, a iniciativa «Teatros e Arenas» – Assembleia Geral de Programadores, que pretende ser um fórum de discussão de questões relevantes para esta actividade e ponto de partida para a criação de hábitos de encontro, de troca de informações e de experiências, de discussão e levantamento de questões, que consubstanciem o estabelecimento de uma rede, ainda que informal, de programadores em exercício em Portugal”. (texto do programa) (…) Não poderia estar mais de acordo com Mark Deputter, na altura co-director com Mónica Lapa do Danças na Cidade, que dizia em declarações ao jornal Público: “A cria-
ção de uma rede de programadores é um trabalho a longo prazo. Uma rede não é uma coisa fixa, é algo de orgânico, que cresce e muda de forma; por isso não concordei com a proposta de a definir muito claramente; ela vai definindo-se por si, durante a sua vida”. (Público, 21/Dezembro/1998) (…) Logo
no final do primeiro ano (…) e, em jeito de balanço, dissemos esperar estar modestamente a contribuir para o desenvolvimento da cidade e da região promovendo a verdadeira cultura que é aquela que ajuda cada um de nós a tornar-se aquilo que é e que não procura fazer que cada um continue a ser aquilo que já era. (…) Trabalhámos em rede, reunindo esforços, sobretudo com a Culturgest e o Centro Cultural de Belém, mas também com a Expo’98, a Gulbenkian ou a Companhia Nacional de Bailado, entre outros, possibilitando a vinda ao Porto de espectáculos que, de outra forma, só continuariam a ser vistos em Lisboa. Sobre a articulação com as instituições da cidade, diria eu ao jornal Público, logo no início de 98,
“Começa a haver de uma forma informal – se calhar penso que a formalização do entendimento e da articulação também é uma coisa que se burocratiza e, portanto não é interessante – a preocupação de estarmos atentos uns aos outros e de nos irmos encontrando regularmente no sentido, não só de irmos definindo cada vez mais objectivos específicos para cada um dos espaços, como também podermos colaborar em iniciativas conjuntas.” (…) O Rivoli Teatro Municipal ao fim de três anos e meio de intensa programação, era reconhecido a nível local, nacional e internacional, como um espaço nobre de referência da actividade cultural na Cidade do Porto, portador de uma importante missão de Serviço Público que contribuísse para a formação e desenvolvimento cultural dos cidadãos. Neste primeiro ciclo de actividade, que vai de 1997 a 2000, a programação apresentada – e preparada com o avanço mínimo de um ano -,
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identidade ao Projecto Cultural em torno do qual se construiu. Com elevados padrões de qualidade, a programação procurou ser criteriosa, sem “cair na tentação” nem dum populismo fácil, nem dum falso elitismo. Os objectivos a que se propôs, foram levados a cabo, não por patamares, mas pela criação de projectos e programas que os colocassem todos e simultaneamente em inter-relação. Ou seja, a programação foi entendida como um meio e não como uma finalidade. Ao colocarmos os artistas e os públicos no centro da nossa actividade, conseguimos cumprir a missão de que fôramos investidos, dando expressão, força e visibilidade às políticas culturais que a Câmara Municipal do Porto tinha definido para o seu Teatro Municipal. (…) Dando prioridade aos artistas da Cidade, o Rivoli teve um papel importante no desenvolvimento, nomeadamente, ao nível do teatro e da dança, através da encomenda, co-produção ou acolhimento apoiado dos seus espectáculos, permitindo-lhes boas condições de apresentação, de produção e de visibilidade pública. Todos os espectáculos apresentados foram estreias absolutas, assumindo e dividindo, em conjunto e cumplicidade, os riscos e as virtudes que qualquer estreia comporta. Para promover uma maior qualificação de intérpretes e criadores e criar espaços de discussão e de experimentação, organizaram-se conversas com artistas, master classes, workshops, ensaios e pequenas residências, em que a Sala de Ensaios se revelou ser um espaço fundamental na actividade do Teatro. (…) Tentámos criar uma articulação com as instituições da cidade de uma forma orgânica, num espírito de complementaridade cúmplice e de respeito pelas identidades e objectivos de cada uma. Tentámos consolidar, num espírito de verdadeira colaboração e cumplicidade, a articulação com as instituições nacionais elegendo-as como verdadeiros parceiros, sempre que isso correspondesse aos nossos próprios objectivos. Ao fim destes anos, descobriu-se (e consolidou-se) a existência de públicos amplos e diversificados, cuja curiosidade foi despertada através de uma programação exigente e rigorosa, numa corrente a que gostávamos de chamar rivolimania.
