Revista Dasartes 109

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CLAUDIA ANDUJAR JEAN DUBUFFET SOPHIE TAEUBER-ARP FELIX GONZALEZ-TORRES OSCAR MURILLO


Almeida Junior, O importuno, 1898.


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Capa: Catrimani, 1972-76. © Claudia Andujar


CLAUDIA ANDUJAR 10

JEAN DUBUFFET

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Agenda

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De Arte a Z

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OSCAR MURILLO

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Notas do Mercado

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Livros

FELIX GONZALEZTORRES

SOPHIE TAUEBER-ARP

NOTAS DE MERCADO

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AGEnda

O Paço Imperial abrirá a exposição , com uma grande instalação inédita da artista carioca Ursula Tautz, com curadoria de Ivair Reinaldim. Resultado de cinco anos de pesquisa, a instalação aborda o tempo e a memória. Composta por nove toneladas de terra negra, em formato de pirâmide, que soterram uma cadeira com braços e alto espaldar, além de areia dourada e badalos de sinos, a instalação de dois metros de altura é envolta por três filmes, que são projetados pelo ambiente. Por meio de uma obra imersiva, integrada ao espaço e ao entorno, cada visitante terá uma experiência única na mostra, que irá se transformar ao longo do tempo, com o 6

germinar da terra que integra a instalação. "A exposição nos trará a oportunidade de presenciar não apenas um trabalho instalativo de arte contemporânea, mas a apreensão de uma experiência singular de montagem de imagens, sons e tempos, num jogo entre memórias pessoais e coletivas, realidade e ficção. Para além do visual ou do sonoro, a mostra é uma experiência para o corpo. Um convite para a vivência não virtualizada do mundo", afirma o curador Ivair Reinaldim.

URSULA TAUTZ • PAÇO IMPERIAL • RIO DE JANEIRO • 8/9 A 21/11/2021



de arte

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AZ

PELO MUNDO • éa primeira retrospectiva do MET Nova York da artista americana Alice Neel (19001984) em 20 anos. Esta ambiciosa pesquisa de carreira, posiciona Neel como uma das pintoras mais radicais do século, uma defensora da justiça social cujo compromisso de longa data com os princípios humanistas inspirou sua vida, bem como sua arte, como demonstrado nas aproximadamente 100 pinturas, desenhos e aquarelas. De 22/3 a 1/8/2021.

CURIOSIDADES • A bienal de Coachella Valley conhecida como Desert X cancelou obra de Judy Chicago. A escultura de fumaça e performance deveria acontecer em abril em mais de 4.800 metros no Living Desert Zoo and Gardens. A organização de Palm Desert, que havia aprovado o trabalho, o cancelou depois que a ativista e residente local de longa data, Ann Japenga, levantou preocupações sobre os efeitos da obra de arte sobre os animais da região.

GIRO NA CENA • Sesc 24 de Maio, em São Paulo, recebe a Printa-Feira na Rede em sua 3ª edição de 19 a 21 de março em seu canal do Youtube. A feira de arte impressa apresenta produções de 15 editoras e artistas gráficos independentes, trazendo ao público artes em quadrinhos, serigrafia, impressão de zines e outros produtos com transmissões ao vivo diretamente dos estúdios dos artistas, além de bate-papos sobre o fazer gráfico. 8


LEILÃO • No início de sua carreira, Yayoi Kusama deu a seu médico 11 obras de arte para atendimento médico gratuito. Agora, elas podem render US$ 14 milhões em leilão. As três pinturas e oito obras em papel chegarão ao leilão de Bonhams em maio. Kusama procurou o médico pela primeira vez em 1960, quando ele a consultou gratuitamente. Como forma de agradecimento, a artista presenteou-o com pinturas e desenhos. Eles serão exibidos no Bonhams Hong Kong de 7 a 22 de abril e novamente em Nova York de 30 de abril a 12 de maio de 2021.

VISTO POR AÍ

NOVO ESPAÇO • Localizado na Praça Benedito Calixto, ponto de referência intelectual, e cultural, a casa se identifica como um bastião da inclusividade, onde pessoas de todas as cores, idades, gêneros e inclinações sexuais são benvindas para aproveitar o que a vida tem de melhor, na comida, na música e na arte. Durante o dia, o primeiro andar é dedicado a exposições de arte com curadoria da Dasartes. Praça Benedito Calixto, 103, Pinheiros, São Paulo.

“ ”

• DISSE A ESPECIALISTA de mercado de arte global, Clare McAndrew, ao divulgar o relatório de mercado global de arte que revela queda de 22% nas vendas de 2020 mas com alcance de US$ 50,1 bilhões em belas-artes e antiguidades. 9


Os Yanomami costumam queimar seus yano [casa coletiva] quando migram, querem fugir de uma epidemia ou quando morre um líder importante. Catrimani, 1972-76. © Claudia Andujar

CAPA


CLAUDIA ,

andujar


REUNINDO FOTOGRAFIA E OUTROS MATERIAIS, A MOSTRA A LUTA YANOMAMI REFLETE A DUPLA NATUREZA DA ARTE E ATIVISMO DE CLAUDIA ANDUJAR E REVELA COMO A ARTISTA IMPLANTOU SUA FOTOGRAFIA COMO UMA FERRAMENTA PARA A MUDANÇA POLÍTICA

faz um levantamento da arte e do ativismo da fotógrafa brasileira desde os anos 1970 ao lado de trabalhos de artistas e cineastas Yanomami. Por mais de cinco décadas, Andujar dedicou sua vida a fotografar e defender os Yanomami, um dos maiores povos indígenas do Brasil. Em um momento em que esse território está mais ameaçado do que nunca pela mineração ilegal de ouro, desmatamento e desrespeito do governo com sua responsabilidade constitucional, e como a Covid-19 continua a varrer o globo, esta exposição também traz como foco a crise humanitária e ambiental exacerbada pela pandemia. Nascida na Suíça, em 1931, e criada na Transilvânia em uma judia e protestante família, Andujar fugiu da Europa após a Segunda Guerra Mundial, na qual sua família paterna morreu no Holocausto. Em 1955, Andujar se estabeleceu no Brasil e embarcou na carreira de fotojornalista. 12

Genocídio do Yanomami: morte do Brasil, 1989. © Claudia Andujar.

POR THYAGO NOGUEIRA



Antônio Korihana thëri, jovem sob efeito do pó alucinógeno yãkoana, Catrimani, 1972-1976. © Claudia Andujar

A fotografia permitiu que Andujar se conectasse com seu país de adoção e, com o tempo, ela construiu um portfólio que se concentrava nas comunidades vulneráveis ​e marginalizadas do país. Em 1971, a serviço de uma revista, Andujar conheceu os Yanomami, um povo ameríndio que vivia no norte da floresta amazônica. Durante aqueles primeiros anos, Andujar desenvolveu uma relação significativa com esse povo indígena e realizou uma obra altamente original que buscava expressar as complexidades da cultura Yanomami. Ao longo da década de 1970, a ditadura militar do Brasil começou a colonizar ativamente a região e explorar seus recursos naturais. A chegada de milhares de trabalhadores e garimpeiros à região levou à fratura de comunidades Yanomami e à disseminação de doenças mortais. Em 1977, Andujar foi expulsa da região pelo governo militar por denunciar publicamente a terrível situação enfrentada pelos povos indígenas. Ao retornar a São Paulo, Andujar gradualmente se envolveu mais na ação política direta e começou a usar sua fotografia para apoiar iniciativas ativistas. Com um grupo de ativistas, ela organizou campanhas, protestos e programas de saúde e também viajou pelo mundo com o xamã Yanomami e o porta-voz Davi Kopenawa para forçar o governo brasileiro a reconhecer o direito à terra dos Yanomami. 14


Susi Korihana thëri nadando, Catrimani, 1972-1974. © Claudia Andujar.

