Revista Dasartes 121

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Capa: , Pele Tatuada à Moda de Azulejaria, 1995. © Adriana Varejão Foto: Jaime Acioli.


DIANE ARBUS 10

ANNA MARIA MAIOLINO 6

Agenda

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De Arte a Z

116

Livros

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Coluna do meio

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RUBEM VALENTIM 52

FRANS KRAJCBERG

ADRIANA VAREJÃO 92

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,

AGENDA

Artista do Recôncavo, Marcos tem se debruçado, desde 2020, sobre o contexto dos trabalhadores de rua da região, produzindo a série , uma tentativa de narrar não só o que move o trabalhador a sair de casa atrás do seu ganha pão, mas também o que o faz querer voltar para casa. Em um misto de ficção e realidade, o artista tem construído pinturas em que explora composições angulares, cores sólidas, cenas povoadas por autorretratos e ferramentas banais, além de pequenos textos recheados de metáforas e ironia. Percebe-se a conformação de uma linguagem que beira uma crônica visual, 6

sem perder de vista o saber acumulado da própria tradição pictórica, tal qual diversos artistas negros nas Américas abordaram a realidade que os atravessa por meio de temas como educação, trabalho, lazer, em constante tensão com a historicidade da pintura, majoritariamente branca.

MARCOS DA MATTA: CORRERIA • RV CULTURA E ARTE • SALVADOR • 13/7 A 13/8/2022



de arte

,

AZ

POLÊMICA • Escultor processa galeria Perrotin e o museu Monnaie de Paris. Daniel Druet afirmou ser ele o verdadeiro criador de nove obras do artista Maurizio Cattelan, uma vez que esculpiu cada uma delas quando contratado para o serviço. O tribunal de Paris emitiu decisão favorável a Cattelan e Druet deverá pagar 10 mil euros à Perrotin e à Monnaie de Paris. Os advogados que representam a galeria disseram que a partir do veredito “é a arte conceitual que agora é protegida pelo estado de direito”.

GIRO NA CENA • Funarte lançou três editais para contemplar projetos de artes visuais e design brasileiros. Com abrangência nacional, eles somam o valor de R$ 450 mil. As inscrições se encerram no mês de agosto. Já o Itaú Cultural lançou o , com o objetivo de apoiar, fomentar e mapear trabalhos neste campo e ampliar as discussões e reflexões sobre o tema. Mais informações em dasartes.com.br.

PELO MUNDO • NASA revelou as primeiras imagens oficiais geradas pelo novo Telescópio Espacial James Webb, que captura imagens sem precedentes do universo. As imagens impressionantes representam “um momento histórico para a ciência e tecnologia, para a astronomia e exploração espacial, para a América e toda a humanidade”, disse o presidente Joe Biden em uma entrevista coletiva na Casa Branca. 8


MERCADO • Vendas do primeiro semestre do ano divulgadas pela Christie’s são difíceis de acreditar após dois anos de pandemia. A casa de leilões informou que as vendas totais atingiram US$ 4,1 bilhões nos primeiros seis meses de 2022. Um aumento de 18% em um ano, sendo seu melhor desempenho desde 2015, superando até mesmo o primeiro semestre de 2018, quando vendeu a famosa coleção Rockefeller por um recorde de US$ 835 milhões. O mercado volta a ferver!

VISTO POR AÍ • Instituto PIPA anunciou os quatro artistas premiados ao PIPA 2022. Nesta 13ª edição, o prêmio manteve seu direcionamento para a produção de artistas com trajetórias mais recentes. Os quatro vencedores são: Coletivo Coletores, Josi, Uýra e Vitória Cribb. Os quatro artistas recebem uma doação de R$ 20 mil cada e farão uma exposição coletiva no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em setembro, e uma Ocupação/Exposição Virtual nos sites e mídias sociais do PIPA, em outubro.

“ ”

• DISSE O MAM RIO ao lamentar a morte do colecionador Gilberto Chateaubriand, no último dia 14 de julho de 2022. O museu abriga parte da coleção de Chateuabriand que possui mais de 8 mil itens. 9


PELO mundo Puerto Rican woman with a beauty mark, N.Y.C., 1965. © Estate of Diane Arbus.


DIANE ,

arbus


EMBORA SUA CARREIRA TENHA DURADO APENAS 15 ANOS, O ESTILO DISTINTO DA FOTÓGRAFA AMERICANA DIANE ARBUS GARANTIU A ELA UM LUGAR ENTRE OS ARTISTAS MAIS SIGNIFICATIVOS DO SÉCULO 20. OS OLHARES DIRETOS E DESAFIADORES QUE NOS ENCONTRAM EM SEUS RETRATOS CONTINUAM A INCENDIAR COM SUA FORTE PRESENÇA - E DESPERTAM RECONHECIMENTO, EMPATIA E DESCONFORTO

Praticantes de sadomasoquismo; pessoas com o corpo completamente tatuado; um homem com o rosto furado por enormes alfinetes; trapezistas; nudistas; uma albina que engole espadas; um hermafrodita com um cão; pessoas com paralisia cerebral e outras deformidades congênitas; um gigante que sonha em ser comediante; vários anões – estes são alguns dos muitos tipos que habitam as fotografias de Diane Arbus. Tipos que, segundo ela, poderiam ser . Arbus foi buscar seus objetos às margens da sociedade e da moral puritana e os trouxe para o centro de seus icônicos retratos em preto e branco. Ofereceu-os em poses frontais como espécimes exóticas ao olhar contrariado do espectador e também como uma coleção de troféus conquistada por sua coragem de enfrentar o real. “Eu realmente acredito que há coisas que ninguém veria a menos que eu as fotografasse”, diz. Selecionou deliberadamente pessoas de aparência desviante, indivíduos com alguma estranheza aparente, alguns monstruosos, que, em vez de constrangidos pela própria condição, devolvem com franqueza o olhar para a câmera 12

Albino sword swallower at a carnival, Md. 1970. © Estate of Diane Arbus.

POR ELISA MAIA



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A Jewish Giant at Home with his Parents in the Bronx, New York, 1970. © Estate of Diane Arbus. Todas imagens: Cortesia Louisiana Museum of Modern Art.

e, mais tarde, para nós, espectadores. Não as pegava desprevenidas, como muitos fotógrafos da época, mas, ao contrário, fazia questão de conhecê-las; ir até as suas casas, de ouvir suas histórias; confraternizar com elas. Defendia que era preciso chegar perto, física e emocionalmente, e gozava da euforia de ganhar sua confiança e de vencer a aversão que sentia por aquelas figuras diante das quais a maioria das pessoas preferia desviar o olhar. Com a chancela de outros tempos e sem qualquer , constrangimento, chamava-os de aberrações. “Eu simplesmente os adorava”, declarou. Interessava-se pelos efeitos que as deformidades físicas tinham nos sujeitos acometidos por elas: “A maioria das pessoas passa a vida aterrorizada com a possibilidades de viver experiências já nasceram com seu traumáticas. trauma. Já passaram pelo seu teste na vida. São aristocratas”, comenta. Seu fascínio pelo excêntrico, pelo que foge à normatividade dos modelos, e a forma serena e objetiva com que tratou temas dilacerantes a tornaram uma das artistas mais influentes e, também, mais controversas de sua época. Suas imagens são especialmente despidas de sentimentalismo e parecem se beneficiar de um foco nas “vítimas”, “nos desgraçados”, sem, no entanto, despertar qualquer sentimento de compaixão. Essa característica a distanciaria de alguns de seus contemporâneos, como Bruce Davidson, Danny Lyon e Larry Clark, 29 15


Identical twins, 1967. © Estate of Diane Arbus.

fotógrafos que também documentaram sujeitos e comunidades marginalizadas, mas cujo trabalho era norteado por uma dimensão social e por um caráter de denúncia que parece ausente na obra de Arbus. Essa ausência lhe rendeu acusações ; de explorar de forma de frieza; cruel e obscena indivíduos fragilizados, figuras inconscientes de seus próprios infortúnios, que, lisonjeados pelo interesse de Arbus, se ofereciam ingênua e docilmente à câmera. A essas críticas, corresponderam também autocríticas: “Eu não estou sendo macabra, estou?” – escreveu a uma amiga – “teria sido melhor apenas desviar o olhar?” Nascida em 1923, em Nova Iorque, em uma família rica e culta, Arbus atravessou a década de 1930 protegida dos efeitos devastadores da Grande Depressão americana: “uma das coisas que me fez sofrer quando criança foi que eu nunca experimentei a adversidade” Nos relatos de sua infância há menções a passeios com a governanta francesa ao Central Park e visitas à sofisticada loja de departamento dos seus pais na Quinta Avenida, onde Arbus recorda que se sentia “uma princesa num filme horrível”. O irmão mais velho, Howard Nemerov, foi um poeta premiado e é até os dias de hoje uma figura celebrada na cena literária norteamericana. Aos 18 anos, casou-se com o fotógrafo Allan Arbus, com quem teve duas filhas. Como muitas mulheres de sua geração, começou a carreira à sombra do 16


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marido, ajudando a produzir as fotos que ele tirava para editoriais de revistas e catálogos de moda. Arbus era encarregada de arrumar pequenos cenários que serviam de pano de fundo para as mercadorias fotografadas. Foi apenas em 1956 que deixou o universo da propaganda para se dedicar ao trabalho mais autoral que a tornou conhecida no meio da arte. De forma sintomática, anos depois Arbus diria: “Eu trabalho a partir do estranhamento. O que quero dizer é que eu não gosto de arrumar as coisas. Quando estou diante de alguma coisa, em vez de arrumá-la, sou eu que me arrumo.” O compromisso a partir daí será o de evidenciar as coisas como elas de fato são, e não como deveriam ser.

