DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin EDIÇÃO . REDAÇÃO André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA Leandro Fazolla dasartes@dasartes.com DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br REVISÃO Angela Moraes PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou CMS/RJ financeiro@dasartes.com
Capa: , Eat me: A gula ou a luxúria, 1975. © Projeto Lygia Pape.
SAMSON FLEXOR 10
LYGIA PAPE 6
Agenda
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De Arte a Z
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Livros
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Coluna do meio
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SONIA DELAUNAY 54
CAMILLE PISSARO
JACOBUS VREL 88
72
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AGEnda
Patricia Martins, Série parece que você chegou ao fim.
A exposição itinerante percorrerá pela capital e outras cidades do interior da Bahia nos próximos meses, levando obras de seis artistas contemporâneos baianos que trazem a linguagem da gravura sob uma nova perspectiva. A curadoria da exposição foi feita pelos artistas Patrícia Martins e Chancko Karann, idealizadores do projeto, usando como critério a aproximação dos artistas com o universo da gravura. As obras se conectam pela pluralidade de formas de trazer a gravura de forma indireta e direta. Desta forma, as imagens propõem o uso da linguagem 6
da gravura de maneira não óbvia. "Os trabalhos apresentam a gravura de maneira expandida, como pensamento aplicado para diferentes tipos de produção, que incluem instalações, objetos, fotografia e gravuras como matrizes alternativas, mostrando a potência criadora que o universo da gravura carrega em si", explica Patrícia Martins, artista visual, idealizadora e uma das curadoras da exposição.
NOVAMATRIZ • GALERIA ATIVA • SALVADOR • 21/5 A 4/6/2022
de arte
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AZ
CURIOSIDADES • Uma importante fotografia na definição do surrealismo do século 20, , de Man Ray, arrecadou US$ 12,4 milhões na Christie’s Nova York em maio – superando o preço recorde anterior de uma fotografia vendida em leilão. A imagem original fazia parte do lote de venda , que arrecadou mais de US$ 42,3 milhões no total para a coleção do casal.
GIRO NA CENA • A marca de moda de luxo Louis Vuitton anunciou uma nova colaboração com a famosa artista japonesa Yayoi Kusama em uma série de artigos de couro para a coleção Cruiseline 2023. A parceria marca a segunda vez que a Louis Vuitton trabalha com a artista aclamada pela crítica e amada pela internet, conhecida por seu uso repetitivo de pontos, bolas e materiais reflexivos.
PELO MUNDO • Nova feira de arte de Nova York, que estreará em setembro, exibirá artistas que atuaram no século 20. Intitulada , a feira reunirá cerca de 30 galerias de todo o mundo no Battery Maritime Building, em Lower Manhattan. Será a segunda feira atualmente organizada pelo Independent, que viabilizará outra na primavera voltada para a arte contemporânea.
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GIRO NA CENA • Primeira edição da feira de arte ArPa, no Pavilhão Pacaembu, em São Paulo, recebe mais de 45 expositores que comercializam suas obras no espaço de 4 mil m². Os objetivos centrais do evento são expandir a arte nacional por meio dessa nova experiência e agregar colecionadores de todo o país, gerando novas oportunidades para galerias e possibilitando conexões com o cenário internacional. De 1 a 5/6.
VISTO POR AÍ • A Fundação Andy
Warhol para as Artes Visuais doou US$ 350 mil para várias organizações artísticas no centro da luta pela vida cultural da Ucrânia, em meio à invasão da Rússia ao país. Os fundos de emergência ajudarão a responder a preocupações imediatas, como fornecer refúgio a artistas em risco e proteger a arte ucraniana, e ainda ameaças mais existenciais, como ataques à liberdade de expressão criativa.
• DISSE MATTHEW WONG,
artista chinês queridinho do momento em entrevista ao jornal The New Yorker.
“ ”
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Nonny. Foto: © Galeria de Arte Frente.
DESTAQUE
SAMSOR ,
flexor
SAMSON FLEXOR: ALÉM DO MODERNO POR KIKI MAZZUCHELLI Samson Flexor (1907-71) é um artista cuja trajetória está intimamente ligada à história do MAM São Paulo e ao surgimento da arte abstrata no Brasil. Reconhecido sobretudo por sua contribuição para a abstração geométrica ao longo da década de 1950, Flexor considerava sua obra tardia, caracterizada inicialmente pela fluidez lírica do gesto e chegando ao retorno à figuração, como a expressão da potência máxima de sua arte. 12
A coroa de espinhos, 1950. © MAC USP. Foto: Renato Parada.
CONHECIDO COMO UM DOS PIONEIROS DA ABSTRAÇÃO NO BRASIL, SAMSON FLEXOR PARTICIPOU ATIVAMENTE DESTE IMPORTANTE MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DAS ARTES VISUAIS NO PAÍS NA DÉCADA DE 1950. NOVA MOSTRA NO MAM-SP RESGATA A OBRA TARDIA DO ARTISTA, QUE MARCA SUA TRANSIÇÃO DO MODERNO PARA CONFRONTAR AO CONTEMPORÂNEO O QUESTÕES ÉTICAS E ESTÉTICAS DE SEU TEMPO
Jardim das oliveiras (Paixão). Foto: © Museu Nacional da República.
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Aos pés da cruz, 1949. © Pinacoteca de São Paulo. Foto: Renato Parada.
Nascido no interior da atual Moldávia (então Império Russo), iniciou sua carreira artística em Paris, para onde transferiu-se em 1924. Até a ocupação da França, participou ativamente do contexto cultural parisiense, realizando inúmeras exposições e frequentando o ateliê de alguns de seus mestres como André Lhote, Fernand Léger e Henri Matisse. Até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, segue trabalhando assiduamente em encomendas de painéis de temática sacra e em inúmeros retratos que conciliam o notável domínio técnico e a intuição psicológica. Com a invasão alemã, é duplamente perseguido: por sua origem judaica e pela militância na Resistência. Realiza sua primeira exposição em São Paulo, em 1946 e neste mesmo ano inicia os primeiros contatos com críticos brasileiros como Sérgio Milliet, Luiz Martins e Lourival Gomes Machado. Transfere-se permanentemente para São Paulo em 1948, momento de dinamismo inédito no contexto artístico brasileiro que contrastava drasticamente com a França devastada do pós-guerra. Em 1949, participa da exposição inaugural do MAM São Paulo, , abraçando a última tendência. 29 17
Acima: Vai e vem diagonal em três quadrados, 1954. À direita: Invenção baiana nº 1, 1952. © Coleção Adolpho Leirner Fotos: Renato Parada.