1971-1977: A ATRAÇÃO DE CATRIMANI , Claudia Andujar tirou No início de 1971, a serviço da revista brasileira as primeiras fotos dos Yanomami. A edição especial dedicada à Amazônia examinou o impacto do programa econômico do regime militar na região. Frustrada com o ritmo acelerado do jornalismo, Andujar conseguiu uma bolsa da Fundação John Simon Guggenheim, que lhe permitiu deixar a revista e embarcar em um projeto de longo prazo. No final daquele ano, ela retornou ao território Yanomami, aventurando-se ainda mais para o interior até a bacia do rio Catrimani, uma região isolada no Norte do Brasil. Entre 1971 e 1977, Andujar viajou várias vezes para Catrimani, permanecendo por longos períodos. Ao longo desses primeiros anos, Andujar começou a fotografar seu cotidiano e atividades, acompanhando os Yanomami em expedições de caça e forrageamento na floresta. À medida que se aproximava do povo Yanomami e de sua cultura, também passou a experimentar diversas técnicas fotográficas, aplicando vaselina nas lentes da câmera, adotando filme infravermelho e, posteriormente, refotografando suas próprias imagens com filtros coloridos. 15


1971-1977: NA INTIMIDADE DA FAMÍLIA Usando a missão católica na região Catrimani como sua base, Andujar visitou diferentes aldeias. Com o tempo, ela também começou a fotografar rotinas , o espaço comum que familiares no forma o coração de cada comunidade. Em 1972, Andujar contraiu malária, o que a obrigou a passar o ano seguinte em São Paulo. De volta a casa, ela deu cursos de fotografia e estudou novas formas de representar graficamente em pouca luz até que ela pudesse voltar para Catrimani. As fotos tiradas no apresentam o cotidiano dos Yanomami com maior intimidade e buscam transmitir uma representação mais complexa de seu mundo xamânico. Raios de luz iluminam o telhado de palha do . Um jovem se reclina envolto em fumaça. Um telhado feito de folhas de palmeira brilha como o céu estrelado. As cenas do dia a dia são representadas de maneiras que transcendem a realidade. Andujar se esforça para tornar visível um mundo invisível, como se a fotografia pudesse oferecer um reflexo metafísico da visão de mundo Yanomami.


Casa coletiva perto da missão católica no rio Catrimani, Roraima, 1976. © Claudia Andujar



Desabamento do céu / O fim do mundo - da série Sonhos Yanomami, 2002. © Claudia Andujar


1972-1976: EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE Nesta série de retratos em preto e branco, Claudia Andujar fotografou crianças e adultos usando a luz natural que penetra em suas casas coletivas. Ela enquadra bem suas imagens, empregando um claro-escuro dramático que cria uma sensação de intimidade e chama a atenção para a individualidade de cada pessoa. Para cada retrato, Andujar usou um rolo inteiro de filme, trabalhando lentamente para capturar com sensibilidade seus temas. Vistos como um álbum de família, esses retratos celebram a amizade entre Andujar e aqueles que ela estava fotografando e ajudaram a fortalecer os laços emocionais entre eles. Tradicionalmente, os Yanomami relutam em ser fotografados por temerem que, se um vestígio deles permanecer no mundo físico após sua morte, seu espírito não ascenderá totalmente ao céu. Apesar de suas crenças, os Yanomami concordaram com a preservação e exibição da obra de Andujar, pois isso ajuda a conscientizar sua cultura e a ajudar na campanha contra a destruição de seu povo e terras. 1978-HOJE Outra parte da exposição explora como Claudia Andujar deixou de lado seu projeto fotográfico pessoal em favor de uma ação política coletiva e urgente. Em 1971, o governo brasileiro lançou um programa com o objetivo de explorar o que chamou de “continente verde 20

Perto do rio Catrimani, 1974. Foto © Claudia Andujar


Jovem numa tradicional rede de algodão, planta que as mulheres aprendem a cultivar e fiar, Catrimani, 1974. Foto © Claudia Andujar

vazio”, abrindo-o para a extração de madeira, pecuária, mineração e outras indústrias. Em 1973, milhares migraram para a região de Catrimani para trabalhar na construção da Perimetral Norte, uma rodovia que cruzaria o continente de leste a oeste. Essa migração em massa e o desenvolvimento desenfreado trouxeram doenças, conflitos e desorganização social para os Yanomami, resultando em milhares de mortes e degradação ambiental. A situação se agravou na década de 1980, quando suas terras foram invadidas por mais de 40 mil garimpeiros. Mais de 15% da população morreu de malária e outras doenças infecciosas. A expulsão de Claudia Andujar do território Yanomami, em 1977, marcou uma virada. Forçada a ficar em São Paulo, ela se juntou a um crescente movimento em defesa dos direitos dos povos indígenas. Em 1978, com o missionário Carlo Zacquini e o antropólogo Bruce Albert, entre outros, ela cofundou a Comissão para a Criação do Parque Yanomami (CCPY), ONG que teria um papel central na luta pelos direitos territoriais e culturais dos Yanomami. Por mais de 14 anos, a CCPY e o porta-voz Yanomami Davi Kopenawa encabeçaram uma luta incessante pela demarcação do território Yanomami, que foi finalmente concedida em 1992. Hoje, a retomada da invasão de garimpeiros, aliada ao desrespeito do governo brasileiro aos direitos indígenas e à presença da Covid-19 representam novas ameaças ao povo Yanomami.

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1980-1987: VACINAÇÃO E SAÚDE Em 1980, a CCPY lançou um programa de vacinação urgente como parte de um projeto maior de saúde para inocular os Yanomami contra doenças infecciosas fatais como tuberculose, sarampo, tosse forte e gripe. Com o apoio de organizações nacionais e internacionais, Andujar e dois médicos percorreram as terras Yanomami imunizando pessoas e relatando a desastrosa situação de saúde. Tradicionalmente, os Yanomami não têm nomes fixos, mas múltiplos nomes que mudam ao longo de suas vidas. Mais recentemente, muitos também adotaram nomes portugueses. Para facilitar a identificação, os médicos desenvolveram um sistema em que cada indivíduo era fotografado com uma etiqueta no pescoço indicando o número do prontuário. Em 2009, para trazer uma atenção renovada ao povo Yanomami, Andujar revisitou esses retratos . para criar uma série chamada

