Revista Dasartes 113

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Ano 13 . Edição 113 . 2021



CURSOS NOVEMBRO

● Poderosas Artistas Mulheres ● Arte para Arquitetos e Decoração

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Capa: Andrey Zignnatto, ALICERCE # 2, 2020. Foto: Cortesia Andrey Guaianá Zignnatto.


VICTOR MATTINA 10

TOYEN 24 6

De Arte a Z

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Agenda

86

Livros

87

Coluna do meio

PAULA MODERSOHNBECKER

NICOLAS POUSSIN

ANDREY ZIGNNATTO

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de arte

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AZ

PELO MUNDO • Críticos procuram realocar escultura de Virginia Woolf. Uma estátua proposta da aclamada autora do século 20 está sendo questionada sobre sua localização planejada, com vista para o rio Tâmisa, que os críticos classificaram de "insensível e imprudente". Woolf suicidou-se afogando-se em um rio. O grupo apoia a estátua do memorial, mas está pedindo às autoridades que encontrem um local diferente.

CURIOSIDADES • Fundação Bienal de

São Paulo lança websérie sobre os bastidores das Bienais de arte no Youtube. Com 6 episódios e voltada para público jovem a websérie conta, de forma leve e divertida, todos os processos envolvidos na realização de uma grande mostra internacional de arte contemporânea. Artistas, curadores, pesquisadores, arquitetos e produtores compõem este panorama da construção de uma Bienal de arte.

MUSEUS • Racismo, desigualdade de

renda e mudança climática são os tópicos que os americanos mais desejam que os museus abordem, de acordo com uma nova pesquisa. Mais da metade dos entrevistados negros, asiáticos e nativos americanos vêem o racismo sistêmico como um problema nos museus de arte na Ámerica do Norte. 6


GIRO NA CENA • Em parceria com o Instituto Franz

Weissmann, que assina curadoria, a exposição apresenta o pioneirismo de Franz Weissmann (1911 - 2005), artista que envolveu ativamente o espectador na obra, anos antes da publicação do Manifesto Neoconcreto, de 1959, do qual foi signatário. A mostra fica aberta para visitação a partir de 30 de novembro, na Dan Galeria, na cidade de São Paulo, e na Dan Galeria Interior, novo espaço localizado no complexo Bandeiras Centro Empresarial, área de empreendimentos na cidade de Votorantim. Até 29 de janeiro de 2022.

NOVO ESPAÇO • Um local destinado às artes em suas mais diversas formas e manifestações. Este é o principal conceito do Fly Maria, um projeto multicultural de incentivo e de promoção artístico-cultural que inicia suas atividades em Campinas. O local terá aulas práticas e teóricas - artes cênicas e plásticas -, assim como apresentações artísticas, exposições e oficinas culturais. Rua Dr. Quirino, 152, Centro, Campinas.

• DISSE O LOUVRE

“ ”

Para combater a crescente onda de islamofobia na França, o governo organizou 18 exposições de arte islâmica em todo o país. O Louvre está liderando o projeto, enviando 60 obras-primas emprestadas a cidades da França. 7


Abdias Nascimento

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AGEnda

De forma inédita, Inhotim sedia outro museu dentro de seu espaço e, em parceria com IPEAFRO, traz ao público o Museu de Arte Negra (MAN), projeto idealizado pelo Teatro Experimental do Negro sob a liderança de Abdias Nascimento no início dos anos 1950. A iniciativa traduz o desejo de Abdias de desafiar os conceitos vigentes sobre a arte moderna, revelando sua relação com a estética africana. Além disso, procura apoiar e promover a produção de artistas negros de todo o mundo e enfrentar o racismo em suas dimensões estética e institucional. A exposição será dividida em quatro atos, cada um com duração de cerca de cinco meses, desdobrados a partir de 8

indagações postas à coleção do Museu de Arte Negra. O primeiro, exibido a partir de 4 de dezembro, traz o diálogo entre a obra de Abdias, Tunga e o acervo do MAN em um espaço que remete às origens do Inhotim: a Galeria Mata, situada próximo à Galeria True Rouge, uma das primeiras da instituição e que expõe de forma permanente a instalação de título homônimo de Tunga.

MUSEU DE ARTE NEGRA PRIMEIRO ATO: ABDIAS NASCIMENTO E TUNGA • INHOTIM • 4/12/2021 A 10/4/2022



Éter, 2020.

GARIMPO


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VICTOR mattina


AS RECENTES PINTURAS DO JOVEM ARTISTA VICTOR MATTINA FORAM DESENVOLVIDAS A PARTIR DE SUA PESQUISA SOBRE A CONDIÇÃO DA IMAGEM DIGITAL, QUE NA CONTEMPORANEIDADE, PERDE SUA FUNÇÃO DE MEDIADORA PARA ASSUMIR A FUNÇÃO DE PRODUTORA DA REALIDADE

Se fizermos o exercício de realizar uma breve genealogia da crise da percepção que nos acomete, poderíamos eleger como ponto de partida alguns momentos específicos. O primeiro deles estaria na modernidade que funda a razão ocidental calcada em uma sensibilidade blindada para a qual os fenômenos do mundo deveriam ser desprezados em favor de uma elaboração puramente mental. A diluição do mundo exterior em estados cognitivos (herança da filosofia cartesiana) legou uma experiência do “real” empobrecida. O sujeito moderno forja um corpo impermeável aos sentidos, divorciando-se assim do ambiente exterior. A segunda etapa desta breve genealogia seria composta por um par de acontecimentos: o aparecimento das grandes cidades e o advento da reprodutibilidade técnica na passagem do século 19 para o 20. A temporalidade acelerada das metrópoles e o excesso de estímulos visuais proporcionado pela reprodutibilidade de imagens instauraram uma série de mecanismos que entorpeceriam o organismo, nublar o olhar, reprimir a memória: o sistema cognitivo da sinestesia – que engloba não só a visão, mas o paladar, o tato, a audição, o olfato – tornava-se, antes, de anestesia. Ora, quem lê este texto sabe bem o quanto esse cenário se acentua no século 21 em meio a um cotidiano no qual nos distanciamos da realidade sensível, na medida em que habitamos, a maior parte das horas, zonas digitais cujas telas inundam as nossas retinas com uma quantidade vertiginosa de estímulos. 12

Plano, 2021. Fotos: Victor Mattina e Galeria Marcelo Guarnieri.