Untittled, 1995. © Estate of Diane Arbus.

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Munida de uma câmera 35 mm, Arbus começava a fotografar assiduamente pessoas que encontrava nas ruas, nos parques, nas feiras e nos transportes públicos dos arredores de Manhattan. Sua experiência com propaganda a ajudava a criar imagens diretas e impactantes, mas, na contramão de uma cultura visual que enfatizava padrões estéticos uniformes e idealizados, Arbus passou a eleger seus objetos com base na singularidade. Em 1962, em busca de mais clareza e objetividade em suas fotos, Arbus teve aulas com a fotógrafa Lisette Model, experiência considerada um “divisor de águas” em seu percurso. É a partir desse momento que seus retratos passaram a ser tirados no característico formato quadrado e as imagens foram esvaziadas de digressões e ambiguidades formais.

Retired man and his wife at home in a nudist camp one morning, N.J., 1963. © Estate of Diane Arbus.

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“Para mim, o sujeito fotografado é sempre mais importante do que a fotografia. E mais complexo.” E é na brecha entre o que esse sujeito gostaria de parecer e o que ele não pode evitar mostrar que Arbus encontrou seu terreno mais fértil. A isso ela deu o nome de . E talvez esteja aí o motivo das poucas fotos que tirou de celebridades serem menos interessantes do que suas fotografias de pessoas anônimas, pois, nelas, os sujeitos, acostumados que estão com as câmeras, mostram-se capazes de controlar melhor essa distância. Quando se suicidou, em 1971, aos 48 anos, já era uma fotógrafa consagrada, mas os ecos de sua morte, entre os quais se destacam um crescente interesse em sua vida privada e a subsequente publicação de algumas biografias, contribuíram para torná-la uma espécie de lenda da fotografia norte-americana. Prova disso é que, em 1972, ano seguinte ao seu falecimento, Arbus foi a primeira fotógrafa a ter o trabalho incluído na Bienal de Veneza. Ainda nesse ano, uma retrospectiva póstuma do seu trabalho no MOMA atraiu multidões inéditas para as salas do museu, batendo, na época, o recorde de público da instituição. Não faltaram tentativas de explicar seu suicídio por meio de sua arte e interpretar sua arte a partir de seu suicídio. Susan Sontag, a mais célebre e persuasiva entre os críticos de Arbus, afirmou que, a exemplo do que havia acontecido com Sylvia Plath, a atenção que sua obra atraiu depois da sua morte havia sido de outra ordem, “uma espécie de apoteose – o fato de ela ter se suicidado, parece assegurar que sua obra é sincera

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Untittled (1), 1970-1971. © Estate of Diane Arbus.

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Untitled (4), 1970-1971. © Estate of Diane Arbus.


e não voyeurística, que é compassiva e não fria”, (1977), Sontag escreveu. Em caracterizou a América de Arbus como um “show de horrores” ou uma “vila de idiotas povoada por pessoas patéticas, lamentáveis, repulsivas”. Chamou a atenção ainda para o fato de suas imagens se basearem na distância e gozarem do privilégio de se saber que aquilo que está se vendo é de fato Mas, para encontrar este Arbus não precisou ir muito longe. Ao contrário, achou-o sempre perto de casa, guiada por sua premissa de que a realidade, se olhada de perto e com muita atenção, tornava-se fantástica. Não foi preciso viajar para nenhum país considerado “exótico” em busca de aberrações, uma vez que o “quintal de casa” lhe fornecia um estoque interminável de tipos estranhos e Arbus sabia como ninguém aonde ir para encontrálos. Fotografou manifestações em favor da guerra do Vietnã, carnavais de rua em Maryland, em instituições de deficientes mentais, camarins de bailes de travestis nos arredores de Nova York, campos de nudismo em Nova Jersey. Fotografou a Disneylândia, um cenário de Hollywood e um hospital psiquiátrico, onde tirou algumas de suas últimas e mais incômodas fotografias.


Young boy with a button flag in pro-war parade, 1967. © Estate of Diane Arbus.

E se o escrutínio da realidade, como afirmou Arbus, tem o dom de lhe dar contornos fantásticos, a câmera fotográfica tem certamente o poder de intensificá-los. Não são apenas os sujeitos marginalizados que parecem estranhos em suas fotografias, mas todo o puritanismo norteamericano, quando olhado, através da lente de aumento, também se torna aberrante. O jovem patriota segurando a bandeira dos EUA, cujo entusiasmo febril pelo país configura uma espécie de idiotia, é exemplar nesse sentido. O adolescente de chapéu na marcha a favor da guerra do Vietnã, em cujo broche se lê “bombardeiem Hanói”, também. Arbus defendia que as cerimônias e os costumes eram ao mesmo tempo monumentos e sintomas da cultura norteamericana. E, de forma muito hábil, ela foi capaz de evidenciar esses ritos e tradições , não menos como verdadeiros bizarros do que as prósperas feiras de aberrações de Coney Island, que foram proibidas no início dos anos 1970. Encontrou um terreno fértil para isso nos bailes de idosos aposentados; nos concursos de beleza e de halterofilismo; nas competições de dança onde as crianças estão vestidas como adultos e os idosos como crianças; nos tradicionais bailes americanos que elegem reis e rainhas; nos parques de diversão. Conseguiu também dotar de uma qualidade insólita mesmo as fotografias de pessoas comuns, como os casais nos bancos dos parques, que nos parecem excêntricos, independentemente de terem 15 ou 70 anos, de serem negros ou brancos, homossexuais ou heterossexuais, de estarem nus ou vestidos. Em seus 24


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Burlesque comedienne in her dressing room, Atlantic City, NJ, 1963. © Estate of Diane Arbus.



retratos, os bebês são sempre esquisitos, seus rostos enormes e cobertos de fluidos brilhantes. Os gêmeos e trigêmeos aparecem como o estranho por excelência e há, claro, o menino que segura uma granada de brinquedo no Central Park, as pernas finas, a mão enrijecida como uma garra, uma das alças do suspensório caída sobre o braço, a boca contorcida, os olhos arregalados. Há certo fatalismo no olhar que Arbus lança ao seu entorno e esse senso de desastre iminente foi capturado por ela em um belíssimo texto no qual ela descreveu um sonho e que bem poderia ser uma sequência de fotos: “estou em um enorme hotel, branco e luxuoso, que está pegando fogo, condenado. Mas o fogo está queimando tão lentamente que as pessoas ainda podem transitar livremente. Não consigo ver o fogo, mas há finos fios de fumaça saindo de todos os lugares, principalmente em volta das luzes. É terrivelmente belo. Estou com pressa, quero fotografar tudo. Vou para o meu quarto buscar alguma coisa que preciso salvar, mas não consigo encontrar. Não sei o que estou procurando, o que devo salvar, quanto tempo tenho até o prédio colapsar, o que devo fazer, quanto devo fotografar. Sou constantemente interrompida. Todos estão ocupados, andando de um lado para o outro, mas as coisas acontecem silenciosa e lentamente. Os elevadores são dourados, é como o naufrágio do Titanic. Estou encantada, mas ansiosa e confusa. Minha vida inteira está ali. Curiosamente, estou sozinha, apesar de haver pessoas ao redor. Elas vão desaparecendo. É como uma espécie de emergência em câmera lenta. Estou no olho do furacão.”

Headless Woman, Palisades Park, N.J., 1961. © Estate of Diane Arbus. 28


Child with a toy hand grenade in Central Park, N.Y.C, 1962 © Estate of Diane Arbus. Todas imagens: Cortesia Louisiana Museum of Modern Art.