Série Marcados. Foto © Claudia Andujar

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1989/2018: GENOCÍDIO DOS YANOMAMI: MORTE DO BRASIL Em 1989, o governo brasileiro tentou dividir o território Yanomami em 19 microreservas separadas. A iniciativa foi imposta com total desrespeito ao modo de vida Yanomami, que tem como base o caçador-coletor e o horticulturalismo. O objetivo era despojá-los de suas terras para estimular a colonização agrícola e a extração mineira. Líderes indígenas e ONGs se opuseram fortemente à política violenta do governo. Para protestar contra essa proposta, a CCPY organizou a exposição em São Paulo. Para esta instalação audiovisual, Andujar fotografou novamente 300 imagens de seu arquivo com um filtro dourado e as projetou em várias telas. A instalação apresenta um mundo progressivamente devastado pela violência da colonização ocidental. Em 1992, após a campanha liderada por Claudia Andujar, Davi Kopenawa, Carlo Zacquini e Bruce Albert, entre outros, e apoiada globalmente pela Survival International, o governo brasileiro concordou em demarcar legalmente o território Yanomami como um pedaço de terra contínuo. Reconhecido às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), esse território ainda está ameaçado pela inação do governo brasileiro em relação aos estimados 20 mil garimpeiros ilegais que atuam no território e sua tolerância ao desmatamento. Trabalhando a serviço dos Yanomami, o extenso arquivo de Claudia Andujar continua a lhes dar voz no cenário internacional, mobilizando opiniões contra as violações de seus direitos territoriais e culturais. 24


Genocídio do Yanomami: morte do Brasil, 1989. © Claudia Andujar.

Thyago Nogueira é curador chefe de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles - IMS.

CLAUDIA ANDUJAR: THE YANOMAMI STRUGGLE • BARBICAN • LONDRES • 17/6 A 29/8/2021 25


Jovem mulher em uma rede, casa coletiva da família Korihana thëri, Catrimani, Roraima, 1972–76. © Claudia Andujar.


Davi Kopenawa (Porta-voz e xamã Yanomami)


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JEAN

Paris Plaisir II, 1962. Fotos: © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London.

DESTAQUE


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dubuffet


POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA

Jean Dubuffet.

On Fire at 80. © Judy Chicago

Já perceberam que alguns trabalhos de Pollock, Keith Haring e Basquiat parecem guardar afinidades? Sim! Essa sensação é real, especialmente quando se descobre que esses pintores se inspiraram no “fazer arte” de Jean Philippe Arthur Dubuffet (Le Havre, 1901 – Paris, 1985). Conhecido como teórico da arte bruta, termo criado em 1945 para designar a arte produzida por autodidatas livres de estilos oficiais, Dubuffet pertenceu à primeira geração de artistas europeus do pós-II Guerra Mundial que presenciaram a destruição da velha ordem, assegurada por movimentos, ideologias, conteúdos e formas – algo chamado como o “crepúsculo do absoluto”. Esses criadores prezaram a autonomia da obra de arte e se jogaram em uma profunda reflexão sobre o lugar da arte na sociedade contemporânea. Acima de tudo, esses artistas mostraram sua revolta contra as convenções que regiam a arte e a cultura por meio de argumentação complexa e racional. Jean Dubuffet rompeu com a “tradição da pintura francesa” e os movimentos artísticos, quando afirmou que, no ato de criação, o acaso é altamente relevante e a experiência é suprema. Então, o “normal é psicótico”. As travas da lucidez impedem a imaginação e a criatividade. Sob esse raciocínio, Dubuffet buscou

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L’Extravagante, 1954. © ADAGP, Paris and DACS, London 2020. Foto: Joseph Coscia Jr, courtesy Pace Gallery.

BRUTAL BEAUTY É A PRIMEIRA GRANDE EXPOSIÇÃO DO TRABALHO DO ARTISTA FRANCÊS JEAN DUBUFFET NO REINO UNIDO EM MAIS DE 50 ANOS. UMA DAS VOZES MAIS PROVOCATIVAS DA ARTE MODERNA DO PÓS-GUERRA, DUBUFFET REBELOU-SE CONTRA AS IDEIAS CONVENCIONAIS DE BELEZA, NA ESPERANÇA DE CAPTURAR A POESIA DA VIDA COTIDIANA DE UMA FORMA MAIS AUTÊNTICA E CORAJOSA



Acima: Jardin aux Mélitées, 1955. Foto: Courtesy Amy Gold and Brett Gorvy. À esquerda: La Main dans le sac, 1961. © Peter Cox, Eindhoven, The Netherlands. Fotos: © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London.

linguagens e contextos novos, assim como materiais inéditos. Sua produção, organizada a partir dos anos de 1940, é a matéria-prima da mostra , exibida na Barbican Art Gallery, com curadoria de Eleanor Naime, no período de 17 de maio a 22 de agosto de 2021. Segundo seus realizadores, a exposição é a primeira grande pesquisa do trabalho do artista no Reino Unido desde 1966. E confidencio aqui: é bem completa mesmo! São oito cessões que narram a trajetória do artista: , com ênfase no grafite e nas litografias inspiradas em Brassaï; assinalando retratos de Jean Paulhan, em 1945; , que expõe seu interesse por obras feitas por doentes mentais; trabalhos que marcam o feminino em sua trajetória; , que reúne obras abstratas que refletem estados emocionais; , com obras sustentadas pela pesquisa botânica como fonte da vida primitiva; , com esculturas feitas a partir de materiais usados e, por fim, , que exibe, mais uma vez, o interesse pela abstração e pela representação de texturas e nuances da terra. São 150 obras que contam sobre as proposições desse artista. Adjacente à sua produção, a mostra apresenta obras da coleção Art Brut de Dubuffet. Adquiridos ao longo de sua vida, esses trabalhos transformaram a abordagem e o significado da arte atual. 32


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A esquerda: Portrait d’homme, 1957. © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London, Foto: Amy Gold and Brett. Acima: Restaurant Rougeot I, 1961. © 2021 ADAGP, Paris/DACS, London.

O tom dado à exposição está entre o riso, o escárnio e o temor, partindo da frase de Dubuffet: a curadora aposta na disposição das obras, nas cores das paredes, nas fotografias do artista em seu ateliê, nas diversas frases que habitam o espaço da mostra e outros recursos cenográficos, tais como cartazes e diversos documentos. Em entrevista, a curadora aprofunda essa noção. Ela nos conta que, em uma carta de setembro de 1940, Dubuffet também falou de uma clareza recém-descoberta: “as pessoas estão desnorteadas e cansadas; eu não, pelo contrário, estou extremamente interessado. Acho nossa circunstância fascinante. Hilariante”. A sofisticação e o senso de escárnio do artista frente ao mundo destroçado pela guerra orientam uma das exposições mais concorridas nessa temporada europeia. apresenta o início do artistaque dividiu sua vida entre a arte e o comércio de vinho da família. Aos 16 anos, quando estudou na Academia Julien, em Paris, focou atenções à literatura antiga e moderna e à etnologia. Durante alguns anos, a partir de 1923, deixou de pintar, mas retornou definitivamente em 1942. Dois anos depois, realizou sua primeira exposição individual em Paris. Nesse período, o estilo de suas obras foi influenciado pela arte 35




