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2 Metodologia

2 Metodologia

As drogas estimulantes, também chamadas de psicoestimulantes são substâncias psicoativas que estimulam o cérebro e o sistema nervoso central. Os efeitos mais comuns dos estimulantes incluem o aumento do estado de atenção, estado de humor elevado, promovem o estado de vigília, o aumento da fala e da atividade motora e a redução da fadiga e do apetite. Elas aumentam a pressão sanguínea, a taxa de batimentos cardíacos e outras funções metabólicas (PINKHAM; STONE, 2015). Os estimulantes podem induzir sentimentos de energia, foco, confiança, vigilância, bem-estar, loquacidade e aumento do impulso sexual, mas também podem produzir nervosismo e ansiedade (GRUND et al., 2010).

Globalmente, os dois estimulantes mais populares são as drogas legais cafeína e nicotina. Estas, no entanto, não serão abordadas no presente relatório, oqual foca principalmente no uso problemático de drogas estimulante ilícitas, a saber: estimulantes do tipo anfetamina (ETA), cocaína, e catinonas. O uso tradicional de estimulantes (leves) a base de plantas tais como a khat, a efedra, a kratom e a folha de coca estão excluídas do presente relatório, uma vez que não existem dados (confiáveis) sobre o papel que estas substâncias desempenham globalmente no uso problemático de drogas. Embora a MDMA seja uma anfetamina substituta e tenha propriedades estimulantes, seus efeitos são classificados mais corretamente como um entactógeno5. Além disso,

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5 A MDMA também tem sido caracterizada como uma anfetamina psicodélica, “droga do amor” ou ecstasy. O termo uma vez que o uso de MDMA é menos associado com as populações marginalizadas, o relatório não foca explicitamente na MDMA. Finalmente, os estimulantes de prescrição sintéticos tais como o metilfenidato (ex., Ritalina, Concerta) e a dexanfetamina (ex., Adderall, Dexedrina) ou o agente promotor de vigília, modafinil (Provigil) também não são discutidos no presente relatório.

Além de substâncias lícitas e ilícitas, outra distinção pode ser feita entre as drogas tradicionais e novas drogas ilícitas (melhor conhecidas como novas substâncias psicoativas, ou NSP). Em 2017, 36% de todas as NSP no mercado global eram estimulantes (UNODC, 2018a). Os estimulantes tradicionais ilícitos incluem a anfetamina e a metanfetamina bem como o cloridrato de cocaína e a cocaína freebase. As NSP estimulantes discutidas no presente relatório são as catinonas6 (substitutas ou sintéticas), uma vez que está é a NSP estimulante mais comum e o

entactógeno, cunhado pelo farmacólogo estadunidense David E. Nichols, se deve pelos efeitos na produção de sentimentos de contato com questões interiores e íntimas. O termo buscou ampliar a classificação dada como empatogênico, relativo à produção de estados empáticos, porém, cuja construção terminológica pode remeter errônea e negativamente à ideia de patogenia, ademais, a experiência com tais substâncias está além da promoção de empatia (NICHOLS, 1986). (N. R.) 6 Para referência ao leitor, essa classe de substâncias sintéticas têm sido divulgados na mídia brasileira como drogas canibais ou drogas zumbis devido a casos de agressividade extrema observados. A mídia veiculou serem estas “sais de banhos” ou “fertilizantes para plantas”, o que foi uma estratégia de venda para burlar os mecanismos legais, ou seja, não são realmente substâncias presentes em sais de banho de uso comum ou doméstico. (N. R.)

uso problemático de catinonas sintéticas aumentou globalmente.

Os capítulos seguintes discutirão as três categorias principais de estimulantes ilícitos: ETA, cocaína e catinonas. Em geral, usamos cocaína ao nos referirmos à substância seja na forma de sal ou base livre (freebase)7. Por uma questão de legibilidade, e reconhecimento das diferentes terminologias usadas mundo afora, bem como as opiniões sobre o uso de determinados termos usados, frequentemente usamos crack para nos referirmos em todo o relatório à cocaína freebase, que pode ser fumada. Da mesma forma, usamos estimulantes do tipo anfetamina ou ETA para nos referirmos a qualquer substância semelhante à anfetamina, e frequentemente usamos o termo meth ao invés do mais correto metanfetamina (methamphetamine).