O RIVOLI NA PORTO 2001 - CAPITAL EUROPEIA DA CULTURA O acolhimento, no Rivoli, de grande parte da programação da Porto 2001 resultou numa redução do espaço para programação própria e, consequentemente, numa clara diminuição do número de programas da nossa exclusiva responsabilidade. No entanto, tendo sido contratada, através da Culturporto, para programar a área Artes do Palco da Porto 2001, pude, por um lado, alargar o meu campo de intervenção, reforçando no Rivoli (através da co-produção ou acolhimento) a área do Novo Circo esboçada em 2000 e, por outro lado, potenciar uma das áreas prioritárias da nossa programação, a Dança Contemporânea. (…) [Em 2002] Quando Marcelo Mendes Pinto me convidou para
me manter na Direcção Artística do Rivoli, pedi-lhe uma clarificação e uma maior autonomia do Rivoli dentro da estrutura. Embora prometendo que o faria, isso nunca viria a ser posto em prática em nome da defesa, junto de Rui Rio, da Culturporto como um todo. É que, perante a enorme desconfiança que existia no novo executivo municipal em relação à Culturporto, Marcelo Mendes Pinto, que decidira que “numa equipa vencedora não se mexe”, acabaria por manter inalterada a estrutura vigente. (…) Empenhado em recuperar o carácter de Projecto do Teatro Rivoli, o novo vereador, aprovaria a programação por nós esboçada (embora sujeita a condicionalismos orçamentais), contrariando assim, aquilo que foi dito nos jornais de uma forma um pouco precipitada e sobretudo pouco informada, nomeadamente por João Teixeira Lopes:“(...) O
vereador da Cultura não faz a mínima ideia do que sejam os mundos da cultura. Perdeu-se o entusiasmo da própria ideia de projecto. Subsistem, é certo, algumas ilhas de vitalidade. O S. João, com uma excelente direcção e programação. Serralves, sem dúvida. A Fundação Ciência e Desenvolvimento que, com escassos recursos, faz uma programação de grande qualidade. Mas esfumam-se o Rivoli e a Culturporto, outrora peças essenciais da animação cultural. Quebra-se a formação de públicos, hipotecando um trabalho que se reflectiria nas próximas gerações. Perde-se, acima de tudo, uma imagem de cidade que se foi construindo e que assentava na efervescência, na descoberta e numa certa aventura. (...)” (João Teixeira Lopes – Margem de outra maneira, O Comércio do Porto, 27/ Maio, 2002) Mas se não “se esfumariam” o Rivoli e a Culturporto, o desinvestimento na área cultural começou imediatamente a fazer-se sentir. A frase que ficará para sempre ligada à figura de Rui Rio no seu primeiro mandato – “Sempre que ouço alguém falar em cultura, puxo da calculadora”, não era, de todo, pura retórica, como se viria a verificar anos mais tarde. (…) Escrevia Ricardo Pais [nº 0 dos Cadernos do Rivoli]:“O efeito
de rarefacção provocado pela Capital Europeia da Cultura na identidade programática do Rivoli Teatro Municipal é, ainda assim menor do que o efeito de desestruturação que o Porto 2001 provocou a outros níveis e não deverá deixar marcas irreversíveis. Mas que a ressaca do excesso (e da «diletância»!) não sirva de desculpa para o apagamento do investimento aqui legado e da sua objectiva capacidade de permanecer. Por nenhum meio um equipamento tão absolutamente único pode ser dispensado enquanto espaço de trabalho. Artístico. De e por excelência. Em tempo, ao que parece de mudança, parabéns a todos os rivolimaníacos, identificados e por identificar.”
