Jayme Copstein e Glênio Reis
Quando vocês se conheceram? Jayme Copstein: Conheci Glênio quando voltei a Porto Alegre, em 1959 e fui trabalhar na rádio Farroupilha. Ele era programador. Glênio Reis: Nós saíamos dali e íamos tomar o que? Lembra do nome daquele barzinho que tinha ali? Jayme: O Liliput. Glênio: No Liliput. Tomávamos Campari, com bolinho de queijo. Jayme:Quem tomava Campari era eu. Glênio: Tu também? Então aprendi a tomar contigo.(risos) Jayme: Depois dizem que álcool faz mal. (risos) Quem começou primeiro no jornalismo? Jayme: Eu. Sou mais antigo, comecei em 1943, em Rio Grande (nasceu lá). Glênio: Aliás, eu considero a tua atividade diferente da minha, porque o Jayme é um jornalista. Eu sou radialista. E tu, Glênio, quando começaste? Glênio: Eu comecei na rádio Difusora, quando os padres compraram a rádio dos Associados (1958). Rapaz, a minha entrada no rádio foi uma aventura que só vendo. Eu sempre sonhei em trabalhar em rádio, desde pequenino. Eu queria ser cantor e músico. Eram as duas loucuras da minha vida. Graças a Deus não aprendi nenhuma delas. Sufoquei o cantor pelo músico, que eu não consegui ser. Quando a Difusora estava para ser negociada, não fazia mais parte dos planos dos Associados, comecei a me misturar no meio musical. Eu era um apaixonado pelo jazz, comprava discos, fundei um clube do jazz. Aí, parti para outra iniciativa: fazia jam session nas rádios. Eu ia nos cabarés, escolhia uns músicos e eles iam tocar nas rádios.
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Jayme Copstein
Ao vivo em sem cachê? Glênio: Sim, sem cachê, como sempre. Eu comecei a usar esse lado para vencer a minha timidez de me aproximar do microfone. Eu me animava, apresentava os músicos, falava das músicas e fui vendo que ali era o meu lugar mesmo. Aí eu ficava nos estúdios da rádio Difusora, pegando o microfone, organizando os discos.
Hoje, isso é quase impossível? Jayme: Hoje, isso é impossível. Glênio: Quando eles fecharam venda da Difusora eu fui junto. Eu já dominava a música, as prateleiras. Aí me contrataram como produtor. Mas produtor, sabe como é, escreve e dá para o locutor apresentar. Não era isso o que eu queria. Eu queria pegar na latinha, falar, dizer as minhas besteiras, animar, era meu sonho. Até que um belo dia eu peguei o diretor de programação e disse “deixa eu fazer um programa”. Ele disse que não, produtor é produtor, não pega microfone. Mas que bobagem isso! Mas eu consegui quebrar o cara e ele disse assim: “Amanhã tu vais fazer esse tal de programa, mas se não agradar, tu já não sobes as escadas, não pegas o elevador, porque estás na rua”. Aí me deu um branco. Levei uma vida para entrar numa rádio e fazer um programa, e se os caras não gostarem do que eu fizer? Pois, olha, foi um sucesso desgraçado. E esse diretor dizia, assim, de boca cheia depois: “Eu posso dizer para vocês que fui que revelei o Mendes Ribeiro e o Glênio Reis”.
Tudo isso sem receber? Glênio: Sem nada. Eu estava era me formando.