Meses antes de morrer, Arbus escreveu: “uma fotografia é um segredo sobre um segredo e, quanto mais ela conta, menos você sabe”. Suas melhores fotografias, mesmo as mais diretas e objetivas, conservam o enigma e a força de um estranhamento que, meio século após sua morte, não se deixou empalidecer pelo tempo, tão pouco se deixou domesticar pelo discurso da crítica.

DIANE ARBUS: FOTOGRAFIER, 1956Elisa Maia é doutorando do programa de Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ.

1971 • LOUISIANA MUSEUM OF MODERN ART • DINAMARCA • 24/3 A 31/7/2022 29


ALTO relevo


ANNA MARIA

,

maiolino


MOSTRA ANTOLÓGICA E INÉDITA DA ÍTALOBRASILEIRA ANNA MARIA MAIOLINO, NO INSTITUTO TOMIE OHTAKE, ABRANGE MAIS DE 50 ANOS DE PRODUÇÃO DE UMA DAS MAIS RELEVANTES ARTISTAS DA ARTE CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

POR PAULO MIYADA

É preciso começar pelo meio. Começar pela fresta entre as duas letras N em ANNA, esse nome-palíndromo. Pelo fio invisível da vida que conecta uma mãe com sua filha e com sua própria mãe. O ovo que guarda a possibilidade do nascimento. O + que conecta eu + tu. A vida e a obra de Anna Maria Maiolino – sua vida-obra, como ela a nomeou – transcorre como uma espiral. Vai-se adiante para se reencontrar o princípio, consomese energia para devolver as coisas ao que sempre foram. Ou, então, caminha-se coletando frutos e deixando sementes, percorrendo círculos concêntricos de amplitudes variadas sobre o solo. Não se trata da jornada do herói másculo e fálico que protagoniza tantas histórias de nossa sanguinolenta e predatória civilização, pois a finalidade de Maiolino nunca foi acumular territórios conquistados, culturas exóticas dominadas e monumentos edificados à sua imagem e semelhança. Trata-se, ao contrário, da vivência de uma sábia contadora de histórias sobre a existência, o cuidado, o desejo, o grito e o gozo. Trata-se do nomadismo circular de uma imigrante com muitas nacionalidades, ou com nenhuma. Além de espiralar, sua vida-obra é horizontal, feita como um mapa, uma cama, um chão, um território, uma mesa, 32

Schhhiiii..., 1967. Coleção da artista.

UMA ANTOLOGIA ESPIRALAR



“ ”

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Anna, 1967. Coleção da artista. Foto: Edouard Fraipont. Todas imagens: Cortesia da artista e Instituto Tomie Ohtake.

um prato e, claro, um corpo deitado para o encontro sexual. É certo que a maior parte das pessoas desenha, escreve e faz gravuras sobre superfícies horizontais, mas, no caso de Maiolino, também, muitas das pinturas, esculturas e instalações são feitas com o corpo da artista debruçado sobre a obra, combinando gestualidades concisas com a consistência da matéria e a força da gravidade. Isso é um detalhe de processo, mas não apenas. No movimento espiralar da artista por seu território poético horizontal, ela não define fases fechadas em si mesmas, mas ênfases reconhecíveis pela aderência a determinadas linguagens, materialidades ou dimensões. Entre essas ênfases, não há bloqueios herméticos, há zonas de transição pelas quais fluem pensamentos recorrentes de uma mesma pessoa que se acostumou a dar a volta em 80 mundos em um dia, sendo artista, mulher, esposa, provedora, leitora, mãe, filha, amiga, trabalhadora, amante, escritora e cozinheira. ANNA (1967) desdobra o A xilogravura nome-palíndromo da artista em uma multiplicidade de espelhamentos. Duas silhuetas escancaram suas bocas para emitir um duplo balão de fala, onde aparece o nome repetido na seção inferior da composição. Há duas cores, preto e branco, e alguma simetria, mas nada remete ao classicismo. As bordas duras e a estranheza das silhuetas, mais similares a manchas do que propriamente a figuras humanas, impregnam todos os espelhamentos da obra com um sentido de conflito e diferença. Em vez da harmonia regida pela ordem clássica, portanto, essa obra nos apresenta a artista como resultado da sobreposição de contrários e iguais. 35


Secret Poem, da série Mapas Mentais, 1971. À direita: Capítulo II, da série Mapas Mentais, 1976. Coleção da artista

SECRET POEM A primeira pessoa é constante e explícita na obra de Maiolino, mas ela não é narcisista — muito ao contrário. O mito de Narciso nos fala de alguém que não percebe que a imagem que vê na superfície da água é seu próprio reflexo, apaixonando-se por si mesmo como se amasse a outrem. Maiolino, entretanto, sabe que é sua a imagem que vê no espelho, mas enxerga nela uma subjetividade fractal, uma soma de duplicidades em um só corpo; ou um corpo que se faz pela duplicidade: “eu + tu/ corpo + corpo/ corpo a corpo/ corpo no corpo/ individualidade perdida/ dupla estrutura corpo/ encontro/ eu + tu/ novo corpo”, diria em italiano a obra (1971), não fosse o gesto de apagamento e indiferenciação da letra que rasura palavras sobre a intersubjetividade e as transmuta em uma mensagem censurada. 36


Cloud Series, 1964. À esquerda: Fog Environment #47660, Children's Park, Showa Kinen Park, Tachikawa, Tokyo Japan, 1992.

MAPAS MENTAIS A opção ética, estética e narrativa de Maiolino é recusar qualquer disfarce de seus conflitos e toda projeção de uma imagem idealizada de si, preferindo mapear sua existência à deriva como um ponto movente no meio de uma multidão, uma identidade em fluxo espiralar sempre refeita no encontro com a alteridade. O verbo “mapear”, aqui, tem conotações bastante tangíveis. Mapas e cartografias foram ferramentas de controle territorial fundamentais para a expansão colonial da civilização eurocêntrica, mas, na obra de Maiolino, os têm a vocação inversa: eles registram impermanências de uma existência ambivalente, que não se deixa resumir pelo saber racionalista e tecnocrático. Em vez de uma geografia de recursos e fronteiras, esses mapas enunciam topologias afetivas e inconstâncias do ser. Por isso, eles se expandem em múltiplas iterações – como nas obras da mesma série chamadas , e (1973, 1973 e 1974, respectivamente) – e se comunicam mesmo com obras que não trazem palavras ou signos cartográficos, mas evocam territorialidades convolutas, a exemplo das esculturas (1998) e (2004). 37



SOS no Trópico de Capricórnio, da série NebelMentais, Leben, 1974. 2022. Mapas Haus der Kunst. Coleção artista. Foto: Andreada Rossetti.


POR UM FIO Recobertas por centenas ou milhares de pequenos blocos de argila comprimidos manualmente, as paredes do espaço expositivo deixam de ser suporte para se tornarem uma espécie de pele, com seus acidentes, texturas, fissuras e relevos. Toda pele é, também, uma espécie de mapa tátil de uma vida. É a própria pele da artista que se vê muito de perto no vídeo (1999/2004) e na série (2018). As marcas da inexorável de “fotopoemações” chamada passagem do tempo encontram Maiolino já com um novo papel somado às suas múltiplas personas: o de avó. Ela se encontra agora em outro estágio na linha da vida que havia materializado em outra “fotopoemação”, (1976). Naquela época, ela segurava em sua boca dois barbantes, formando o elo entre a

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ancestralidade de sua mãe e a juventude de sua filha. Hoje, ela ocupa o lugar de maior proximidade com os antepassados de sua família, e já se vê a movimentação ágil de seus netos em sua casa e em suas exposições. , temos a Encarando os olhares alinhados das três gerações reunidas em oportunidade de nos afastar das analogias com a linguagem cartográfica e nos aproximar dos retratos familiares e dos instantâneos cotidianos. Traduzir em imagens relações interpessoais, pactos de afetos, processos de cuidado e dinâmicas de desejo é outra forma com que Maiolino lida com sua multiplicidade de identidades (todas e papéis. Nesse sentido, há obras como de 1966), compostas como esquemas genealógicos, colocando em primeiro plano aspectos da vida que, por muito tempo, foram tratados pelo discurso hegemônico da arte como ruídos, obstáculos ou notas de rodapé na biografia das artistas.

Por um fio, da série Fotopoemação, 1976. Coleção da artista. Foto: Regina Vater.


Estado escatológico, 1978. Coleção da artista.



Minha família, 1966. Coleção Gilberto Chateaubriand MAM Rio.