Ou João Fernandes: “Sabendo quão efémeros têm sido os projectos culturais que pautaram a vida portuguesa ao longo de, pelo menos, os últimos dois séculos, torna-se hoje uma exigência cívica que o discurso da recessão económica não seja acompanhado da prática da regressão cultural, sob ameaça de deixar para gerações vindouras o ónus de tudo ter que recomeçar a partir do deserto que conhecemos e não queremos continuar. O Rivoli de hoje é felizmente diferente onde há dez anos «vivi» momentos e projectos que não só mudaram a minha vida como também contribuíram para transformar as expectativas e as exigências dos portuenses em relação ao re-
nascimento cultural da cidade. Cabe-nos agora a todos, actores e espectadores dos inícios dessa transformação, construir a certeza da sua continuidade, de modo a que, daqui a dez anos [infelizmente bastariam apenas quatro anos...] um Teatro não seja um sonho nem uma utopia, mas antes um coração vivo de identidade e de afirmação do Porto enquanto cidade moderna, onde os seus cidadãos e todos os que a visitem tenham acesso à cultura do seu tempo, sem a qual não há tempo em que se viva ou a que seja possível sobreviver.” (…) De 2002 fica-me o sentimento desconfortável de, por um lado, termos conseguido, apesar das dificuldades, manter os padrões de qualidade na nossa programação e, por outro, o de sentir à nossa volta, uma espécie de cegueira política, incapaz de reconhecer, pela positiva, o esforço que, no Rivoli, estávamos a fazer. É um facto que as declarações de alguns agentes culturais e homens de cultura surgiriam no seguimento de uma muito infeliz frase de Marcelo Mendes Pinto: “Temos de
apostar em espectáculos para um gosto médio, aproximar a cultura das pessoas e abrir o leque de destinatários da nossa acção.” Mas não deixam, por isso, de ser injustas, nomeadamente no que ao Rivoli diz respeito. (…) O que seria verdadeiramente grave, neste ano de 2002 (e se viria a agravar nos anos seguintes), seria o ostracismo a que cada vez mais éramos votados pela autarquia e o fosso que começava a fazer-se sentir entre Rui Rio e Marcelo Mendes Pinto.
2003: O DIFÍCiL EQUILÍBRIO OU UM FERRARI SEM GASOLINA No final de 2002, o Rivoli que, enquanto estrutura municipal, tinha afirmado, em poucos anos, um perfil de programação, de relação com o público e de relação com os criadores nacionais e internacionais que fez dele uma experiência singular no país, corria agora seriamente o risco de não conseguir ultrapassar os factores conjunturais a que estava sujeito, e pôr em causa a missão de Serviço Público subjacente a uma instituição como um Teatro Municipal. (…) Sentia também que, como gostava de dizer repetidamente Marcelo Mendes Pinto,
“tínhamos um Ferrari nas mãos mas não tínhamos gasolina para o pôr andar”. Mas para que nos servia um Ferrari se o
tínhamos parado na garagem? A desesperança (sobretudo face às expectativas criadas pelo bom relacionamento com o vereador e a nova direcção executiva) instalou-se e quis ir-me embora. Marcelo Mendes Pinto impediu-me de o fazer, na expectativa de se conseguirem apoios privados, para colmatar a grave crise com que nos confrontávamos. Aceitei ficar no pressuposto que, para o segundo semestre, haveria um reforço orçamental para a programação o que, finalmente, nunca se viria a verificar o que deveria, por isso, ter-me levado a pôr o meu cargo à disposição. Mas