Começaste em Rio Grande, Jayme? Jayme: Comecei porque lá pelas tantas o professor de português foi falar com
o meu pai para que ele não me ajudasse a fazer as minhas redações. “Eu não ajudo”; “Aquilo é redação de adulto”; “Mas ele tá fazendo sozinho”. Aí, meu pai começou a me ajudar e foi um desastre. Em determinado momento houve um concurso sobre Pan-Americanismo, uma coisa que hoje ninguém mais se lembra disso, eu ganhei o concurso e o prêmio era a publicação no jornal. Fiquei colaborando e daqui a pouco era contratado da Gazeta da Tarde, que tinha quatro páginas, 300 exemplares por dia. A gente imprimia as páginas do meio para desmanchar os tipos e compor as de fora. Não tinha fontes suficientes? Jayme: Não, era tipografia. Agora, vocês falaram uma coisa aí muito interessante, se hoje seria possível um Glênio Reis entrar no rádio. Não, não é possível. Na nossa época, não entrávamos para fazer uma coisa, mas para fazer qualquer coisa lá dentro. Se te mandassem para a mesa de operador, tu ias lá fazer o negócio. De repente te chamavam “vem cá, preciso de um frase para o radio-teatro”, tu ia lá fazer rádio-teatro. Glênio: Não tinha quem entrevistar, a gente mesmo era entrevistado.
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Jayme: Uma vez, numa enchente, o Sady Nunes, repórter da Gaúcha, não tinha entrevista, e eu fui o “flagelado” entrevistado. (risos) Tinha que preencher o buraco. O problema de hoje não é falta de talento. Todo mundo é especialista, as pessoas só entram para fazer uma coisa. Eu acho que isso conduz ao desastre. O que a tecnologia melhorou do ponto de vista do conteúdo, o que vai escrito nos jornais, o que vai ao ar no rádio? Glênio: O conteúdo não depende da tecnologia. Jayme: Até mudou os conteúdos, mudou a forma do conteúdo. Quando eu escrevia os programas, inclusive ilustrados musicalmente por ele, na rádio Farroupilha na Galeria do Rosário, eu fazia um programa de meia hora sobre o naufrágio do Titanic. Hoje tu não consegues manter um camarada meia hora no rádio para ouvir um documentário desses. Glênio: E hoje a segmentação das rádios é muito grande. Rádio para dona de casa, para os operários, para isso, para aquilo. Tu ouviste as primeiras apresentações da Elis Regina, és um fã dela. Glênio: Mas quem não é? Pois é. Antigamente, gravar um LP era caríssimo, tudo. Hoje, qualquer um grava um CD, ou põe um vídeo no You Tube. Por quê não surgem outras Elis Reginas por aí? Glênio: Isso é uma coisa particular. Se a pessoa tem valor, tem que lutar até aparecer a oportunidade. A Elis Regina, para faturar, teve que sair de Porto Alegre. Uma vez, um amigo meu, trabalhava com produtora de discos, veio aqui e eu perguntei; “Não vais gravar a Elis Regina?”. Ele disse: “Eu não conheço” e eu: “É a maior cantora do Brasil”. Levei ele para conhece-la na rádio Gaúcha, ela não estava. Mas ele não esqueceu o nome dela e depois ele acabou gravando o primeiro disco da Elis Regina. Um disco que foi uma bosta, desculpe a palavra, porque o repertório do Brasil naquela época não atendia a musicalidade da Elis Regina. Eram aqueles bolerões, dramalhões. Até que chegou a Bossa Nova e a Elis Regina revelou-se a cantora extraordinária que a gente conheceu.
Jayme: O Glênio tem toda razão. Na época em que apareceu a Elis Regina, no Clube do Guri, do Ary Rego, apareceram mais duas cantoras maravilhosas. Uma era Dalila, uma negra linda. Logo em seguida foi embora também e desapareceu. E tinha outra, que trocou a carreira artística por um casamento, para mim, tão cantora ou até melhor, que a Elis, Maria Helena Andrade. Glênio: Ela é de Rio Grande. Veio com 15 anos pra cá. Já veio de uma escola da Ângela Maria, que veio de uma escola da Dalva de Oliveira, que eram as grandes vozes do Brasil. A Maria Helena Andrade ainda está em Porto Alegre cantando, como nos seus melhores tempos. Nunca bebeu, nunca fumou. Volta e meia vem no meu programa, faz shows, com uma voz limpa, nova. Gravou um CD faz um ano e meio.