Em 1951, ano da instauração da Bienal de São Paulo, inaugura seu Atelier Abstração, onde deu aulas à uma nova geração de artistas, entre eles, Jacques Douchez, Wega Nery, Norberto Nicola, Leyla Perrone e Anatol Wlaislaw. Na primeira metade da década de 1950, a pintura de Flexor se aproxima da linguagem do Concretismo, em obras que ecoam o otimismo de um período de modernização industrial e crescimento urbano em São Paulo. 18
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Vai e vem diagonal quadrado, 1954. Foto: Renato Parada.
Composição geométrica, 1952. © Samson Flexor. Coleção Particular.
Parto, 1969 (Série Bípedes) © MAM SP. Foto: Renato Parada.
Essa é a primeira exposição que tem como foco o desenvolvimento da obra de Flexor a partir de 1957, quando passa a rejeitar as formas estáticas em pinturas onde gradualmente predominam o gesto, a opacidade e a transparência. O golpe militar de 1964, junto com o diagnóstico de uma doença terminal, têm um impacto significativo na obra do artista e marca seu retorno à figuração. Os temas relativos à fragilidade da vida e à crítica à violência do , poder patriarcal dão origem aos pinturas que retratam grandes figuras antropomórficas grotescas, apresentadas 24
Pássaros, 1968. © Galeria de Arte Frente.
pela primeira vez na IX Bienal de São Paulo, em 1967. Ao reunir um conjunto significativo de obras da fase tardia de Flexor, a exposição busca lançar luz sobre um período menos conhecido de sua produção, evidenciando o trabalho de um artista que enfrentou os desafios éticos e estéticos e seu tempo e cujo legado permanece contemporâneo. Flexor faleceu em 1971, aos 64 anos, vítima de um enema pulmonar.
Kiki Mazzucchelli é diretora artística da Galeria Luisa Strina, em São Paulo. Desde 2017 é membro do conselho do Prêmio Pipa.
SAMSON FLEXOR: ALÉM DO MODERNO • MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO (MAM) • 22/2 A 26/6/2022 27
CAPA
LYGIA
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pape
EM SUA PRIMEIRA MOSTRA NA ALEMANHA, A ARTISTA DE VANGUARDA BRASILEIRA LYGIA PAPE MOSTRA SUA ARTE TRANSGRESSORA QUE, POR UM LADO, APRESENTOU UMA LINGUAGEM FORMAL ABSTRATO-GEOMÉTRICA E, POR OUTRO, MANIFESTOU-SE COMO UMA SUTIL RESISTÊNCIA POÉTICA CONTRA O PANO DE FUNDO DE VINTE ANOS DA DITADURA NO BRASIL
O corpo de trabalho de Lygia Pape (1927-2004), que ela desenvolveu com uma alegria irreprimível de experimentação ao longo de cinco décadas, é caracterizado por uma ampla variedade de mídias e uma abordagem interdisciplinar. Além de pinturas geométricas, desenhos, relevos e xilogravuras abstratas, sua obra inclui composições de balé, poemas, instalações imersivas e performances coletivas em espaços públicos. Lygia Pape foi uma das figuras-chave do Movimento Neoconcreto no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960. Sua compreensão única da abstração geométrica resultou em uma reconceituação radical da arte construtivista concreta, centrada na ideia da obra aberta. Além das questões éticas e sociopolíticas, Pape incluiu todos os sentidos em suas obras e transformou os espectadores passivos em participantes ativos. O título da exposição cita um texto de Pape sobre sua obra (1968), cuja ideia de uma membrana ou pele que tudo conecta no espaço também pode ser aplicada a muitos de seus outros trabalhos. A mostra apresenta o trabalho multifacetado dessa extraordinária artista e a homenageia como uma voz enriquecedora dentro de um desenvolvimento global da arte. 30
Ttéia 1C, 2001-22. © Projeto Lygia Pape. Foto: Pedro Pape.
POR CÉCILE HUBER
Pintura, 1953. © Projeto Lygia Pape.
Pintura, 1954-56. © Projeto Lygia Pape. Todas fotos: © 2022 Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen.
PINTURA, 1953 O quadro é uma das quatro únicas pinturas a óleo da obra de Lygia Pape. Marca seu início artístico, durante o qual explorou uma linguagem visual abstrata e a cor como meio de expressão sensual. O arranjo construído é inspirado na Arte Concreta, que prima por formas puras e abstratas que não têm qualquer referência ao mundo sensual, mas são criadas puramente mentalmente de acordo com princípios geométricomatemáticos. Esse movimento artístico exerceu grande influência no cenário artístico brasileiro após o fim da ditadura autoritária de Vargas, em 1945. A pintura era executada tradicionalmente em óleo sobre tela – técnica que Pape abandonou pouco tempo depois por ser alérgica à tinta a óleo. Logo depois, deu as costas à divisão clássica das categorias de gênero de pintura, escultura e desenho. A pintura a óleo inicial apresenta aspectos que se repetem em seus trabalhos posteriores: o rigor geométrico é quebrado com o uso da cor e das formas vivas. RELEVOS E PINTURAS, 1954-1956 O Grupo Frente, do qual Pape fazia parte ao lado de Lygia Clark e Hélio Oiticica, aprofundou a abstração geométrica e a arte concreta, encarnada por artistas como Kazimir Malevich, Piet Mondrian e Max Bill. Linhas, retângulos e quadrados em ricas cores primárias, assim como preto e cinza, surgem do fundo 34
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Tecelar, 1957. © Projeto Lygia Pape.
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branco das pinturas de Pape. O esquema de cores remete ao movimento holandês De Stijl, enquanto as linhas paralelas e cruzadas lembram Malevich. A jovem cena artística brasileira estava bem informada sobre o modernismo europeu, mas, conscientemente, lidou com isso com bastante liberdade e formulou uma resposta independente. Relevos e pinturas saem do pictórico bidimensional e se projetam no espaço. O movimento por parte do observador é necessário para apreender completamente a forma dos relevos. TECELARES, 1953-1960 é um dos mais importantes conjuntos de obras de Pape. As xilogravuras marcaram a transição entre suas fases concreta e neoconcreta. Para estes, Pape trabalhou painéis de madeira com ferramentas e lixa. Ela então os coloriu com tinta preta e os imprimiu, geralmente apenas uma vez, em papel de arroz levemente transparente. Na imagem, as linhas de granulação e outras endentações aparecem em branco. Nas composições complexas dos , as formas geométricas estritas contrastam fortemente com a estrutura viva da madeira. A irregularidade do material confere às linhas um gesto gráfico. Com os , Pape começou a contrariar os rígidos princípios do concretismo e já trabalhava em uma direção mais aberta, neoconcreta. 37
Livro do tempo, 1961-63. © Projeto Lygia Pape. Foto: Achim Kukulies.