3.1 Estimulantes do tipo Anfetamina

Os ETA88 são um grupo de drogas sintéticas poderosos estimulantes do sistema nervoso central (SNC) capazes de aumentar a atividade dos sistemas neurotransmissores de dopamina e noradrenalina e elevação de seus níveis no cérebro. As anfetaminas pertencem à família das fenetilaminas, a qual inclui os estimulantes, os entactógenos e alucinógenos, mas constituem também sua própria classe estrutural. Além de seu uso ilícito, as anfetaminas podem ser prescritas para uma variedade de condições, tais como o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e a narcolepsia (PINKHAM; STONE, 2015).

A nomenclatura de muitos estimulantes, particularmente a dos ETA, pode ser confusa e é frequentemente usada inconsistentemente, tanto na literatura acadêmica bem como na linguagem do leigo. Para o presente relatório, ao se referir às anfetaminas ou os ETA, nos referimos à anfetamina, a dextroanfetamina e análogas e substitutas, cujo

7 O termo freebase se refere à forma de cocaína cristalizada possível de ser fumada em cachimbo (insolúvel em água). Frequentemente é transformada a partir do cloridrato de cocaína (cocaína aspirável, solúvel em água) usando água com amoníaco ou bicarbonato de sódio. O crack é sinônimo ao freebase, sendo uma gíria usada também nos EUA e na Europa. (N. R.) 8 São também conhecidas no Brasil por rebite ou bolinhas, comumente remédios anorexígenos, e a classe desses estimulantes não inclui crack e cocaína aspirável ou outros estimulantes como nicotina, cafeína ou xantinas. (N. R.) efeito primário é de psicoestimulação. Isto exclui a MDMA, a MDA e compostos entactógenos semelhantes, mas inclui a metanfetamina e similares. Os nomes populares para estas substâncias também são usados inconsistentemente e variam entre regiões e grupos de usuários. No presente relatório, sempre que um nome popular localmente relevante for mencionado o mesmo será explicado no contexto.

As anfetaminas estão disponíveis em variadas formas, tais como um pó branco ou esbranquiçado, em forma de pílula, como uma substância oleosa e em forma cristalina. Cada forma está associada com uma diferente via de administração. A forma freebase é mais comumente fumada, com instrumentos feitos com papel laminado ou vaporizada. As pílulas são usualmente tomadas oralmente, ao passo que o pó e os cristais podem ser cheirados e injetados. Entretanto, não existe associação direta entre a forma de apresentação e o modo de uso, e esses ainda podem diferir entre os grupos de uso, os indivíduos, a localização, e podem mudar com o passar do tempo.

Globalmente os ETA são a segunda droga mais comumente usada, com a maconha ocupando o primeiro lugar. Estima-se que cerca de 34,2 milhões de pessoas tenham usado uma substância do tipo anfetamina no último ano, alcançando entre 13 e 58 milhões, números que seguem crescendo (UNODC, 2018b). O Consórcio Internacional de políticas de Drogas (IDPC, International Drug Policy Consortium) (IDPC, 2016) informa que as organizações da sociedade civil, acadêmicos, ONGs e agências internacionais, todas reportam um aumento do uso de ETA em todas as regiões do mundo. A maior predominância do uso dos ETA se dá na América do Norte e na Oceania. Embora nenhum dado confiável esteja disponível, muitos países na Ásia reportam aumentos no uso de metanfetaminas (UNODC, 2018b; EMCDDA, 2018b).