POR LUISA DUARTE



A exposição , de Victor Mattina, tem como alvo crítico e poético esse contexto. Tanto o conjunto de pinturas quanto a instalação audiovisual apresentadas na Galeria Marcelo Guarnieri têm como pano de fundo um diálogo com essa crise que, sendo mais rigorosos, ultrapassa a esfera da percepção. Não se trata tão somente de um atrofiamento do olhar, ou ainda um estreitamento do nosso vínculo sinestésico com o entorno. No limite, essa crise que tem início na percepção finda por obturar toda sorte de imaginação, ameaçar o lugar da nossa constituição psíquica e gerar uma imensa passividade em meio à inquietação generalizada. Pois, sejamos diretos, esse estado de entorpecimento, de constante déficit de atenção em um mundo 24/7, nada mais é do que um estado necessário para o controle social. A anestesia não é individual, é coletiva, não é involuntária, mas programada. Afinal, quando a própria realidade é transformada em narcótico, 14


À esquerda: Fontanela, 2020. Abaixo: Solitária, 2020.

o torpor se torna a norma. Nesse sentido, podemos afirmar que todos os trabalhos de Mattina aqui reunidos, ao seu modo, sem alarde, sem narrativas diretas, transitam por um território central da vida política da atualidade. Paremos para nos aproximar um pouco das obras em exibição. O uso de tons rebaixados, não correspondentes à saturação de cores que o olho humano está condicionado a associar aos objetos ao seu redor, provoca um primeiro estranhamento, amplificado a seguir pelos títulos que fazem referência a diferentes áreas do saber, como a botânica e a entomologia, a anatomia humana, a medicina moderna e a cultura europeia do medievo. Ao longo das telas, fragmentos de corpos animais e vegetais são retratados em enquadramentos inusuais, compondo situações que desconcertam o olhar. Atraem e repelem, a um só tempo. Notem, por exemplo, (2020). O título, ligado à língua ignota, criada por Hildegard 15


A Terra tem peso, 2021.


Ispariz, 2020.


Esporo 2020.

von Bingen (1098-1179), denomina espírito ). Aqui, Mattina forma uma espécie ( de curto-circuito sardônico ao sobrepor uma ideia metafísica e sobrenatural à representação um tanto quanto distorcida de um buquê de flores dentro de uma lata (2020), cujo título evoca de lixo. Já em a substância química que funcionou como anestesiante na medicina, testemunhamos pés elevados ao redor do que parece ser uma mesa de cirurgia. Assim, é-nos dado a ver o sentido figurado da palavra “etéreo”, como aquilo que está suspenso no ar. Existe ainda nessa pintura um jogo de associação entre o desenho da fórmula química do éter e a forma como os pés estão dispostos em relação à mesa hospitalar. Esses brevíssimos exemplos revelam a polissemia contida nas telas hoje reunidas. Polissemia, ou multiplicidade de sentidos no interior de uma mesma obra, cujo lugar no mundo não é um lócus dócil, transparente, de rápida apreensão. Ao contrário, por meio de uma linguagem 18


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Feixe, 2021.

“ ”

pictórica que se filia à opacidade, Mattina busca perturbar o sistema sensorial do sujeito contemporâneo cada vez mais embotado pela saturação imagética. O singular em sua produção está no fato de que não se trata de compreender como burlar esse estado de anestesia dos sentidos e assim, utopicamente, escapar da fadiga sensorial que nos acomete. Ao contrário, a ideia que guia o seu programa poético é ultrapassar o mecanismo de segurança de um olhar sempre blindado para que possamos nos relacionar diretamente com o esgotamento que caracteriza a experiência atual. Somente atingindo voluntariamente essa espécie de ponto-nulo poderemos, talvez, recobrar algum vínculo vivo com o real em uma época na qual a realidade parece ter se tornado um sem fim de estímulos narcóticos – ou o inverso, a fantasmagoria das imagens digitais parece ter assumido a posição de realidade objetiva. 21


Imago (diorama), 2020.


Luisa Duarte é crítica de arte e curadora independente. Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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PELO mundo


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TOYEN

Dream, 1937 © VG Bild-Kunst, Bonn 2021. Fotos: © Kunsthalle Praha.


A OBRA FASCINANTE E MULTIFACETADA DA ARTISTA SURREALISTA TCHECA TOYEN OCUPA UMA POSIÇÃO ÚNICA NA VANGUARDA DOMINADA PELOS HOMENS, BEM COMO NO CONTEXTO DO SURREALISMO INTERNACIONAL

Marie Čermínová rejeitou categorizações ainda jovem e adotou o pseudônimo de Toyen aos 21 anos; isso em memória da Revolução Francesa e de seus cidadãos livres e iguais, os . Sempre em contato próximo com os principais poetas e pensadores de seu tempo, ela desenvolveu uma obra tão multifacetada quanto inovadora: inicialmente como membro influente da vanguarda checa em Praga e durante estadas em Paris; depois, no início dos anos 1930, como fundadora do movimento surrealista da Checoslováquia. Durante a ocupação alemã, Toyen realizou obras alternativas de um poder angustiante. Desde 1947 no exílio em Paris, ela trabalhava no cerne do surrealismo do pós-guerra. Até a sua morte, permaneceu ativa na pintura, desenho, colagem, ilustração e também muito valorizada pelos poetas da próxima geração. A artista pioneira comemorou sucessos iniciais e teve exposições em galerias em Praga e Paris até a década de 1960, mas foi esquecida nos últimos 20 anos de sua vida. Fica claro que os princípios norteadores da revolta, erotismo, alquimia e analogia, bem como o questionamento da relação entre realidade, imaginação e imagem permeiam toda a obra da artista. Eles são baseados nas explorações de liberdade e identidade de Toyen, tópicos que são particularmente relevantes hoje. 26

After the Performance, 1943. After the Performance. © VG Bild-Kunst, Bonn 2021.