Dhôtel, 1947. Págs. Anteriores: Coursegoules, 1956. Paris © 2021 ADAGP, Paris/DACS

abstrata de Paul Klee, pela produção dos povos primitivos, pela arte africana, pelos desenhos feitos por crianças e doentes mentais. Nesse início, ele usou a mídia para sua projeção pessoal, tornando-se precursor de outras figuras carimbadas da arte contemporânea, tais como, Warhol, Beuys e Trace Emin. Na exposição, imagens de seu crânio calvo e sorriso enigmático surgem a cada espaço, junto com citações: “Qualquer coisa pode ser um objeto de beleza”, “Existem milhões de possibilidades de expressão fora das vias culturais aceitas” e “Corro para coisas estranhas. Estou bastante convencido de que a verdade é estranha”. Todas as ideias de Dubuffet podem até nos parecem banais hoje, mas, nos anos de 1940, não eram, não! Os retratos, iniciados a partir de 1945, quando o pintor fez uma série deles, tendo como modelo seu amigo Jean Paulhan e, posteriormente, Florence Gould, uma 36


Telephone Torment (Le Supplice du téléphone) 1944. © ADAGP, Paris and DACS, London.

rica colecionadora americana, que encomendou retratos de alguns de seus amigos e conhecidos, são considerados grosseiros, mas capturam a essência dos retratados – beiram a fronteira da caricatura. Neles, a beleza não se resume ao objeto, mas estão na sua essência. Para Dubuffet, a arte não deve ser esteticamente agradável e seu desenho enfatiza um processo de criação lento e difícil, rejeitando a facilidade e a impulsividade dos pintores abstratos. Nessa primeira fase, Dubuffet é influenciado por obras espontâneas de artistas autodidatas, em alguns casos, doentes mentais. Em litografias, o artista também explorou a energia espontânea da arte infantil com a rudeza dos rabiscos presentes em paredes de banheiro – talvez tenhamos aqui a influência desse artista na atitude posterior de David Hockney e Jean-Michel Basquiat. 37


Lili Ou Tony, 1975.


“ ”

Corps de dame, la rose incarnate, 1950. © 2021. ADAGP, Paris/DACS

Avesso aos cânones da arte, Dubuffet atacou a tradição do nu feminino, em meados dos anos de 1950. Nesse período, ele produziu obras polêmicas: seus corpos femininos parecem colapsados; de textura frágil e prestes à dissolução. As cores com predominância do rosa esmaecido, roxos e vermelhos sugerem fluidos escorridos por uma paisagem formada por carne, cabeças, braços, seios e nádegas. Além da insubmissão ao tema – deixemos claro que as “damas violentas” de Dubuffet não se traduzem em misoginia –, o artista era contrário à ideia de beleza que acompanha à tradição histórica do nu feminino. Ele não era contra as mulheres. O artista também inovou nos materiais empregados nesses trabalhos: a experimentação com óxido de zinco e verniz se tornou combinação incomum com tinta a óleo. O mergulho no mundo pós-guerra, o emprego da caricatura, os materiais inusitados e a quebra das ideias convencionais de beleza são marcas indeléveis da primeira fase do artista. Em uma segunda fase e ainda sobre as premissas da arte bruta, tida no seu sentido, como “crua” e “pura”, Dubuffet inseriu a vida na arte, como a série de desenhos à caneta esferográfica, realizados de modo quase automático, mostrando traços impessoais e o emprego de cores restritas. Dos rabiscos impensados em cadernos de anotações ao telefone, surgiu uma guinada no seu “fazer artístico”. Ele criou espaços com linhas nítidas e palheta com três realizada a partir cores – azul, vermelho e preto. A série de 1962, caracterizou-se por uma linguagem gráfica modular, simultaneamente, simples, tensa e anárquica. Nesses trabalhos, parece haver um mundo paralelo construído a partir de compartimentos modulares e habitados por figuras que se reproduzem nas contradições. 41


Essa linguagem multifacetada e intricada nos faz aproximar os grafites de Keith Haring aos trabalhos de Dubuffet. Em conversa, registrada no site de sua fundação, Haring admitiu: “fiquei surpreso ao ver como as imagens de Dubuffet eram semelhantes às minhas, porque estava fazendo essas pequenas formas abstratas que estavam interligadas. Então, examinei o resto de seu trabalho”. Respingos e colagens de pinturas que o artista acumulou no chão do ateliê integraram o acaso de sua criação e estão nessa segunda fase do artista – o que o coloca em certa relação com Pollock. Geográfica e metodologicamente, eles são distintos, mas são frequentemente relacionados no pensamento britânico – lembremos que é a mostra fruto de pesquisa no Reino Unido. Retornando a Dubuffet, a série é a mais conhecida do artista francês – produção de sua maturidade – e se tornou capital à sua preocupação destinada à escultura, ao teatro e à arquitetura, sendo o início da sua busca por uma arte “habitável”. Seus rascunhos rementem às peças de quebra-cabeças, isso porque as formas orgânicas parecem se encaixar em ação sucessiva. Gradativamente, seus projetos ganharam as grandes dimensões e envolveram o passeio físico do espectador entre suas obras – uma “pintura arquitetônica” com grafismo caótico, novas referências visuais e reflexos corporais. Nessa categoria, o espetáculo (Nova York e Paris, 1973, e Turim, 1978), é exemplar do encontro entre pintura, escultura, teatro, dança e música. Na fase final de sua vida, Dubuffet criou que sintetizam seu pensamento e técnicas passados, como um “teatro da memória”, memórias de paisagens que desaparecem em sua mente. 42


Site habite d'objets, 1964. Serie Hourloupe. © 2021. ADAGP, Paris/DACS, London Stedelijk Museum Amsterdam.



Le Dandy, 1973. © ADAGP, Paris and DACS

Assim, dos retratos iniciais, passando pelos jatos de tintas, rabiscos hesitantes, esculturas fantásticas, telas gigantes e espaços “habitáveis”, a exposição nos propicia uma revisão aprofundada da arte do pós-guerra, com suas contradições, rupturas, adoção de novos rumos e materiais, assim como esmiúça a obra desse artista que sempre esteve envolvido com temas e objetos do mundo físico – um artista que pavimentou o caminho para ícones contemporâneos, mas, sobretudo, que ousou questionar uma das premissas mais caras à arte: a beleza. Ele nos ensinou que a beleza pode ser àspera, rústica e bizarra.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECAUSP (2008) e pós-doutorado pela Unesp (2018). Atualmente, é especialista em cooperação e extensão universitária do MAC-USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: crítica e criação (EdUSP, 2011).

