EDIÇÃO . REDAÇÃO André Fabro andre@dasartes.com
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Capa: , Afetocolagens: Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, Nossa Senhora Comparecida, 2019. Foto: © Silvana Mendes. © Jeane Terra.
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin
ou patrocine pelas leis de incentivo
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Rouanet, ISS ou
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10 WALTER FIRMO ROSA BONHEUR 48 SILVANA MENDES 6 8 28 Agenda De Arte a Z 68 SIDNEY AMARAL JEANE TERRA 84 104 Livros 107 Coluna do meio
Nonada é uma galeria dedicada a dar visibilidade à excelência da produção artística, e local de pesquisa e debate plural, e será inaugurada no dia 19 de novembro de 2022, em dois espaços no Rio de Janeiro: em Copacabana, na Zona Sul e na Penha, na Zona Norte. A exposição inaugural reúne trabalhos de 32 artistas, de várias cidades brasileiras, que trabalham em diversos suportes e têm diferentes pesquisas, que refletem temas atuais, em uma grande pluralidade. Suas obras estarão distribuídas na mostra , em Copacabana, e , em um galpão industrial na Penha. O texto crítico é do artista, poeta e compositor André Vargas.
Em Copacabana, no espaço de 70 metros quadrados da Nonada ZS na Rua Aires Saldanha, próximo à Rua Bolívar, área boêmia e perto do futuro Museu da Imagem do Som, estarão obras com um teor maior de crítica política e social. Na Penha, na Nonada ZN, na área de mais de 200 metros quadrados e 4,5 metros de altura, os trabalhos serão mais líricos.
A PALAVRA: PROSA
A PALAVRA: VERSO
• NONADA • RIO DE JANEIRO • DE 19/11/2022 A 4/3/2023
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AGENDA
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de arte AZ
ONDA DE PROTESTOS • Asegurançado Museu Nacional da Noruega, em Oslo, interveioquandoduasmulherestentaram se colar em (1893), de Edvard Munch.Elasforamdetidas juntocomuma terceira pessoa que estava filmando a ação. Os ativistas estão associados ao grupo norueguês (Pare a exploração de petróleo), que exige que o governo declare uma interrupção imediata da exploração de petróleo.
OBITUÁRIO • O artista francês Hervé Télémaque, nascido no Haiti e conhecido por seu trabalho colorido e figurativo, morreu aos 85 anos. Ele tornou-se internacionalmente conhecido no final da carreira, após uma grande retrospectiva no Centre Pompidou, em 2015. Enquanto trabalhava com pintura, desenho, montagem e colagem, os curadores às vezes achavam difícil categorizar o estilo únicodeTélémaque,entreelesafiguração narrativa com fortes princípios socialistas e influências surrealistas.
PELO
MUNDO
• Arqueólogos espanhóis decodificaram gravuras na , umarelíquiadebronzequeremonta 2.100 anos de Vascones, uma tribo do final da Idade do Ferro que precedeu a cultura basca. Encontrado em Navarra, em 2021, descobriu-se que o artefato contém a inscrição mais antiga conhecida em basco. A arqueóloga Leire Malkorra desenterrou a peça após quatro anos de escavação e a UniversidadedeUppsala,naSuécia,datou o artefato do início do século 1.
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NOVOS ESPAÇOS • Em Nova York, o recém-inaugurado Museu da Broadway, está repleto de memória que atesta a influência de seus membros. Há uma mostra de figurinos do ummeticulosomodelode360ºdo cenáriode alémdeumespaçode exibiçãotemporáriaatualmentededicado a Al Hirschfeld, o prolífico caricaturista cujos desenhos em tinta preta estamparam incontáveis pôsteres da Broadway ao longo do século 20.
divulga a programação para 2023 e comemoraainauguraçãodonovoedifício: a Pinacoteca Contemporânea. A abertura do novo espaço está prevista para 25 de janeiro, aniversário da cidade de São Paulo, com duas exposições de impacto: uma coletiva com obras do acervo do museu ocupará a Grande Galeria e a coreana Haegue Yang, destaque do cenário internacional de arte contemporânea, terá suas obras expostas na Galeria Praça.
• DISSE O DESIGNER
Fernando Campana, em máteria para Dasartes, em 2017. O designer faleceu no último dia 16/11, em São Paulo, aos 61 anos. Junto ao irmão Humberto, os irmãos Campana se firmaram como potência no design nacional, nas últimas três décadas.
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DESTAQUE ,
WALTER firmo
Foto: © Ciro Coelho.
Fogo
no olho, 1994.
AS IMAGENS DE WALTER FIRMO DESPERTAM MEMÓRIAS DE UMA AFETIVIDADE PROFUNDA. UM PANORAMA DOS MAIS DE 70 ANOS DE TRAJETÓRIA DO CONSAGRADO FOTÓGRAFO CARIOCA PODE SER VISTO NO CCBB RJ POR SÉRGIO BURGI
Walter Firmo incorporou desde cedo em sua prática fotográfica a noção da síntese narrativa de imagem única, elaborada por meio de imagens construídas, dirigidas e, muitas vezes, até encenadas. Linguagem própria que, tendo como substrato sua consciência de origem – social, cultural e racial –, desenvolve-se amalgamada à percepção, já presente no início de sua trajetória profissional, da necessidade de se confrontar e se questionar os cânones e limites da fotografia documental e do fotojornalismo. Em um sentido mais amplo, questionar a própria fotografia como verossimilhança ou mera mimese do real, incorporando em sua obra procedimentos criativos específicos e conceituais de valoração e exaltação do objeto e tema de interesse maior em seu percurso artístico: a representação da população negra do país.
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Artista Arthur Bispo do Rosário, Colônia Juliano Moreira, RJ, 1985. © Walter Firmo. Acervo IMS.
1988.