um triste episódio ocorrido em Junho desse ano, envolvendo Pedro Burmester e a Casa da Música (Rui Rio exigira o imediato pedido de demissão de Pedro Burmester da Casa da Música, depois de este ter feito duras criticas à politica cultural da CMP), acabaria por fazer com que ficasse, por dever de lealdade para com quem, de uma forma tão clara, me defendera quando o PSD, pela voz de Sérgio Vieira, exigira o meu imediato afastamento (e eventualmente o do próprio vereador da cultura), na sequência de declarações proferidas ao Jornal de Notícias sobre as qualidades artísticas de Pedro Burmester. (…) No entanto, esta polémica haveria de deixar marcas e fazer vir ao de cima o esvaziamento da Culturporto por parte de Rui Rio, como comenta Valdemar Cruz no Semanário Expresso (28/Junho/2003): “Sem projectos próprios e com uma
programação cada vez mais despida de qualquer coerência, o Rivoli deixou de ser um teatro com uma intensa e cuidada programação própria para se transformar em pouco mais que uma casa de acolhimento de espectáculos. (...) Num levantamento não exaustivo feito pelo Expresso é possível concluir que, dos quase 200 espectáculos diferentes organizados em cada ano, o Rivoli baixou a média de um modo abrupto e anda agora longe da meia centena de iniciativas. É o resultado de um progressivo esvaziamento posto em prática pelo executivo presidido por Rui Rio, que de forma ostensiva tem entregue a terceiros a concretização de iniciativas que, em condições normais, seriam do âmbito do departamento de animação da cidade. Marcelo Mendes Pinto surge nos bastidores como uma voz criíica desta política, mas a verdade é que nunca, como agora, assumira de forma tão clara uma posição que o coloca sem margem para dúvidas ao lado dos produtores culturais.” (…)
Scott Fitzgerald escrevera um dia que a marca de uma in-
teligência de «primeira água» é ser capaz de se fixar sobre duas ideias contraditórias sem perder a possibilidade de funcionar. Dever-se-ia, por exemplo, poder compreender que as coisas são sem esperança e no entanto estar decidido a mudá-las. Foi esta “possibilidade de funcionar” – e paradoxalmente o
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>> futebol, como veremos - que acabou por nos mover, nestes
anos difíceis de asfixia financeira. Mas para conseguirmos “funcionar” tentando escapar à mera lógica do mercado, foi preciso aprender a gerir o difícil equilíbrio entre aquilo que passamos a designar por Programação Própria e por Programação Externa (de carácter comercial e lucrativo), cujo preço a pagar seria o de ter que abandonar irremediavelmente a visão da programação do Rivoli enquanto Projecto Artístico global e integrado nas suas múltiplas facetas. Hoje sabemos que, para “para sair desta clivagem absurda
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– o público para uns e o privado para todos -, a responsabilidade dos directores das instituições culturais se situa nos dois planos. Devem, ao mesmo tempo, alargar «o círculo dos iniciados» e elevar o nível de exigência do vasto público” (Emmannuel Wallon, Critères et dilemmes du service public, Revue Du Théâtre nº 19, jan. 1998, pág. 76).