JEAN DUBUFFET: BEATY BRUTAL • BARBICAN • LONDRES • 17/5 A 22/8/2021 45


PELO mundo

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OSCAR murillo



OSCAR MURILLO É CONHECIDO POR SUA PRÁTICA ARTÍSTICA DINÂMICA E MULTIDISCIPLINAR. TODOS OS SEUS TRABALHOS PODEM SER VISTOS COMO UMA INVESTIGAÇÃO SUSTENTADA E EM EVOLUÇÃO DAS NOÇÕES DE COMUNIDADE, INFORMADA POR LAÇOS PESSOAIS TRANSCULTURAIS, BEM COMO PELO CONSTANTE MOVIMENTO TRANSNACIONAL QUE SE TORNOU PARTE INTEGRANTE DE SUA PRÁTICA

Oscar Murillo, artista multifacetado que realiza pinturas, desenhos, esculturas, performances, vídeos, instalações e projetos colaborativos, está em exibição no Mori Art Museum (MAM), situado no topo da Torre Mori, em Tóquio. Intitulada “MAM Project 029: Oscar Murillo”, a exposição ocorre desde abril e vai até setembro deste ano. Para além de apresentar uma série de pinturas do artista, a exibição se concentra primariamente na obra , um projeto coletivo global que Murillo realiza em conjunto com a cientista política Clara Dublanc desde 2013. Através do que está exposto no museu de Mori, vislumbramos um complexo baile de contrastes e dinamismos socioculturais que formam a base da arte de Murillo e denotam uma de suas perguntas vitais: qual cor, qual forma, qual sentido teria o brilho da alteridade? Nascido na Colômbia, em 1986, e vivendo desde os 10 anos de idade na Inglaterra, é raro o acesso que Murillo tem ao drama das desigualdades nos processos de globalização do mundo. Por meio de sua dupla cidadania, é na própria pele que Murillo vive a crise de alteridade que funda a cultura ocidental, via colonização, como aponta Achille Mbembe. Duas vezes cidadão, Murillo 48

Violent Amnesia, 2014-2018. Foto: Matthew Hollow / © Oscar Murillo.

POR NICHOLAS ANDUEZA



Frequencies, Escuela Menorah Bogota Colombia, 2013. © Oscar Murillo.


carrega um duplo afeto pela arte: um de atração pelas experiências estéticas festejadas ao longo da história, outro de repulsa pelo fato dessa suposta “História” (com maiúscula) na verdade tratar de uma história específica (com minúscula), que é a do ocidente eurocêntrico – que ofusca tantas outras histórias por se pretender maiúscula. Essa contradição de afetos, força e contraforça, parece ser parte importante do que move o artista. Assim, com obras tão diversas, Murillo cruza como poucos o social e o estético – evidenciando a não separação entre esses termos, como argumenta Jacques Rancière. , obra foco da exposição do Em MAM, Murillo disponibiliza telas em branco por várias escolas ao redor do mundo para que estudantes que tenham entre 10 e 16 anos de idade pintem, escrevam ou desenhem o que quiserem, como quiserem. Essas telas são fixadas em mesas e carteiras usadas pelos alunos, ficando disponíveis por seis meses, para dar tempo à manifestação orgânica dos rabiscos, desenhos, letras e frases. No caso da exposição do MAM, as superfícies ficaram disponíveis para estudantes de quatro escolas de Tóquio desde setembro de 2020. A ideia, em princípio, é simples: criar um dispositivo capaz de registrar e preservar uma das práticas mais tradicionais e mais reprimidas nas escolas – a intervenção gráfica espontânea dos alunos no equipamento escolar. Mas, apesar da inicial simplicidade, os trabalhos resultantes desse dispositivo trazem perturbações interessantes. 51


Frequencies. © Oscar Murillo.

A primeira delas, talvez mais imediata, reside no efeito de tomar os “rabiscos” dos alunos como objetos de arte. Se antes, nas escolas, os mesmíssimos grafismos eram relegados à proibição e ao esquecimento, eles agora são exibidos e legitimados pelo espaço do museu, através da mediação de Murillo e Dublanc. Trata-se de um efeito amplamente debatido na arte desde pelo de Marcel Duchamp menos os (1917), que denotaram a arte como contexto – como gosta de frisar Fernando Cocchiarale. Ao mesmo tempo, essa recontextualização não é uma operação unilateral, pois se, para toda ação há uma reação, a inclusão dos “rabiscos” (ou ) no museu esgarça esse mesmo espaço, multiplica-o, inventa outros museus possíveis. No “novo” MAM, criado pelos grafismos daqueles alunos de Tóquio, começamos a dedicar nosso olhar àquilo que antes passaria como obviedade, sujeira, mera rebelião inconsequente. E um olhar dedicado, lembra-nos Roland Barthes, é o que confere existência ao que vemos. Por meio desse modo desejoso de ver, não paramos de ler possibilidades, conectar os pontos: nascem legiões de perturbações possíveis. Uma destas, que aliás acompanha a primeira (de recontextualização no museu), trata da autoria das obras: seriam os alunos ou Murillo os autores? Eis outra questão também amplamente tensionada na história das artes – Barbara Kruger, Yves Klein, Sherrie Levine, o próprio Duchamp, para citar apenas alguns. Encenada tantas vezes 52


“ ”

À esquerda: Couple I, 1996. Abaixo: He Disappeared into Complete Silence. Plate 7, 1947.

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Día mundial de las aves migratorias, 2017-2018. Foto: Stanley Cheng. Courtesy of K11 MUSEA.

e por tantos, a questão ganha temperos e consequências diferentes de acordo com o artista – e o contexto. Em Murillo, o tensionamento autoral vem em detrimento não necessariamente do conceito de autoria enquanto tal, mas da ideia de uma autoria individual. Há uma tônica no caráter coletivo desses trabalhos, desde a constituição dos grafismos (vários jovens intervêm na mesma tela) até sua acessibilização (por meio de Murillo e Dublanc, no espaço do museu). perturba o mito do gênio artístico, fundador daquilo que entendemos hoje como arte, e ergue em seu lugar uma noção de comunidade artística. Mas mantemos o olhar atento e notamos que essa autoria coletiva, nesse caso, não apaga as singularidades dos envolvidos. Os jovens que ali desenharam sabiam que seriam exibidos, deixaram propositalmente uma marca pessoal em meio a tantas outras – uma “frequência” entre muitas. A individualidade de cada rabisco conta: são sobrevivências, rastros das vidas dos outros, diferentes de mim e de você, diferentes de Murillo. No outro lado dessa moeda, é difícil não ler uma identificação bastante pessoal de Oscar Murillo com o gesto dos alunos que desenham nas 54


Manifestation, 2019. Foto: Jack Hems. © Oscar Murillo. Courtesy of the artist and David Zwirner.

carteiras, transgredindo o equipamento escolar. Não seria o próprio Murillo, em sua prática artística, um rabiscador de mesas? Um transgressor das mais diversas escolas de arte? As telas de Murillo, por exemplo, são fortemente riscadas, costuradas, às vezes dependuradas como em uma espécie de varal de carnes em um açougue. Elas não carregariam em si essa forma de violência pichada? O próprio Murillo descreve a série , composta por intensas pinturas abstratas, como “descarregamento físico de energia”. Podemos pressentir algo de Jean-Michel Basquiat em algumas paletas de cores de Murillo e em certas incorporações da , ou pressentir algo do expressionismo abstrato no traçado enérgico, no trabalho pulsional das tonalidades. Mas também pressentimos um vibrante desrespeito de Murillo por estas e outras referências, um misto de amor e ódio pela história da arte que o faz continuar transgredindo – e rabiscando. Lembremos que estamos falando de um homem que, em março de 2016, poucas horas antes de chegar a Sydney para participar de uma bienal, destruiu seu 55


A Crucificação de Cristo, 1890.