Sem título, da série Entre Pausas, 1968/1969. Coleção da artista. À esquerda: Glu, Glu, Glu, 1967.

ENTRE PAUSAS A série de desenhos intitulada (1968/9) resulta de restrições de tempo, energia e recursos. Vivendo em Nova York com Rubens Gerchman e seus dois filhos pequenos, trabalhando como designer durante todo o dia, limpando, cozinhando e organizando a casa, Maiolino via seu horizonte de trabalho como artista se afunilar. Hélio Oiticica, então também instalado em Nova York, puxou-a para uma conversa com tom notadamente solene; queria lhe dizer que não deixasse de produzir, fosse como fosse — se ela tinha dentro do ônibus o tempo da comutação para o trabalho, que utilizasse papel e caneta durante o percurso. Assim foi e, dentre dezenas de registros singelos do cotidiano vivido e imaginado, emergiram imagens recorrentes, cenas que, à primeira vista, pareciam de amor romântico e, apesar de ou devido a isso, indicavam assimetrias entre masculino e feminino, entre sujeito e objeto do desejo, entre aliança e propriedade. Em sua ambivalência, esses desenhos ecoaram o principal grupo de obras realizado por Maiolino na década de 1960: sua experimentação em xilogravura, com um repertório visual que cruza o imaginário popular da literatura de cordel, prosaico anedotário típico na região Nordeste do Brasil, e o legado visual de Oswaldo Goeldi, em que os contrastes de preto e branco (com pontuações em vermelho e amarelo) ganham sentido lúgubre. Nesse vértice, suas gravuras abordam cenas aparentemente prosaicas, mas imbuídas de conflito em decorrência da intensidade das linhas de incisão na matriz de madeira e da crueza das composições. 47


PSSSIU... E O HERÓI Dentre suas obras mais consoantes com a atitude da nova figuração, destaca-se (1967), apresentada na Nova Objetividade Brasileira e depois destruída. Não existem registros dessa escultura, mas as rememorações da artista falam de uma orelha com 68 centímetros de altura, de espuma estofada com um tecido pintado em tom rosado. No contexto da ditadura, essa gigantesca orelha apresentada dentro de uma mostra experimental, que advogava por uma arte crítica e engajada social e politicamente, apontava a latência da vigilância e da censura que logo iriam se abater sobre todo o campo cultural. Um ano antes, Maiolino havia realizado a pintura em relevo (1966), paródia da empáfia militar enunciada por um esqueleto de uniforme militar e capacete, condecorado em demasia, com faixa, medalhas e botões brilhosos. Já em 1968, no happening (Rio de Janeiro, 1968), Maiolino integrou o grupo de artistas que imprimiram bandeiras e estandartes para ocupar o espaço público com mensagens poéticas de resistência e ironia. Naquele contexto, sua bandeira serigrafada (1968) cruzava as premissas das duas obras aqui citadas: um crânio de esqueleto ocupava o centro de uma espécie de alvo, em que as palavras “alta tensão” apontavam o estado de risco vivido pelos artistas e pela população em geral. 48


SOLITÁRIO OU PACIÊNCIA foi o título de uma exposição individual de Anna Maria Maiolino realizada na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, em 1976. Embora pouco tenha sido dito pela crítica da época, trata-se de uma das mais importantes exposições brasileiras de cunho político na segunda metade da década de 1970. A mostra era um luto poético e uma invenção de linguagem. Ocupando o centro do espaço, a (1976). Sobre um piso elevado, artista realizou a instalação uma mesa e uma cadeira pretas, traziam cartas dispostas como em um jogo de paciência, que alguém poderia tentar resolver, mas nunca conseguiria, pois o jogo fora montado com cartas faltantes, subtraídas pela artista para transformar esse passatempo individual em uma alegoria trágica da tarefa de rearranjo de uma sociedade que havia perdido vidas para a violência do Estado. Foi, também, o contexto em que se exibiram seus primeiros filmes Super-8 e a . primeira imagem da série

À esquerda: O Herói, 1966. Acervo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Abaixo: Instalação: Solitário ou Paciência, 1976.

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Escolhemos concluir a mostra antológica de Anna Maria Maiolino com pinturas (2018). Em cada inéditas da série uma delas, há uma grande mancha de um vermelho saturado sobre um fundo de vermelho sutilmente escurecido. Não fosse o contraste entre os dois vermelhos, ambos seriam chamados simplesmente de vermelho, mas, com a justaposição das cores, uma faz a outra parecer muito brilhante ou muito esmaecida, de modo recíproco. Assim, o contraste absoluto entre preto e branco presente na maior parte da obra de Maiolino dá lugar aqui a um contraste tonal que faz tremer o olhar. As formas dessas manchas, por sua vez, são de uma organicidade misteriosa: elas são reminiscentes dos escorridos de diversos dos desenhos e pinturas da artista, mas não dão sinais de terem sido tão aquosas, nem de serem resultado de alguma influência do acaso. Elas se parecem, por sua vez, com as silhuetas de , esculturas como as da série de mas, bidimensionais, não resultam do trato com a massa de um material. A sinestesia sentida pela reincidência do gesto é a forma com que se materializa o ser de Maiolino, preenchido de uma temporalidade espiralar.

Paulo Miyada é curador e pesquisador de arte contemporânea. Fundou em 2021 a revista Presente junto com Anna Maria Maiolino.

ANNA MARIA MAIOLINO: psssiiiuuu... • INSTITUTO TOMIE OHTAKE • SÃO PAULO • 7/5 A 24/7/2022 50

Sem título, da série In-Rosso, 2018. Coleção da artista. Foto: Everton Ballardin. Todas imagens: Cortesia artista e Instituto Tomie Ohtake.

IN-ROSSO


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RUBEM

DESTAQUE


,

valentim Mandala Emblema, 1990.


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UM ARTISTA SACERDOTE

POR MAX PERLINGEIRO

Rubem Valentim é um artista essencial para uma melhor compreensão da tradição afro-brasileira; e Bené Fonteles é seu principal estudioso e interlocutor, por sua conexão espiritual. A pedido do artista, Bené se tornou o Ogã (palavra que vem do iorubá e significa “Senhor da minha casa”) do terreiro de Valentim; é aquele que cuida de sua vida e, em consequência, de sua obra. Em 1963, Valentim foi morar na Europa, precisamente em Roma, onde conheceu Giulio Carlo Argan (19091992), o grande teórico da arte moderna. Na ocasião, estava sendo criado o Museu de Arte Moderna de Roma, no qual Valentim teve três obras adquiridas pela nova instituição. Ao retornar ao Brasil, deu início a uma série de obras, transformando suas pinturas em relevos. 54

Emblema G, 1988.

” Rubem Valentim




Pintura 2, Fase de Roma, 1966. Todas imagens: © Rubem Valentim. Cortesia Pinakotheke Cultural.

Bené Fonteles conheceu Valentim em 1977, ambos participando da XIV , uma Bienal de São Paulo. Valentim expunha o instalação constituída de um painel de fundo azul com relevos brancos e esculturas móveis em madeira pintada branca, a partir de elementos simbólicos da cultura popular e da semiótica afro do Candomblé. Sem dúvida alguma, sua obra mais emblemática pertencente ao acervo do Museu de Arte Moderna da Bahia. Em 1978, Bené foi morar em Brasília e, desse modo, pôde participar dos momentos marcantes da carreira de Valentim, tornando-se seu “herdeiro intelectual”. Segundo Bené, “a casa do artista era um lugar sagrado. Sua arquitetura tinha a forma de uma cruz. Seu interior lembrava mais um monastério. Ele vivia uma vida monástica, desde a sua alimentação até a sua forma de descansar. Seu quarto era uma cela, de extrema simplicidade. Tinha uma vida totalmente devota ao espiritual. Seus livros eram basicamente espirituais e filosóficos, em que o artista criava os fundamentos para a sua produção”. Valentim sempre desejou ter um espaço destinado à sua obra. Para tanto, ao longo da vida, destinou 157 obras para a formação do núcleo principal dessa coleção ao cuidado de Lúcia Alencastro, sua esposa, pioneira em arte-educação e fundadora da Escolinha de Arte do Brasil junto a Augusto Rodrigues (1913-1993). A fim de concretizar o sonho, comprou em Brasília um grande terreno na Asa Sul para construir o centro cultural. Infelizmente, não foi possível, o que lhe causou uma grande frustração. Aproximou-se também dos concretistas. Foi amigo de Hélio Oiticica. Valentim expôs com Waldemar Cordeiro, em Roma. Sua produção era baseada de modo obsessivo na construção e na desconstrução dos símbolos que inventava. Havia, por exemplo, o alfabeto kitônico (que significa energia do centro da Terra), constituído de 15 símbolos, nos quais explicita o sincretismo religioso brasileiro, mas sempre de maneira abstrata e geométrica. Elementos da Umbanda e do Candomblé povoam suas peças e ajudam a construir um universo muito particular, formado por linhas retas, triângulos, círculos e quadrados. Ao longo de sua vida artística, participou de Bienais e exposições no Brasil e no exterior. Sempre teve o respeito e o reconhecimento de sua obra. 57


Emblema O, 1988.