Farroupilha. E eles nunca olharam para mim. E eu sonhava, vinha um, vinha outro, e os artistas diziam “Glênio, esse programa é pra ti”. “Eu sei, mas como é que vou dizer para eles?”, porque eu mexia com todo mundo, eu animava até que um dia surgiu a oportunidade. Só surgiu quando Farroupilha já tinha dispensado o elenco de rádio-teatro, a orquestra já não era completa, tinha metade. A rádio Farroupilha estava se desmanchando por causa da invasão da televisão. Todo mundo só queria televisão (TV Piratini, 1959).
Aí, já tinhas vencido a timidez? Glênio: Sim, tanto que a Globo veio a Porto Alegre e queria que eu fosse para lá.
Fazer rádio era mais caro naquela época que hoje, manter uma orquestra... Jayme: Desse ponto de vista, sim, como empresa. Mas como produção, era barato, tecnicamente era barato. Acontece o seguinte. As emissoras foram abertas aqui como oficinas para vender rádio. A Gaúcha (1924) que era uma sociedade, foi feita por um engenheiro de nome Portela, na verdade ele consta entre os fundadores porque era o camarada que entendia de rádio. E comprou o equipamento numa casa chamada Casa Daiton. Eles ficaram meses tentando botar aquilo no ar, até o momento que conseguiram. Outro sócio era o Francisco Garcia de Garcia, que era o dono da Casa Victor e usava a Gaúcha para vender seus rádios. Ele tinha um concorrente chamado Artur Pizzoli, dono da Casa Coates e tinha entrado lá como mecanógrafo, que era para consertar máquina de escrever. A Casa Coates era de propriedade de um uruguaio chamado Coates, que quando resolveu se retirar dos negócios e voltar ao Uruguai, deu a empresa de presente para o Pizzoli como recompensa pela lealdade, serviços prestados, enfim. Chegava de noite, o Pizzoli tinha que calibrar a bobina dos rádios que vendia. E ele precisava que a Gaúcha prorrogasse as transmissões para isso e o Chico Garcia de Garcia não prorrogava.
Isso, quando? Glênio: Data, para mim, é difícil. Desde que minha esposa morreu e foi sepultada, não conheço mais minhas datas. Não sei a data que nasci, só a data que eu morri junto com ela. Nada de data fica na minha cabeça. Mas aí, apareciam oportunidades para todo mundo que era animador na rádio
Aí, ele fez uma rádio para ele? Jayme: Aí o Pizzoli fundou a rádio Difusora (1934). Pra poder calibrar os seus rádios. Só que o Pizzoli era um camarada bem-dotado. Por instinto, entendia de rádio. Dali a pouco a rádio Difusora estava lá em cima e a Gaúcha estava lá embaixo. Pouco depois os Flores da Cunha resolveram fazer a rádio Far-
Quem eram os teus ídolos no rádio, Glênio? Pra quem tu olhavas e dizia “puxa, se um dia eu conseguir ser igual a ele”? Glênio: Não me lembro, porque o que eu queria fazer é o que faço até hoje. Eu me incluo na categoria de animadores de rádio. O que não tinha em Porto Alegre naquela época? Glênio: Tinha, mas diferentes do meu estilo de ser. Era tudo muito sóbrio, muito diplomático. Jayme: Tinha o Piratíni. Ele não era muito diplomata. Era uma apresentador caricato. R.G.: Era o Antônio Amábile, irmão do Enrique, que tinha uma joalheria. A maioria dessas pessoas era chamada de apresentadores. Os animadores era muito poucos. Eu queria ser desses.
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roupilha. O velho Flores, com aquela grossura dele, estava indignado com a influência das rádios argentinas aqui e resolveu fundar uma emissora de rádio com uma grande potência.