Instalação Bienal de Arte de Cartagena. © Oscar Murillo. À direita: Violent Amnesia no Kettle's Yard. Foto: Matthew Hollow / Kettle's Yard.

passaporte inglês e outros documentos, retendo somente o passaporte colombiano. Desse gesto, radicalmente crítico aos privilégios da cidadania europeia no trânsito internacional, resultou sua imediata deportação, já que as autoridades australianas não deixaram passar um colombiano negro que, além de falar inglês com sotaque latino, não tinha meios de comprovar os motivos da viagem. Não seria essa ação, tão contrária à dócil participação em uma bienal, uma espécie de rabisco na mesa do mercado de arte? No entanto, é claro que, avisa-nos Giorgio Agamben, o mercado é hipermoldável, tendendo a capturar e monetizar o que antes parecia incompatível consigo. O mesmo Murillo que rasgou sua documentação em 2016 é aquele recebeu o Prêmio Turner em 2019. Mas esse artista está muito longe da pose, da hipocrisia. Murillo entende perfeitamente as contradições que estão em jogo e joga, ele mesmo, com elas. Ao comentar o Prêmio Turner, por exemplo, diz ser sem dúvida uma grande 56


honra, mas que, ao mesmo tempo, conquistá-lo é uma oportunidade para desfazê-lo – força e contraforça. Eis uma dubiedade que também vale para : ao se inventar um lugar “legitimado” pelo para rabiscar (a tela oferecida às escolas), não se poderia estar livrando o equipamento escolar do risco dos grafismos espontâneos? Não seria interessante se, em algum momento (hipotético), os alunos participantes decidissem pintar tudo na escola, menos a tela ofertada por Murillo? Algo me diz que o artista aplaudiria. Em uma última perturbação frente a , notamos uma inflexão relevante em relação ao procedimento da colagem, tão precioso para as artes modernas e contemporâneas. Se a colagem, em seu jogo de alteridades, tende a gerar seu efeito pela promoção de um choque via recontextualização, então ela também tem a ver com a artificialidade autoral de tomar elementos distintos e juntá-los deliberadamente – o urinol e o museu em Duchamp, as publicidades e as críticas 57

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Instalação Mori Art Museum Tóquio. © Oscar Murillo. Foto: Simon Klein

ao patriarcado em Kruger. Na colagem de rabiscos, letras, desenhos e pinturas que formam , o gesto não é tão deliberado, porque envolve muitas “autorias” e acontece ao longo do tempo. Por isso, aliás, na apresentação do projeto, fala-se mais em “sedimentação” que propriamente em “colagem”. Tendo sido realizado, desde 2013, em mais de 300 escolas, localizadas em mais de 30 países diferentes (incluindo o Brasil), as constelações visuais de se aproximam mais de miniaturas temporais das pinturas rupestres, que também eram feitas umas sobre as outras, por diferentes “autores” e ao longo do tempo. Assim, em , as diversidades se manifestam quase por conta própria – e por isso brilham. E não seria em busca desse brilho da alteridade que caminha, de um jeito ou de outro, todo o trabalho de Oscar Murillo? Múltiplos, vivos e internacionais, os “rabiscos” de Murillo e de respiram a possibilidade de outro modo de globalizar. 58


Nicholas Andueza é doutorando em Comunicação e Cultura/UFRJ, com especialização em cinema, corpo e imagem de arquivo. Mestre em Comunicação Social/PUC Rio (2016).

OSCAR MURILLO • MORI ART MUSEUM • TÓQUIO • 22/4 A 26/9/2021 59


Untitled, (Placebo – Landscape for Roni), 1993 © Felix Gonzalez-Torres

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FELIX gonzalez torres

ALTO relevo



POR TANYA BARSON

A arte de Gonzalez-Torres pode ser lida como uma crítica ao conservadorismo social, atitudes homofóbicas e também como um alerta sobre a ascensão do conservadorismo de direita. Suas obras desafiam o espectador por meio da aplicação de códigos e estratégias clandestinas, como por meio do uso sutil da linguagem em seus títulos, que em alguns casos se torna uma espécie de senha, ou por meio da recorrência de objetos empilhados, que, como um símbolo de igualdade e de "amantes perfeitos", podem simultaneamente aludir ao amor homossexual e fugir da censura. Doces, pilhas de papel, relógios, espelhos, cortinas e outdoors são alguns dos materiais que Felix Gonzalez-Torres costuma usar em suas poderosas obras e poéticas que desafiam os espectadores, encorajando-os a construir sua própria narrativa. A exposição reúne quarenta de suas obras no MACBA e explora uma nova interpretação da obra de Gonzalez-Torres, destacando uma leitura política com ênfase na sua relação com a localização desta exposição em Barcelona. Este novo projeto curatorial coloca a obra de Gonzalez-Torres em relação ao discurso póscolonial com suas muitas questões pessoais, enquanto também sublinha a influência decisiva de seu trabalho na estética queer. 62

Untitled (Perfect Lovers), 1987–90. © Felix Gonzalez-Torres. Fotos: Courtesy of the Felix Gonzalez-Torres Foundation.

PARA FELIX GONZALEZ-TORRES, O PESSOAL É POLÍTICO, E EM SUAS OBRAS ELE EXPLORA O DIÁLOGO ENTRE O PRIVADO OU INVISÍVEL E O PÚBLICO. SEU TRABALHO ENFATIZA SUA RELAÇÃO COM A ESPANHA, O CONTINENTE AMERICANO E CARIBENHO, COM FOCO EM QUESTÕES COMO MEMÓRIA, AUTORIDADE, LIBERDADE, IDENTIDADE NACIONAL E CULTURA QUEER



UMA LEITURA POLÍTICA DE SUA OBRA A primeira sala da mostra aborda a ampla política na prática de Gonzalez-Torres no que se refere às ideias de autoridade de julgamento e memória/amnésia. As obras estão ligadas por meio de referências oblíquas a autoridade ou cultura estabelecida, ao fascismo e conservadorismo social, bem como à repressão a comunidade homossexual e atitudes homofóbicas que poderiam se referir aos EUA durante a crise da AIDS nos anos 1980 e 1990, mas que também pode ser conectado à Espanha e uma repressão equivalente durante a ditadura do Regime de Franco. Existe uma ligação visual e ideológica imediata através das cores vermelho, preto e branco. Esta seleção deixa claro que o projeto de GonzalezTorres era profundamente antifascista. Enquanto as peças poderiam fazer referência a uma era particular da política dos Estados Unidos, no cerne da obra de Gonzalez-Torres estava sua intenção de ser atemporal e maleável com o contexto e, portanto, elas se aplicam igualmente às recentes histórias evocando os anos de polarização política americana. No entanto, em Barcelona elas podem sugerir uma interpretação diferente: a da história da República Espanhola, o apoio de Barcelona a este governo legítimo durante a Guerra Civil Espanhola e as repercussões durante os anos subsequentes de ditadura, a amnésia da Espanha sobre a irresolução de seu próprio passado fascista e ressonâncias contemporâneas na ameaça da extrema direita e do ressurgimento do populismo. O próprio tempo, conforme referenciado por algumas das obras, também pode ser visto como político aqui, até porque, desde Franco, os relógios da Espanha estão alinhados com os da Alemanha em vez de seu fuso horário geograficamente padronizado.

Untitled, (Blue Mirror), 1990. À direita: Untitled (March 5th) #2, 1991. © Felix Gonzalez-Torres.