A POÉTICA DO SAGRADO

POR BENÉ FONTELES

Concebemos o livro – o primeiro dedicado ao artista – não só para compreender a obra de Rubem Valentim, com acuidade por sua seminal importância na história da arte no país, mas com a sensibilidade afinada para aprendermos com um artista extraordinário que decodificou, durante cinco décadas, a herança mestiça na busca obsessiva de um fazer sempre leal sua “riscadura e sentir brasileiros”, atravessado por propósitos de uma rigorosa e radical artesania. ”. Essa salvação Ele afirmava: “ era eivada pela radicalidade de um artista-sacerdote – como ele queria ser em seu mosteiro-ateliê, sonorizado pelos cantos gregorianos ou, ainda, Bach e Mozart. Seja em Brasília ou São Paulo, desenvolvia seu projeto inspirado por sua vocação construtiva vinda da tradição milenar de nossa arte ameríndia assim como dos povos que atravessaram o Atlântico em meio a toda dor e a redimiram em um raro projeto cultural e espiritual sem paralelo no mundo. Valentim quis recriar de forma libertária e corajosa ao traduzir esta poética do sagrado em quase duas mil obras entre pinturas, relevos, esculturas e objetos, desenhos e sua obra gráfica, que o fizeram um dos artistas fundadores do imaginário visual do Brasil. Nascido em 1922, na cidade de São Salvador da Bahia, no mesmo ano em que os modernistas realizam em São Paulo a Semana de Arte Moderna, Valentim, na década de 1950, renovou os anseios estéticos e poéticos dela e transformá-los em uma arte contemporânea essencialmente feita por nossa natural vocação construtiva e narrativa que os modernos da época almejavam iluminar. 58


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Objeto, Brasília, 1978.

Valentim fundamentou, com a força da origem, todo um processo em que brotou de seu imaginar as poderosas e potentes imagens, até energéticas, sobre as quais Ferreira Gullar escreveu, em 1961, para apresentar sua primeira mostra realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo: “Mas, depois de ver os quadros aqui expostos, não mais nos libertamos deles”. Valentim disse de onde vinha toda essa força original: “Nasci em um sobrado com sacadas de ferro. De pais pobres, fui o primeiro dos seis filhos. Custei a nascer e levei muitas palmadas para chorar. Em compensação, comecei a gritar com força incomum, o que apavorou os presentes. Foi, ao que parece, meu primeiro grito de protesto contra a violência. Dos 4 aos 13 anos, vivi à rua Futuro do Tororó, onde morava gente de classe média e também gente muito pobre e humilde. Cresci tomando consciência das diferenças de classe, do dinheiro sempre escasso e das injustiças que marcavam meu pequeno mundo. Brinquei muito na rua. O prazer maior era empinar arraias e fazê-las com gosto. Durante as festas juninas, era um não-acabar de fazer balões de papel colorido, bem como altares de Santo Antônio decorados com recortes de papel de seda e folhas douradas. Mas, de todos os meus encantos infantis, nenhum se comparava ao de fazer presépios. Me perdia na contemplação das igrejas: o ouro dos altares, as imagens, o silêncio, o cheiro de incenso e de velas queimando. Cantochão. Procissões. O Natal e a Paixão. Minha família, católica, de quando em vez ia ver um caboclo em um candomblé. E lá ia eu penetrando no universo fantástico do candomblé. O baiano, para sua felicidade, é católico e animista.” 61


Objeto emblemático 8, 1969.

Valentim viveu a infância e a adolescência em Salvador das décadas de 1920 a 1930, uma cidade ainda mágica, povoada de seres míticos como Mãe Senhora no candomblé, Mestre Pastinha na capoeira e outros personagens imortalizados pela literatura de um não-menos mítico e criador de personagens-mitos que foi Jorge Amado. O que ele chamava de “substratos poéticos” que alimentaram sua obra vinha das ruas da cidade, dos terreiros, das feiras, das festas católicas e as animistas, como ele mesmo frisa, que Salvador tinha por felicidade se misturar, pertencer e atuar. “Aos 9 anos, comecei a fazer meus próprios presépios. Pintava e armava as casinhas de papelão, a igreja branca com janelas verdes, figuras de Maria e José, Adão e Eva com serpente, maçã e tudo, a lapinha, a cidade de Jerusalém. Tudo era pintado no papelão e recortado, preso em um pedaço de madeira atrás, para ficar em pé. Mundo poético, popular, de cor e riqueza imaginativas, que ficou em mim e influenciou profundamente a minha arte.” 62


Objeto emblemático, 1973.

Mas nada foi mais provocante para seu imaginário do que conhecer um pintor: “Conheci Arthur Come-Só, o pintor-decorador de paredes. Trabalhava sem ajudantes – daí seu apelido. Três vezes pintou nossa casa: paisagens na entrada, flores na sala de visitas, frutas na sala de jantar, os quartos pintados de azul-claro ou rosa, com barras de flores. Com ele, aprendi a técnica da pintura à têmpera. Quando entrei para o Ginásio da Bahia, não fui mau aluno. Cumpria com meu dever de estudar e gostava, principalmente, das aulas de desenho geométrico.” Eis os fundamentos que levariam Valentim a seu fiel projeto construtivo eivado de uma singular poesia-visual: a técnica da têmpera, que aprendeu cedo e a tornaria exemplar em sua “fase de Roma”, entre 1964 e 1966, e a empatia pela geometria escolar que já ecoava construtiva na arte de seu povo mestiço. Mas ele vivia em uma cidade ainda carente de informações culturais, isolada da arte contemporânea, vivendo uma arte folclórica enraizada nas questões regionalistas. Ele disse: 63


“Meu primeiro contato importante com a arte contemporânea ocorreu em 1948, na exposição de artistas nacionais e estrangeiros na Biblioteca Pública de Salvador. Fui vê-la várias vezes, deslumbrado, perdido, chocado com aquele mundo fantástico e tão novo para mim. Aluguei uma sala num velho sobrado de três andares, com sacada de ferro. Pela manhã, desenhava composições com garrafas, latas, moringas, vasos, ex-votos e cerâmica popular. Elaborava esquemas de cor e valores. À tarde, fazia pesquisas formais – livres, imaginosas. Ou ia ao Museu de Arte conversar com José Valladares, que me emprestava livros e revistas sobre arte. Reproduzia imagens de um livro grosso sobre Cézanne, copiando-as a óleo, com valores em cinza. Com Cézanne, aprendi a compor. Fiz cópias também de Modigliani, Matisse, Braque, Picasso e Chagall. Através de Klee, compreendi a liberdade da expressão plástica e o valor fundamental da imaginação criadora. Sempre lutando para vencer as dificuldades de execução. Nunca fui muito habilidoso – felizmente. Vivia com sacrifício, sem dinheiro”.

Sem título,1962. 64



Composição 10-A, 1962. 66


“ ”

Já tendo feito uma série de pinturas como , e em que estavam visíveis as influências citadas e uma liberdade das questões regionais, Valentim entrou em crise com sua pintura em 1951: “Um dia, no ateliê, perdi a cabeça. Rasguei os cadernos de desenho, destruí todos os meus estudos, as telas, esvaziei os tubos de tinta, despejei os óleos de linhaça, os solventes, quebrei o cavalete e os pincéis a marteladas. Saí do ateliê, deixando atrás de mim parte de minha vida assassinada. Perambulei com dor na alma, odiando pela primeira vez a terra que amo, cheio de raiva contra uma sociedade em decadência e medíocre. Foram 15 dias de purgatório, durante os quais me perdi nas ruas de Salvador. Um dia, acordei tranquilo. Reencontrei o verde das árvores, ouvi de novo o canto dos passarinhos, voltei a amar o azul da Bahia. A pé, tomei o caminho de volta ao ateliê. Senti então uma tristeza amarga, chorei de saudade dos meus trabalhos destruídos. E, novamente, aceitei meu destino. Com 50 cruzeiros dados por um irmão, comprei material de pintura. Voltei a pintar.” 67


Emblema, Logotipo poético, 1975.