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Em que ano foi isso? Jayme: 1935, por isso o nome Farroupilha. Ele queria botar a rádio em Uruguaiana, para atacar os castelhanos lá na fronteira. E quem o convenceu a não fazer isso, que Uruguaiana não poderia manter uma rádio de 25 quilowatts, que naquela época era um monte, foi o velho Arnaldo Ballvé, que acabou diretor da rádio. Glênio: Mas onde o Chateaubriand entra aí? Jayme: Mais adiante. A Farroupilha foi vendida para o Assis Chateaubriand em 1941 ou 42. Mas a Farroupilha estava levando pau, em audiência, da Difusora. A Difusora não tinha nem vaga na caixa de publicidade. Lá pelas tantas, o Chateaubriand resolveu comprar a Difusora para acabar com aquilo. Nesse meio tempo, o Pizzoli tinha brigado com o Garcia de Garcia. Não se falavam. A rádio Gaúcha estava mal e quem entrou de sócio foi o Breno Caldas. Eles contrataram um dos maiores locutores do Brasil, Oduvaldo Cozzi, que esteve aqui durante um ano. Não adiantou nada. Quando o Pizzoli recebeu a proposta do Chateaubriand, era milionária, para vender a Difusora, pediu “um tempinho para pensar”. Essa história me contaram Cândido Norberto, que trabalhou na Difusora, e o genro do Pizzoli, o Breno Futuro. O Pizzoli ligou para o Chico Garcia de Garcia: “Olha aqui, nós estamos com essa bobagem aí de briga, essa coisa toda. O meu negócio é rádio, o teu negócio é loja. Vamos fazer o seguinte, eu compro a tua rádio e troco pela Casa Coates”. O outro gostou, mas lembrou “tem o Breno Caldas”. “Não tem problema”. Eles fizeram umas obras dentro da Gaúcha e converteram aquilo em ações e deram para o Pizzoli. O Breno subia pelas paredes, simplesmente o Pizzoli entrou com o capital e se tornou o dono. E vendeu a Difusora para o Chateaubriand. Um ou dois anos depois, a Difusora estava lá embaixo e a Gaúcha já estava concorrendo com a Farroupilha. Quando vocês começaram, não ha-
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via TV, havia jornais e o rádio estava, digamos, nos segundos passos. Hoje, vocês navegam na internet, estão atualizados. Mas para quem está começando hoje, é preciso ter o mesmo tipo de iniciativa que vocês tinham? Jayme: Acho que sim. A tecnologia não mudou nada em termos de como se faz uma carreira. Eu acho que há um erro em que as empresas já contratam especialistas. Em vez de contratar o que eu chamo de “sete ciências”, o cara que não sabia nada e sabia tudo. Começava fazendo de tudo e depois se especializava no que era melhor. Esse é o erro das empresas. Criando um estrelão onde tudo desemboca nele. Aí, se forma uma coorte em torno. Medalhões? Jayme: Medalhões. Mais do que antes. Posso te citar um monte de pessoas que eram de destaque dentro do rádio, desde o Manoel Braga Gastal, que era o comentarista de opinião, o produtor de rádio, o Dinarte Armando, enfim, até Walter Ferreira, Ernani Behs, Tânia Maria, Alda Cotrin, tinha uma constelação. Tem espaço para novela no rádio hoje? Glênio: Não tem. Fica difícil ficar sentado e só ouvir. A televisão roubou tudo o que o rádio tinha de bom. Levou de graça: o rádio-teatro, o futebol, a transmissão de corrida de cavalo, corridas de carro, e o rádio ficou chupando o dedo porque teve que se entregar. Porque tem pouca música no rádio hoje? Glênio: Não tem pouca não. Jayme: Acho que tem o clipe. Entre assistires a um clipe do teu cantor com coreografia, um espetáculo, e ouvir uma voz, tu acabas no clipe. Glênio: O segmento diz tudo. A rádio Gaúcha não é uma rádio musical. Tem exceções, como o meu programa, o Brito também faz, mas o resto é informação, notícia, esporte. Jayme: Quando nós fomos contratados, o Flávio Alcaraz Gomes assumiu, inclusive ele criou o slogam “música só quando for notícia”. Mas é também por causa da segmentação do rádio? Jayme: Vou fazer uma comparação. Os jornais anteriores ao rádio publicavam