Ao longo de sua trajetória de mais de 70 anos como fotógrafo, percorreu e produziu imagens de puro encantamento em todas as regiões do país. Construiu retratos icônicos de grandes nomes da música popular e da cultura brasileira. Enalteceu seus personagens e suas múltiplas manifestações culturais e religiosas. Criou, ao longo desse percurso, uma sólida presença na imprensa e na fotografia autoral. Nascido e criado no subúrbio carioca, filho único de paraenses – seu pai, de família negra e ribeirinha do baixo Amazonas; sua mãe, de família branca portuguesa, nascida em Belém –, Walter Firmo construiu a poética de seu olhar voltada principalmente para a elaboração de um registro amplo e generoso da população negra do Rio de Janeiro e de todo o país, em sua vida cotidiana, seus afetos, suas religiosidades e suas festas. Uma verdadeira ode à integridade, altivez e resiliência dessa população e de suas múltiplas manifestações culturais.
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Casamento Cabo Verde,
© Walter Firmo. Acervo IMS.
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Funcionário Hotel Nacional, RJ, 1972. © Walter Firmo. Acervo IMS.
Família na Rodiviária de Petrópolis, RJ, 1990. © Walter Firmo. Acervo IMS.
Foto: © Lenora de Barros.
Eu não disse nada.
Pixinguinha, RJ, 1967.
© Walter Firmo. Acervo IMS.
olho europeu e o americano e valorizar o que é nosso”, escreveu Firmo, em texto publicado no livro , de 1989. Esse texto apresenta os principais elementos de estruturação da obra do autor, uma narrativa em terceira pessoa na qual ele discorre sobre sua jornada e concepção formal e estética da fotografia. Trata-se de um processo de reflexão crítica a respeito de sua linguagem e trajetória pessoal, que se desenvolveu desde seus primeiros trabalhos na fotografia em preto e branco, das primeiras imagens realizadas com sua no subúrbio carioca e nas aulas da Associação Brasileira de Arte Fotográfica, ainda aos 15 anos, até o início da carreira na imprensa diária no jornal , em 1955, e no , a partir de 1960. Em 1965, ele ingressou no universo da fotografia em cores como o primeiro fotógrafo contratado pela revista , transferindo-se em 1966 para a revista , publicações que o levariam a percorrer extensivamente o país ainda antes dos 30 anos.
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Filhos Eduardo Firmo e Aloísio Firmo e Pais de Walter Firmo José Baptista e Maria de Lourdes, RJ, 1985. © Walter Firmo. Acervo IMS.
Doces Bárbaros, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso no Canecão, RJ, 1976. © Walter Firmo. Acervo IMS.
A carreira de Firmo na imprensa se estendeu por três décadas, de 1955 a 1986. Depois desse período, trilhou um caminho mais autoral, voltado a temas de seu interesse, entre eles a construção de um vasto repertório de imagens produzidas junto às manifestações culturais e festas populares de várias regiões do país. Nunca deixou de fotografar em preto e branco, mas, particularmente em torno desses temas, desenvolveu crescente ênfase e interesse pelo uso da cor. Tendo como referência os trabalhos de fotógrafos como David Drew Zingg, Ernst Haas e Gordon Parks, sua intensa experimentação formal e cromática em torno de nossa luz tropical e de uma “cor brasileira” resultou em amplo reconhecimento de seu trabalho pelo grande público e pela crítica como o de um grande mestre colorista, até aqui a face mais reconhecida e evidenciada de sua produção autoral.
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Ensaio sobre nu e negritude, Santo Amaro, BA, 2002. © Walter Firmo. Acervo IMS.
Cartola Angenor de Oliveira desfilando no Carnaval, RJ, 1970. © Walter Firmo. Acervo IMS.
Entretanto, diante da vasta produção de Walter Firmo e das inúmeras manifestações de seu pensamento, tanto em seus textos publicados como nas entrevistas que concedeu, percebe-se claramente aquilo que efetivamente estrutura e dá corpo à obra dele ao longo de toda a sua trajetória: não simplesmente a cor, mas a . Aquela que expressa, tanto em sua potência cromática plena, em suas imagens coloridas, como também em sua ausência absoluta, nas poderosas imagens em preto e branco que realizava (a maioria delas ainda inédita), uma prática autoral, criativa e engajada, que buscava de forma permanente a visibilização e a valoração daqueles que descendem da violenta diáspora africana que marca e conforma inescapavelmente passado, presente e futuro deste país, tecendo, assim, de modo contínuo, “no verbo do silêncio a síntese do grito”. Negritude e encantamentos, narrativas e experimentações. São esses, portanto, os elementos principais e estruturantes das múltiplas poéticas em construção permanente que conferem sentido e lugar à obra de Walter Firmo.
Sérgio Burgi é curador e coordenador do acervo de Fotografia do Instituto Moreira Salles. Trecho do texto do catálogo Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito, publicado pelo Instituto Moreira Salles, 2022.
WALTER FIRMO: NO VERBO DO SILÊNCIO A SÍNTESE DO GRITO • CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL • RIO DE JANEIRO • 9/11/2022 A 27/3/2023
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ROSA bonheur
FLASHBACK
ROSA bonheur,
GRANDE RETROSPECTIVA HOMENAGEIA ROSA BONHEUR, UMA ARTISTA EXCEPCIONAL, INOVADORA E INSPIRADORA. CONHECIDA COMO ÍCONE DA EMANCIPAÇÃO DA MULHER
COLOCOU O MUNDO VIVO NO CENTRO DE SEU TRABALHO E DE SUA EXISTÊNCIA. COMPROMETEU-SE COM O RECONHECIMENTO DOS ANIMAIS EM SUA SINGULARIDADE E BUSCOU POR MEIO DE SUAS PINTURAS EXPRESSAR SUA VITALIDADE E SUA “ALMA”
POR LEÏLA JARBOUAI
Mostra do Museu de Orsay se realiza por ocasião dos duzentos anos do nascimento de Rosa Bonheur (1822-1899). A exposição homenageia o trabalho de uma personalidade extraordinária. Ela se estabeleceu como a maior pintora de animais de seu tempo, suplantando seus colegas homens nesse gênero. Ícone do feminismo, símbolo de emancipação das lésbicas, figura visionária por seus compromissos ecológicos, Rosa Bonheur nunca esteve tão em sintonia com nossos tempos. A exposição abre um novo olhar sobre essa artista e revela aspectos menos conhecidos de sua criação: seu desenho virtuoso, sua verve satírica, suas visões épicas do Oeste americano e seu talento como retratista de animais cuja alma ela capturou tão bem.