ABSTRAÇÕES GEOMÉTRICAS São justamente as abstrações geométricas que lhe servem de suporte estético para o que o fascinou nos terreiros de candomblé: o da simbologia dos orixás em suas ferramentas que ancoravam suas energias telúricas com as quais se comunicavam com os devotos. Valentim disse: “Descoberta da arte negra – dos signos-símbolos do candomblé: Oxê de Xangô, o machado duplo, no mesmo eixo central, recriado por mim e, posteriormente, transformado em forma fundamental de minha pintura, Xaxará de Omulu, Ibiri de Nana, Abebê de Oxum, ferros de Ossain e de Ogum, Pachorô de Oxalá, os pegis, com sua organização com positiva, quase geométrica, contas e colares coloridos dos orixás. Na pintura, buscava uma linguagem, um estilo para expressar uma realidade poética, extraordinariamente rica, que me cercava, para torná-la universal, contemporânea. Pacientemente, fazia o transpasse de todo esse mundo para o plano estético.” Exu, para o Candomblé, não é o demônio, mas o mensageiro que leva os pedidos dos humanos aos deusesorixás. A pintura é um “ponto riscado de Exu”, que guardava a casa de Valentim em Brasília – mais tarde, em São Paulo – posta em lugar estratégico e reservado. A foi concebida por Valentim para a proteção de outra parte da casa dele em Brasília. 68




MISSÃO DE UM ARTISTA SACERDOTE Valentim me confessou que fazia toda sua arte para não enlouquecer e, se não se libertasse daquelas imagens poderosas com uma carga simbólica, intensa e mágica, poderia perder a sanidade: “Recebo tudo isso de outras dimensões e toda essa obra levará tempo para ser decifrada e assimilada em sua real função mais do que artística. Sou um artista sacerdote. Talvez esteja morrendo dessa forma e tão cedo porque procurei mais o reconhecimento do que o verdadeiro sentido do que vim fazer nessa vida. O ego é um demônio voraz”. A busca por redenção era muito próxima de Bispo do Rosário, que afirmou: “Estão dizendo que isso que faço é arte. Quem fala não sabe de nada. Isto é a minha salvação na Terra”.

À esquerda: Emblema I, 1988 Abaixo: Sem título, 1960 e Sem título, Rio de Janeiro, 1960.

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Emblema H, 1988. Todas imagens: © Rubem Valentim. Cortesia Pinakotheke Cultural.

Outro fator importante é a fluente e ousada dicção cromática que “vestiu” a simbologia de Valentim, igual um indígena constrói a paleta de cores seu elegante cocar, sua carteira de identidade frente a outras etnias. Valentim obedeceu com rigor e vigor a seu projeto estético inscrito no , por certo, o mais bem delineado propósito conceitual de um artista entre o moderno e o contemporâneo, só comparável aos textos de Hélio Oiticica, explicitados no livro . Valentim nos contou que, vendo Oiticica indo a fundo em sua pesquisa e os , provocou-o: formal com os “Hélio, sobe ( ) os morros do Rio de Janeiro e vá ver a arte e a vida de seu povo”. Oiticica subiu a Mangueira e desceu com seus , e , que refletiam a precariedade da favela e a arte original de sobrevivência nos morros cariocas. Valentim amava a simbiose na mistura cultural de povos que, entre a dor da escravidão, herdada em um projeto racista que perdura e do qual sofreu também preconceitos – até da academia –, mas transformou, da mesma forma que os sambistas baianos e cariocas, tudo o que doía na força e na alegria criativa e singular que nos redime e nos dá vastidão.

Max Perlingeiro é curador, marchand e diretor da Pinakotheke Cultural em São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza.

Bené Fonteles é artivista, artista plástico, escritor, curador de arte, poeta, xamã e compositor brasileiro.

RUBEM VALENTIM: SAGRADA GEOMETRIA • PINAKOTHEKE CULTURAL • SÃO PAULO • 2/7 A 31/7/2022 73


Conjunto de Esculturas, 1988. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

PANORAMA

FRANS


,

krajcberg


MOSTRA

ANTOLÓGICA

EM

HOMENAGEM

AO

CENTENÁRIO DE FRANS KRAJCBERG, NO MuBE, SÃO PAULO, TRAZ A UNIÃO ENTRE ARTE, NATUREZA E ARQUITETURA E MARCA O INÍCIO DOS TRABALHOS DE PRESERVAÇÃO E DINAMIZAÇÃO DO ACERVO E DO SÍTIO NATURA, DOADOS PELO ARTISTA AO GOVERNO DA BAHIA

Frans Krajcberg, 1976

Diante da catástrofe socioambiental e da barbárie sociopolítica vivenciadas cotidianamente, chegou o momento certo de compreender em magnitude o legado do artista Frans Krajcberg (Kozienice, Polônia, 1921 – Rio de Janeiro, Brasil, 2017) – judeu polonês de origem e brasileiro por escolha. Se, em 2021, não nos foi permitido celebrar seu centenário por razões mais do que conhecidas, agora, em um esforço coletivo, propomos uma mostra antológica e histórica, capaz de difundir seu legado monumental de caráter estético, político e ambiental. E nada melhor do que confrontá-lo no espaço emblemático do Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), projetado por Paulo Mendes da Rocha. 76

Sem título. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

POR DIEGO MATOS




Sem título. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

Ao ter em perspectiva a atuação de nosso maior , para além de seu projeto estético, sua obra foi eminentemente ética, como um dia escreveu o crítico Frederico Morais – responsável por um texto essencial acerca da produção do artista – e, da mesma forma, anos depois, reiterou o cineasta Walter Salles, realizador que se debruçou sobre a produção do artista em dois documentários distintos. pelo exército russo Krajcberg lutou no durante a Segunda Guerra e perdeu toda a família em campos de concentração. da destruição Reconheceu como poucos o e da morte, tangível em toda a sua produção artística, esta, aliás, marcada pelo antagonismo premente entre a vida e a morte. O Brasil, país para o qual imigrou na segunda metade dos anos 1940, foi o lugar escolhido para renascer e fazer florescer sua prática artística – foi onde conseguiu escapar do mundo físico sombrio do pós-guerra, embora tivesse guardado em seu âmago os traumas da guerra e do Holocausto. Paradoxalmente, a memória do horror foi a força motriz de sua sobrevivência e reinvenção. Em certo sentido, foi aqui que ele ganhou outra adjetivação: passou a ser o que conheceu como poucos a paisagem, a terra e a flora brasileiras em suas várias formações e em seus climas diversos. Enfim, em Nova Viçosa (BA), em seu sítio cuidado e construído aos poucos, ele encontrou sua redenção em meio ao ambiente da Mata Atlântica. Tornou-se, por conseguinte, o , em permanente relação quase que simbiótica com a natureza.

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Desse modo, é da escala da vivência arquitetônica e ambiental que esta mostra quer contar. É do abrigo e aconchego da natureza, da própria arquitetura que dela nasce e cria espaços que permeiam as formas, estruturas, materiais, texturas e cores que o artista nos legou. Trata-se de um universo criativo, que partiu da composição bidimensional da pintura e seguiu incessantemente gravando os contornos do mundo cada vez mais dissociados da figura humana, ganhando força tridimensional e rompendo a escala, o equilíbrio e as formas da tradição escultórica. Em seu trabalho, há um ímpeto permanente de ascensão selvagem, força compositiva e encontro direto e cru com a natureza. Uma violência que se faz necessária. Como escrevi em outro momento, Krajcberg, à sua maneira, respondeu à exuberância e à diversidade do ambiente local, por vezes preservado, mas em risco, ora denunciando as agressões ao meio ambiente, ora transmutando os elementos de lá extraídos – colocando-o em polo oposto às tendências 80


Conjunto de Esculturas, 1988. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

majoritárias das vanguardas locais que constituíram o oficialismo da arte brasileira na segunda metade do século 20. É fato também que o artista nos defrontou com a experiência da época geológica do Antropoceno, em um exercício permanente de resistência e invenção diante da destruição de não mais retorno. Como muitos teóricos, filósofos, cientistas políticos e ambientalistas aludiram nos últimos tempos, estamos em uma luta de nós contra nós mesmos. Não há o que culpabilizar para além. Na verdade, é chegada a hora de agir: é o início de uma obrigação moral pela sobrevivência, colocando-nos diante de uma arquitetura da natureza, sábia e resiliente. É essa arquitetura então que gostaríamos de enunciar. É a , o fundamento de tudo, os elementos básicos de constituição da natureza vital que Frans Krajcberg nos conclama a olhar, contribuindo para uma nova consciência universal em prol da natureza, de seu uso sustentável e, enfim, de nossa sobrevivência. Sua produção artística também grita: ainda há (algum) tempo. 81


Sem título, 1970. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.