Embora tentando seleccionar apenas os chamados “espectáculos comerciais de qualidade”, a verdade é que, nem sempre, foi com grande critério que acolhemos a programação externa (veja-se o infeliz acolhimento de Levanta-te e ri). (…) Será talvez aqui o momento para referir a situação difícil que atravessava a criação teatral portuense. Para as companhias de teatro da cidade, a realidade decorrente da nova conjectura política e financeira, seria duplamente penalizadora. Por um lado, a Câmara Municipal do Porto deixava de atribuir subsídios – “Não haverá da parte da autarquia qualquer subsídio para
as companhias de teatro independente. (...) Em compensação coloco-lhes nas mãos um instrumento muito mais útil, que é a cedência dos Auditórios do Rivoli, com toda a estrutura técnica e humana, a custo zero” [o que sempre acontecera, não
podendo pois estas declarações, constituírem uma qualquer novidade], diria Marcelo Mendes Pinto, vereador da Cultura ao Jornal de Notícias (21/Julho/2003). Por outro lado, o Rivoli deixava, pelas mesmas razões conjecturais e orçamentais, de ter capacidade para as co-produzir. (…) Ao jornal Público (14/ Julho/2003), Ana Luena, do Teatro Bruto, admite que “é ver-
dade que as portas do Rivoli estão abertas mas o teatro municipal desapareceu do mapa dos agentes culturais activos. Interessava-nos co-produzir com o Rivoli. Agora cedem-nos o espaço, mas depois não temos dinheiro para um cenário à medida. E cria-se uma situação: o que é que uma estrutura que não tem dinheiro para produzir pode exigir às companhias que acolhe?” Ana Luena tinha toda a razão. Com esta decisão, no fundo, ficamos todos a perder. As companhias, porque passaram a ser
apenas “acolhidas” no Rivoli, desvinculando-as do projecto artístico do Teatro; para o Rivoli, porque passou a ter obrigatoriamente que receber todas as companhias, desresponsabilizando-se, ele também, das suas obrigações. Porventura este teria sido o momento certo para criar o estatuto de “companhia associada”, e assim se poder, de uma forma responsável e partilhada, enriquecer a programação do Rivoli, sem que isso significasse, nem para uns, nem para o outro, um qualquer “estado de alma”. Mas, a verdade é que nem nós tivemos essa visão do problema, nem é certo que, nessa época, as companhias tivessem a maturidade suficiente para aceitarem esse estatuto... Estas novas directrizes e os acolhimentos crescentes de espectáculos de teatro de carácter mais comercial, viriam igualmente inverter a importância relativa da área do teatro no conjunto da Programação. De área supletiva, o teatro passaria a ocupar uma cada vez maior fatia da programação do Rivoli. (…) Valerá a pena abrir aqui um parênteses para reflectir sobre a apresentação do espectáculo Scents of Light no Rivoli. Tratava-se de um musical (para a apresentação do qual não foi necessário reequipar o teatro...), inteiramente feito por um grupo de jovens apaixonados (e informados) por (sobre) este tipo de espectáculos. Foi extremamente comovente ver a generosidade deste grupo de jovens e a força com que defendiam as suas convicções. O seu grande objectivo era criar uma companhia profissional de teatro musical no Porto. Gostariam que o Rivoli os ajudasse a coproduzir os seus espectáculos. Aconselhei-os a irem falar com o Ministério da Cultura e com a Câmara porque me parecia que o projecto tinha (muitas) pernas para andar. Infelizmente, nessa altura, já o Rivoli se debatia com enormes dificuldades financeiras e não seria possível para nós fazer co-produções, apenas podendo acolher as suas produções. Muitos desses jovens integram hoje o elenco do Jesus Cristo Superstar de Filipe La Féria. Não teria sido porventura mais interessante que a CMP e o MC tivessem criado as condições para que uma companhia deste tipo existisse na nossa cidade? Que os esforços que hoje são feitos para arranjar patrocínios para uma companhia privada (Todos ao Palco) pudessem ter sido feitos em direcção de um projecto independente e de continuidade? Este será, sem dúvida, um assunto que dá para pensar... (…)