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A NOÇÃO DE CASAL Os trabalhos da segunda sala apresentam ideias de acoplamento, toque, duplicação, igualdade e equilíbrio. Eles demonstram a importância de GonzalezTorres em fornecer uma linguagem sutil e muitas vezes intencionalmente enigmática da cultura queer, combinando simultaneamente com imagens da ideia mais ampla de igualdade. Eles também mostram como ele reformulou o vocabulário do minimalismo e da arte conceitual como veículos de conteúdo afetivo, uma de suas contribuições mais importantes para novas formas artísticas. Este, no entanto, é também um de seus mais políticos gestos, visto que reconheceu que esta abordagem lhe permitiria falar sobre homossexualidade, especificamente para abordar o desejo homossexual, amor e vulnerabilidade, enquanto ilude a extremadireita e conservadores e seus esforços para censurar tal conteúdo. Ao mesmo tempo, o caráter aberto da sua linguagem torna seu trabalho acessível a todos os espectadores; abrange a especificidade da identidade individual ao mesmo tempo que oferece uma imagem de equivalência, comunidade e bens comuns. A cor azul muitas vezes representa amor ou beleza em seu trabalho, bem como medo, e a imagem dos anéis pode ser lida como alianças de casamento, referenciando o uso do círculo e da figura 8 ou ∞ (infinito) como símbolos da eternidade ou amor duradouro. Este tema, junto com o de dois objetos circulares idênticos (como espelhos, relógios, anéis de metal ou lâmpadas) e o uso de simetria, ocorre frequentemente na obra de Gonzalez-Torres como um símbolo de 'amantes perfeitos'. Muitas das obras de Gonzalez-Torres fazem referência à crise da AIDS, à fragilidade do corpo físico e à presença eterna de nosso efeito no mundo, engajando-se em uma nova reformulação da estética de Minimalismo - por exemplo, transformando uma grade minimalista em uma reflexão sobre saúde, vida e morte, ou representando a presença e ausência física ou material. 65


Untitled, (Orpheus, Twice), 1991. © Felix Gonzalez-Torres.



Untitled, 1990. Morte por arma de fogo. Listados em cada folha estão os nomes de 460 indivíduos mortos por arma de fogo nos Estados Unidos durante a semana de 1 a 7 de maio de 1989. © Felix Gonzalez-Torres.



O EXISTENCIAL Organizada em torno de algumas das peças de maior orientação existencial de GonzalezTorres, que, no entanto, têm um conteúdo político subjacente e uma ressonância contemporânea poderosa, as obras na terceira sala se envolvem com temas de viagem, emigração, exílio, turismo e fuga/liberdade. São imagens de primeiro plano da água, do céu e praias, que funcionam como metáforas poéticas expansivas na obra de Gonzalez-Torres. Na Espanha, historicamente, durante a era da ditadura, viagens e turismo foram cooptados como parte da política narrativa e a identidade construída do Estado. Hoje se tornaram um grande segmento da economia, com impacto na própria existência de algumas comunidades e na qualidade de vida em cidades como Barcelona. Vários dos trabalhos manifestam ativamente a ideia de dispersão, com referência a pessoas, mas também na dispersão dos componentes físicos da obra e, portanto, em seu aspecto 'viral'. Além disso, no trabalho de Gonzalez-Torres, o tema das viagens, resume o que a curadora Nancy Spector chamou de 'nomadismo da mente'. Aqui, as obras estão ligadas por meio de sua gama tonal de branco, azul e cinza, e sua relativa falta de conteúdo baseado em imagem ou foco em um padrão geral, dando ao visitante espaço para refletir. Embora mantendo uma ambiguidade poética contemplativa, as obras, no entanto, incorporam o confronto com a mortalidade e uma reflexão sobre a própria existência. 70


Untitled (For White Columns), 1990. Acima: Untitled (Wawannaisa), 1991. © Felix Gonzalez-Torres.

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Untitled (Go-go dancing platform), 1991. © Felix Gonzalez-Torres.


PATRIOTISMO E MILITARISMO Esta seleção de trabalhos examina as ideias de patriotismo, militarismo, machismo e desejo homoerótico, e como a nacionalidade de um povo também está enraizada em seus monumentos. A habilidade para muitos dos trabalhos de Gonzalez-Torres para não ter uma forma singular se manifesta em como ele contestou a ideia fixa de história. Aqui, certas obras sugerem ideias de atração (erótica) por homens uniformizados, especificamente dentro do contexto militar. Em sua Cuba natal e na Espanha, bem como em toda a América Latina, tais obras também evocam a ditadura e uma série de emoções complexas e profundamente contraditórias: do medo inspirado pelo autoritarismo e perseguição à presença, às vezes simultânea de admiração por um líder forte e poderoso, especialmente entre a direita política. As obras, e sua justaposição, joga com o erotismo, enquanto enfatiza como o patriotismo e o militarismo podem ser manipulados para desviar a atenção de problemas sociais mais agudos, como a crise da AIDS. Essas obras prescientes também evocam o contexto de protestos recentes e apelos para a remoção dos monumentos coloniais, patriarcais e hegemônicos, como durante o movimento . Essas peças reforçam a atual relevância das obras de GonzalezTorres em nosso tempo.


Untitled (Para un hombre en uniforme), 1991. © Felix Gonzalez-Torres.

Felix Gonzalez-Torres nasceu em Guáimaro, Cuba, em 1957. Ainda criança em 1971, ele e sua irmã Gloria foram enviados de Cuba para Madrid. Pouco tempo depois, os dois viajaram para se juntar a um tio em Puerto Rico. Lá GonzalezTorres começou a estudar arte, continuando depois seus estudos em Nova York na Pratt Instituto em Brooklyn. Em 1987, juntou-se ao Group Material, um coletivo de artistas preocupado com questões sociais e aderindo aos princípios de ativismo durante a emergência do HIV, um período que também influenciou seu trabalho. Em 1990, ele realizou sua primeira exposição na Galeria Andrea Rosen em Nova York. Junto com David Zwirner, a Andrea Rosen Gallery continua a representar o artista até hoje.

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Em 1991, ele participou da Bienal do Whitney Museum em Nova York, tanto como artista individual quanto como participante de Group Material. Em 1995, o Centro Galego de Arte Contemporânea em Santiago de Compostela dedicou uma extensa exposição à sua obra, seguido de uma exposição itinerante do Guggenheim, New York (com curadoria de Nancy Spector), e depois em um terceiro local no Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris. González-Torres morreu aos 38 anos de complicações relacionadas à AIDS no dia 9 de janeiro de 1996, em Miami, cinco anos após a morte de seu parceiro Ross Laycock. Em 2007, ele foi postumamente escolhido para representar os Estados Unidos na Bienal de Veneza. Em 2020, a ARCO Art Fair homenageou Gonzalez-Torres ao invés de deferir esta honra a um país, como de costume.

Tanya Barson é curadora chefe do Museu de Arte de Barcelona (MACBA).

FELIX GONZALEZ-TORRES: THE POLITICS OF RELATION • MACBA • BARCELONA • 26/3 A 12/9/2021


Animated Circle Picture, 1935. Courtesy Albright-Knox Art Gallery. Foto: Brenda Bieger.