LIVRO DO TEMPO, 1961-1963 Para este enorme trabalho de parede, Pape desenvolveu 365 variações da forma do quadrado, que se referem aos dias de um ano. Em cada caso, ela retirou partes da forma básica e as adicionou em outro lugar. Pape pintou os quadrados de madeira com tinta têmpera nas cores primárias (vermelho, amarelo e azul), além de laranja, preto e branco. , cada painel — ou seja, cada dia — conta uma nova Assim como no história. Do mesmo ponto de partida, o tempo permite que surjam inúmeras variações únicas. As peças individuais podem ser lidas como imagens abstraídas da realidade, como símbolos, ou simplesmente como puros jogos geométricos. Embora Pape utilizasse uma linguagem formal abstrata, ela estabeleceu uma referência aberta ao mundo por meio do título.
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LIVRO DA CRIAÇÃO, 1959 O é paradigmático da obra de arte neoconcreta que se liberta da forma estática. Pape abandonou o espaço plano da tela e criou um livro-objeto de livro tridimensional. Narra a criação do mundo em 16 episódios, como um poema visual sem palavras. A artista desenvolveu formas espaciais abstratas a partir do quadrado plano, que, juntamente com as cores simbólicas brilhantes, ilustram os episódios individuais. O livro com suas páginas quadradas soltas só se ativa quando é segurado nas mãos e desdobrado. Como na teoria do não objeto de seu colega Ferreira Gullar, o efeito artístico é criado pela convergência da experiência mental e sensorial. Pape se esforçou para envolver todos os sentidos do espectador – ou melhor, do usuário, e permitir que cada um crie individualmente sua narrativa.
Livro da criação, 1959. © Projeto Lygia Pape.
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Divisor, 1968. © Projeto Lygia Pape.
O Ovo, 1967. © Projeto Lygia Pape.
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DIVISOR, 1968/1990 As obras de Pape mudaram radicalmente a partir de 1967, incorporando cada vez mais seu ambiente. Com , ela voltou a a exposição trabalhar intensamente no campo da arte e se dedicou a novas mídias, como cinema e performance. para um Originalmente, ela havia planejado o espaço interior no qual as pessoas enfiariam a cabeça por fendas uniformemente espaçadas em um grande pano branco. Mas como isso não pôde ser realizado, ela levou o pano para a comunidade Chácara de Cabeça, perto de seu ateliê, onde deu para as crianças brincarem e gravou essa primeira ativação em um filme. As crianças pegaram o pano e intuitivamente descobriram para que foi feito. Eles formaram um novo ser coletivo que se move e é simultaneamente conectado e separado por uma pele comum. Mais tarde, Pape também teve a peça ativada com adultos tornou uma metáfora em vários locais da cidade. para as massas politizadas nas ruas, protestando contra a ditadura da época. O OVO, 1967 O filme mostra um ovo quadrado na praia de onde sai uma pessoa: a própria Lygia Pape. A obra consiste em uma moldura de madeira em torno da qual foi esticado um filme plástico, que é rasgado por dentro. Ela concebeu a obra para que pudesse ser reproduzida em qualquer lugar e por qualquer pessoa, sem seu envolvimento direto, e a ativou em vários locais, mudando o participante. Pape filmou a ação na praia para fins de documentação. Com esse cenário, são evocadas associações com a natureza utópica e intocada. No contexto da ditadura, explora os limites do que pode ser feito publicamente e concorda com uma expressão ambígua. Todos podem se tornar um novo sujeito participativo enquanto (re)nascimento. O ovo quadrado, no entanto, também simboliza o neoconcreto rompendo com a geometria e o “cubo branco”, o espaço expositivo de paredes brancas. 45 43
EAT ME: A GULA OU A LUXÚRIA? 1975 O vídeo mostra um de duas bocas com batom, uma delas com bigode, ambas devorando e cuspindo pequenos objetos não identificáveis. Com essa obra, explorou a objetificação da mulher na sociedade de consumo. Ao editar o filme, ela aplicou uma regra estritamente conceitual e remontou as partes individuais de tal forma que a imagem pulsava cada vez mais. Ao lado dos gemidos, a pergunta “gula ou luxúria?” pode ser ouvido em vários idiomas.
A atividade de devorar e expelir faz referência ao Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (1890-1954), que explorava a possibilidade de uma identidade pós-colonial. O termo “antropofagia” se refere a rituais do povo indígena Tupinambá, em que eles (simbolicamente) comiam seus inimigos para assimilar suas qualidades positivas. De Andrade transferiu essa ideia para a forma como se lida com a cultura colonial europeia. Para a produção cultural brasileira, tratava-se de devorá-la em vez de ser devorada por ela, e depois excretá-la, digerida, como algo próprio. Essa ideia continua a moldar a cultura brasileira até hoje.
Eat me: A gula ou a luxúria, 1975. © Projeto Lygia Pape.
CATITI-CATITI, NA TERRA DOS BRASIS, 1978 Os estudos de filosofia empreendidos pela artista a partir de 1972 resultaram em uma tese de pós-graduação que abordou a questão do que a arte brasileira poderia abranger em contraste com a arte norte-americana e europeia. O texto parte de um trabalho em vídeo sobre o movimento antropofágico na arte (nº 16). Na língua indígena tupi, significa “lua nova, oh lua nova”. O filme parodia imagens e ideias do que é ostensivamente o Brasil. A voz de um deputado acompanha imagens exóticas da praia de Ipanema, da mata atlântica, de uma serraria. A manchete de um jornal flutuando na água anuncia que o decreto do Ato Institucional nº 5, com o qual a junta militar legitimou a censura e a tortura em 1968, passaria a ser cumprido com ainda menos discrição. Ouvem-se textos de autores portugueses elogiando o país “descoberto”. O poeta Luis Otávio Pimentel encarna as três etnias do Brasil, encenando-se caricaturado como índio, branco e negro. Ao final do filme, o protagonista devora frutas exóticas no espírito dos rituais antropofágicos dos Tupinambá. (1996A fotografia conceitual 1999) também se refere aos Tupinambá que, antes da colonização, viviam no local do atual Rio de Janeiro. A foto mostra uma nuvem vermelha sobre a cidade. O projeto, que deveria ser realizado por foguetes de sinalização, e foram classificados como material militar devido às regulamentações de importação, não era viável. A foto conceitual foi tudo o que restou. As tribos Tupinambá faziam capas protetoras vermelhas com penas do íbis-escarlate, que Pape via como um símbolo das culturas indígenas do Brasil. A cor escarlate também remete à história sangrenta da colonização. 48
Manto Tupinambá, 1996-99. © Projeto Lygia Pape.