DE MARIE ROSALIE A ROSA BONHEUR
Marie Rosalie Bonheur nasceu em Bordeaux, em março 1822, de pai pintor e mãe musicista. Ela era a mais velha de quatro filhos, todos os quais se tornaram artistas. A família Bonheur se mudou para Paris, em 1829. Apaixonada por animais desde a infância, quando desenhava incansavelmente, a jovem Rosa Bonheur deixou a escola aos 13 anos para ingressar no ateliê do pai. A vida dela se organizou então entre aulas de desenho, modelagem e sessões de pintura ao ar livre no bosque que circundava o apartamento da família. O pai a encorajou a copiar os antigos mestres do Louvre. Participou pela primeira vez do Salão em 1841, com a obra . Dois anos depois, assinou pela primeira vez "Rosa Bonheur", em memória do diminutivo que lhe foi dado pela mãe, falecida prematuramente em 1833.
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Édouard-Louis Dubufe e Rosa Bonheur, Retrato de Rosa Bonheur, 1857. © RMN-Grand Palais (Château de Versailles) / Foto: Gérard Blot.
Doiscoelhos,1840.
Foto:©MairiedeBordeaux, muséedesBeaux-Arts, F.Deval.
OS TRABALHADORES DA TERRA
Rosa Bonheur observava com o maior interesse as relações entre os animais e os homens. Representava suas interações, enfatizando seja a relação de poder exercida pelo homem sobre os animais, seja a harmonia que parecia uni-los. Ilustrava o cotidiano dos pastores e vaqueiros, o trabalho dos carvoeiros e o trabalho no campo. Na década de 1840, ela continuou sua pesquisa cruzando o
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campo de Auvergne, os Pirineus e Nivernais. Estudou cada raça encontrada. No Salão de 1845, recebeu uma medalha de terceira classe, antes de ser a grande revelação do Salão de 1848. O Estado encomendou então sua primeira obra-prima: , uma homenagem ao trabalho animal, que se tornou um ícone de uma ruralidade feliz.
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A Lavoura de Nivernais, também conhecida como O naufrágio, 1849. Foto: © Musée d'Orsay, Dist. RMN-Grand Palais / Patrice Schmidt.
O MERCADO DO CAVALO
Famosa graças a , Rosa Bonheur experimentou então um triunfo durante a exibição de seu no Salão de 1853. Ela se consolidou como uma criadora talentosa, porque abordou um gênero tradicionalmente reservado aos homens e usando o formato muito grande de pintura histórica. A artista pintou a força dos cavalos e a violência dos homens. Ela se inspirava nos antigos frisos do Parthenon enquanto se comparava aos pintores
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românticos do século 19, como Théodore Géricault (1791-1824). Para preparar essa imensa pintura, ela desenhou muito, fez estudos de detalhes e composições com um esboço sobre tela. A pintura original, guardada no Metropolitan Museum of Art de Nova York, não pôde viajar devido à sua fragilidade, mas está exposta uma réplica pintada pela própria Rosa Bonheur com a ajuda da amiga Nathalie Micas.
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O Mercado do Cavalo, 1855. Foto: © The National Gallery, London.
Bárbaro depois da caça, 1858. Foto: © Philadelphia Museum of Art: Gift of John G. Johnson for the W. P. Wilstach Collection, 1900, W1900-1-2.
Muito rapidamente, Rosa Bonheur obteve grande reconhecimento graças à reprodução de suas obras em gravura e litografia. A venda dessas peças foi um sucesso tão grande que permitiu que a obra de Rosa Bonheur fosse acolhida no interior de residências na Europa e nos Estados Unidos. Também ilustrou obras relacionadas com a agricultura ou o mundo animal. Nasceu uma verdadeira "rosamania": suas obras foram reproduzidas em objetos do cotidiano (papel de parede, caixas de fósforos, etc.). Sua personalidade foi um modelo a ser seguido: uma figura do feminismo de calças compridas e cabelo curto, cujo nome já era reconhecido por seu talento. Anna Klumpke (1856-1942) foi uma pintora de retratos americana. Estudou pintura em Paris e adorava Rosa Bonheur, a quem se ofereceu para pintar seu retrato. As sessões de poses aproximaram as duas artistas. Rosa Bonheur viu nessa jovem (34 anos mais nova que ela) a pessoa ideal para transmitir seu legado. Em 1898, Anna Klumpke foi morar com ela e se tornou sua herdeira universal. A americana publicou a biografia da artista em 1908. Quando Rosa Bonheur faleceu, em 1899, ela fotografou cada um dos estudos presentes no ateliê para preservar a memória de suas obras antes que fossem dispersas durante uma venda em 1900. Anna Klumpke também preservava o espólio de Rosa.
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Estudo das flores e plantas, n.d.
Foto: © Nadège Dauga.