Sem título, s/d. Coleção Leonardo Amarante. Foto: Jaime Acioli.

SOBRE UM CAMINHO PELA OBRA DE FRANS KRAJCBERG O desafio que se coloca nesta exposição de tamanha abrangência é o de como pensar o legado artístico de Krajcberg à luz de um posicionamento ético e estético, sem perder de vista a própria história da arte. Nesse sentido, surgem dois pontos prementes: uma radicalidade plástica que comparece no diálogo franco com a natureza bruta, viva ou em destruição, e uma exuberância da monumentalidade, que faz explodirem as escalas e os suportes tradicionais da arte. Em uníssono, esses pontos são um grito que rompe o trato do plano pictórico e desconstrói a razão doméstica da escultura. É esse movimento de crescente transformação e elevação que esta exposição sublinha. Para tanto, quatro temas conceituais, ancorados na história, configuram a seleção de obras e suas aproximações formais. Eles se encontram distribuídos pela mostra e a ela integrados, servindo de norte para o espectador que se encoraja na grande floresta arquitetônica do artista. GESTAÇÃO, PENSAMENTO E TRAÇO São três conceitos que orbitam as obras seminais da trajetória do artista no Brasil e sua inserção institucional. Os trabalhos evocam uma boa relação dicotômica entre abstração e figuração, bi e tridimensionalidade, gesto e estrutura, conceito e matéria. As práticas pictóricas e gráficas permearam todos os seus anos de produção, em seu labor cotidiano de observação do mundo. 85


ARTE, AMBIENTE E PRESENÇA Corresponde a uma tomada de consciência quanto ao ambiente que Krajcberg escolheu para estar e vivenciar. Essa tríade de palavras-chave pode ser percebida nos próprios trabalhos, que sugerem uma movimentação de escala e ganham qualidade escultórica na medida em que são agregados materiais diversos, extraídos dos substratos da terra e dos resquícios da natureza. O artista desenvolve uma produção escultórica em que a matéria-prima é o movimento sinuoso das madeiras, das raízes, dos retalhos, etc. Aqui, vemos um caminho de ascensão e crescimento, além de um real acolhimento do que a natureza oferece. O que parecia refugo, sobra ou sinal de um fim de ciclo é, na verdade, a potência primeira da obra de arte. Como o crítico Jayme Maurício escreveu em 1976, no catálogo da exposição do artista na Galeria Arte Global, “Frans Krajcberg é como vento – espalha-se entre a selva, o mar e o sertão do continente brasileiro”.

Sem título. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.

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ARQUITETURA, ECOLOGIA E VIDA Neste tema, o encontro simbólico entre ecologia e arte ganha sua máxima força e encoraja uma explosão escalar. Está representado por peças por vezes sinuosas, ou lânguidas, monumentais, de cores fortes. A escultura é ampliada e faz contraponto ao espaço normatizado e hierarquizado da vida urbana. Os conjuntos de “Bailarinas”, “Coqueiros” e “Gordinhos” representam bem essa produção, assim como a obra icônica . Os trabalhos ambientais em cipó, vistos aqui de maneira inédita, apesar de sua condição efêmera, são exemplos bem-acabados em que a técnica ancestral, os valores radicais da escultura e a consciência ambiental se encontram. Também não podemos esquecer os troncos retrabalhados, esculpidos e pintados, que formam grandes figuras totêmicas resistentes ao ambiente dito civilizado.

Sem título. Vista da exposição no MuBE. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg.



Sem título. Vista da exposição no MuBE. Reprodução fotográfica © Frans Krajcberg. Imagens: © Frans Krajcberg. Cortesia MuBE.

RECORDAÇÃO, LUTA E RESISTÊNCIA A denúncia e o engajamento na luta socioambiental colocam o artista na “linha de frente” da defesa do meio ambiente. Destaca-se o vasto repertório de fotografias que retratam a ação violenta do homem contra a riqueza natural. Aponta-se em sua arte, muito além da denúncia, uma vontade civilizatória que comunga com uma vida sustentável, o que se vê refletido em seu vasto repertório fotográfico e em seu engajamento na produção escultórica mais recente. As próprias carcaças de baleias, tratadas e apresentadas de forma intacta por ele, mostram indícios de uma sobrevida, ao mesmo tempo que são uma recordação física e traumática de uma morte. A obra de Frans Krajcberg sublinha a fragilidade da natureza, em contraponto à memória do artista e à resistência material dessa mesma natureza.

Diego Matos é curador-chefe do Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE).

FRANS KRAJCBERG: POR UMA ARQUITETURA DA NATUREZA • MuBE • SÃO PAULO • 7/5 A 31/7/2022 91


ADRIANA

REFLEXO Ruína de charque Santa Cruz, 2002. Vista da exposição © Pinacoteca de São Paulo. Foto: Levi Fanan.


varejão

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POR ADRIANA VAREJÃO

Minha obra é permeada por influências múltiplas e variadas. Um botequim da Lapa, um canto em Macau, uma piscina em Budapeste, ruínas em Chacahua, um muro em Lisboa, um claustro em Salvador, um hamman subterrâneo no 18º bairro de Paris, um delicado vaso Song, uma frase num livro, um mercado em Taxco, uma pele tatuada, um anjo negro em Minas, um caco em Barcelona, um nanquim em Guilin, um açougue em Copacabana, um crisântemo em Cachoeira, uma notícia no jornal, um espelho em Tlacolula, um banheiro de rodoviária, um pássaro chinês em Sabará, o som do violão, um azulejo em Queluz, um charque em Caruaru, uma frase do passado, um quadro em Nova Iorque, ex-votos em Maceió, um vermelho em Madri, um sento em Kyoto, e mais, e mais, e mais… Fiz uma seleção de seis obras que considero representativas em minha trajetória, e conto um pouco das histórias e motivações por trás delas. 94

Língua com Padrão Sinuoso, 1998. © Adriana Varejão. Foto: Eduardo Ortega.

NA OBRA DE ADRIANA VAREJÃO, O CORTE, A RACHADURA, O TALHO E A FISSURA SÃO ELEMENTOS RECORRENTES E PROPÕEM UM EXAME REITERADO E RADICAL DA HISTÓRIA. CONHEÇA PELAS PALAVRAS DA PRÓPRIA ARTISTA COMO ESTA TRAJETÓRIA SE DESENROLOU



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Azulejos, 1988. © Adriana Varejão Foto: Vicente de Mello.

é a primeira obra em que uso como referência um painel de azulejaria portuguesa, antecedendo em vários anos meus “azulejões”. Eu pesquisava em um livro de arte religiosa barroca brasileira e me deparei com uma imagem do claustro do Convento de São Francisco, em Salvador. Nesse quadro, já vejo o prenúncio de muitas coisas que vieram depois. A descontinuidade dos azulejos colocados fora do lugar, a substituição do motivo representado no painel por outra paisagem, quase chinesa, o uso de tons de azul e branco, a espessura... muita coisa já estava anunciada ali, no quadro. Voltei a essa azulejaria do Convento de São Francisco um sem-fim de vezes e de muitas maneiras. É um conjunto monumental, impressionante. Uma joia do nosso barroco que sempre me inspirou desde o início.” 97


Une petite mort, 2005. © Adriana Varejão. Foto: Vicente de Mello.



“ é uma obra do início da minha carreira que faz parte da coleção do Stedelijk Museum, em Amsterdã, e está sendo exibida no Brasil depois de mais de 30 anos, na Pinacoteca de São Paulo. Foi uma das minhas primeiras obras de inspiração barroca. Meu primeiro contato com esse universo se deu por um livro sobre igrejas barrocas no Brasil. Quando fiz essa pintura, eu tinha ainda vinte e poucos anos de idade, mas ela já anunciava algumas questões que viriam a se desenvolver em minha obra. Nela se pode notar uma diversidade de cores nos anjos, cujos tons de pele não se repetem, um tema que revisitei anos mais tarde, com as . A escultura que tomei como modelo para essa obra fica no altar-mor da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em Recife. A primeira vez que a vi foi em um livro sobre o barroco brasileiro. A escultura parecia feita em madeira natural, aparentemente sem tinta. Quando pintei esse quadro, imaginei os anjos com muita diversidade, cada um de uma cor diferente do outro. Mais recentemente, estive nessa igreja e, para meu espanto, o altar tinha sido restaurado e os anjinhos foram todos pintados em cor-derosa claro, formando uma massa de cor única e uniforme, uma coisa horrível. Eu me pergunto como deveria ser a versão original.” 100


Anjos, 1988. © Adriana Varejão Foto: Vicente de Mello.