FLASHBACK


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SOPHIE taeuber-arp


POR DRIKA DE OLIVEIRA

De julho a outubro de 2021, o Tate Modern, em Londres, apresenta a obra de Sophie Taeuber-Arp, uma das principais artistas de vanguarda dos anos 1920. A exposição reúne diversas obras da trajetória da artista, muitas delas ainda pouco conhecidas. A mostra faz parte de um ciclo, que começou no MoMA (Nova York, EUA), em fevereiro de 2020, passando pelo Kunstmuseum Basel (Basel, Suíça), em março de 2021, e chegando ao Tate Modern, onde acontece a primeira retrospectiva de Sophie realizada no Reino Unido. São mais de 200 itens presentes nessa exposição. Sophie produziu suas obras ao longo de quase três décadas. Ela trabalhou em pinturas, esculturas, vitrais, obras em papel, marionetes, policromos, bordados, têxteis, fantasias, projetos de arquitetura e objetos de arte decorativa, como bolsas, colares em miçangas, tapetes e toalhas de mesa bordadas. A artista também foi editora da revista internacional de arte e professora na Escola de Artes e Ofícios de Zurique por mais de 10 anos. 78

Geometric Forms (beaded bag). 1918. Courtesy Museum fu¨r Gestaltung Zu¨rich, Zhdk.

SOPHIE TAEUBER-ARP FOI UMA DAS GRANDES ARTISTAS E DESIGNERS ABSTRATAS DOS ANOS 1920 E 1930. SUA PRODUÇÃO CRIATIVA FOI EXTRAORDINARIAMENTE DIVERSA E ÀS VEZES CONTROVERSA. COMBINOU ARTESANATO TRADICIONAL COM A LINGUAGEM DA ABSTRAÇÃO MODERNISTA, DESAFIANDO OS LIMITES QUE SEPARAM ARTE E DESIGN



Dada Bowl, 1916. Stiftung Arp e.V., Berlin. Foto: Alex Delfanne.

Sophie Henriette Gertrud Taeuber nasceu em 1889, em Davos, na Suíça. Devido ao falecimento do seu pai quando ainda era bastante jovem, ela e a família se mudaram para a Alemanha. Mais tarde, ela precisou voltar para a Suíça devido à Guerra. Em 1915, conheceu Hans Arp, um dos principais artistas do movimento dadaísta, com quem se casou sete anos depois. Durante a Primeira Guerra, Taeuber-Arp se viu rodeada de um efervescente núcleo artístico, com nomes como Tristan Tzara, Hugo Ball, Marcel Duchamp, Sonia Delaunay e o próprio Hans Arp. Tendo sido aluna dos pioneiros da dança expressionista, Rudolf von Laban e de Mary Wigman, em 1916, Taueber-Arp dançou na fundação do Cabaret Voltaire, berço do movimento dadaísta. Sua inclusão no dadaísmo se mostra não só pelo fato de ter assinado o manifesto do movimento e por suas performances de vanguarda, mas também pela aprovação imediata pelos dadaístas de suas esculturas de madeira para marionetes em 1918 – as quais constam na exibição do Tate. Alguns marcos das técnicas de Taeuber-Arp com madeira são (1916), (1917) e (1920). 80


Flight: Round Relief in Three Heights, 1937. Stiftung Arp e.V., Berlin. Foto: Alex Delfanne.

Assim, embora inicialmente treinada para trabalhos de arte aplicada, que historicamente não recebem a mesma atenção dos críticos de arte, Sophie Taeuber-Arp se tornou célebre com suas explorações na pintura e na escultura abstrata. Os relevos circulares da artista são um ponto alto nesse sentido. Com uma sala dedicada a eles na exibição do Tate Modern, o público tem acesso a um jogo de formas e cores que parecem se mexer por si mesmo: tanto pelo desenho das formas, quanto pelos contrastes de cores e pela característica do próprio relevo, que parece se contrair ou se expandir dependendo do ângulo que se olha. Nessa vida pulsante das obras, notamos uma fluidez de energia que pode ter suas raízes na exploração corporal que Taeuber-Arp fez da dança em seus primeiros momentos no contexto artístico. Ela mesma dizia que queria produzir “coisas vivas” e parece ter conseguido. Como o crítico Adrian Searle comenta, mesmo as abstrações de Taeuber-Arp parecem quase figurações, sugerindo uma relação entre as formas das marionetes de lata e madeira com seus trabalhos formais com cores sobre tela. A alta precisão do traçado faz as cores pipocarem e, junto a isso, 81


Composition of Circles and Overlaping Angles, 1930. © 2019 Artists Rights Society (ARS), New York / VG Bild-Kunst, Bonn.

certas sobreposições e certos ângulos inesperados produzem efeitos impressionantes de profundidade e “desplanificam” as abstrações, como vemos, por exemplo, em (1920) e (1930). A exposição do Tate Modern, aliada às duas outras exposições de mesma grandeza em Nova York e em Basel, pretende não repetir o obscurecimento dos trabalhos de arte aplicada. A exposição no Kunstmuseum, por exemplo, é iniciada precisamente pelos trabalhos com tecido e bijuteria da artista, os quais já apresentam padrões abstratos e contrastes vibrantes de cores – deixando-se para o final os trabalhos mais legitimados pelo . A ideia foi parear a exposição com o movimento da própria artista, que superou, por meio de suas obras, os divisionismos entre as “belas artes” e as “artes aplicadas”. No Tate Modern, por exemplo, deparamo-nos com um de interior que Taeuber-Arp fez para um bar em Strasbourg e um para uma casa de vitrais. Esses são apenas alguns exemplos da ampla gama de interesses da artista, indicativos de um corpo de obras diversificado e sempre expansível. 82


La sentinelle de Safran, 2018. © Bildrecht, Viena, 2020. Foto: Mak/Georg Mayer.

Geometric Forms (necklace). c. 1918.


Dada Head, 1920. © CNAC/MNAM/Dist. RMN-Grand Palais/Art Resource, NY. Foto: Philippe Migeat.

Untitled, 1918. © CNAC/MNAM/Dist. RMN-Grand Palais/Art Resource, NY.

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Stag (marionette for ‘King Stag’), 1918. Courtesy Tate.

O site www.sophietaeuberarp.org reúne, em um formato bastante completo, informações e pesquisas recentes sobre a vida e as obras de Taeuber-Arp. Para além da biografia e fotografias da artista, o disponibiliza também um catálogo com quase mil obras de Sophie Taeuber-Arp – ferramenta fundamental para pesquisadores e importante esforço de preservar a obra dessa artista. Nessa plataforma, as obras catalogadas podem ser apresentadas em ordem cronológica ou podem ser pesquisadas individualmente, em uma ferramenta de pesquisa avançada por meio de ano, título ou localidade. Há também um espaço para comunicar trabalhos perdidos ou desconhecidos, a partir do preenchimento de um formulário. É a primeira vez que a obra de Sophie Taeuber-Arp foi tão é, amplamente documentada em uma base acadêmica. O assim como o ciclo de exposições que passou por Nova York, Basel e agora termina em Londres, a marca definitiva dessa artista na história da arte.

Drika de Oliveira é diretora de conteúdos audiovisuais na Redes da Maré. Atua como fotógrafa e é preservadora audiovisual voluntária na Cinemateca do MAM-Rio. É graduada em Comunicação Social-Cinema pela PUC-Rio. Membra da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).

SOPHIE TAEUBER-ARP • TATE MODERN • REINO UNIDO • 15/7 A 17/10/2021 87


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