VIAGENS À ESCÓCIA E AOS PIRENEUS
Rosa viajou para observar e compreender a vida dos animais e dos homens no campo ou nas montanhas, para depois exprimir na sua pintura a essência dos diferentes e as especificidades de tal animal ou prática agrícola. A artista viajou especialmente para a França: para Auvergne, Nivernais e Landes. Os Pireneus continuaram a ser um destino importante para a pintora, onde estudou burros e ovelhas. Em 1856, ela foi para a Escócia e lá descobriu as raças escocesas, das quais trouxe estudos que usaria por toda a vida.
A OFICINA DE ANIMAIS
Na década de 1850, a fama de Rosa Bonheur na mídia foi acompanhada de sucesso comercial. A venda de suas pinturas e suas versões em gravuras lhe permitiu adquirir o Castelo de By, na orla da floresta de Fontainebleau. A pintora procurou uma casa isolada perto da natureza. Uma grande oficina foi anexada à casa. Mudou-se, em 1860, com Nathalie Micas e a sua mãe, que se ocupava da gestão do castelo e do cuidado dos animais, permitindo assim à artista pintar livremente. A propriedade foi concebida como um "domínio da amizade perfeita" ou uma "verdadeira Arca de Noé", onde Rosa Bonheur estudou os animais diariamente. Cães, cavalos, ovelhas, animais selvagens, veados e javalis foram modelos, amigos e musas.
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Cabeças e pescoços de vaca marrom. Foto: © Musée d’Orsay/Alexis Brandt. À direita: El Cid - Cabeça de Leão, 1879. © Photographic Archive Museo Nacional del Prado.
O ESTUDO NO CENTRO DA CRIAÇÃO
No Castelo, Rosa Bonheur estudava os seus modelos sempre que lhe apetecia e observava os animais no seu ambiente natural. Ela também estudava a terra, as árvores e sua folhagem. Esboçava as atitudes dos animais todos os dias. Acumulava estudos de detalhes, a lápis, óleo ou aquarela, que iria utilizar para criar novas composições. A pintora havia batizado seu ateliê de "santuário": é o lugar, quase sagrado, da absoluta liberdade da artista. Ali desenvolveu grandes telas, sob o olhar de bichos empalhados, paralelamente ao trabalho com a natureza, onde buscava captar a centelha de vida em cada animal.
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OS GRANDES FELINOS
Entre os animais pintados por Rosa Bonheur, os leões ocuparam lugar de destaque. A artista iniciou seu estudo dos grandes felinos no zoológico do Jardin des Plantes. Então ela hospedou leões e leoas em By. Ela os desenhou todos os dias e criou um relacionamento real com eles. Pierrette, Brutus, Néro e Fathma foram oferecidos a ela por diretores de circos e zoológicos. Rosa admirou a inteligência e nobreza e se identificou com o poder desses felinos. Ela produziu muitos esboços para criar suas grandes pinturas de leões.
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O Rei da Floresta, 1817. Foto: © Christie’s Images / Bridgeman Images.
Cavalos selvagens fugindo do fogo, 1899. Foto: © Château de Rosa Bonheur.
À direita: A Águia Ferida, 1870. Licenciée par Dist. RMN-Grand Palais / image LACMA.
O CHAMADO DO MUNDO SELVAGEM
Descrita antes como realista, a artista utilizou por vezes efeitos que evocavam o romantismo: ambientes nebulosos propícios ao sonho onde jogava com os contrastes entre o preto e o branco; animais enigmáticos e fascinantes. O seu amor pelos cavalos estava imbuído da visão de Géricault, cujas gravuras ela tinha, ou de George Stubbs (1724-1806). Na inacabada , ela relatou o movimento de uma manada de alazões. Mais do que sua representação, era a liberdade desses cavalos em um espaço infinito que se tornava o real assunto.
Leïla Jarbouai é curadora-chefe do Musée d’Orsay, em Paris, França.
ROSA BONHEUR (1822-1899) • MUSÉE D’ORSAY • PARIS • 18/10/2022 A 15/1/2023 46
SILVANA
GARIMPO
Afetocolagens:
mendes
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Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, Série 3, 2022. Foto: © Silvana Mendes.
A JOVEM ARTISTA MARANHENSE SILVANA MENDES USA COMO SUPORTE ARTÍSTICO A COLAGEM DIGITAL, O LAMBE E A FOTOGRAFIA AFETIVA PARA DISCUTIR TEMAS QUE ATRAVESSAM OS DEBATES DOS CORPOS E IDENTIDADES DOS POVOS NEGROS
POR LEANDRO FAZOLLA
Carolina Maria de Jesus autografa seu livro. Ao lado dela, um homem branco também escreve sobre uma pilha de outros livros da escritora. No registro fotográfico, a autora divide o espaço que deveria ser dela. Na exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, no Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo, exibida em 2021, porém, havia algo diferente nessa imagem. Do colarinho da camisa daquele homem, onde deveria estar a cabeça dele, brotam folhagens e sai um grande pássaro colorido, tirando-lhe a identidade e dando à Carolina o protagonismo que nunca lhe devia ter sido roubado. Obra de Silvana Mendes, a fotocolagem sacraliza a presença da autora de “Quarto de Despejo” com uma espécie de auréola de contas amarelas em torno da cabeça dela. Em vez de apagar completamente a presença do homem, a artista optou por mantê-lo ali, presentificado na ausência de suas feições, grifando o gesto firme de reescrita da história empreendido por ela.
Afetocolagens: Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, Série 3, 2022. Foto: © Silvana Mendes.
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A participação na exposição do IMS foi uma das primeiras incursões da arte de Silvana em um grande espaço institucional. Coincidentemente, dois anos antes de receber o convite para integrar a mostra, a artista havia visitado o Instituto e pensado que suas obras talvez jamais coubessem em espaços como aquele. De lá para cá, Silvana continua conquistando os mais diversos públicos de espaços tão importantes quanto o MAR (Museu de Arte do Rio) e o MAM (Museu de Arte Moderna), do Rio de Janeiro.
