DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin
. REDAÇÃO André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA Leandro Fazolla dasartes@dasartes.com DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br REVISÃO Angela Moraes PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou CMS/RJ financeiro@dasartes.com
, Sem título, 1970. Foto: © Chico da Silva. © Aline Motta.
EDIÇÃO
Capa:
10 LENORA CARRINGTON CAROLEE SCHNEEMANN 46 CHICO DA SILVA 6 8 28 Agenda De Arte a Z 60 ANRI SALA ALINE MOTTA 76 94 Livros
Adrianna Eu, As inutéis, 2013.
que trazem a presença de corpos femininos na produção de 36 artistas brasileiras de várias gerações, da modernidade aos dias atuais. As obras expostas foram reunidas graças a empréstimos de artistas, colecionadores, e galerias, por Viviane Matesco - doutora em artes pela UFRJ, que pesquisa há 20 anos o corpo na arte -, curadora convidada por Marcus Lontra e Rafael Peixoto, respectivamente diretor artístico e curador da Danielian Galeria, para trabalhar em parceria neste projeto. Os trabalhos refletem experiências
artísticas com múltiplos materiais e suportes, entre a pintura, a escultura, a videoarte, a instalação e a performance, deslocando também para os aspectos formais a questão central da mostra. O corpo como território de resistência política, a sexualidade, e o ativismo estão em núcleos articulados, em que se reflete como o tema foi tratado pelas artistas ao longo do tempo.
MULHERIO • DANIELIAN GALERIA • RIO DE JANEIRO • DE 3/12/2022 A 11/2/2023
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de arte ,AZ
PRÊMIOS • A fotógrafa italiana Francesca Pompei está entre os finalistas do concurso com sua imagem do Pavilhão dos Emirados Árabes Unidos, projeto do arquiteto hispano-suíço Santiago Calatravana, na Expo Dubai 2020. A competição, realizada pelo , celebra ambientes internos e as imagens inscritas variam desde uma igreja isolada a um , com o vencedor a ser decidido por uma votação popular.
CURIOSIDADES • Esculturas de cérebro de importantes artistas serão leiloadas em prol de pacientes acometidos pelo mal de Parkinson, no Reino Unido. Obras de artistas como Tracey Emin, David Bailey e outros, refletem sobre o que o cérebro significa para eles e devemser vendidas por milhares de libras. Quinze obras foram criadas para o leilão de caridade, e alguns dos artistas já foram afetados pelo mal de Parkinson, como Alex Echo, um artista abstrato que, antes, arrecadou mais de um milhão de libras para caridade com a venda de suas obras.
PELO MUNDO
• Primeira grande exposição da obra do pintor inglês Lucian Freud (1922–2011), em dez anos, reúne pinturas de mais de sete décadas. A retrospectiva, na National Gallery, Reino Unido, Abrange uma vida inteira de trabalho, mapeando como a pintura de Freud mudou durante setenta anos de prática – desde suas primeiras e íntimas obrasatésuasconhecidastelasemgrande escala e seus monumentais retratos nus. Até 22/01/2023.
NOVOS ESPAÇOS I • São Paulo ganha novo espaço dedicado inteiramente à cultura e à arte. Localizada no número 2906 da alameda Gabriel Monteiro da Silva e idealizada e dirigida pela fotógrafa eempresáriacearenseRenataVale,anova Casa Gabriel se propõe a ser um espaço de cultura cujos objetivos são produzir e difundir arte e conhecimento, com ênfase na produção de artistas plásticos contemporâneos do Nordeste brasileiro, sobretudo os novos talentos.
NOVOS ESPAÇOS II • Após sete anos dedicados à experimentação em arte e educação, o Solar dos Abacaxis, uma instituiçãoautônomaecolaborativa, festeja aniversário em um novo endereço, agora no coração do Rio de Janeiro. O Solar ocupa um casarão histórico na rua do Senado, 48, no Centro do Rio. O espaço será ocupado por ateliês para artistas residentes, áreas expositivas de mostras e performances, biblioteca e espaços multiúso para oficinas, apresentações públicas e práticas pedagógicas.
• DISSE O CURADOR
Adriano Pedrosa, atual diretor artístico do MASP, ao ser indicado como o novo curador responsável pela curadoria da 60ª Exposição de Arte Internacional da Bienal de Veneza, a ser realizada em 2024.
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, LEONORA carrington
FLASHBACK
Artes 110, 1944. © Estate of Leonora Carrington / VISDA.