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Memória Tupinambá, 2000. © Projeto Lygia Pape.
TTÉIA 1 C, 2001/2002 Fiada em fio de prata, a gigantesca instalação se estende entre o piso e o teto. Os fios de linha no quarto escuro lembram cordas musicais, seda de aranha, cachoeiras ou raios de luz saindo de uma nuvem. Em 1978-1979, como parte de um seminário com alunos no parque Lage, Pape experimentou pela primeira vez fios que esticaram entre as árvores. Ela continuou a desenvolver essa ideia nas grandes , que existem tanto em fio instalações de prata quanto em fio de ouro, até pouco antes de sua morte. Apenas a luz torna o fio visível e dá ao espaço um efeito quase sagrado. Com o mínimo uso de materiais, a obra dá origem a volumes consideráveis e desdobra um grande efeito espacial. O movimento do espectador é essencial para experimentar os efeitos de luz e a sobreposição dos raios. O título é um jogo de palavras das palavras ) e teteia, que portuguesas teia ( coloquialmente se refere a uma pessoa ou coisa graciosa. As lembram o primeiro grupo de obras , que também se refere à tecelagem do espaço.
Cécile Huber é curadora assistente no Kunstsammlung. Seus interesses de pesquisa acadêmica incluem psicanálise feminista, teoria da arte e filosofia política e jurídica feminista.
LYGIA PAPE: THE SKIN OF ALL • KUNSTSAMMLUNG • DÜSSELDORF • ALEMANHA • 19/3 A 17/7/2022 52
Ttéia 1C, 2001-22. © Projeto Lygia Pape. Foto: Pedro Pape.
Gouache nr.1, 1938, ©Private Archives. © PRACUSA SA
ALTO relevo
A
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S ON I y a n
de l a u
SONIA DELAUNAY FOI UMA DAS PIONEIRAS NO DESENVOLVIMENTO E DISSEMINAÇÃO DA ARTE ABSTRATA NA DÉCADA DE 1910. TRABALHOU EM DIVERSOS SUPORTES NA FRONTEIRA ENTRE “ARTE” E “ARTESANATO”, TANTO COMO VANGUARDISTA QUANTO COMO EMPREENDEDORA E FOI UMA PRECURSORA DE COLABORAÇÕES EXPERIMENTAIS CONTEMPORÂNEAS EM ARTE E DESIGN
AVANT-GARDE E ESQUECIMENTO
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” Sonia Delaunay
Muitas vezes colocadas às sombras, as artistas mulheres, que participaram das vanguardas históricas, apresentam percursos admiráveis. Suas poéticas abrem novos caminhos para o entendimento do fenômeno do que é “ser moderno” no início do século 20. Entre essas artistas, as proposições de Sonia Delaunay (1885-1979) borram as fronteiras das linguagens artísticas, isso porque ela dominou as esferas da pintura, da arquitetura, vestuário e mobiliário. Ela também foi a primeira artistamulher viva a ganhar uma mostra individual no Louvre, em 1964, e, a partir daí, sua arte voltou ser lembrada em retrospectivas nos grandes museus, como o Museu de Arte Moderna de Paris (2015) e o Thyssen-Bornemisza de Madri (2017). 56
Rhythm Color nº. 1916, 1973. Foto: Poul Buchard / Brøndum & Co. © PRACUSA SA.
POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA
Essa evidência entre as mulheres modernistas não é à toa! Sonia Delaunay é dona de trabalho multidisciplinar, sendo figura-chave no cenário parisiense. Ao lado do marido, Roberto Delaunay (1885-1941), ela foi precursora do cubismo órfico. Além disso, a intensa exploração cromática de suas obras expandiu os limites da arte e trouxe o moderno para os objetos do cotidiano. E tudo isso pode ser conferido em uma nova exposição que acontece agora no Museu de Arte Moderna de Louisiana, na Dinamarca – ah! uma viagem não está nos planos neste momento? Não se aflija! Contamos tudo sobre essa artista que por muito tempo foi negligenciada na história das vanguardas. De família judia, nossa artista nasceu Sara Élievna, no antigo Império Russo (hoje, Odessa – território da Ucrânia). Seus pais a entregaram para adoção ao irmão abastado de sua mãe, Henri Terk. Apelidada de Sonia, durante a infância viveu mergulhada em livros de arte em São Petersburgo. Na juventude, aprofundou seus estudos em artes na Alemanha e na França. O casamento por Wilhelm Uhde em Paris foi conveniência com o uma dupla jogada do casal: de um lado, impediu a família de forçá-la a voltar para casa e de outro acabou com os boatos sobre a homossexualidade de Uhde. Graças ao galerista, Sonia conheceu grandes mestres da pintura, tais como, Picasso, Braque e Derain.
Figurino para "La danseuse aux disques", 1923. © PRACUSA SA 59
Cartaz do projeto para o aperitivo Delaunay: "um Delaunay é bom a qualquer hora", Paris, 1937. © PRACUSA SA
À época, suas pinturas eram figurativas, de inspiração pós-impressionistas e, depois, fauvista; já traziam as cores fortes que se tornariam elemento central de sua produção. Nos trabalhos que realizou nesse período, de um lado, reconhece-se de modo fácil a influência de Gauguin e Van Gogh, particularmente na procura por liberdade e pelas qualidades expressivas da cor. Por outro lado, o seu interesse pela exploração dos valores e das relações cromáticas a aproximou dos fauvistas, com os quais expôs algumas obras. Após o divórcio, em 1910, Sonia se casou com o pintor francês Robert Delaunay. Antes da I Guerra Mundial, a casa dos Delaunays era um ponto de encontro de artistas, poetas e escritores em Paris, tais como, Henri Rousseau, Guillaume Apollinaire, Fernand Léger, Albert Gleizes e Blaise Cendrars. Robert e Sonia lideraram o orfismo, nome criado por Apollinare para designar esse grupo de artistas que tinha os mais diversos interesses e que, no futuro, se envolveria com vanguardas históricas, como o Dadá e o Surrealismo. Em comum entre esses artistas, somente o desejo pela pintura pura, ou seja, aquela que dispensava o objeto reconhecível e os recursos estruturais naturalistas, confiando na forma e na cor para comunicar o significado e a emoção. Os Delaunays, dentro do orfismo, criaram o simultanismo – um novo vocabulário visual baseado na variação fremente e abstrata da arte cubista e futurista. Nessa vertente, os pintores empregaram a interação entre as cores e criaram uma sensação de profundidade e movimento em toda as obras. O termo simultanismo vem do trabalho do cientista francês Michel Eugène Chevreul, que identificou o fenômeno do “contraste simultâneo”, no qual as cores parecem diferentes dependendo do que está ao seu redor. Por exemplo, um cinza parece mais claro em um fundo escuro. Os Delaunays dispensaram a forma e compuseram o ritmo, o movimento e a profundidade por meio de manchas e tons vibrantes. 60
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Ritmo colorido, Paris, 1954. Foto: Volker Naumann, Schönaich © PRACUSA S.A.