POR ANNABELLE GÖRGEN-LAMMERS



The New World of Love, 1968. À direita: Horror, 1937.

PRIMEIROS ANOS Após um curto período de estudos na Escola de Artes Aplicadas de Praga, Marie Čermínová conheceu o pintor Jindřich Štyrský, em 1922. Ele foi seu parceiro artístico e amigo até sua morte. Ambos se juntaram ao movimento de vanguarda da Checoslováquia, chamado de Devětsil, em 1923. O movimento inclui também poetas, designers e arquitetos. Na mostra Bazaar of Modern Art, a artista apresentou, entre outras coisas, pinturas abstratas próximas ao construtivismo e que usaram pela primeira vez o pseudônimo inespecífico de gênero Toyen. Durante uma viagem de vários meses pela França, no final de 1924, seu estilo artístico mudou fundamentalmente: Entusiasta de espetáculos, cenas de circo e festivais folclóricos, ela os registrou detalhadamente em cadernos de desenho. 28


FATA MORGANA No outono de 1925, Toyen se mudou para Paris por três anos. Lá encontrou a própria tendência artística – o artificialismo. Sua demanda central eram a poesia e a “identificação do pintor com o poeta”. Em seu manifesto, ela se distanciou das tendências atuais. Para a artista, a fim de captar “memórias de memórias” na imagem, a partir de 1926, ela desenvolveu suas obras usando uma técnica de pintura livre sem precedentes: inventiva no manuseio de estênceis, pistolas de aerógrafo, na aplicação de tintas, alguns dos quais foram engrossados ​com areia e camadas, bem como a estruturação das superfícies com espátulas.

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Magnetic Woman, 1934. © VG Bild-Kunst, Bonn 2021.

UMA NOITE NA OCEANIA No início dos anos 1930, Toyen se dedicava cada vez mais à noite como um lugar de sonhos, do inconsciente e do erótico. Das estruturas empastadas das pinturas artificialistas, motivos perturbadores e sedutores parecem “emergir”. Assemelham-se a conchas, flores, corais e flutuam nas imagens como em mundos subaquáticos. A inclusão de Toyen de plantas e frutas (marinhas) pode ter sido inspirada por seu encontro com os textos do Marquês de Sade (1740-1814) e o conceito de da natureza. A MULHER MAGNETICA Em março de 1934, foi formado o primeiro grupo surrealista na Checoslováquia. Toyen foi uma das fundadoras e apresentou 24 pinturas em sua primeira exposição, em 1935. As telas indicavam uma mudança significativa em sua obra: as paisagens lacustres deram origem a objetos e corpos que parecem rochas. Fissuras profundas sugerem processos de decadência e transição. A forma do corpo (principalmente feminino) se torna uma concha vazia e congelada. Com a visão surrealista do inconsciente, das paixões ocultas do ser humano, a representação de sua aparência foi questionada. REVISTA ERÓTICA A imaginação erótica foi uma parte integrante do trabalho artístico de Toyen desde o início. Aos 20 anos, já pintou uma cena de bordel intitulada , na qual uma multidão de casais se diverte sexualmente. O humor era uma característica essencial que distinguia muito o erotismo dela das muitas explorações correspondentes de seus colegas homens. Em esboços e desenhos, ela desenvolveu um mundo erótico surpreendentemente aberto, que publicou entre 1931 e 1933, em parte na revista . 31 31



Night in Oceania, 1931. © VG Bild-Kunst, Bonn 2021.



Hide, War!, 1944. © VG Bild-Kunst, Bonn 2021.


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War (Field Scarecrow), 1945. © VG Bild-Kunst, Bonn 2021.

ESCONDA-SE, GUERRA! Durante a ocupação alemã da Checoslováquia, os surrealistas tiveram que se esconder. Além de pinturas que parecem gritos em um trauma de guerra, Toyen criou testemunhos assombrosos de um novo mundo com ciclos de várias partes desenhadas com precisão. Em a artista retratou o golpe contra a natureza, contra a própria existência, com esqueletos de animais. Após a libertação em 1945, ela se voltou para a luz em sentido figurado, com , e em cartas retomou seus contatos com os surrealistas parisienses. TODOS OS ELEMENTOS Após a guerra, Toyen contata André Breton novamente. A exposição em uma galeria que ele organizou em Paris, em 1947, foi o pretexto para a viagem da artista à França, da qual ela nunca mais voltou de Praga. A troca com o grupo surrealista e a nova liberdade também se refletem em suas pinturas. Inspirada por muitas estadias compartilhadas na Bretanha, ela lidou com a alquimia e os princípios subjacentes dos processos de mudança. Ficou fascinada por se encontrar na costa da Bretanha, as falésias lavadas pelo mar e pelo vento, em torno das quais giravam gaivotas guinchando. Ela buscava analogias visuais e criou imagens poéticas a partir do encontro de fragmentos de seres vivos (como penas, um perfil de bretão) e a natureza “inanimada” (como correntes de água, seixos). 37


Midnight, the Blazoned Hour, 1961.