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Afetocolagens: Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, Nossa Senhora Comparecida, 2019. Foto: © Silvana Mendes.
A obra de Silvana está no cerne de uma disputa de narrativas contemporâneas. Após se entender como mulher preta e buscar mais de sua ancestralidade, a artista foi se aprofundando nas pesquisas sobre as diversas formas de violência a que o povo negro vem sendo submetido ao longo dos últimos séculos no Brasil. Em sua recente série de “afetocolagens”, Silvana busca na História do Brasil, mais especificamente no período colonial, retratos de homens e mulheres cujas identidades não foram preservadas e foram registrados apenas pelo caráter etnográfico.
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Composition in Black and White, with Double Lines, 1934. © Piet Mondrian.
Afetocolagens: Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, 2019. Foto: © Silvana Mendes.
Afetocolagens: Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, 2022. Foto: © Silvana Mendes.
Afetocolagens: Reconstruindo
Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, Série 3, 2022. Foto: © Silvana Mendes.
Segundo a própria artista, ao se deparar com essas imagens, pôde enxergar diversas semelhanças com pessoas que ela mesma conhecia. Silvana enxergava naquelas fotografias antigas os traços de amigos, parentes ou outros com os quais esbarrava em seu dia a dia. Pessoas cuja imagem ancestral é nebulosa, seja pela falta de informações ou registos fotográficos ou pelo próprio apagamento institucional empreendido por anos pelos tantos “brasis” oficiais. Ela mesma não tem qualquer fotografia de seus avós paternos, e encontrou em alguns dos registros de anônimos traços que a faziam lembrar de seus familiares. Teriam aqueles fotografados algum grau de parentesco com ela própria ou com outras pessoas que a cercam? Não é possível responder a essa pergunta, mas a suposição inevitavelmente estabelece um laço afetivo da artista com tais imagens.
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Afetocolagens: Reconstruindo Narrativas
Visuais de Negros na Fotografia Colonial, 2020.
Foto: © Silvana Mendes.
Em um trabalho quase totalmente empírico e intuitivo, Silvana apaga o fundo das fotografias, deixando em evidência apenas o retratado. A partir disso, relaciona-se com ele, cria contextos, insere elementos e modifica narrativas sem, no entanto, fechá-las em uma única possibilidade: a mesma imagem pode ser lida por diferentes espectadores como uma rainha africana ou uma santa católica. Os caminhos estão abertos para o público escrever suas próprias histórias a partir do que a artista lhes oferece. Assim, ainda que Silvana não tenha o poder de apagar a História vergonhosa de um Brasil que até hoje respira as consequências da escravidão, ela pode contribuir no importante processo de criação de novos de discursos, pela arte, ao dar à comunidade negra o protagonismo em uma terra que os violentou e ainda violenta mesmo após mais de quinhentos anos da invasão portuguesa.
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Afetocolagens: Reconstruindo
Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, Série 3. Foto: © Silvana Mendes. “
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Invasão! Em contexto completamente diferente e que amplia a percepção sobre quais mãos sempre escreveram a história oficial, “invasão” não foi a palavra usada nos livros de história para se referir à chegada dos portugueses em terras tupiniquins, mas foi o termo usado durante muito tempo para designar os bairros de periferia e quebradas de São Luís do Maranhão, onde Silvana cresceu.
Proveniente da outrora invasão, hoje bairro, Cantinho do Céu, a estudante de licenciatura em artes visuais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) começou sua trajetória artística ocupando as ruas com suas obras. Inicialmente trabalhando com lambe-lambe, tanto pelos custos mais baixos de produção quanto pela resposta imediata do público, Silvana preencheu simultaneamente os muros das ruas e os murais das redes sociais, estratégia usada para promover as próprias obras. O trabalho era feito a partir de intervenções e pinturas sobre fotografias, muitas delas feitas pela artista com modelos de seu convívio, aliando sua produção artística a um importante processo de resgate da autoestima e empoderamento de pessoas pretas.
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Foto: © Silvana Mendes.
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Projeto de Fotografia Afetiva. Se eu pudesse te daria meus olhos para você ver como é linda quando eu te vejo. Foto: © Silvana Mendes.
Não à toa a palavra afeto está nos títulos de séries da artista como “afetocolagens” ou “Fotografia Afetiva”. O afeto é uma das forças motrizes na produção de Silvana Mendes, que dota sua obra de questões ainda mais relevantes do que a pura apreciação estética: sua produção se alia a assuntos caros como reparação histórica e transformação social. As obras de Silvana se estabelecem em um fluxo contínuo de troca, onde a artista recebe imagens do mundo, e as devolve transformadas, recriadas, de maneira a afetar intimamente o outro e contribuir na construção de novos mundos. UM
Leandro Fazolla é ator, historiador e crítico de arte. Doutorando em Artes Cênicas. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa de História, Teoria e Crítica de Arte. Diretor Geral do Instituto Cultural Cerne.
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DEFEITO DA COR • MUSEU DE ARTE DO RIO • RIO DE JANEIRO • 10/9/2022 A 14/5/2023 QUILOMBO: VIDA, PROBLEMAS E ASPIRAÇÕES DO NEGRO • GALERIA LAGO • INHOTIM • BRUMADINHO • 19/11/2022 A 16/7/2023
SIDNEYamaral,
Embate (O Eu e o Outro), 2010. Foto: © Sidney Amaral.