Apesar da aceitação da RD como uma abordagem legítima em vários países asiáticos, o tratamento primordial da região para os usuários do ETA ainda está nos centros residenciais compulsórios focados na abstinência. Abusos de direitos humanos foram relatados em muitos desses espaços e a estratégia de internação compulsória carece de provas de eficácia (WHO, 2011). A maioria dos serviços de

RD disponível na região tem foco nas pessoas que injetam opioides. As pessoas que usam os ETA raramente usam os serviços de redução de danos, em grande parte porque elas não se identificam com ouso (problemático) de opioide, com frequência pertencem a diferentes redes de usuários, e desta forma, não consideram os serviços de RD como relevantes (WHO, 2011). Eles necessitam de mais informação e aconselhamento para levá-los a apreciar os potenciais riscos do uso de ETA e a tomada de decisão para mitigar os danos.

Na maioria das outras regiões existem poucos programas de redução de danos específicos para as pessoas que usam ETA. Ademais, embora o uso dos ETA venha aumentando ao redor do globo, as intervenções específicas e a evidência dando suporte às mesmas permanecem subdesenvolvidas (PINKHAM; STONE, 2015). Em vista disso, a Harm Reduction International (HRI) produziu uma revisão global demonstrando como os programas de RD podem responder efetivamente para reduzir os danos associados com o uso dos ETA e oferecendo recomendações futuras (PINKHAM; STONE, 2015).

3.1.1 Metanfetamina

A metanfetamina é estruturalmente muito semelhante à anfetamina, mas é mais potente e seus efeitos usualmente duram mais. A metanfetamina pode vir em duas formas físicas, base e sal. A base pura é um óleo transparente, incolor e volátil, insolúvel em água, o qual pode ser facilmente aquecido e inalado. A forma de sal mais comum é ocloridrato de metanfetamina. No mercado ilegal, ela é frequentemente vendida em formas de pílula, pó ou cristalina. Com frequência o sólido cristalino é chamado de shabu no Sudeste Asiático, mas também é frequentemente chamado de ice (gelo) ou cristal (crystal meth) devido a sua aparência. Na Ásia Oriental e Sudeste Asiático é comum a metanfetamina em forma de tablete. Estas pílulas, geralmente chamadas de yaba, são tipicamente de baixa pureza e podem ter várias outras substâncias (psicoativas) além da metanfetamina. Ao passo que as pílulas podem ser ingeridas por via oral, ou às vezes trituradas e fumadas, os cristais podem ser triturados, dissolvidos e injetados, mas também podem ser fumados sem serem destruídos pelo calor. A metanfetamina em pó é usualmente adulterada com uma substância adicional tal como cafeína, dextrose ou lactose, e pode ser ingerida por via oral, intranasal (cheirada) e injetada.

De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2017 (UNODC, 2017), a Ásia Oriental e Sudeste Asiático e a Oceania têm sido os principais destinatários das metanfetaminas traficadas ao longo dos últimos anos. Além disso, um tráfico intrarregional considerável ocorre na América do Norte, na Europa bem como na Ásia Oriental e Sudeste Asiático. A elevada predominância no uso de metanfetamina não é aparente apenas através de surtos de tráfico, mas também através de informações limitadas sobre as pessoas em tratamento pelo (ab)uso da droga. Por exemplo, em 2014 a Indonésia vivenciou uma enorme explosão de pessoas em tratamento para metanfetaminas. Em 2015 os peritos afirmaram que a metanfetamina era a droga mais usada na China, no Japão, em Macau, nas Filipinas e em Cingapura (UNODC, 2017).

Na Europa, apenas na República Tcheca a metanfetamina (conhecida localmente como Pervitin) é tradicionalmente a droga problemática número um. Embora a maconha seja a droga mais comumente usada, seguida pela MDMA, o Pervitin é o que mais está relacionado ao uso de alto risco e problemático; caso que se repete por mais do que quatro décadas (EMCDDA, 2017a; PATES; RILEY, 2010). Em vários outros países europeus, nos anos recentes, o aumento do uso de metanfetamina foi testemunhado entre os homens que fazem sexo com outros homens (HSH) que usam a mesma em um contexto sexual (chemsex).