AS SETE ESPADAS DESEMBAINHADAS Na década de 1950, o grupo surrealista entrou em contato com o movimento Tachismo, tendência da pintura abstrata em que os sentimentos se expressam por meio da aplicação espontânea de tintas. Sob essa influência, o trabalho de Toyen chegou ao limite da abstração lírica. Em contraste com a pintura abstrata contemporânea, ela se baseou mais nas sensações e na exploração do inconsciente do que na construção. Elementos vegetais e minerais ou detalhes de seres misteriosos emergiam de suas telas. MEIA-NOITE, HORA ARMADA As silhuetas ou detalhes do corpo presentes na obra de Toyen, desde a década de 1950, aos poucos se revelam como fantasmas. A partir da década de 1960, ela também voltou cada vez mais ao método de colagem. Também inseriu fragmentos da realidade diretamente em suas pinturas, como já havia tentado em 1946, como em . Além disso, ela estava explorando cada vez mais a noite e sua magia. , Toyen mostra esse mundo noturno como um palco que se observa de um camarote: ela conecta o original, o medo e o desejo com um mundo teatral encantador e luxuoso.


Der Paravent, 1966.

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The trap of reality, 1971. À direita: Midday-Midnight, 1966. © VG Bild-Kunst, Bonn 2021

The Green Line, 2004.

O FESTIVAL DE ANALOGIAS No final dos anos 1960, Toyen explorou os limites do espaço e do corpo, além da própria silhueta. Ao fazê-lo, ela questionou ainda mais a representatividade do real entre presença, apresentação, representação e ausência. A última pintura a óleo, criada em 1971, tem o significativo título . Ela dirigiu a atenção cada vez mais para analogias, correspondências entre humanos e o mundo das plantas, animais ou objetos. Ela pressupôs que em um único universo, um ser ou objeto pode representar as propriedades do outro. Já em 1954, a artista se caracterizou no jogo comunitário surrealista , com cinco objetos favoritos: uma tela, um chicote, um salto agulha, uma mala e uma cortina. Juntos, eles criaram uma espécie de autorretrato poético em que os anseios da artista puderam ser adivinhados: imaginação, liberdade, viagens, erotismo, mistério. Toyen estabeleceu armadilhas para a percepção até o fim de sua vida e, portanto, também questiona nossa suposição básica e simplista de uma totalidade de nossas diversas autoimagens, a premissa da identidade.

Annabelle Görgen-Lammers é curadora no Hamburger Kunsthalle desde 2003 e desenvolveu uma pesquisa com foco no Surrealismo e Modernismo clássico.

TOYEN • HAMBURGER KUNSTHALLE • ALEMANHA • 24/9/2021 A 13/2/2022



Auto-retrato com uma coroa de flores vermelha e Corrente, 1906/07. © Landesmuseum Hannover -

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ALTO relevo


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PAULA modersohnbecker


EXTENSA RETROSPECTIVA MOSTRA COMO A ARTISTA ALEMÃ PAULA MODERSOHN-BECKER ANTECIPOU OS DESENVOLVIMENTOS CENTRAIS DO MODERNISMO

POR REDAÇÃO

AUTORRETRATOS Paula Modersohn-Becker pintou ou desenhou um total de cerca de 60 autorretratos ao longo de todas as fases criativas entre 1893 e pouco antes de morrer, em 1907. Como muitos outros artistas que receberam pouco reconhecimento público, para Paula, o autorretrato foi um ato contínuo de autoquestionamento e reflexão sobre seu próprio papel como artista. No início, Paula enquadrou as imagens perto do espectador, muitas vezes com uma composição frontal, criando um alto grau de franqueza e imediatismo. A maioria de seus 44

Autorretrato, 1897 © VG Bild-Kunst, Bonn 2021.

A artista certa vez escreveu isso sobre Rodin, mas, na verdade, ela também estava se descrevendo. Paula Modersohn-Becker participou de apenas duas exposições durante sua vida e vendeu no máximo quatro pinturas para amigos. Só depois de morrer prematuramente em 1907 o sucesso se estabeleceu e o “mito” em torno da artista, que continua até hoje, desenvolveu-se. Seu trabalho ainda mexe e surpreende; é direto, rigoroso e atemporalmente moderno. A artista trabalhou alternadamente na colônia de artistas de Worpswede perto de Bremen e na então capital da arte, Paris. Apesar de sua breve vida, ela deixou para trás uma obra diversificada e extensa de cerca de 734 pinturas e cerca de 1.500 obras em papel que refletem claramente as influências de ambos os lugares.



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Retrato de uma menina, 1905.

autorretratos foi criada em 1906, agora principalmente como nus, quando ela estava sozinha em Paris e encontrava seu caminho como artista independente por lá. Se olharmos para as fotografias históricas de Paula, em geral há pouca semelhança entre a artista e seus autorretratos. Apenas as fotos de nus, provavelmente tiradas por sua irmã Herma, mostram uma autodramatização deliberada semelhante a algumas das pinturas, com posturas estilizadas de mãos, flores, frutas e colar de âmbar. RETRATOS DE FAMÍLIA E AMIGOS Paula retratou várias pessoas de seu círculo pessoal, mas ela o fez sem uma comissão e geralmente sem perspectiva de poder vender os retratos. Ela pintou esses indivíduos a partir de um impulso interior e – como sempre – sem levar em conta as convenções ou expectativas de seu ambiente. As obras eram em sua maioria de pequeno formato e não particularmente representativas, como nas pinturas do adormecido Otto Modersohn ou de seu amigo, o poeta Rainer Maria Rilke. Este último ficou aparentemente insatisfeito com o retrato, pois nunca falou dele. A artista muitas vezes tentou retratar traços e características internas, como com a boca aberta de Rilke, ou o comportamento pensativo e distante da Raylana, 2013. escultora Clara Rilke-Westhoff. © Luiz Braga. 47



Mãe reclinada com a criança, 1906/1907. Um defeito de cor (VOGUE), 2021.

IMAGENS DE CRIANÇAS

Auto-retrato no 6º aniversário de casamento, 25 de maio de 1906.