ALTO relevo
SIDNEY AMARAL (1973-2017), ARTISTA CONTEMPORÂNEO QUE FALECEU DE FORMA PRECOCE, DEIXOU UM LEGADO QUE ALARGA A REFLEXÃO SOBRE A DIÁSPORA AFRICANA. SESC BELENZINHO EXPÕE CONJUNTO DE OBRAS DO
VIVENDO ATÉ O FIM O QUE LHE COUBE
Só muito recentemente a arte afrodiaspórica produzida no Brasil recebe a atenção merecida, e, no entanto, mesmo esses incipientes cuidados são considerados, por alguns, excessivos e mesmo desnecessários. Essa fração da crítica e do público ignora que, durante longos anos, a produção simbólica dos afrodescendentes padeceu as consequências deletérias do racismo estrutural que torna invisível a história dessa parcela da nossa população. Apesar disso, e concomitantemente aos avanços das lutas antirracistas, por inclusão e igualdade, as realizações artísticas emergem e se afirmam a partir de uma excelência que confirma qualidades geralmente recusadas aos criadores da diáspora afroatlântica. Ora, são várias as estratégias usadas pelos artistas negros e negras na construção de repertórios plásticos que enfrentem a complexidade da realidade em que estão inseridos. A obra legada por Sidney Amaral participa de uma tradição de excelência que considera de maneira crítica e dialógica o fazer arte e sua inserção nos circuitos ainda reticentes, não obstante os avanços, em recebê las. Será que vimos o suficiente das obras que já observamos?
Bem Me Quer, Mal Me Quer | 2011. Foto: © Sidney Amaral.
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ARTISTA QUE EVIDENCIA A SUA VERSATILIDADE
POR CLAUDINEI ROBERTO DA SILVA
A escultura, o desenho, a pintura, a gravura são todos veículos apropriados à verve poética de Amaral, que, por meio delas, formulava narrativas de uma tal densidade que torna possível observá-las a partir de pontos de vista distintos. Dada a sua refinada execução, a série de “naturezas mortas” presentes na exposição, existe a possibilidade de considerar Amaral participante de uma tradição que remete ao pintor negro Estevão Roberto da Silva, acadêmico que teve atuação importante no fim do século 19. Ao mesmo tempo, investigar essas “naturezas mortas” nos aproxima do cotidiano do artista e mesmo da subjetividade que elas expressam. A série de desenhos em que o artista, magnificamente, representa as próprias mãos parece confirmar a opção que ele fez por revelar todo um universo de subjetividade partindo de pequenas partes que falam sobre o todo. Notável pelo domínio das técnicas de que lança mão na realização dos seus trabalhos, Sidney Amaral, de maneira recorrente, produziu autorretratos.
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Sem título.
À esquerda: Se As Minhas Palavras Não Forem Melhores Que O Meu Silêncio, 2011. Fotos: © Sidney Amaral.
Nesses trabalhos, não foi apenas a sua biografia que estava sendo elaborada, o que ele nos ofereceu, a partir daí, diz respeito a todos que dessa experiência participam, por meio da reflexão silenciosa que tem como gatilho a contemplação das obras. Dada a densidade formal e de conteúdo que a obra legada a nós por Sidney Amaral tem, uma das questões que se levanta é justamente esta: Será que vimos o suficiente dessas obras que já observamos? O conhecimento sugere que o diálogo travado entre nós e as obras de arte é continuamente renovado por nossas vivências, não sendo, por isso, imutáveis os sentidos que atribuímos a elas, tanto mais a essas de Sidney Amaral, tão plenas de um vigor que pode ser observado até nos desenhos preparatórios que têm destaque nesse cotejo de obras que o Sesc Belenzinho apresenta e pretende nos aproximar do universo desse artista incontornável.
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O Pão Nosso, 2014. Fotos: © Sidney Amaral.
Diálogos/Encontro, 2015. Fotos: © Sidney Amaral.
APROXIMAÇÕES PARA ULTRAPASSAR O FIM
POR DANILO SANTOS DE MIRANDA
Assumir o corpo como território de linguagem pode ser um percurso em direção ao reconhecimento das camadas discursivas que o compõem e que dele podem emergir desde sua constituição material e subjetiva. Sendo linguagem, assume, portanto, a qualidade plural, e não universal, de forma que o que se nomeia no ocidente, nas Américas e no Brasil é atravessado por experiências embricadas em uma densa malha de fios que se interseccionam e costuram corporalidades marcadas pelo trauma da escravidão, genocídio de povos originários, múltiplas desigualdades, racismo estrutural e demais efeitos da colonização. Encarnada no mundo, a carne é impossível à neutralidade, e é dessa posição que Sidney Amaral apresentou sua obra igualmente encarnada enquanto recurso de elaboração e fabricação de narrativas. A partir de diversas técnicas como desenho, escultura, pintura e gravura, o artista e educador fazia do autorretrato e de elementos do cotidiano um dos caminhos frequentes para alcançar representações ambíguas, irônicas e, por vezes,
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Estudo para O Anjo, 2016. À direita: Dor Fantasma, 2014. Fotos: © Sidney Amaral.
Banzo ou A Anatomia de Um Homem Só, 2014.
Foto: © Sidney Amaral.
desconfortáveis sobre o que pode ser a experiência social e íntima de uma pessoa negra no país.
O contraste elaborado por suas criações aciona a complexidade humana e, da especificidade de fazer uso de sua própria imagem, transcende do indivíduo ao coletivo, estabelecendo potências de identificação e significações frente às violências raciais que homogeneízam e destituem pessoas negras de sua condição de sujeito. É dessa espessura poética que se consolida a exposição , com curadoria de Claudinei Roberto, guardião não só de suas produções após o precoce falecimento de Sidney, como da tentativa de nos aproximar de seu acervo vivo. O alcance de Sidney Amaral percorre temporalidades que permeiam o presente, de forma que sua morte não o extingue, mas nos convoca a não hesitar no resguardo de artistas contemporâneos, exercício caro ao Sesc diante da compreensão de que promover o patrimônio afrobrasileiro é promover a cultura brasileira, e partilhar das perguntas que a arte nos impõe é nos colocar em contato com a coletividade e fortalecer novos conhecimentos para além dos hegemônicos.