3.2 Cocaína9

A cocaína é extraída das folhas da espécie Erythroxylum coca. Esta planta é encontrada desde os Andes às regiões adjacentes na América do Sul. O estimulante possui uma meia-vida curta, aumentando os níveis de dopamina, serotonina e noradrenalina no cérebro. A cocaína assume várias formas, tais como o sal de cloridrato (pó de cocaína), freebase

9 A partir das definições explanadas neste subcapítulo, passaremos a definir o cloridrato ou sal de cocaína apenas como pó de cocaína, assim como a pasta base e a cocaína freebase como crack. Esta escolha será feita com base na ideia de delimitar mais precisamente a via de uso da cocaína, cheirada/injetada ou fumada, respectivamente, também delimitando a classificação atribuída pelos usuários para essas formas de apresentação da cocaína. (N. R.)

(crack), ou extratos crus chamados de pasta de coca (paco, basuco, pasta base, PBC). O cloridrato de cocaína e a cocaína freebase são as formas usadas com mais frequência no oeste (DEGENHARDT et al., 2014). A pasta de cocaína é mais usada na América Latina. A cocaína pode ser usada de várias formas, seja cheirada, injetada, fumada ou ingerida por via oral. Tipicamente, o cloridrato de cocaína é cheirado, enquanto a cocaína freebase e a pasta de coca são fumadas.

A pasta de cocaína é um produto cru, intermediário na extração do cloridrato de cocaína. As folhas de coca são tipicamente misturadas com produtos químicos tais como metanol, ácido sulfúrico e querosene. A pasta é um extrato cru que pode ser processado adicionalmente para produzir o cloridrato de cocaína. Comparada à cocaína freebase e ao sal de cocaína, a pasta de coca é relativamente barata e mais usada em países da América Latina.

A cocaína freebase se torna adequada para fumar através do processamento do cloridrato de cocaína, normalmente com amônia ou bicarbonato de sódio. Esta forma de cocaína freebase obteve seu popular nome de rua, crack, devido ao som que faz ao ser fumada. Embora não haja estimativas precisas de sua predominância, é correto afirmar que a freebase está amplamente disponível nas Américas e cada vez mais na Europa. Usada principalmente pelos grupos marginalizados e as populações de rua, numerosos países europeus e das Américas do Norte, Central e do Sul têm reportado problemas ligados ao uso do crack (FISCHER et al., 2015a). Revisões abrangentes sobre a situação global das intervenções para o uso de cocaína freebase estão em falta (FISCHER et al., 2015a).

De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2018 (UNODC, 2018a), com base nos dados de 2016, as estimativas são que 18,2 milhões de pessoas usaram cocaína no ano anterior. Isto representa 0,4% da população mundial entre 15 e 64 anos de idade (UNODC, 2018b). Estes números confirmam os dados de estudos anteriores (2012 e 2014), que estimam o número global de usuários de cocaína entre 14 e 21 milhões, algo em torno de 0,3 – 0,5% da população mundial (FISCHER et al., 2015). Nas Américas do Norte, Central e do Sul se estima que a predominância do uso de cocaína é ainda mais elevada, com estudos indicando uma taxa de predominância de 1,4% ou mais. Nas Américas, a cocaína é a segunda droga ilícita mais frequentemente usada, atrás da maconha. Mais da metade de todas as pessoas que usam cocaína se encontram no continente americano: 34% da população mundial que usa cocaína está na América do Norte. Em seguida estão 20% na Europa Ocidental e Central, e 17% nas Américas do Sul e Central, incluindo o Caribe. Os 30% remanescentes ainda não foram especificados no relatório (UNODC, 2018b).

3.3 NSP e Catinonas

Com frequência, as novas substâncias psicoativas (NSP) são classificadas juntas como se fossem um grupo homogêneo de substâncias. No entanto, substâncias tão diversas quanto as catinonas sintéticas, as novas drogas psicodélicas, canabinoides sintéticos, opioides sintéticos e outras. Os estimulantes (36%) formam o maior grupo de todas as substâncias recentes, seguidos pelos canabinoides (32%) e psicodélicos (16%) (UNODC, 2018a).