A representação de crianças e jovens, principalmente meninas, compõe grande parte da obra de Paula, abrangendo cerca de 400 pinturas. A maioria das obras foi criada em Worpswede, onde Paula procurou modelos em seu entorno. O assunto era popular entre muitos pintores do período, mas era consistentemente destinado a um público de classe média, e geralmente apresentava uma forma altamente idealizada de infância no campo: o trabalho árduo doméstico e da agricultura, do qual apenas crianças muito pequenas estavam isentas, é mascarado por uma ênfase na inocência e na proximidade com a natureza. A renúncia quase universal à “fofura” parece particularmente radical nesse grupo de obras. MÃE E FILHO Paula pintou uma série de mães sentadas e reclinadas com filhos, em particular durante sua última estada em Paris, em 1906/1907. As mães sentadas ou ajoelhadas com filhos costumavam ser combinadas com símbolos como flores e frutas e demonstravam uma estática icônica. Algo inteiramente novo surgiu com as três versões em grande . O contorno formato da fechado parece escultural, a postura íntima, uma espécie de paisagem de corpos emerge, de perto e ao mesmo tempo supraindividual e distante. Nessa composição abstrata e monumental, a artista viu corporificada não apenas uma relação individual mãe-filho, mas – para ela – a ideia universal de “Mãe Terra” e uma visão de mundo panteísta. 49


Vista da janela do estúdio do artista em Paris, 1900. © Detroit Institute of Arts, Gift of Robert H. Tannahill

CAMPONESES NA PUNHA Quando a colônia de pintores de Worpswede se estabeleceu em uma pequena cidade à beira da antiga região (Pântano do Diabo), por volta de 1889, eles queriam retratar a vida “real” da população rural e a paisagem expressiva. Ao fazer isso, os artistas encontraram um contramundo de cortadores de turfa, fazendeiros e boias-frias – pessoas cujas vidas eram caracterizadas por trabalho físico árduo e uma luta constante pela sobrevivência. Como uma fuga das pressões da vida industrializada moderna e da azáfama da cidade grande, os pintores idealizaram e romantizaram a vida rural, ignorando em grande parte o “realismo” da vida quotidiana na aldeia. Na contramão, Paula geralmente deixava de fora não apenas o ambiente rural, mas também as respectivas atividades, quando procurava seus modelos, entre eles idosos fazendeiros, camponeses e suas mulheres. Pintados entre 1903 e 1907, os retratos altamente variados sempre mostram uma pessoa em particular, chamada “Mãe Schröder” ou, no dialeto local, a , pois ela sempre se movia com uma bengala como sua “terceira perna”. A série mostra claramente o método de trabalho de Paula, seus vários experimentos pictóricos, mas também sua tendência para transformar o cotidiano e o real em algo supratemporal e universal. PAISAGEM A coragem de Paula para criar composições incomuns, às vezes austeras e incongruentes, é evidente em sua concepção reduzida e abstraída de paisagem. Os caminhos que iam até o horizonte, os canais retos cortando a antiga charneca e o céu alto eram o cenário perfeito para sua visão artística. Paula sempre procurou resumir e simplificar, aliado a uma paleta de baixo contraste que se intensifica para superfícies de cor quase monocromáticas, especialmente nas paisagens lunares noturnas. 50


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Mão com buquê, 1902. © Privatbesitz Bremen.

CLOSE-UPS Paula muitas vezes trazia visualmente os temas de suas pinturas a uma visão extremamente próxima e também simplificava temas. Essa técnica direciona fortemente o olhar e cria um grande imediatismo na experiência das obras. Algumas composições até parecem detalhes de uma pintura maior, como o gato aninhado no braço de uma menina ou as duas mãos segurando uma flor. No entanto, esses não são detalhes, mas antes funcionam por faz pensar no fotográfico conta própria. Essa forma de , apesar do fato de a fotografia ainda não ser tão avançada tecnicamente por volta de 1900. A abordagem de Paula nesses exemplos deve ser considerada uma peculiaridade na obra da artista, sem paralelo na obra de seus contemporâneos. AINDA VIVAS Estáticas, construídas, monumentais – muitas das características que se aplicam às pinturas de figuras de Paula – também são características de suas cerca de 70 naturezas mortas, cerca de 50 das quais foram criadas entre 1905 e 1907. Já em Worpswede, a artista coletou copos raros, pratos e xícaras, colares e anéis, tecidos finamente coloridos e cobertores, molduras originais, espelhos, castiçais para naturezas mortas. A pintora tinha um grande senso de habilidade camponesa e para a estrutura e textura dos materiais e superfícies em geral. O gênero serviu como campo predileto de experimentação na vanguarda francesa. Um paralelo é traçado repetidamente entre Paula e Cézanne, mas as naturezas mortas são distintas pelo estilo de pintura denso e material de Paula. Após sua morte, essas obras, em particular, foram compradas e exibidas por colecionadores particulares e museus.

PAULA MODERSOHN-BECKER • SCHIRN KUNSTHALLE • FRANKFURT • 8/10/2021 A 6/2/2022


FLASHBACK

NICOLAS

O Triunfo de Bacchus, 1635-6. © Image courtesy of The Nelson-Atkins Museum of Art, Media Services. Foto: John Lamberton.