Claudinei Roberto da Silva é artista visual e de performance por formação (e prática) e tem uma extensa experiência como curador.
Danilo Santos de Miranda é gestor cultural e Diretor Regional do Sesc São Paulo desde 1984.
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VIVER ATÉ O FIM O QUE ME CABE! - SIDNEY AMARAL: UMA APROXIMAÇÃO • SESC BELENZINHO • SÃO PAULO • 26/10/2022 A 26/2/2023
JEANE
REFLEXO
TERRA,
JEANE TERRA É MINEIRA RADICADA NO RIO DE JANEIRO E TEM COMO FOCO PRINCIPAL DE SUA PESQUISA A MEMÓRIA E O APAGAMENTO DE CASAS, CIDADES, SEUS ESCOMBROS E SUAS HISTÓRIAS. A ARTISTA FALA COM EXCLUSIVIDADE À DASARTES SOBRE SUA SÉRIE DE OBRAS MAIS RECENTE EM QUE ABORDA A DESTERRITORIALIZAÇÃO DOS HABITANTES DE CIDADES BAIANAS SUBMERSAS NOS ANOS 1970 PELA BARRAGEM DE SOBRADINHO
POR JEANE TERRA
Para a mostra (2021), com curadoria de Agnaldo Farias, mostrei os trabalhos resultantes da pesquisa no Pontal do Atafona – em São João da Barra, na região Norte Fluminense –, que vem sendo lentamente engolido pelo mar, implacável, destruindo casas, calçadas e ruas. Depois, quis me voltar para o sertão, e conhecer as cidades inundadas para a construção da barragem Sobradinho e da usina Luiz Gonzaga, em 1970, quando aquela região do sertão virou “mar”. Pelo menos 100 mil pessoas tiveram que deixar sua terra natal e se deslocaram para as novas demarcações urbanas, levando apenas seus pertences e, em alguns casos, partes das construções de suas casas. Aproveitei uma baixa do rio São Francisco, no final de 2021, e fiz duas grandes viagens pra percorrer as cidades de Sobradinho, Remanso, Casa Nova, Pilão Arcado e Sento Sé, na Bahia.
Fiquei atravessada pela ideia de ruptura. A perda é muito violenta. Cheguei a chorar muitas vezes ouvindo os relatos. Algumas pessoas enlouqueceram, outras não acreditaram e foram retiradas abruptamente. Foi durante a ditadura militar, e ninguém podia contestar. Além da perda, a maneira como foi feita, inacreditável, impactou-me muito. Transformar essa perda, essa dor, visualmente, foi um grande desafio para mim. É uma paisagem linda, um sertão lindo, um rio maravilhoso, que tem coisas maravilhosas. A Barragem teve dados positivos, mas a forma como foi feita é uma ruptura para a vida daquelas pessoas. Muito forte e muito doído. Ao pisar naquele chão que foi um dia cidade, veio-me uma responsabilidade imensa de devolver esses trabalhos para eles de forma muito cuidadosa e respeitosa.
Relíquia Gaiola, 2022. Série Cápsulas de Memórias. Foto: © Jeane Terra.
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Relíquia de Santo Antônio, 2022. Série Cápsulas de Memórias. Fotos: © Jeane Terra.
“Feitas em vidro soprado, moldado artesanalmente em alta temperatura, algumas em formato de gotas d’água e outras com curvas, essas esculturas abrigam as monotipias feitas a partir de fotografias das paisagens que registrei. Essas monotipias translúcidas aplicadas no vidro revelam imagens de um sertão que grita e clama por seu não esquecimento. São como cápsulas que guardam histórias para o futuro. Nesse primeiro trabalho, coloco a imagem da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, do século 19, e o marco maior da fé da população de Remanso. Utilizo uma imagem antiga, do registro feito no exato momento em que a água invadia a cidade e inundava tudo. A escultura contém água do rio São Francisco. Na escultura em forma de gota, faço uma monotipia do registro da margem do rio São Francisco em Remanso. Nela, uma parte é seca, e, na outra, se avista o grandioso rio.”
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“A presença do vidro surgiu da necessidade de transferir pequenas doses dessa água do rio São Francisco para o espaço expositivo, levando uma paisagem viva carregada de memórias submersas. As esculturas de vidro estão acomodadas sobre outras esculturas de barro, que moldei a partir de fragmentos de escombros que recolhi nas cidades que, com a seca do rio, ficam parcialmente fora d’agua. Algumas delas
contêm água do rio que eu trouxe cuidadosamente para o ateliê. Nesse trabalho, utilizo duas esculturas idênticas feitas a partir de um escombro retirado do fundo do rio São Francisco nas proximidades da antiga Sobradinho. Eles aqui abraçam um vidro soprado que acolhe a água do rio. São como guardiões dessa memória, pilares que sustentam um rio de memórias flutuantes.”
Majestosa, 2022. Série Esculturas em vidro e barro. Fotos: © Jeane Terra.
Marejar, 2022.
Série Esculturas em vidro e barro. Fotos: © Jeane Terra.
Virtuoso, 2022. Págs. seguintes: Monumento a Remanso, 2022. Fotos: © Jeane Terra.
“Desenvolvi, em 2017, o que chamo de “pintura seca” ou “pele de tinta” – um aglutinado com tintas, pigmentos e outros materiais – que se assemelha a um couro ou a uma pele. Depois de riscar a tela de canvas com uma trama quadriculada, aplico uma foto feita por mim em um programa que codifica essa imagem em uma receita de ponto cruz. Recorto então pequenos quadrados de 1 x 1 cm dessa “pele de tinta” e remonto a imagem na tela. É “um analógico”, e cada trabalho desses pode demorar até quatro meses para ser finalizado. Quis levar essa antiga técnica de bordado para o campo da pintura. Nessa pintura seca, reconstruo, por meio de mínimos fragmentos de tinta, a imagem de um vestígio da cidade de Pilão Arcado. A cidade ficou ilhada, mas não foi toda encoberta pelas águas, como se previu na época. A casa despida de função abriga somente a luz e as memórias dos que ali viveram. Ela é para mim um grito de sobrevivência dessa cidade dilacerada e apagada.”