O casal trabalhou em trocas contínuas até a morte prematura de Robert em 1941, porém, sempre pesou sobre Sonia o preconceito – por ela ser uma mulher e por ela ter trabalhado com suportes menos nobres e mais comerciais, como o design, a 64
arquitetura e a cenografia. Ela queria expandir sua arte à vida cotidiana e aos objetos mais comuns. A artista não distinguia entre belas artes e artes aplicadas à indústria. E, muitas vezes, suas criações no vestuário e na decoração incomodaram Robert
Portugal, 1937. Foto: Andreas Larsson/ Museu de Esboços © PRACUSA SA.
Delaunay, isso porque nesses lugares ela tinha o papel de criadora e abandonava o habitual enquadramento de discípula. Isso não impediu Sonia Delaunay de desenvolver um intenso programa artístico de modernização da cultura, a
partir de cores e contrastes poderosos. Ela buscava a arte nas coisas do cotidiano (da decoração interna de sua casa à pintura de cavalete). São livros, cenografias, desenhos publicitários (de interior e de moda), telas e vestidos – todos assinados pela artista. 65
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Vestido Sonia Delaunay , ca. 1926. © PRACUSA SA
Traje para o Carnaval do Rio, 1928. Foto: Louisiana Museum of Modern Art. © PRACUSA SA.
No campo da moda, o nome dela é reconhecido por referências, tais como, Prada e Jean Paul Gaultier. Em, 1979, por exemplo, David Bowie surgiu em uma apresentação com trajes inspirados pelos desenhos de Delaunay. Mas a história da arte, por longo tempo, parecia não estar disposta a perdoar a artista por essas ousadias, apagando ou reduzindo suas contribuições. Nos dias de hoje, colocar as criações dessa artista como marginais às vanguardas ou ainda posicionar seu trabalho como decorativo é dar força para uma narrativa da história da arte que prioriza artistas homens e apaga as mulheres nessa busca pelo moderno. A história das exposições mais recentes aponta para essa visão deficitária e pensam o modernismo na relação arte e vida – propagada pela fluidez do pensamento de Sonia Delaunay.
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Prismes électriques, nº 41, 1913-1914 Centre national des arts plastiques, France, © PRACUSA S.A.
Christian e Hjørdis Gierløff, 1913-14.
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Matra 530 A, 1967. Museu Matra, Espaço Automóvel Cidade de Romorantin-Lanthenay © PRACUSA SA
Então, sob essa nova perspectiva, a exposição dinamarquesa destaca a produção da artista desde os anos de 1910 até os anos de 1970 e apresenta seus diversos projetos e usos das práticas multimídias atuais no campo das artes visuais e do design. Há uma seção especial dedicada aos seus designs têxteis e sua parceria de 30 anos com a loja de departamentos holandesa Metz & Co., em Amsterdã. São 200 desenhos e muitos tecidos estampados pela artista. Acrescentem-se ainda os desenhos para figurinos de teatro e os “vestidos-poemas” em colaboração com o amigo Tristan Tzara. A mostra também exibe o engajamento da artista, suas relações como colegas de outras linguagens artísticas e suas conexões com a poesia de vanguarda. Assim, toda a diversidade de Sonia Delaunay exposta dá condições de entendimento do que, de fato, significava ser moderno.
Alecsandra Matias de Oliveira é Doutora em Artes Visuais pela ECA USP (2008) e pós-doutora pela Unesp (2018). Atualmente, é especialista em cooperação e extensão universitária do MAC USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. Autora do livro Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011).
SONIA DELAUNAY • LOUISIANA MUSEUM OF MODERN ART • DINAMARCA • 12/2 A 12/6/2022 71
PELO mundo
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CAMILLE pissaro
POR REDAÇÃO
se baseia no acervo do museu Ashmolean, a maior coleção do mundo dedicada a um artista impressionista, revelando detalhes íntimos e fascinantes sobre Pissarro, seus amigos artistas e parentes. A exposição pretende apresentá-lo como a força galvanizadora que impulsionou a arte moderna e sem a qual não teria havido o Impressionismo. A mostra também será tema de um novo longa-metragem da produtora aclamada pela crítica, , disponível nos cinemas em todo o mundo a partir de 24 de maio de 2022. Apesar de ser um dos membros fundadores de um dos movimentos artísticos mais famosos de todos os tempos, Camille Pissarro permanece menos conhecido do que seus associados, Cézanne, Monet, Degas e Gauguin. Era o mais velho dos impressionistas e o único a expor em todas as oito exposições que ajudou a organizar de 1874 a 1886. Seu papel central é ainda mais notável considerando suas origens externas. Nasceu de pais franco-judeus nas Índias Ocidentais dinamarquesas e tinha 25 anos antes de se estabelecer finalmente na França. Pissarro chegou a Paris bem a tempo para o final da Exposição Universal de 1855, cujas pinturas de Jean-Baptiste-Camille Corot e a exposição individual de Gustave Courbet foram uma revelação para ele. Os realistas franceses antie seu tratamento aos trabalhadores tocaram Pissarro, que havia rejeitado sua própria origem burguesa. Ao contrário de seus 74
Self-Portrait, 1903. © Tate, London. Pág. anteriores: Design for a Fan: The Pea Stakers, 1890. © Ashmolean Museum.