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poussin


PANDEIROS TREMEM, VINHO DERRAMA E FIGURAS SEMINUAS RODOPIAM PELA TELA NESTAS PINTURAS DE FOLIA, DANÇA E DRAMA QUE ESTÃO REUNIDAS NESTA PRIMEIRA EXPOSIÇÃO DEDICADA A POUSSIN E À DANÇA NA NATIONAL GALLERY

Nascido no final do século 16, e tendo marcado o século 17 com a sua arte, Nicolas Poussin pode ser considerado o coreógrafo das artes plásticas de sua época. Esta analogia à dança, veremos adiante, não é gratuita. Poussin, natural dos arredores de Les Andelys, na Normandia, costuma ser lembrado como um representante do estilo barroco que, como se sabe, foi um estilo artístico cujas principais características foram a exploração da emoção por meio do fervor religioso da fé cristã e a exaltação da estética do contraste entre o claro e o escuro, recurso que também servia para despertar sentimentos colidentes no espectador da obra. Daí vêm algumas das mais profundas e simbólicas obras, que exibem a habilidade de Poussin em representar cenas bíblicas, como se pode perceber em de 1647, no qual o artista demonstra todo o talento dele em trabalhar o contraste entre luz e escuridão, induzindo o espectador a observar primeiro o centro da tela e de imediato localizar o Cristo em sua última ceia. Tudo aqui, do candelabro às colunas no fundo do cenário, de Judas se retirando à parte inferior e laterais totalmente imersas nas sombras, está conscientemente e estrategicamente organizado de um modo a repassar a aura do momento, em um esquema de ordem clássica que nos aproxima da cena e nos põe íntimos do evento ali narrado. Mas o caminho do artista até chegar a esse ponto foi longo e desafiador. 56

O Sacramento da Sagrada Eucaristia, 1647.

POR EDVALDO CARVALHO



Triunfo de Netuno, 1634.


Poussin era filho de uma família relativamente nobre, que estava passando por um momento de crise financeira. Quando jovem, recebeu uma boa formação educacional, mas parecia mesmo ter talento para uma área específica, o desenho. Não contando com o incentivo ou apoio dos pais, com apenas 18 anos, ele fugiu de sua cidade natal para Paris, onde, apesar de enfrentar dificuldades, consegue estudar arte, principalmente anatomia e perspectiva, e entrar em contato com um ambiente altamente propício para os artistas, deparando-se com mecenas e outros incentivos. Nessa época, ao conhecer e ficar íntimo da arte renascentista italiana (especialmente a de Ticiano), a carreira de Poussin começou a ser determinada pela influência dessas obras. Algumas de suas mais graciosas, elegantes e delicadas pinturas vão surgir a partir desse contato com o classicismo greco-romano/renascentista, que o influenciaria profundamente. Em e , ambas obras de 1634, Poussin foi capaz de mostrar habilidade criativa, identidade estética e rigor acadêmico e, ainda assim, compor obras com a leveza de elegantes passos de dança ao representar festejos profanos, um mitológico e o outro uma narrativa bíblica, que, no entanto, guardam semelhanças no belo desenho dos movimentos dos personagens e na sinfonia oculta que parece tocar nos ouvidos do espectador destas pinturas. 59



Adoração do bezerro de Ouro, 1633-4 © The National Gallery, London.



The Triumph of Pan, 1636. © The National Gallery, London.


Da mesma forma, não se faz necessário que o observador seja um especialista em estética e história da arte para notar que em obras como (16381639), há em Poussin um tanto daquilo que encantou os renascentistas: a nostalgia de ambientes antigos. A cena mostra alguns jovens com trajes que automaticamente nos remetem à Grécia e/ou Roma antiga. Os personagens (pastores talvez) tentam ler ou decifrar a inscrição na lápide, posando classicamente, rodeados por uma paisagem que por si só carrega muita poesia, provavelmente inspirada em algumas das viagens do pintor pelo interior romano. Foi em Roma, aliás, que Poussin mais se sentiu em um lar. Ele foi para lá a primeira vez em 1623, a convite do poeta Giambattista Marino, um dos maiores entusiastas contemporâneos de sua arte. Também em Roma Poussin conheceu Camilo Massimo e foi patrocinado por ele, cardeal que também apoiou a arte de outro “francês italianizado”, Claude Lorrain. Dizse que Nicolas Poussin só se mudou de Roma em 1639, quando foi praticamente intimado, ou, no mínimo, induzido pelo então primeiro-ministro francês, o cardeal Richelieu, a retornar a Paris e se tornar o pintor oficial do rei Luís XIII. Do breve período em que ali esteve, vale destacar a decoração de Poussin para a grande galeria do Louvre. Dois anos depois, o artista consegue retornar a Roma, onde moraria até o fim da vida dele, em 1665. Mesmo perto da morte, Poussin produziu ou obras sem iguais. Em (1660-1664), temos uma complexa e dramática cena com uma melancolia poética das cores diferente de flexibilidade que, ainda assim, mantém a identidade artística do pintor. O desespero dos personagens, a imponência da força divina por intermédio da natureza, as referências bíblicas, as tonalidades 64


O Inverno ou O Dilúvio, 1660-1664.

65


Paisagem com homem lavando os pés numa fonte, 1648.

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sombrias, o formato da composição, a mística e as cores utilizadas nessa obra escancaram a maestria de um pintor que viria a influenciar do cubismo de Picasso à abstração radical de Cy Twombly, das geometrizações de Cézanne ao academicismo de David. Podemos dizer que Poussin desafiou a si mesmo, pois, em uma obra como essa que mostra a natureza representando o poder divino em conflito com o ser humano, há um claro contraste com os outros trabalhos dele que mostram paisagens serenas e bucólicas em calma harmonia com os homens, como na obra , de 1648. Quem visitar as galerias do andar térreo da National Gallery de Londres até 2 de janeiro de 2022, terá o privilégio de conhecer mais uma vertente interessante de Poussin: as obras dele que remetem à dança. Em desenhos e pinturas que mostram o quanto o artista estudou a escultura clássica, o espectador poderá se deixar levar pelo ritmo e compasso de bailes pitorescos, sejam mitológicos ou não, eternizados pelos instrumentos e cores de Nicolas Poussin. A alegoria de 1638, intitulada , é talvez a mais conhecida obra do artista que tem a dança como tema. Nessa pintura, Poussin personifica a Riqueza, o Prazer, o Trabalho e a Pobreza. A técnica de Nicolas Poussin nessa obra revela o quanto a habilidade dele para a pintura era precisa, racional, detalhista, versátil e, acima de tudo, muito 67