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Santuário do Sertão, 2022. Série Monotipias em peles de tinta. Foto: © Jeane Terra.
“Seguindo com a pesquisa da pele de tinta, quis transformá-la em suporte, em tela para outras intervenções. Então trilhei um longo caminho para alcançar a consistência necessária para criar peles em grande formato – uma mistura de tinta, aglutinante e pó de mármore, que garante firmeza e maleabilidade ao suporte –, para fazer monotipias nesse material. Foi dificultoso encontrar as condições adequadas para realizar a transferência de imagem. Eu queria tatuar, inscrever essa memória na
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pele de tinta, e o resultado se assemelha a pergaminhos antigos, que o tempo desgastou. Na transferência para a pele, a imagem se fragmenta, dilacera-se, como a memória. Aqui, temos a imagem da Igreja de Santo Antônio, do século 18, em sua majestosa edificação. Estive dentro dela e pude sentir a força e a persistência de uma cidade que clama para não ser esquecida. A igreja é hoje uma sentinela que vela a margem do rio em Pilão Arcado.”
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Santuário do Sertão, 2022. Série Monotipias em peles de tinta. Foto: © Jeane Terra.
Fábula do Sertão, 2022. Série Pau a Pique Fotos: © Jeane Terra.
"Percorrendo o sertão, deparei-me com uma paisagem deslumbrante, e me senti fortemente afetada por ela, em especial pelas casas construídas em pau a pique em meio à imensidão daquele sertão lindo e castigado. A visão remeteu às construções que via no interior de Minas desde a infância, também de pau a pique. Isso me trouxe essa memória afetiva vinculada a uma técnica construtiva antiga, muito utilizada no período colonial principalmente nas zonas rurais, e que, das técnicas em arquitetura de terra, a mais utilizada, principalmente por dispensar materiais industrializados e ser de baixo custo. Essa arquitetura ligou minha memória mineira imediatamente à Bahia e, a partir daí, quis transportá-la para as obras que compõem o corpo da exposição. Recolhi no sertão alguns galhos da paisagem e trouxe para o ateliê, juntando a outros para construir a estrutura de madeira trançada com cipós coletados da cidade de Minas de onde veio minha família. Tive que adaptar a massa de barro misturando novos materiais para criar uma estrutura que pudesse ser deslocada e permanecesse forte e resistente. Nessa obra, faço uma monotipia seca de uma imagem do que restou da velha Pilão Arcado. Ela é como uma fábula do sertão. Um sonho arrancado dos moradores e hoje ilhado em um rio de memórias.”
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JEANE TERRA: TERRITÓRIOS, RUPTURAS E SUAS MEMÓRIAS • CENTRO CULTURAL DOS CORREIOS • RIO DE JANEIRO • 6/10 A 19/11/2022
Totalmente dedicado ao Museu do Ipiranga, nome mais conhecido para o Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), o livro foi lançado como parte das comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil. O edifício do Museu do Ipiranga estava fechado desde 2013 e reabriu no 7 de Setembro deste ano, após uma extensa intervenção de restauro e ampliação que o adequouparaasdemandasdeummuseucontemporâneo.
MUSEU DO IPIRANGA • Instituto Cultural J. Safra • 368 páginas • Distribuição gratuita
é o novo livro do artista plástico pernambucano Bruno Vilela, um levantamento completo da produção de uma carreira de quase três décadas. A publicação tem um ritmo próprio e traz para o espectador a trajetória do artista contada num ensaio ilustrado, em que duas colunas de texto - português e inglês - andam lado a lado com referências, estudos de caderno e muitas obras desconhecidas do público. Existe ainda uma entrevista inédita sobre arte e espiritualidade.
BRUNO VILELA: A PERSISTÊNCIA DA LUZ • Aut. Clarissa Diniz • Editora Propágulo • R$ 150,00
Para além da estética, qual o papel das cores em nossa vida? Como aplicar a cor em todo o seu potencial comunicacional e simbólico, com critérios mais estratégicos do que a preferência pessoal? Boas respostas são encontradas na mais recente publicação da professora e pesquisadora Sandra Regina Marchi. A obra apresenta um panorama multidisciplinar sobre as cores.
E POR FALAR EM COR, UM POUCO DE TEORIA • Editora Intersaberes • 306 páginas • R$ 122,00
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LIVros,
Guto Lacaz e Alexandre Murucci
Simone Michelin e Alexandre Murucci
Shannon Botelho e Alexandre Murucci
Ricardo Eid Fhilipp e Yara Dewachter
Erico Klein, Emili Lucht e Lena Japiassu
Edoardo Biancheri e Nei Vargas
Fotos: Junia Azevedo.
Luis Paulo Montenegro e Luiz Zerbini
Walter Carvalho, Barrao e Maneco Muller
Waltercio Caldas, Mônica Teixeira e Walter Carvalho
Stella Ramos e Walter Carvalho
Alexandre Murucci e Paula Alzugaray
Oposto Complementar Aura Galeria São Paulo
Waltercio Caldas Galeria Mul.ti.plo Rio de Janeiro Alexandre Murucci Centro Mariantonia São Paulo Fernanda Valadares e Marco Peres
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Fotos: Silvana Garzaro.
COLUNA do meio
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasildesdeosanos1990.Em2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artesvisuaismaisvisitado doBrasil. Paraficarpordentrodomundoda arte,sigaaDasartes. facebook.com/dasartes @revistadasartes @revistadasartes
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