um folhetim. Levava um ano publicando aquilo em capítulos, na primeira página. No interior, naquele tempo o jornal ia de navio, tinha gente que ia ao porto esperar o jornal para ver a continuação do folhetim. Sempre tinham dois títulos. “A órfã, ou a desonrada de Taubaté”, enfim. Quando o rádio veio com a novela, que poupou o trabalho de ler, terminou aquilo. Os jornais deixaram de publicar. E no momento que a televisão veio com a imagem, terminou o rádio. Quem são os cantores que tu mais gostas de ouvir? Glênio: O meu cantor preferido no Brasil sempre foi Orlando Silva, desde pequenino, achava um fenômeno. Um dia desses eu estava fazendo o meu programa e disse assim: “Se um dia me perguntassem que cantor eu gostaria de ser, tem um só: Ray Charles”. Ele cantava como não vi ninguém cantar na minha vida. Ele cantava com a alma, com um sentimento que mesmo as pessoas não entendendo inglês
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Jayme: Se pegar uma mulher como Eunice Jacques, uma das mais extraordinárias jornalistas que conheci. Tinha um estilo primoroso, era uma mulher que perseguia a notícia.
Glênio Reis se emocionam. Um dia apareceu ele na televisão, cantando com mais dois cantores da velha guarda. Um cantor famoso cantou a parte dele e quando o Ray Charles entrou, ele ficou olhando, e se contendo para não chorar. Eu perdi a respiração em casa. Isso foi agora, recentemente antes de morrer. Jayme: Eu não sou especialista, mas tenho uma boa coleção de jazz. Havia Sarah Voughan, Ella Fitzgerald, Billie Holliday, tu pega num barril e saia um monte de gente, hoje tu fazes assim e tira um punhado de piolho. Glênio: Essas vozes estão todas nas canções religiosas. Estão nos corais negros norte-americanos. Nessa história de voz masculina e voz feminina, há uma máxima aí que mulher não dá certo no rádio. E a gente percebe que 90% da rádios tem voz masculina. Porque isso? Jayme: Eu acho que ainda é rescaldo da sociedade machista. Elas são condicionadas à doçura, à... Glênio: Graças a Deus.
E pra ti, Jayme, quem são os teus grandes nomes da imprensa? Jayme: Quero fazer uma menção particular a um amigo muito querido, e que acho que é um modelo para um homem de rádio. Chamava-se Ruy Vergara Correia. Foi o maior editor de esportes que o Rio Grande do Sul já teve. Ele era balconista da Casa Coates, e vendia discos. Quando o Pizzoli fez a rádio Difusora, o Ruy passou a botar discos no prato do toca-disco, a rádio só transmitia propaganda e música. Naquela época a mesa tinha um prato e mais uma chave para abrir o microfone. O Ruy gostava muito de esportes, pegou um rádio do Pizzoli e começou a furungar notícias e criou um noticiário esportivo para a Difusora. Pequeno. Foi o primeiro noticiário esportivo do rádio em Porto Alegre. Isso em 1942, 43. Eu conheci o Ruy em 1945, na Farroupilha, ele era da Difusora, ainda. O Ruy empilhava quatro, cinco rádios, ficava ouvindo aquilo, ligando e namorando as telefonistas da Telefônica Rio-Grandense, “querida, como vai? Me diz como foi o resultado do futebol aí? Vê pra mim”. Dali a pouco ela ligava e dizia. Tudo de graça, sem gastar um tostão. Ele tinha um noticioso patrocinado pela Auto Partes, uma firma que havia na Farrapos. Naquela época se usava muito essas besteiras e trocadilhos “autos de todas as partes trafegam com partes da Auto Partes”. Quando decidiram levar a sério a organização do departamento de esportes, o Ruy foi o primeiro chefe do departamento. Nós moramos numa pensão, eu, ele, o Rubem Oliveira, primeiro cronista de turfe, Mário Blansqui, que era do setor de comercial, e mais um guri chamado Vilsinho, que era boy da rádio. Nessa época eu estudava Odontologia. Eu fui estudar odonto porque era o curso mais curto que havia. Três anos. Meu pai queria que eu me formasse na Universidade e eu lá queria saber de universidade? A gente saía da rádio e ia para aquelas casas “religiosas” que havia na Siqueira Campos. Chegava