Uma dança para a música do tempo, 1634-1636.



honesta. As cores usadas nas vestes dos personagens são delicadas e complementam o belo desenho deles, que dançam suavemente em um círculo vicioso, que, por sua vez, se encaixa dentro de uma notável forma piramidal. Eles dançam em poses graciosas, embalados pelos acordes da música tocada pelo Tempo, personificado como um homem idoso e alado. Há ainda outras referências à passagem do tempo: na ampulheta nas mãos da criança vestida de branco na parte inferior da tela e no busto duplo de Juno, no lado oposto, a olhar para o passado e para o futuro. Não obstante a cena que se passa nesta parte inferior, tem-se acima um céu de lindas cores minuciosamente trabalhadas, por onde passa o cortejo do deus Apolo em sua carruagem celeste, seguido pelas horas e guiado por Aurora. Essa complexa e bela composição demonstra o quanto Poussin estava ditando os passos da coreografia que a arte dançaria nas décadas e movimentos seguintes. Sua harmonia e técnica clássica vieram a ser as prévias do baile onde Jacques-Louis David e Jean Auguste Dominique Ingres viriam a valsar. O atento leitor percebeu que iniciamos falando de barroco e agora tratamos sobre o neoclassicismo, isso para mostrar que muitas vezes é desinteressante, apesar de didático, tentar encaixar gênios como Poussin dentro de “compartimentos” na história da arte que parecem não ter muitas conexões lógicas entre si. Nicolas Poussin, que era flexível a ponto de representar desde a agitação (1634) à delicadeza de angelical de (1628), estava alheio a tais rótulos, desejando apenas repassar ao mundo sua arte sincera, que era hábil como os passos de uma bailarina e cativante como os encantos de uma bela música.

Edvaldo Carvalho é professor de arte na rede estadual de ensino do Estado do Amapá e MBA em História da Arte. Sainte Cécile, 1628.

POUSSIN & THE DANCE • THE NATIONAL GALLERY • REINO UNIDO • ATÉ 22/01/2022 71


CAPA

ANDR zignn

ALICERCE


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REY natto

# 1, 2020.


DESCENDENTE DE POVOS TUPINAKY'IA E GÛARINI. ESSAS MEMÓRIAS AFETIVAS ANCESTRAIS DO ARTISTA ANDREY ZIGNNATTO SÃO A BASE PARA O DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL E DOS MÉTODOS USADOS NA SUA PRODUÇÃO ARTÍSTICA

POR SANDRA ARÁ RETÉ BENITES

Andrey Guaianá Zignnatto é herdeiro de avós indígenas silenciados inicialmente pelas forças coloniais e, posteriormente, pelos próprios tijolos, casas, prédios que formam as cidades grandes como São Paulo. Artista autodidata, professor de artes visuais e ativista de projetos sociais, trabalhou como ajudante de pedreiro dos dez aos 14 anos de idade. Na atual condição, em que muitos territórios indígenas foram cobertos de concreto, é difícil pensar na ideia de um lugar para fazer fogueira no contexto urbano, costume tradicional dos povos originários para formar o espaço educativo e transmitir conhecimentos ancestrais por meio da oralidade, dentre muitos outros de seus valores violados e enterrados nesses territórios. Por esta razão, quando indígenas que tiveram seus universos culturais apagados decidem pelo processo de retomada de suas ancestralidades, apesar de este processo partir dos simbolismos, eles transcendem meras questões simbólicas. A expressão de sentimento de pertencimento se constrói no campo das imagens, das narrativas, das memórias, para um lugar de vida e espiritualidade. Zignnatto começa sua trajetória como artista apoiado em suas memórias da época em que trabalhou como pedreiro 74

ALICERCE # 2, 2020. Fotos: Cortesia Andrey Guaianá Zignnatto.

REABITAR, REORDENAR COM POSSÍVEL RETOMADA



e nos conhecimentos adquiridos com essa profissão. Em seus trabalhos mais recentes fica evidente o deslocamento do artista das questões sobre a construção civil para questões de sua ancestralidade indígena. É possível observar nos trabalhos apresentados na exposição elementos que demonstram o esforço do artista em reordenar seus pensamentos nessa trajetória, do contexto urbano para o contexto indígena, esforço este para equalizar as forças desses universos tão distintos. Neste sentido, é possível afirmar que o artista, como tantos outros artistas indígenas contemporâneos, encontrou na arte e suas potências poéticas instrumentos que têm colaborado para imaginar e efetivar esta possível retomada e reabitar o Tekoha (onde se produzem modo ser coletivo), o lugar originalmente organizado e habitado por povos indígenas, espaço de produção de conhecimento para resguardar o direito ancestral. É importante aqui também alertar para os riscos e cuidados necessários para nós, indígenas, que sofremos constantemente da perspectiva colonizadora ainda muito presente em abordagens sobre questões dos povos originários. Cuidados esses para não romantizar em demasia a ancestralidade, como se o Brasil fosse “descoberto”, como se as populações indígenas de diversas etnias fossem “civilizadas” passivamente, e essa invasão colonial. Daí a importância de os indígenas que foram silenciados se colocarem em evidência, como também uma reação dos povos originários que sempre lutaram para resistir à invasão. A proposta deve demonstrar como a ficção também é um importante dispositivo nessas retomadas políticoidentitárias, à semelhança do que, como denunciava Oswald de Andrade, o foi/é para a colonialidade. Não se trata, portanto, de pensar o prefixo re como um resgate ou um retorno a um ponto supostamente anterior à invasão colonial. Por isso é relevante pensar o espaço expositivo de obra de arte indígena, que não é qualquer obra. 76


FENDA #1.