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Mapa de Lopo Homen II, 1994-2004 © Adriana Varejão Foto: Jaime Acioli 102


“Nesse quadro, tomo como partida um mapa de 1519, do cartógrafo português Lopo Homem. Nele, tenta-se uma conciliação dos novos dados geográficos decorrentes dos “descobrimentos” com alguns aspectos que se procura preservar das antigas concepções ptolomaicas. Apresentam-se as regiões da Ásia, que os portugueses estavam ainda reconhecendo, ligadas às novas terras do Brasil por uma fantástica terra austral na parte de baixo do mapa. Abri com faca o quadro, deixando uma ferida aberta ao centro, criando uma linha mais real do que as rabiscadas nos mapas, feita de entranha e sangue e tudo aquilo que o documento oficial jamais mostra: interioridade. A sutura parece não dar conta da tarefa de camuflar toda a violência.” 103


Autorretratos coloniais, 1993. © Adriana Varejão Foto: Vicente de Mello.



Extirpação do mal por incisura, 1994. © Adriana Varejão Foto: Sergio Guerini.


“Em 1994, fui convidada a participar da 22ª edição da Bienal de São Paulo, que teve curadoria de Nelson Aguilar, com o tema “Ruptura com o suporte”. Eu tinha voltado de uma temporada de três meses na China, onde participei de uma residência em medicina tradicional chinesa em um hospital em Xangai. Estava sem ateliê nessa época, e usei um espaço improvisado na antiga lavanderia do Educandário da Misericórdia, colégio de freiras aos pés do morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. Fiz uma série de cinco trabalhos que representavam peles tatuadas com algumas imagens da azulejaria da Igreja e do claustro do Convento . O título de São Francisco, em Salvador. Essa série se chamou ambíguo era complementado pelos respectivos procedimentos terapêuticos: por overdose, curetagem, revulsão, punção e incisura. Inspiradas nas diferentes maneiras de apagar inscrições feitas na pele, essas obras remetem também à adulteração de imagens nos azulejos do Convento de São Francisco. Nessa série, a pintura é a personagem da cena. Ela flui em tubos, imerge em bacias, é sugada por ventosas, perfurada por agulhas e, finalmente, a espessura da imagem pode ser laminada e seu corpo descansa sobre uma maca. Muito se falava da morte da pintura e essa série teatraliza sua agonia. No entanto, podemos dizer, parodiando Nelson Sargento, que a pintura “agoniza, mas não morre.”


“As cidades de Salvador e Cachoeira, na Bahia, foram fundamentais na construção da minha obra. Nelas, encontrei referências importantíssimas do período barroco que usei em muitos dos meus trabalhos, especialmente no que se referem à azulejaria. O claustro do Convento de São Francisco, no Pelourinho, e a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Cachoeira, além de um sem-fim de relíquias, como os caquinhos de louça da Cia. das Índias, e o teto em estilo chinês pintado por Charles Belleville, no Seminário de Nossa Senhora de Belém, ofereceram-me elementos para a construção de muitos dos meus trabalhos. Por exemplo, a primeira inspiração para o painel de azulejões, que depois desenvolvi em uma escala aumentada na instalação , em Inhotim, foram os painéis de azulejaria da cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Esses painéis foram se soltando com o tempo, e os azulejos 108


Celacanto provoca maremoto, 2004-2008. © Adriana Varejão. Foto: Eduardo Eckenfels.

eram recolocados em posições totalmente diferentes da original, formando outra composição. Eu tive uma espécie de vertigem ao ver aqueles fragmentos de imagens todos embaralhados, como se uma história pudesse ser recontada assim, simplesmente transpondo seus elementos. Então, essa foi a inspiração primeira. Mas, em , o que eu faço é a construção de uma desconstrução. Tudo ali é muito calculado. O que eu estava buscando, com essa pintura-instalação, era que o espectador pudesse ter a sensação de “mergulhar” na obra, ser engolido por ela como em um grande caldo. Uma imersão total na pintura, um banho de mar. Para fazer o trabalho final, que reveste as quatro paredes de uma grande sala no pavilhão de Inhotim, foram quase três anos vivendo e produzindo as obras ali, ao mesmo tempo em que o pavilhão era construído.” 109


Ruína de Charque, Porto, 2002. © Adriana Varejão Foto: Jeff McLane. Cortesia Gagosian.



Ruína Brasilis, 2021. © Adriana Varejão. Foto: Vicente de Mello.

"De alguma forma, a minha pintura sempre se relacionou com a arquitetura. Gosto das ruínas, pois elas servem de metáfora para um tempo inacabado. Indicam a fragilidade da tradição, a precariedade da noção de projeto e a instabilidade de valores em países como o Brasil, onde o descontínuo é a regra. Representam o tempo iminente de decomposição da carne. Elas me lembram da canção “Fora da ordem”, de Caetano Veloso, que cita Lévi-Strauss em sua passagem por São Paulo, dizendo: “Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína.” Nesse país, os projetos já nascem mortos. Não à toa, fiz essa ruína . Essa obra tem o formato nomeada de uma coluna, que é um elemento novo adotado nas minhas mais recentes. A coluna é peça fundamental de sustentação das edificações. Mas, nesse caso, ela está ruindo e revelando um interior frágil, exposto, carcomido, em carne viva. Ela não está ali edificando nenhum projeto glorioso. Ao contrário, aparece como uma espécie de monumento trágico, que nos revela uma verdade brutal.”

ADRIANA VAREJÃO: SUTURAS, FISSURAS, RUÍNAS • PINACOTECA DE SÃO PAULO • 26/3 A 1/8/2022 112



Vista da exposição na Pinacoteca de São Paulo. Foto: Levi Fanan. © Pinacoteca de São Paulo



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LIVros

Esse trabalho, por meio da arte da poesia, busca homenagear a convivência das comunidades com o Semiárido. Sob a curadoria do artista Derlon, os poetas Alexandre Morais, Elenilda Amaral, Islan, Isabelly Moreira e Zé Adalberto trazem na escrita imersiva a história de vida dos agricultores e agricultoras do sertão nordestino. Várias temáticas foram exploradas, desde o papel fundamental da mulher até a importância da educação, ou do respeito à natureza. PLANTANDO POESIA • Org. Derlon de Almeida • EDITORA IMPRESSÕES DE MINAS • 141 páginas

Os caminhos da forma é o título do livro escrito pelo crítico de arte e curador Jacob Klintowitz, que percorre o universo artístico da escultora Mary Carmen. Professora de história, especialista em sociologia e consultora de empresas, entrou no mundo da arte escultórica quase sem perceber. Incentivada por artistas como Caciporé Torres e Nicolas Vlavianos e curadores como o próprio Klintowitz e Denise Mattar, mergulhou neste universo para criar suas próprias constelações. OS CAMINHOS DA FORMA • Aut: Mary Carmen Matias • Ensaio Crítico: Jacob Klintowitz • EDITORA INSTITUTO OLGA KOS • R$ 100,00 • 164 páginas

, do fotógrafo e artista visual pernambucano Gilvan Barreto, é um livro que aborda a relação entre fotografia e texto ao investigar imagens que insinuam como uma paisagem paradisíaca pode ser capaz de camuflar tramas de injustiça – expondo, de maneira visual e simbólica, feridas abertas nas terras brasileiras. Nas palavras do organizador, trata-se de uma “antologia de ordem poética e histórica.” GILVAN BARRETO: PARAÍSO • Org. Diego Matos • EDITORA COBOGÓ R$ 100,00 • 220 páginas 116




Fotos: Sonia Balady

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COLUNA do meio

Fábio Magalhães

Luiz Adolino Galeria Contempo São Paulo

Fotos: Denise Andrade.

Marina, Monica e Marcia Felmanas

Jose Roberto Furtado, Victor Arruda e Giovanni Bosica

Helena Marinho, Ismelia Dolino e Luiz Marinho

Victor Arruda Belizario Galeria São Paulo

Gabriel Nehemy

Afonso Tostes, Lourdinha Piquet, Paulo Sergio Duarte e Van Van Seiler

Barrao, Joao Sanches e Luiz Zerbini

Carlos Costa e Suzanna Bomeny

José Roberto Furtado, Marcus Lontra Costa, Luiz Gustavo Leite, Victor Arruda e Orlando Lemos

José Damasceno

Afonso Tostes Mul.ti.plo Rio de Janeiro

Raul Mourao, Cabelo e Fabio Szwarcwald

Ricardo Cavalcanti, Manuela Muller e Afonso Tostes

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Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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