em casa às seis da manhã. E o Ruy me acorda para ir para a faculdade. “Acorda, judeu filho da puta, tu vais perder esta faculdade”. E me tocava pra fora. Foi uma amizade que nós mantivemos. Se estuda tanta coisa nas universidades e eu acho que a contribuição do Ruy Vergara Correia está a espera dealguém que queira investigar. Jayme, lista cinco grandes articulistas da imprensa brasileira. Jayme: Tem o (Luiz Felipe) Pondé, na Folha de S.Paulo, João Pereira Coutinho, Carlos Alberto de Franco, Sérgio da Costa Franco que agora aparece muito pouco aqui. Ali na Zero Hora tem uns caras muito bons, tem o Araújo no Segundo Caderno, Carlos André Moreira é outro cara genial. Estou escrevendo um livro, não sei quando vou terminar, também não tem muita pressa, eu tenho muito tempo para fazer livros. Glênio: Amém. Jayme: Exatamente. E eu precisava transmitir ao leitor comum o que a gente chama de pensamento abstrato. Porque realmente o que civiliza o homem é o pensamento abstrato. Aí eu me lembrei de uma tradução que tentei fazer, suando, do Francis Bacon, um livro de ensaios que comprei quando fui agora ao Canadá. Me apaixonei pelo Bacon. O Glênio disse que hoje não foi ao treino do Grêmio por causa da entrevista. O que tu vês? Categorias de base? Glênio: Não vejo mais categoria de base. Porque se não eu estaria reclamando deles, lá. O Grêmio contratou jogadores que se não produzir jogadores iguais a esses tinha que fechar as categorias de base. Estão contratando qualquer um? Glênio: Jogadores comuns. Estão botando dinheiro fora. Quem tu viste que confirmou depois ter futebol no corpo? Glênio: Assis, irmão do Ronaldinho, foi um guri, a primeira entrevista que ele deu na vida, ele tinha esse tamanhozinho, foi para mim. Fiquei encantado vendo ele jogar naqueles campos carecas do Grêmio. Fazia coisa que até Deus duvidava. Entrei no campo e fa-
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lei com o treinador: “Quem é esse guri que tá fazendo chover?”. “É o Assis”. Fui fazer a entrevista com ele. Só não vingou porque foi cedo para o exterior. Era um guri pequeno, tinha que deixar amadurecer, crescer. Ele não cresceu fisicamente também. A felicidade é que depois surgiu o irmão dele, que foi a coisa mais extraordinária que eu presenciei até hoje em matéria de futebol. Tu vais a treinos pelo prazer de ver futebol? Por que é do Grêmio? Glênio: Porque é do Grêmio. Não vou mais aos jogos. Eu gosto muito do futebol, mas futebol não se vê mais. Me contento com a TV. Futebol, como a gente viu jogar, quem mandava no Brasil não era o gaúcho, era o carioca. O futebol do carioca era diversão, era um samba-enredo maravilhoso. Hoje, tu não vês mais, porque a força física sobrepujou a arte. Tu pareces um gremista desanimado. Glênio: Muito desanimado. Eu vejo futebol de maneira diferente das pessoas. Faço parte de um pequeno grupo de pessoas que tiveram o privilégio de conviver com o Osvaldo Rolla. Eu frequentava o apartamento dele e ele permitiu que eu ficasse no vestiário durante anos vendo as preleções dele. Aquilo era uma aula que eu recebia. Tu és ligado em futebol Jayme? Jayme: Eu vou esclarecer uma coisa. Eu não deixava falar sobre futebol no programa da madruga e mandava tocar o pato. Todo mundo acha que eu não gosto de futebol, mas eu gosto. A rádio começava a falar em esportes às oito da noite e ia até a meia-noite. Se eu abro aquele microfone para torcedor de futebol ia até às três da manhã com besteira. Glênio: Pato neles, né Jayme? Jayme: Pato neles. Domingo eu vi o Internacional jogar com o Caxias.. Tu és colorado? Jayme: Não, eu sou Rio Grande. Teus hobbies então são furungar música e o Grêmio? Glênio: Na realidade, eu não tenho onde me meter. Quando o Grêmio for para a Arena, vou parar com o futebol. Não vou ter paciência de sair do Menino Deus para ir lá e voltar.