Muitas NSP estimulantes pertencem ao grupo da catinona. Novamente, quando observamos o mercado europeu, as catinonas sintéticas são o segundo maior grupo de NSP monitoradas (após os canabinoides sintéticos) com 130 diferentes catinonas sintéticas registradas (EMCDDA, 2018b). A mais conhecida nesta classe é a mefedrona, também conhecida como 4-metilmetcatinona (4-MMC). A mefedrona foi sintetizada pela primeira vez em 1929, mas só se tornou amplamente disponível em 2007. Desde então ela foi reclassificada como uma droga ilegal em pelo menos 31 países (HRI, 2016).

A catinona é a substância ativa em khat fresco, um arbusto norte-africano cujas folhas possuem um leve efeito estimulante quando mastigadas. A metcatinona é mais forte do que a catinona, tendo efeitos semelhantes, porém mais intensos. Outras catinonas recentes incluem 3-MMC, 4-MEC e a flefedrona, entre várias outras.

O ambiente das NSP é uma paisagem em alteração constante, com novas substâncias aparecendo no mercado com grande frequência. Isto torna difícil (muitas vezes impossível) informar aos

usuários sobre os efeitos e riscos de determinadas substâncias, da maneira e no tempo adequado. Isto também se aplica às NSP estimulantes. Por exemplo, na Europa, até o final de 2017, o EMCDDA estava monitorando mais de 670 NSP. Quase 70% destas substâncias tinham sido detectadas nos 5 anos anteriores, com 51 novas substâncias somente em 2017 (EMCDDA, 2018b).

3.4 Riscos e danos em potencial

Como é possivelmente o caso para todos os danos relacionados ao uso de substâncias (ilícitas), muitas consequências negativas para a saúde e a vida social do usuário são mediadas pelo ambiente de risco no qual o uso acontece. Aspectos estruturais do ambiente de risco como desemprego, pobreza, falta de moradia, habitação instável e encarceramento, assim como substâncias adulteradas, (falta de) disponibilidade de serviços de redução de danos, legislação e políticas públicas sobre drogas, tudo isso pode ter um impacto negativo nas vidas das PQUD (EMCDDA, 2017). O mesmo é válido para as pessoas que usam drogas estimulantes. Existe uma quantidade considerável de literatura científica sobre o dano relacionado ao uso de estimulantes: está além do escopo do presente relatório reiterar ou recapitular suas conclusões. Neste capítulo, resumiremos as constatações mais importantes sobre as categorias de danos ligados, de modo mais forte, ao uso de estimulantes não injetáveis. Em prol da concisão, optamos por não diferenciar entre substâncias específicas, e preferimos focar nos danos que se aplicam aos estimulantes discutidos no presente relatório.

3.4.1 Danos físicos Vias de administração

As potenciais consequências negativas para a saúde associadas ao uso de drogas estimulantes dependem da substância e estão parcialmente relacionadas às vias de administração específicas. Padrões de consumo problemáticos e dependência, por exemplo, acontecem mais frequentemente entre as pessoas que injetam ou fumam estimulantes – independentemente da substância que eles usam (EMCDDA, 2018a). Os danos se tornam mais prováveis após um uso intenso, de alta dosagem ou de longo prazo (GRUND et al., 2010). No entanto, problemas agudos também podem ocorrer após o uso ocasional e/ou de baixa dosagem de estimulante (EMCDDA, 2017b).

Como ocorre com os opioides, a transmissão de doenças infecciosas (ex., vírus transportados pelo sangue como HCV e HIV) estão fortemente ligadas à injeção. Um risco adicional para as pessoas que injetam estimulantes é que, muitas vezes, elas injetam mais frequentemente, são mais propensas a compartilhar agulhas e seringas, com frequência possuem práticas de injeção mais caóticas e também se engajam mais frequentemente em atividades sexuais de risco, comparadas com as pessoas que injetam heroína (GRUND et al., 2010; FOLCH et al., 2009). Grund e colaboradores (2010) criaram uma visão geral da relação entre o uso (injetável) de estimulantes e HIV e HCV. Mais recentemente, o UNODC (2017) também publicou uma sistemática revisão da literatura sobre a relação entre o uso de estimulantes e HIV.