“Apesar de uma crise que afecta todos os quadrantes da cultura e, no caso do Rivoli, obriga a uma ginástica de programação digna de todas as artes circenses reunidas, o Teatro Municipal do Porto consegue manter uma qualidade e dignidade nas escolhas que, apesar da tendência minimalista que a política impõe, vai brilhando com umas fulgurações por onde passam a coerência, a actualidade e o bom gosto. Dança, Marionetas e Circo são algumas das linhas mais fortes de um programa que talvez merecesse, por parte dos organismos de tutela, mais atenção. É raro que atitudes de verdadeiro cosmopolitismo se afirmem de maneira tão discreta, em contextos tão favoráveis à facilidade e ao verniz barato ou espalhafatoso do novo-riquismo; e alguém devia explicar-nos, realmente, como é que os cortes nos orçamentos da cultura contribuem para uma efectiva recuperação de outros sectores. (…)” (João Carneiro, Expresso, 31/Maio/2003) (…) [Em 2004 fizemos o Pontapé de Saída] Quisemos, justamente, colocar o futebol ao centro, criando um espaço que permitisse aceitar o desafio da inquietação e que nos devolvesse a capacidade de olhar a beleza e a magia do jogo, sem no entanto afastar a possibilidade de se discutir “tudo o que anda à volta”. Mas a verdade é que não encontrámos tantos quanto esperávamos que se deixassem seduzir e desinquietar. Será que o futebol – essa “epopeia possível” nos dias de hoje como lhe chama Ruy Belo – só se pode viver dentro das quatro linhas do campo e não pode, ou não deve, ser vivida, recriada, reflectida e jogada dentro das paredes de um Teatro? Será que “tudo o que anda à volta” é, neste país, tão ofuscante que cria em nós a impossibilidade de nos deixarmos surpreender abrindo-nos ao outro, ao estranho, ao desconhecido? Será então que “tudo o que anda à volta” nos alienou a tal ponto que consideramos que falar de futebol, mesmo nesta perspectiva alargada e multidisciplinar que foi a nossa, faz já parte daquele todo “que anda à volta”? (…) 2004 ficaria igualmente marcado pela saída de Marcelo Mendes Pinto para o Parlamento e a nomeação de António Sousa Lemos em sua substituição. De Sousa Lemos apenas talvez fique para a história, a declaração feita na sua primeira entrevista pública
“A minha falta de ligações à cultura até pode ser uma vantagem” (Público, 14/Novembro/2004) e o afastamento, sem
tituição, por dois novos directores executivos, Raquel Castelo Branco e António Teixeira. (…) E, com este passo, se deu início à morte lenta e dolorosa do Rivoli Teatro Municipal.
2005: O FIM ANUNCIADO DE UM PROJECTO CULTURAL A impossibilidade crescente de poder programar, levaria a que, pouco a pouco, o Rivoli fosse sendo transformado num mero espaço de acolhimento, uma “barriga de aluguer”, com cada vez menos programação própria e com uma crescente programação externa. Perdia-se uma ideia de Projecto e de Programação a troco de uma Calendarização cujo resultado seria uma “manta de retalhos” com cada vez menos sentido. (…) Ainda em plena campanha eleitoral para as autárquicas, Rui Rio, que veria o seu mandato renovado com maioria absoluta, dava o “mote” para este fim anunciado. Com o título “Rio quer Rivoli próximo da população”, o JN escrevia: “O presi-
dente da Câmara do Porto e candidato da coligação PSD/PP ao segundo mandato, Rui Rio, defende uma programação menos elitista e «mais perto da cidade» para o Rivoli Teatro Municipal. O social-democrata quer que o espaço não «permaneça com escasso público e elevado défice».” (Jornal de Notícias, 23 de Setembro de 2005)(…) É a partir destas declarações que se começa a construir, repito, a construir, aquilo a que poderíamos chamar o “mito dos 30 espectadores” que serviria de pretexto para a entrega do Rivoli, como é sabido, a uma gestão privada.(…)
Este seria, portanto, para mim, um momento de grande tristeza, de grande emoção, de um imenso vazio, vivido como uma espécie de Requiem pelo Rivoli. Este sentimento seria partilhado por muito do(s) público(.) que enchia(m) o Grande Auditório do Rivoli. A par com a violência do espectáculo [vsprs, de Alain Platel], convivia a violência da decisão da entrega do teatro a uma gestão privada. Sabia que, a partir dali, se interromperia, com Alain Platel, um vínculo que havíamos construído ao longo dos anos.
aviso prévio, de João Alpuim e Ana Bela Oliveira e, a sua subs-
Legenda: p. 74 – 75 © Pedro Sena Nunes; p. 77 © DR; p. 79 Sentinelas da dança - Aparições de Bruno Dizien (5º Aniversário do Rivoli, 2002) © Marcos Garcia Moreira
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