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Prefácio à tradução Inglesa
Este relatório de pesquisa nasce em meio a um tempo em que as práticas de Redução de Danos e toda a ciência nacional têm sido contestadas pelo Poder Executivo da República Federativa do Brasil, quinto maior país do mundo, considerando seu território, e a sexta maior população mundial. Os tempos obscuros de anti-intelectualismo e o ataque contra a ciência em sua essência como perspectiva norteadora de ações de Estado para o bem-estar populacional são características que acompanharam o nascimento deste trabalho de tradução e divulgação de práticas éticas e cientificamente comprovadas para a intervenção sobre pessoas que usam drogas estimulantes.
A questão brasileira sobre drogas sempre foi de imensa disputa conceitual, entre a arcaica e higienista visão de mundo livre das drogas, e a realista e arqueológica constatação de que se vive um mundo em que pessoas fazem uso de substâncias diversas, e que estas merecem o acesso a práticas de cuidado amparadas por princípios humanistas, pelos direitos humanos e respeito pelas suas escolhas de vida. Decerto que a compreensão sobre o uso de drogas, enquanto uma questão cultural dos homens em sociedade, da qual compartilhamos, não implica em ignorar os prejuízos que os consumos abusivos e dependentes podem causar à sociedade e às próprias pessoas, individualmente. O anseio genuíno pelo cuidado a essas pessoas é um dos motivos desta publicação. O debate brasileiro das políticas sobre drogas tem se dado em oposição entre as perspectivas jurídica-moral-biomédica versus a biopsicossocial-sociocultural, assim, o uso de drogas tem sido compreendido por parte da sociedade civil organizada, e até por órgãos governamentais, na forma de um reducionismo que dá extrema relevância ao papel neuroquímico das drogas e de mecanismos punitivos como forma de atenção ao tema, e pouca importância aos contextos culturais e socioeconômicos subjacentes às culturas de uso, ou ainda aos aspectos pessoais, isto é, às expectativas individuais, os níveis de conhecimento das pessoas sobre seus consumos, os posicionamentos e compromissos políticos dos governantes e legisladores, as vulnerabilidades das pessoas e dos territórios, etc. Este impasse tem provocado o sofrimento das pessoas, segregação e exclusão social, e pouco tem contribuído com a discussão madura e responsável sobre o problema das drogas.
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O Brasil, segundo as estatísticas mundiais, é o oitavo maior consumidor de cocaína entre dezenove países americanos (considerando o uso na vida), atrás de países como Estados Unidos, Canadá, Uruguai e Chile. Em comparação com vinte e cinco países europeus está atrás de dez países, tais como Espanha, Reino Unido e Irlanda (BRASIL, 2015). Os dados nacionais públicos atuais sobre consumo de drogas estimulantes como a cocaína, o crack e anfetaminas encontram-se no III Levantamento Nacional Sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira (LNUD) (BASTOS et al., 2018), realizado
pela Fiocruz em 2015. O III LNUD mostra-nos que o uso na vida de anfetaminas de forma não prescrita no país ocorreu por 1,4% da população, o consumo de cocaína foi de 3,3% e o de crack foi 0,9%, o que representa crescimentos de uso de 13,8% para a cocaína e 28,5% para o uso de crack, desde o último levantamento em 2005 (BRASIL, 2010). Tais dados indicam uma desaceleração de crescimento do uso de crack observado entre 2001 e 2005 (75%) e também da cocaína (20,7%) para o mesmo período (BRASIL, 2010), conforme a série histórica dos relatórios da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD)1 .
Embora os consumos de estimulantes no Brasil como a cocaína, o crack e anfetaminas apresentem baixa prevalência, no entanto, representa um universo de milhões de pessoas entre a população. E apesar do número de pessoas com problemas decorrentes do uso de estimulantes, as estratégias de cuidado sob a perspectiva da redução de danos têm sido escassas ou mesmo inexistentes, se específicas para estes tipos de substâncias. Desse modo, a importância da tradução e disponibilidade deste material em língua portuguesa é inestimável, haja vista que o presente relatório nos concede uma série de casos de intervenções específicas para pessoas que usam drogas estimulantes, aprofundando o estudo em sete casos específicos entre dezenas de experiências ao redor do mundo investigadas pela organização Mainline.
Limites da Correria: Redução de Danos para usuários de estimulantes – foi assim traduzido do original Speed Limits, numa escolha para adaptação cultural do título da pesquisa original. Enquanto speed limits literalmente significa “limites de velocidade”, pode ser compreendida como uma alusão às drogas denominadas speed, isto é, as anfetaminas, de efeitos estimulantes. Os autores nos trouxeram que o título busca lançar-nos à ideia das substâncias estimulantes como algo que pode nos manter numa correria desenfreada, sem espaços para a reflexão – e neste sentido, próxima ao status quo da sociedade atual – a não ser que desenhemos alguns limites de proteção, de redução de danos. Em “Limites da Correria”, buscamos fazer
1 No II LNUD a categoria Anfetaminas não foi estudada em específico, mas traz informações gerais sobre os consumos de estimulantes, estimado o uso por 3,2% da população, em 2005. (N. R.) a referência das terminologias Correria ou Corre de nossa cultura local pernambucana e urbana, a qual se refere às atividades do cotidiano, desde as correrias em função da realização de trabalhos, serviços e atividades diversas, ao corre da obtenção de drogas, compreendida como uma das atividades cotidianas das pessoas que usam drogas.
Ademais, dentre os casos especificamente aprofundados, o Programa Atitude, serviço da assistência social implementado pelo Governo de Pernambuco em 2011, e que atende em grande maioria usuários de crack em vulnerabilidade social e em condições de ameaça, é particularmente uma experiência inovadora no país, cujos resultados e modos de monitoramento, bem como o impacto sobre as pessoas usuárias do serviço, têm sido alvo de pesquisas acadêmicas e reconhecimento nacional e internacional como boa prática de redução de danos e um modelo possível para a diminuição da violência e uso de drogas. Além, com práticas e atendimentos psicossociais capazes de remodelar as relações do indivíduo e da Rede de Atenção a certos determinantes sociais de saúde.
A Escola Livre de Redução de Danos enseja que este documento possibilite novas formas de pensar a Redução de Danos para usuários de estimulantes, além de fomentar o debate sobre essa perspectiva em tempos de descrença e abandono de práticas humanizadas e cientificamente demonstradas. A desinformação e o preconceito com as pessoas que usam drogas, e a ampliação do cuidado, bem como a reinserção social, apenas podem ser conquistadas pela informação amparada em dados e boas experiências. É neste panorama que buscamos incidir, na crença sobre a potencialidade da pessoa humana, no seu desenvolvimento pessoal, na aposta da autonomia e na resiliência, que mergulhamos neste projeto como forma comemorativa e de resistência pelos 30 anos da Redução de Danos no Brasil.
José Arturo Costa Escobar
Doutor em Psicologia Cognitiva Cofundador da Escola Livre de Redução de Danos Diretor-Presidente do Grupo AdoleScER: Saúde, Educação e Cidadania Pesquisador do Grupo de Estudos sobre Álcool e outras Drogas (Gead/UFPE)