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O Paulo Coelho é um excelente escritor. Pode estar produzindo coisas para consumo, mas sabe escrever, sempre soube
Jayme, qual a leitura, o que te mobiliza? Jayme: Gosto de cinema, mas eu alugo os meus DVD, fico vendo filmes em casa, fico lendo, pesquiso coisas no computador. Na verdade, meu passatempo é viver. Quer ver uma coisa? Naquele cantinho ali, tem um bar. Eu vou lá, encho a cara, não incomodo ninguém, ninguém me incomoda. Glênio: Se não fosse a internet a gente estaria mal de vida. Eu fico até uma e meia da madrugada na internet. Tenho o meu blog que eu mesmo montei, eu mesmo escrevi, depois que minha esposa faleceu eu parei de publicar as coisas. Eu queria deixar alguma coisa para as pessoas saberem quem era o Glênio Reis, fui abastecendo. Ficas na internet fazendo o que? Facebook? Glênio: Não, não. Só lendo e-mail e escrevendo para os meus amigos, sabendo o que eles têm pra dizer. Fico no rol das amizades e procurando saber das novidades. Bate-bola final. Vais ficar um mês numa ilha e só pode levar um livro. Glênio: São tantos livros, Jayme.
E tu só podes levar um CD. Glênio: Eu posso levar uma coletânea? (risos) Seria uma coletânea do Rafael Rabello. Jayme: Levaria o livro de ensaios do George Orwell. Glênio, um cantor superestimado, mas que não é tudo isso? Tem mais fama que talento. Glênio: Isso tem muito. Tem muita gente que tem a mídia na mão. Ilude as pessoas. Mas eu tenho eterna saudade de cantores que eu sei que não vai aparecer igual. Um é Orlando Silva e outro é Frank Sinatra. Um escritor superestimado, mais fama que talento. Jayme: Tem tanta gente. Tirando o Paulo Coelho. Jayme: O Paulo Coelho é um excelente escritor. Pode estar produzindo coisas pra consumo, mas sabe escrever, sempre soube. Lá pelas tantas descobriu um filão. Eu vou contar para vocês. Tinha um escritor, José Mauro de Vasconcellos, quando jovem, escreveu um livro chamado Barro Blanco, que é uma das coisas mais extraordinárias que se pudesse ter escrito na época na literatura brasileira. Ninguém sabe desse livro. Agora, Meu pé de laranja-lima, Palácio de vidro, lá pelas tantas ele descobriu o filão dele. Glênio: Eu só lastimo que o cinema também não tenha nos devolvido personalidades iguais ao Fred Astaire, Ginger Rogers. Aquele sapateado, aquelas coisa, a gente não vê mais. Do que vocês sentem mais saudade do tempo de juventude? Jayme: Eu não sinto muita saudade não. Glênio: Eu sinto saudade do tempo em que eu era piá, e percorria aquela imensidão de terra e de verde que era o Parque Farroupilha. Ali, o meu espírito de guri navegava. Eu corria atrás dos bondes, pegava na frente e descia por trás para não pagar, andava de bonde de graça. Sinto falta dos bondes de Porto Alegre. É uma coisa que não podia ter desaparecido assim.