O dano aos pulmões está fortemente ligado aos estimulantes que são fumados, especialmente o crack (GRUND et al., 2010). As pessoas que fumam estimulantes também podem transmitir doenças compartilhando cachimbos e outros materiais. Por exemplo, os cachimbos de metal e de vidro podem queimar a boca de uma pessoa, e a parafernália – especialmente aquela feita nas ruas – pode ter bordas afiadas, resultando em pequenos ferimentos (STRATHDEE; NAVARRO, 2010; HUNTER et al., 2012). As feridas orais e lábios rachados tornam as pessoas vulneráveis às doenças infecciosas. O HCV, presente na saliva ou no fluido nasal, pode ser transmitido compartilhando os cachimbos (GRUND, 2010). Estudos também têm demonstrado que fumar metanfetamina está associado com a transmissão de infecções de HCV e HIV entre as mulheres profissionais do sexo (STRATHDEE; NAVARRO 2010; OAEN, 2007).

Cheirar cocaína e metanfetamina pode levar ao estreitamento dos vasos sanguíneos nasais, resultando em cartilagem danificada ou morta. Isto pode levar a um furo no septo e/ou colapso da válvula nasal (fraqueza ou estreitamento da válvula nasal que pode resultar em aumento da resistência ou mesmo o bloqueio do fluxo de ar) (GRUND et al., 2010).

Riscos físicos

Todos os estimulantes aumentam significativamente a pressão sanguínea e a frequência cardíaca. É um fato bem estabelecido que a cocaína é cardiotóxica (PHILLIPS et al., 2009). A cocaína pode causar danos estruturais irreversíveis ao coração, exacerbar as doenças cardiovasculares existentes, e até mesmo causar morte cardíaca súbita. O uso da cocaína está ligado a ataques cardíacos, batimentos cardíacos irregulares, falha do coração e outros problemas cardiovasculares (PHILLIPS et al., 2009). O uso combinado de cocaína e álcool leva a uma produção de cocaetileno no corpo humano. Este novo metabólito aumenta ainda mais a cardiotoxicidade (HERBST et al., 2011). O uso das ETA tem sido associado com a cárie dentária e as doenças dentárias, embora não esteja claro o quanto isso é um resultado direto do uso de (meta)anfetamina ou relacionado a uma dieta e higiene oral e dental pessoal deficientes (GRUND et al., 2010).

Outro risco é causado pela sintetização incorreta de estimulantes – por exemplo, quando eles são produzidos em casa. Os estimulantes podem conter resíduos químicos tóxicos ou outras impurezas1010 . Algumas destas impurezas estão associadas com altos níveis de morbidade e muitos problemas de saúde complexos, como a disseminação de vírus transmitidos pelo sangue, gangrena, e danos aos órgãos internos, assim como defeitos cognitivos, problemas de memória como demência, hemorragia de gangrena e parkinsonismo (GRUND et al., 2010; HEARNE et al., 2016).

Overdose

Embora overdoses fatais de estimulantes efetivamente ocorram, elas raramente são vistas entre as PQUD que frequentemente usam doses elevadas. Isto acontece, muito provavelmente, por conta do desenvolvimento de tolerância. Ataques cardíacos, arritmia e derrames são a causa mais frequente de overdose para as pessoas que usam cocaína (GRUND et al., 2010). As overdoses de metanfetamina podem levar a convulsões,

10 O Dr. Antônio Gomes de Castro Neto evidenciou em sua tese de doutorado que amostras de crack em Pernambuco, estado brasileiro da região Nordeste do Brasil, possuem diversos contaminantes em sua composição, além de cocaína, cuja média encontrada foi de cerca de 46%. Os adulterantes encontrados foram (média da concentração relativa): fenacetina (44%), procaína (38%), paracetamol (26%), benzocaína (23%), levamisole (20%), lidocaína (17%) e cafeína (17%) (CASTRO-NETO, 2016). (N. R.) ataques cardíacos, derrame, insuficiência renal e temperaturas corporais elevadas potencialmente fatais (MATSUMOTO et al., 2014). O uso combinado de cocaína com opioides, álcool e outros depressores está intimamente ligado às overdoses de cocaína, assim como o uso de cocaína está associado com oaumento das chances de overdoses de opioides (GRUND et al., 2010).