PRIMEIRA EXPOSIÇÃO NO REINO UNIDO EM 20 ANOS ABRANGE TODA A CARREIRA DE CAMILLE PISSARRO. O ARTISTA FRANCÊS É CONSIDERADO POR MUITOS O “PAI DO IMPRESSIONISMO”
contemporâneos impressionistas, nunca pintou as classes médias ociosas ou marcos românticos, preferindo cenas pastorais simples, agricultores ou apenas a vista de sua janela. Apesar de ser um ateu comprometido, não conseguiu escapar de suas raízes judaicas. Em meio ao antissemitismo virulento na França do século 19, o notório caso Dreyfus, de 1894, dividiu a opinião entre os artistas, assim como o país inteiro. Degas surgiu como um antissemita raivoso que fez comentários venenosos sobre seu antigo colaborador, recusando-se a ter qualquer coisa a ver com Pissarro depois de 1894. Escrevendo para a sobrinha, em 1889, Camille refletiu sobre sua falta de sucesso comercial e aceitação como artista: “…uma questão de raça, provavelmente”. No entanto, Pissarro fez amizade com outros pintores que respeitavam sua individualidade e reconheciam sua influência, mesmo que discordassem de sua política. Com Monet e Sisley, definiu a fase inicial da paisagem impressionista, pintando ao ar livre para capturar os efeitos do clima e experimentando paletas mais leves e composição radical. Quando Pissarro retornou à França de Londres, após a Guerra Franco-Prussiana (1870-1), foi fundamental na organização da primeira exposição impressionista em 1874. Entre 1872 e 1885, seu relacionamento mais próximo foi com Cézanne, que achou o encontro transformador. Cézanne escreveu que aprendeu a trabalhar regularmente durante seu primeiro ano com Pissarro, que era “um pai para mim. Um homem para consultar e um pouco como o bom Deus.”
The Village Screened by Trees, 1869. 77
Pissarro era um professor nato e um valioso defensor dos outros, famosamente persuadindo Gauguin a desistir de ser um corretor da bolsa e se dedicar à arte. Todos os cinco filhos de Pissarro se tornaram pintores, para desespero de sua mãe. Mas também era um aluno dedicado e disposto a aprender com os outros. Em 1885, Pissarro conheceu os amigos de seu filho Lucien, Georges Seurat e Paul Signac. Interessou-se imediatamente por seus experimentos inspirados em ideias contemporâneas sobre a “teoria das cores”. Os artistas construíam seus quadros aplicando tinta em pequenos pontos de cores complementares, criando um efeito
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cintilante e luminoso. Juntamente com Lucien e os pintores mais jovens, Pissarro mostrou suas obras “pontilhistas” em uma sala separada na última exposição impressionista em 1886. Um crítico simpático chamou a nova técnica de “Neoimpressionismo” – um desenvolvimento natural da espontaneidade impressionista em direção a uma arte mais considerada e permanente. No entanto, a nova técnica consumia muito tempo e a produção de Pissarro despencou enquanto seus revendedores achavam difícil vender essas pinturas. Talvez como compensação, voltou-se novamente para a aquarela, fazendo paisagens pintadas Pont Boieldieu, Rouen, Sunset, 1896. © Birmingham Museum Trust.
A Morte de Sócrates,1788.
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livremente em lavagens saturadas, não como estudos preparatórios, mas como obras em si. Tendo abandonado definitivamente a técnica do ponto em 1890, Pissarro começou a fazer sucesso comercial, trabalhando em um estilo mais pictórico. Seguindo o exemplo de Monet, também começou a pintar em série, notadamente paisagens urbanas em Paris e cenas portuárias em Rouen, Le Havre e Dieppe. Uma infecção nos olhos recorrente o obrigou a pintar dentro de casa, olhando pelas janelas de apartamentos alugados e quartos de hotel. A exposição conta com grandes obras de toda a carreira de Pissarro, pontuadas por pinturas e desenhos dos artistas mais próximos a ele, demonstrando sua influência sobre os impressionistas e relações dinâmicas com artistas mais jovens. Em exposição pela primeira vez no Reino Unido está , Summer (1870), de Pissarro; e de Cézanne (c. 1880), um exemplo do impacto de Pissarro até mesmo na visão singular de Cézanne. Outros destaques são as obras de Gauguin, que acatou o conselho de Pissarro de adotar uma paleta mais leve e uma composição luminosa. Também está exposta na mostra o retrato comovente, feito por Pissarro em 1874, de sua filha Jeanne-Rachel (Minette), que morreu pouco antes de seu nono aniversário. Ela é mostrada nos últimos estágios de sua doença, uma febre, com o cabelo cortado curto para aliviar seus sintomas. A pintura nunca foi finalizada.
Jeanne Pissarro (known as Minette) Holding a Doll, 1874. Pág. anteriores: Apple Picking, Eragny, 1887–8. © Dallas Museum of Art. 83
Self-Portrait with Palette, c. 1896. © Dallas Museum of Art. Pág. anteriores: Spring: Plum Trees in Bloom, 1877. © Musée d’Orsay, Paris.
Camille Pissarro é único entre os impressionistas. O seu trabalho recompensa uma atenção atenta e cuidadosa que revela um artista extremamente solidário e humano. Ao contrário de seus contemporâneos, nunca fez concessões para o mercado, estava disposto a aprender e experimentar, mas sempre se dedicou a pintar a “sensação”. Consequentemente, é o mais sincero e autêntico de todos os impressionistas e sua influência sobre suas próprias gerações e sucessivas de artistas é impossível de quantificar.
PISSARRO: FATHER OF IMPRESSIONISM • ASHMOLEAN MUSEUM OXFORD • REINO UNIDO • 18/2 A 12/6/2022 87
Interior with a Woman Seated by the Hearth Museo Nacional Thyssen-Bornemisza
FLASHBACK
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JACOBUS vrel
POR BERND EBERT, CÉCILE TAINTURIER E QUENTIN BUVELOT O MISTÉRIO DE VREL Quem foi Jacobus Vrel? Há 150 anos, gerações de historiadores da arte tentam resolver o mistério da identidade do artista. Conhecemos seu nome apenas pelas assinaturas de suas pinturas e por um único inventário, um documento de 1659 que cataloga a coleção do arquiduque Leopold Wilhelm da Áustria (1614-1662) e lista três de suas telas. No entanto, Vrel, que não é mencionado por nenhum dos conhecidos biógrafos de artistas holandeses dos séculos 17 e 18, permaneceu praticamente desconhecido por mais de dois séculos. Mesmo na segunda metade do século 19, quando vários artistas agora famosos foram redescobertos, as obras de Vrel ainda eram listadas sob os nomes de seus colegas pintores, particularmente Johannes Vermeer, Pieter de Hooch e Isaac Koedijck. 90
Street Scene with People Conversing. Munich, Bayerische Staatsgemäldesammlungen, Alte Pinakothek.