MAGIA, REBELIÃO E HUMOR IRRADIAM DAS IMAGENS SEDUTORAS E SURREAIS CRIADAS PELA ARTISTA MEXICANA NASCIDA NA INGLATERRA LEONORA CARRINGTON (1917–2011). UMA RIQUEZA DE INSPIRAÇÕES PERMEIA SUA VERSÃO ÚNICA DO SURREALISMO:SÍMBOLOSESOTÉRICOSDECARTASDE TARÔ E ALQUIMIA SE MISTURAM COM PINTURAS ITALIANASDOSSÉCULOS13E14ELENDASIRLANDESAS POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA
SEM TEMPO PARA SER MUSA
Considerada a última das surrealistas, Leonora Carrington (1917-2011) inspirou a Bienal de Veneza, neste ano. Ela escreveu peças de teatro, desenhou cenários, trabalhou com têxteis, escreveu contos, um romance e uma autobiografia na qual relata seu período internada em um sanatório. O tema desta edição da Bienal, (O leite dos sonhos) foi extraído do título do seu livro. Nele, a pintora e escritora descreveu um mundo mágico onde a vida é constantemente renovada pela imaginação; onde é permitido mudar, transformar-se. E, realmente, o signo da mudança está presente na vida e obra desta artista. De família abastada, católica e irlandesa no Reino Unido, Carrington recusou os padrões e, especialmente, o destino dado às mulheres de sua classe social. Ela encontrou abrigo na arte, nas fábulas e em escritores ingleses, como Lewis Carroll, Jonathan Swift e Beatriz Potter. Na infância, mergulhou nos contos de fadas e na literatura de fantasia. Em 1936, ela se matriculou na nova academia de arte fundada pelo pintor Amédée Ozenfant, em Londres. Nesse período, ela visitou a primeira , na galeria New Burlington, e sentiu particular afinidade com o onírico presente na obra de Max Ernst, [ ] (1924). Nessa pintura, Ernst retratou duas ocasiões críticas de sua biografia: a morte de sua irmã, Maria, em 1897, e o sarampo na infância, quando teve diversas alucinações.
Retrato de Max Ernst, 1939. © Estate of Leonora Carrington / VISDA.
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O encontro com Max Ernst resultou em romance, mas não sem escândalos, uma vez que Ernst já era casado desde 1927 e era cerca de 27 anos mais velho do que a jovem de 19 anos. Eles se conheceram em 1937 e viveram, por certo tempo, em St. Martin d’Ardèche, no sul da França, onde hospedavam, com frequência, os amigos surrealistas. Alguns críticos situam o não lugar de Carrington no movimento surrealista, ou, ainda, a sua condição periférica. E, de fato, o surrealismo, sob nossa perspectiva atual, era sexista e etarista. Fascinado pelas teorias freudianas, André Breton, fundador do movimento, entendia a psique feminina como algo sem freios, mística e erótica – aqui o conceito de “inveja do pênis” surge com densidade. Então, algumas artistas-mulheres, inclusive Carrington, foram colocadas sob o estigma da (mulher criança), servindo apenas como musa aos artistas. Em concordância com as ideias de Breton, a maioria dos críticos desprezou as mulheres surrealistas, porém, alguns estudiosos apontam que Ernst incentivou o percurso estético de Carrington.
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Leonora Carrington e Max Ernst, Lambe Creek, Cornwall, Inglaterra, 1937 por Le Miller © Lee Miller Archives
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Posada del Caballo del Alba, 1937.
Duas de suas obras mais conhecidas dessa fase, são: o retrato do seu amado como eremita (1939) e , 1937 (hoje, no Metropolitan Museum, Nova York). Nessa tela, a artista surge trancada em seu quarto, com uma hiena lactante e um cavalo de balanço. A visão da janela aberta nos mostra a floresta como pano de fundo, e ela montada em uma égua, simbolizando o desejo de liberdade de seu espírito. De todo o modo, Carrington teve seus trabalhos expostos junto aos dos surrealistas, em 1938, em Amsterdã, mas sempre recusou o atributo de musa e, por toda a vida dela, firmou posição em favor da liberdade de expressão da mulher. Contudo, a II Guerra Mundial pôs fim ao sonho surrealista na Europa – a última das vanguardas históricas é vista como “arte degenerada” pelo nazismo. Em 1940, Max Ernst foi enviado para um campo de concentração e Carrington fugiu para a Espanha. Eles nunca mais reataram o romance. Não se preocupe! Ele conseguiu escapar da prisão; salvo, ele passou a viver com Peggy Guggenheim, em Nova York. Mas a fuga de Carrington para a Espanha foi trágica: uma viagem cheia de horrores da guerra e um estupro coletivo se tornaram os motivos de sua internação forçada em um hospital psiquiátrico. Foi extremo o seu sofrimento emocional.
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Pág. ant: The Magical World of the Mayans, 1963. À direita: Green Tea (The Oval Lady), 1942. © Estate of Leonora Carrington / VISDA.