Comportamento de risco

Numerosos estudos identificaram comportamentos de risco tanto diretos (uso de substância) bem como indiretos (ex., sexuais) relacionados ao uso de estimulantes. Os riscos indiretos afetam – por exemplo – as taxas de doenças infecciosas tais como HIV, HBV, HCV e TB. Alegadamente, a predominância de doenças infecciosas é ainda maior entre as pessoas que usam crack em comparação com outras substâncias ilícitas (FISCHER et al., 2015a). O uso de metanfetamina, em particular, tem estado associado com o aumento dos comportamentos sexuais de risco, em parte pelo aumento do impulso sexual e por habilitar episódios sexuais mais prolongados (HUNTER et al., 2012). Discutiremos estes riscos e as formas de lidar com eles em mais detalhe no capítulo 4.2.

Dependência

Enquanto a vasta maioria das PQUE assim o faz ocasionalmente e sem muito risco, uma minoria desenvolve um padrão de uso pesado e frequente que produz uma dependência. Embora a dependência física de drogas estimulantes não seja comparável àquela de depressores tais como a heroína, o GHB ou o álcool, as PQUE podem e efetivamente vivenciam sintomas de abstinência. Estes incluem agitação, fadiga, aumento do apetite, sonhos desagradáveis ou intensos, distúrbios de sono, comprometimento cognitivo, sintomas (temporários) quase psicóticos, e distúrbios psicológicos. Tipicamente, estes sintomas começam algumas horas após o último uso e podem durar até vários dias (DEGENHARDT et al., 2014; FISCHER, et al., 2015a). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a abstinência de drogas estimulantes não é medicamente perigosa (WHO, 2011). Ainda assim, ao longo dos anos, tanto os pesquisadores quanto as PQUE têm procurado por substâncias que possam reforçar uma terapia de manutenção, reduzir o uso de estimulantes ou reduzir os efeitos adversos associados ao uso, semelhante ao papel da

metadona e da buprenorfina para as pessoas que usam heroína. Isto é detalhado no capítulo 4.7.

3.4.2 Danos à saúde mental

Estudos têm demonstrado elevados níveis de comorbidade psiquiátrica (ex., suicidalidade, depressão, TEPT, TDAH, distúrbios de personalidade) entre os usuários crônicos de estimulantes (GRUND et al., 2010; FISCHER et al., 2015b). O uso problemático de pó de cocaína e crack, por exemplo, tem sido associado com ansiedade, depressão, pensamentos paranoicos e aumento de agressividade (HAASEN et al., 2005). O uso de metanfetamina tem sido associado com pensamentos negativos sobre si mesmo, sintomas de depressão, sintomas psicóticos (tais como alucinações), aumento de agressividade e pensamentos paranoicos (ZWEBEN et al., 2004; MCKEITH et al., 2006). O uso crônico de anfetamina e cocaína também está associado com psicose, embora isto seja, normalmente, temporário e ocorra tipicamente após períodos de uso prolongado ou durante a abstinência (GRUND et al., 2010; MORTON, 1999). Sintomas pré-existentes semelhantes aos psicóticos podem piorar após ouso de estimulantes. Após o uso excessivo de estimulantes, somado à privação de sono resultante, algumas PQUE podem desenvolver uma condição conhecida como parasitose delirante. Um de seus sintomas, conhecido como formigamento, é a sensação de que insetos (às vezes chamados de coke bugs, amphetamitas ou ácaros de metanfetamina) estão rastejando sobre ou sob a pele da pessoa11 . Coçar, beliscar ou cortar a pele pode resultar em lesões da pele que, por sua vez, podem ficar infeccionadas (GRUND et al., 2010).