AS PINTURAS DE JACOBUS VREL SÃO PECULIARES, AS FIGURAS EXCÊNTRICAS E AS CENAS DE RUA PARECEM SAÍDAS DE UM PALCO. POR MUITO TEMPO, SUAS OBRAS FORAM CONFUNDIDAS COM AS DE JOHANNES VERMEER. SEUS TRABALHOS ESTÃO NOS ACERVOS DOS MUSEUS MAIS FAMOSOS DO MUNDO E SÃO RARIDADES COBIÇADAS ENTRE COLECIONADORES. MAS, ATÉ HOJE, O PINTOR HOLANDÊS PARECE SER UM FANTASMA
Vrel passou a ser reconhecido como artista somente após um exame minucioso das assinaturas nas pinturas. Ainda assim, os estudos até agora não foram capazes de resolver a questão de quem era Jacobus Vrel. Apesar de pesquisas abrangentes em vários arquivos na Holanda, nenhum vestígio claro dele foi encontrado até o momento. O sobrenome Vrel ou variações sobre ele aparecem ocasionalmente, mas a identidade do pintor ainda permanece no escuro. O “fantasma” de Vrel continua a dar origem a várias hipóteses sobre quando e onde exatamente o artista atuou. O período criativo reconhecido de Vrel é concentrado entre os anos de 1654 e 1662, iniciando com a comprovada , assinatura em datada de 1654. Anteriormente, atribuía-se a Vrel uma obra datada de 1662, mas novos estudos reconhecem a autoria de Isaac Koedijck. Com base nessas descobertas, é possível, portanto, que Vrel tenha se tornado um artista ativo na década de 1630. Isso confirmaria a visão agora aceita de que Vrel não era um seguidor de Vermeer e De Hooch, mas seu precursor.
Interior of a Reformed Church during a Service. Steinfurt, Burgsteinfurt, Sammlung der Fürsten zu Bentheim. 93
O que distingue Vrel? Vrel parece retratar a vida cotidiana em pequenas cidades holandesas do século 17, ao mesmo tempo em que cria mundos altamente distintos e misteriosos. Suas vistas de rua e interiores parecem estranhas em suas composições; geralmente mostradas de costas ou de perfil, suas figuras parecem peculiares e introvertidas. Um silêncio às vezes opressivo caracteriza as imagens instantâneas de Vrel no tempo, que tendem a desafiar os padrões comuns de interpretação. Em sua natureza despojada, as cenas parecem surpreendentemente modernas, na verdade, quase atemporais. Essa pode ser a razão pela qual os espectadores atuais respondem fortemente às pinturas de Vrel. Isso também fica evidente na crescente atenção nas contribuições de várias disciplinas acadêmicas, bem como na ressonância nas redes sociais, onde suas pinturas são caracterizadas como “enigmáticas”, “assustadoras”, “estranhamente comoventes”, “espectralmente não resolvidas”, e às vezes “assustadoramente vazias”. Como um fantasma, Vrel parece nos iludir. Talvez seja exatamente isso que faz o charme de suas obras. Elas estão implorando para serem descobertas e desvendadas.
Interior with a Woman Combing a Girl’s Hair, and a Boy at a Dutch Door. Detroit, Michigan, The Detroit Institute of Arts. 94
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Interior with a Woman at a Washtub, and a Child. Museum de Fundatie, Kasteel Het Nijenhui.
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SALAS SEM CHAVES POR KARIN LEONHARD
A Seated Woman Looking at a Child through a Window, Paris, Fondation Custodia, Frits Lugt Collection.
A profundidade de uma atividade é a marca registrada de muitas figuras nas pinturas de interiores de Jacobus Vrel. Nos espaços escassamente mobiliados com paredes brancas e tetos altos, tão característicos de suas pinturas, pouco acontece a não ser pequenas ações cotidianas: uma mulher penteia o cabelo de uma criança; uma mulher olha pela janela; uma mulher se aquece junto ao fogo; uma mulher lê…. A repetição do imaginário e a semelhança dos retratados e suas vestimentas fazem com que suas figuras às vezes apareçam como variações de um tema: a mulher em um interior, engajada em atividades nada espetaculares, até insignificantes. Normalmente, ela está virada de costas para o espectador, de modo que seu rosto não mostra emoção, enquanto sua estatura parece robusta, quase rechonchuda – simplesmente como um objeto, imóvel e isolado do mundo exterior. Visível versus invisível As obras de Vrel desafiam a interpretação pela descrição de tarefas simples ou da vida real. O que Vrel, de fato, quer dizer com a pintura que mostra uma mulher se virando para uma criança do outro lado de uma janela e, no processo, trazendo sua cadeira perigosamente perto de tombar para a frente? O encontro entre a mulher e a criança pode ser entendido como uma saudação casual, mas isso não é o que parece. De fato, o contraste entre o espaço iluminado em que a mulher está localizada e o corredor ou área escura onde a criança aparece vagamente abre uma lacuna entre dois mundos. Sua mão está colocada sobre a vidraça, como se fosse uma superfície que a separa de outro mundo que está sendo sugestivamente evocado. Não fica claro aqui o que é cotidiano e visível e o que é invisível de fato e se manifesta, na melhor das hipóteses, na imaginação. Nesse sentido, estudiosos têm apontado a introversão dos quadros de Vrel, como se tivéssemos perdido a chave – o – para abrir os espaços e torná-los acessíveis a nós. 99
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Interior with a Woman and a Boy, and a Child Peering out of the Alcove. Brussels, Royal Museums of Fine Arts of Belgium.