I Can’t go on. I’ll go on, 2016. © Alfredo Jaar.



FENDA #2.


MESTIÇAGEM 17.


“ ”

A obra de um artista indígena é uma obra que vem da tentativa de tradução da luta indígena em prol do território físico e também do espaço subjetivo do pensamento. Essa obra é muito especial por conta disso, porque ela traduz esse movimento de resistência, de sobrevivência e de expansão nesses espaços. Ela não é apenas um simples objeto, mas o resultado de um saber ancestral e transcendental. Essa obra é uma tentativa de tradução de pensamentos e da criatividade coletivos, que não devem ser vistos como apenas de um indivíduo, o artista. A importância do coletivo para o indivíduo e do indivíduo para o coletivo é essencial na arte indígena. Nunca estamos representados na arte apenas por um indivíduo. E essa obra criada pelos artistas indígenas aparece de uma forma que recoloca esse pensamento acerca do indivíduo dentro de um todo e da relação desse individuo com esse todo. Não existe uma obra indígena sem esse encontro e esse conhecimento que é produzido pelo coletivo. A obra é materializada pelo indivíduo, mas o pensamento é um processo que ocorre no coletivo. Apesar de a obra de Andrey falar do processo histórico de sua família, ela fala também por todos os demais indígenas que foram soterrados nas cidades por toneladas de concreto e indiferença. É difícil encontrar nas palavras um meio para explicar tudo o que é único e especial, o que é transcendental, que está diretamente associado aos seres da terra. O corpo, os relacionamentos sociais, 81



XE RAPÓ, 2020, (still).


o bem-estar, o bem viver são intimamente relacionados aos elementos do entorno, a própria sociedade, os elementos da terra, da mata e animais, os espíritos. Não é possível no pensamento indígena desassociar essas relações. E é na arte o meio que o indígena encontra uma forma de traduzir as complexidades dessas relações. É necessário que os juruás (não indígenas) compreendam outros modos de pensamentos, esses diversos olhares indígenas. A arte indígena é mais um alerta na tentativa de diálogo entre os povos indígenas e esses juruás, que lhes oferecem outras formas de enxergar para além das enormes paredes de concreto e pisos de asfalto, e ver aquilo que nos une numa relação de respeito como humano, e, juntos, o que nos une com o não humano numa relação respeitosa também com os Ijás do Rio, Ijás da Mata, os guardiões, o espírito da terra, o espírito da floresta, o espírito das árvores. Estas são algumas reflexões que podem ser encontradas nas obras de Andrey Guaianá, que fazem parte da exposição CO YBY ORE RETAMA.

Sandra Ará Reté Benites é educadora e antropologa e a primeira curadora indígena do Museu de Arte de São Paulo.

ANDREY ZIGNNATTO: CO YBY ORE RETAMA • SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS • SÃO PAULO • 25/9/2021 A 15/3/2022 84


MESTIÇAGEM #1.


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LIVros

Há dez anos, os artistas Pablo Lobato e Yuri Firmeza viajaram pelo Brasil ao encontro de curadoras/es, para lançar a pergunta: “O que exatamente vocês fazem, quando fazem ou esperam fazer curadoria?”. No intuito de compreender gestos curatoriais na arte brasileira, seus agenciamentos e dissensos, as respostas à pergunta foram gravadas em vídeo e deram origem à videoinstalação homônima e, mais recentemente, a uma publicação organizada pelos artistas. O QUE EXATAMENTE VOCÊS FAZEM, QUANDO FAZEM OU ESPERAM FAZER CURADORIA? • Org. Pablo Lobato e Yuri Firmeza • Editora Circuito • R$ 50,00 • 162 páginas Reedição da icônica publicação de 1978 da artista, pioneira da body art e do feminismo no Brasil. O volume reúne três séries fotográficas de Gretta – Auto-Fotos (1975), Transformações (1976) e Diário de uma Mulher (1977) –, trabalhos que lidam com temas representativos de sua geração, como a problematização da imagem da mulher nos meios de comunicação de massa. A nova edição de Auto-Photos é o resultado de um trabalho de dois anos de Gretta, que se debruçou sobre seu arquivo pessoal para a digitalização e tratamento de todos os fotolitos e fotografias do período. GRETTA SARFATY: AUTO PHOTOS • • Lançamento na Sp-Arte 2021 Compilação exibe desenhos, colagens, pinturas e assemblages, entre outros trabalhos, extraídos das mais de duas mil obras encontradas na residência de Fernando Zarif após sua morte aos 50 anos, em 2010 em São Paulo. Entre essas obras, os Cadernos, um compêndio de mais de 50 quilos de desenhos reunidos em 33 volumes, com narrativas visuais compostas por ilustrações, textos e colagens, produzidas com uma infinidade de materiais. FERNANDO ZARIF: MÚLTIPLA UNIDADE • Org. Noemi Jaffe • R$ 70,00 • 243 páginas • Luciana Brito Galeria 86


Fotos: Falzer

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COLUNA do meio

Liege Jung, André Fabro, Sylvia Carolinne de Andueza e Milla Samarro

Sou dos Trópicos Galeria Café São Paulo

Fotos: Sonia Balady.

Artista Mariana Zoccoli e amigas

Paulo Anshowinhas

Artista Òkun no centro e amigas

Ozi Stencil: 35 anos de Street Art MCSP/ Chácara Lane São Paulo

Fotos: Sonia Balady.

Yukimi Yagui

Felipe Scarpa e Camila Freire

Gisele Abbud, Jacqueline Abbud e Mag Mor

Guilhermo Pivari, Tânia Macena, André Fabro e André Belculfine

Penna Prearo

Baixo Ribeiro

André Berardo, MagMor e Russ Art Lab Gallery São Paulo

Lea Federmann e Luciana Martins

Otávio Vilhena e Mariella Morrone

87


Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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