3.4.3 Danos sociais

O uso problemático de estimulantes está associado com uma gama de problemas sociais e as pessoas em condições socioeconômicas mais vulneráveis podem ser mais propensas a ter problemas relacionados ao seu uso de substâncias. Tanto o uso de estimulantes quanto a associação com os mercados ilegais de estimulantes estão ligados à marginalização social e econômica, e ao aumento das taxas de crimes, tais como os patrimoniais e a violência (FISCHER et al., 2015). Como ocorre com outras substâncias ilícitas, a criminalização dos

11 No Brasil não há referenciais qualitativos para este tipo de experiência, tal como descrito no presente relatório. (N. R.) estimulantes cria sua própria dinâmica, resultando em marginalização social e econômica. Isto dificulta o acesso aos serviços sociais, de saúde e de tratamento, diminuindo a absorção das pessoas em risco (STRATHDEE; NAVARRO, 2010). Embora seja necessário cautela ao sugerir ligações causais, as pessoas com uso problemático de estimulantes têm maior probabilidade de estarem desempregadas, terem um apoio social mais limitado e um estilo de vida caótico (GRUND et al., 2010). O uso problemático de estimulantes também está ligado a “problemas sociais e familiares, incluindo relações interpessoais deficientes, abuso ou negligência infantil, perda de trabalho, acidentes com veículos a motor, troca de sexo por dinheiro ou drogas, comportamento criminal ou violento e homicídio” (GRUND et al., 2010, p.202).

3.4.4 Ambiente de risco

Com base na influente obra de Norman Zinberg “Drug, Set and Setting” (1984), que sugeriu que os fatores ambientais desempenham um papel importante na capacidade das pessoas de manter controle sobre seu uso de drogas, Tim Rhodes introduziu o conceito de ambiente de risco para explicar a relação entre o uso de droga, os danos relacionados à droga e o contexto social (RHODES, 2002, 2009). Tanto o contexto (setting) de Zinberg quanto o ambiente de risco de Rhodes não são estáticos, mas uma complexa interação entre os indivíduos, as substâncias, e as variáveis sociais, culturais, econômicas e legais, dentre outras. Esta interação, portanto, se altera frequentemente. O uso de drogas, os danos associados, e as intervenções de redução de danos são todos situados ambientalmente, e contingentes sobre o contexto social, ou o ambiente de risco. Rhodes distingue dois níveis de ambiente de risco: micro e macro. O microambiente de risco considera as decisões pessoais, bem como a influência das normas e práticas no nível da comunidade (RHODES; SIMIC, 2005). O macroambiente olha mais para os fatores estruturais, tais como as leis, as ações militares, as condições econômicas e crenças culturais mais amplas (RHODES; SIMIC, 2005).

Tradicionalmente, a maioria das intervenções de saúde pública tem focado em mudar os comportamentos de risco individuais. No entanto, o modelo de Rhodes mostra que o uso de substâncias não ocorre em um vácuo, mas em um ambiente

social, cultural, econômico, jurídico, de medidas e políticas específicas. Manter o controle sobre o próprio uso e, desta forma, gerenciar tanto os danos individuais quanto os sociais, depende, em grande parte, de mecanismos sociais externos, incluindo rituais, controles sociais e outras regras (GRUND, 1993; ZINBERG, 1984). Não é uma característica de um tipo específico de usuário, e sim um processo dinâmico que depende de uma variedade de fatores e ambientes (FDTI, 2014). Aplicar o mesmo modelo às intervenções desloca a ênfase das PQUE individuais para o contexto social no qual as pessoas usam drogas (GRUND, 2017; RHODES, 2009). Isto implica que as intervenções de redução de danos para as PQUE sempre precisam levar em conta os ambientes de risco dos beneficiários (GRUND et al., 2010; RHODES, 2002).

Revisão da literatura

BEM VINDO

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