Tome-se, por exemplo, outra pintura em que Vrel desenvolveu seu típico interior holandês. No lado esquerdo da sala, há uma lareira sobre a qual se apoiam algumas peças de cerâmica e um castiçal que se destacam claramente contra a parede clara. Além disso, há um banco, uma mesa sobre a qual foram colocados livros e um pedaço de papel, além de uma cama: na alcova, os travesseiros cuidadosamente afofados estão um em cima do outro e ao lado um casaco pendurado em um gancho, enquanto uma cadeira foi colocada ao lado dele. Tudo é claramente organizado e apresentado de forma bem alinhada. O espectador está inclinado a contar as coisas, porque quase não há interseções de perspectiva e os objetos estão bem colocados um ao lado do outro: três pratos, dois livros, um castiçal, um aquecedor de pés, uma comadre. Vista dessa forma, a pintura parece não guardar segredo, não fosse a inescrutável figura feminina que ostensivamente nos vira as costas enquanto vasculha uma gaveta da mesa. Ela concentra toda a sua atenção no conteúdo desse item de mobiliário e, portanto, em um espaço interior oculto e misterioso como aquele descrito pelo filósofo francês Gaston Bachelard (18841962), que certa vez observou que a gaveta ou armário trancados simbolizam o próprio mistério e o interior desses móveis é entendido como um espaço íntimo que reflete “um sentido intuitivo de esconderijos”. E somente em um estágio muito tardio, por estar em um canto tão escuro, discernimos uma segunda criança pequena escondida, olhando para o quarto de uma abertura bem acima da alcova. escuro para executar o rosto em Vrel usou o pinceladas rápidas e adicionar destaques de cor. No entanto, sua qualidade de esboço ainda faz com que a criança pequena pareça menos presente do que as outras figuras da pintura e, talvez, até um pouco assustadora quando consideramos sua presença sombria, embutida nos recessos mais escuros da sala e observando as coisas de um lugar escondido. Não é a única figura escura no interior de Vrel. No lado esquerdo da pintura, na contraluz, descobrimos uma silhueta igualmente misteriosa que só pode ser explicada como uma parte escultórica da cornija da lareira, mas que parece estranha e grotesca nesse ambiente.
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Habitual versus estranho
An Old Woman Reading, with a Boy behind the Window. The Orsay Collection.
Por que Vrel está tão preocupado com a figura de uma mulher em um interior que a repete em diferentes variações? A pintura de uma leitora apresenta uma situação espacial e uma constelação de figuras habituais do pintor, mas ganhou maior intensidade na medida em que as duas figuras não estão mais frente a frente. Ao invés disso, a criança aparece vagamente às costas da mulher, como um fantasma invisível para ela e para nós. A posição isolada da cadeira – nenhuma mesa ou outro móvel a acompanha – evidencia o vazio do espaço. O foco da mulher mais velha no livro é, por sua vez, ressaltado pelos óculos que ela está usando, e nos perguntamos se a figura da criança aparece como um espectro porque ela não percebe sua presença, mas possivelmente o evoca e o imagina. Não é por acaso que a dialética da visibilidade e da invisibilidade se torna particularmente evidente nesse ponto, pois os óculos, embora sugerindo perspicácia, na verdade pressupõem a cegueira ou certo embaçamento da visão. Aliás, a estrutura pictórica desenvolvida aqui é claramente voltada para um único espectador: a predominância do vazio nas pinturas de Vrel, as figuras inexpressivas e as paredes nuas que aparecem como superfícies de projeção de imagens internas invisíveis lançam uma luz sobre o desenvolvimento subsequente das pinturas do século 19 de interiores, que se dirigem a um público burguês empenhado em explorar a vida da alma. 103
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Bernd Ebert é curador chefe do depto. Pintura Barroca Holandesa e Alemã na Alte Pinakothek em Munique.
Cécile Tainturier é curadora da Fondation Custodia, Collection Frits Lugt em Paris.
Woman Seated by a Sickbed. Washington, D.C., National Gallery of Art.
Quentin Buvelot é curador sênior do Mauritshuis em Den Haag (Haia), Holanda.
Karin Leonhard é professora de História da Arte na Universidade de Konstanz, Alemanha, com foco em História e Teoria da Arte.
JACOBUS VREL: LOOKING FOR CLUES OF AN ENIGMATIC PAINTER • ALTE PINAKOTHEKEN • MUNIQUE • ALEMANHA • 12/10/2021 A 19/6/2022 105
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LIVros
Obra bilíngue que reúne os principais trabalhos do pintor mineiro Amadeo Luciano Lorenzato. Lorenzato produziu um corpo de obra estimado entre 3 mil e 5 mil pinturas com temas e iconografias os mais diversos, que refletem sua biografia e sua relação com a paisagem de Belo Horizonte, seu entorno e sua urbanização. Suas obras conhecidas datam dos anos 1940, quando ele volta ao Brasil depois de ter passado quase trinta anos na Europa, a 1995, ano de sua morte. LORENZATO • Org. Rodrigo Moura • UBU EDITORA • R$ 179,00 • 320 páginas
Breve história da arte é uma maneira inovadora de apresentar ao leitor o mundo da arte. Estruturado de maneira simples, o livro explora cinquenta obras fundamentais, das pinturas rupestres de Lascaux às instalações contemporâneas, relacionando-as aos movimentos, temas e técnicas artísticas mais importantes. Em linguagem acessível, conciso e ricamente ilustrado, este livro explica como, quando e por que a arte mudou, quem introduziu determinadas coisas, o que eram elas, onde foram produzidas e qual é a sua importância. BREVE HISTÓRIA DA ARTE • Susie Hodge • EDITORA OLHARES • R$ 99,00 • 224 páginas
Lucia Laguna pinta a partir do entorno do subúrbio onde mora – o bairro do Rocha, no Rio de Janeiro – ao operar uma colagem de referências que passam pela história da arte, o jardim de seu ateliê e uma extensa vista da cidade. Entre a figuração e a abstração, as pinturas reunidas neste livro sussurram a insistência desordenada da vida a partir de flores, folhas e galhos de encontro às linhas urbanas: a linha do trem, a linha do mar, a Linha Vermelha, a Linha Amarela, a Avenida Brasil. LUCIA LAGUNA • Org. Marcelo Campos • EDITORA COBOGÓ R$ 150,00 • 224 páginas 106
Fotos: Sonia Balady
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COLUNA do meio
Fábio Magalhães
Luiz Adolino Galeria Contempo São Paulo
Fotos: Denise Andrade.
Marina, Monica e Marcia Felmanas
Jose Roberto Furtado, Victor Arruda e Giovanni Bosica
Helena Marinho, Ismelia Dolino e Luiz Marinho
Victor Arruda Belizario Galeria São Paulo
Gabriel Nehemy
Afonso Tostes, Lourdinha Piquet, Paulo Sergio Duarte e Van Van Seiler
Barrao, Joao Sanches e Luiz Zerbini
Carlos Costa e Suzanna Bomeny
José Roberto Furtado, Marcus Lontra Costa, Luiz Gustavo Leite, Victor Arruda e Orlando Lemos
José Damasceno
Afonso Tostes Mul.ti.plo Rio de Janeiro
Raul Mourao, Cabelo e Fabio Szwarcwald
Ricardo Cavalcanti, Manuela Muller e Afonso Tostes
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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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