O resgate do sanatório foi um drama, envolvendo sua antiga babá e até um submarino. O relato desses eventos traumáticos está no seu livro , e na obra (1942), feita durante o breve período que passou em Nova York. Ela só conseguiu se livrar da perseguição familiar após o casamento de fachada com o diplomata mexicano Renato Leduc. No final de 1942, ela se estabeleceu no México, onde permaneceu pelo resto da vida. Lá, ela se integrou na comunidade de artistas, escritores e fotógrafos refugiados da Guerra, tal como, Remedios Varo, Benjamin Péret, Kati e José Horna e seu novo marido, o fotógrafo Emerico “Chiki” Weisz, com quem teve dois filhos. A amizade entre Varo e Carrington, por exemplo, estendeu-se à partilha de sonhos, narrativas, feminismo, receitas culinárias e poções mágicas. E, por sinal, seu ateliê era sua cozinha – lugar de desordem criativa, onde trabalhava com têmpera de ovo em painéis de madeira e gesso. Em algumas entrevistas, registrou que:
Temos, então, duas artistas-bruxas que desvincularam sua linguagem pictórica dos modelos criativos masculinos; elas lidavam diretamente com suas necessidades como mulheres.
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The Artist Traveling Incognito, 1949. © Estate of Leonora Carrington / VISDA.
No México, sua trajetória foi marcada pela busca de conhecimento e por uma linguagem feminista impulsionada por estudos esotéricos. A crítica feminista às hierarquias de poder está, por exemplo, no autorretrato (1949). Nessa tela, a artista aparece disfarçada de bruxa. Sua aparência quebra novamente o desígnio de “musa do surrealismo”. Ela refletiu ainda sobre o onírico e o mágico na obra (1965), mostrando estudo e, sobretudo, a enorme influência, em suas telas, das culturas pré-hispânicas.
A primeira exposição individual de Carrington foi na Galeria Pierre Matisse de Nova York, em 1948. Depois, seguiram-se diversas mostras individuais e coletivas no mundo inteiro. Ela também foi uma das fundadoras do Movimento pela Libertação das Mulheres, nos anos de 1970. Carrington morreu em 2011, sendo considerada um dos últimos elos vivos do movimento surrealista. A casa dela foi transformada em museu dedicado à sua vida e obra.
“A pintura é o meu veículo de trânsito. Eu nem sempre sei aonde estou indo ou que isso significa”, assim depõe Leonora Carrington. Esse jogo intuitivo é princípio de observação de seu mundo maravilhoso, agora, em exibição na sua primeira mostra individual na Escandinávia, organizada pelo Museu de Arte Moderna ARKEN e pela Fundação MAPFRE, no período entre 17 de setembro de 2022 e 15 de janeiro de 2023. São 100 obras da artista, entre pinturas, desenhos, tapeçarias, esculturas e livros, que nos contam sobre sua trajetória. Além disso, a exposição traz obras da espanhola Remedios Varo e do alemão Max Ernst. Assim, os dinamarqueses têm a chance de ver uma pintura sem explicação e cheia de referências.
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The Meal of Lord Candlestick, 1938. © Estate of Leonora Carrington / VISDA.
The Giantess (The Guardian of the Egg), 1947.
© Estate of Leonora Carrington / VISDA.
Magia, contos celtas, seres híbridos (animal e humano), banquetes partilhados com animais, criaturas fantásticas, arcanos do tarô e espaços em transformações compõem seu léxico. Em suas pinturas e escritos, o encanto pelo desconhecido e pelo sagrado. Seus trabalhos demonstram o interesse por alquimia e por cultos mágicos. Em suas pinturas, surgem as bruxas e as mulheres sábias – metáforas de uma psique rebelde. Em suas pesquisas, ela descobriu as culturas matriarcais e suas personagens refletem essa força e autoridade; adquirem poderes curativos e ocultos e acessam novos territórios.
Mas por que o nome de Leonora Carrington está sendo evocado na Bienal de Veneza e, agora, nessa exposição em Copenhagen? Já percebemos que há diversos motivos, não é mesmo? Coloco aqui mais um: a necessidade de repensarmos “o mundo”. Essa artista nos deu a chave para “outros mundos”; para entender e aceitar o “mágico” e, acima de tudo, o constante transformar-se. Carrington subverteu as regras sociais quando não aceitou o domínio de sua família; ela também se negou a ser musa porque estava ocupada em ser artista. Nesse sentido, seu desejo por liberdade confrontou as vanguardas históricas e seus teóricos. O universo das mulheres enunciado, especialmente o de Carrington, trouxe o incomum para a pintura surrealista. Ela conectou liberdade psíquica com consciência feminista – algo que lhe conferiu lugar único na história da arte.
Alecsandra Matias de Oliveira é pós-doutorado em Artes Visuais (Unesp). Doutora em Artes Visuais (ECA-USP). Mestrado em Comunicação (ECA-USP). Professora do CELACC (ECA USP). Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA-USP). Membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA). Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da Resistência (MCSP, 2022). Curadora independente e colaboradora da revista Dasartes, Jornal da USP e Revista USP.
LEONORA CARRINGTON • ARKEN MUSEUM • DINAMARCA • 17/9/2022 A 15/1/2023
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PELO mundo
CAROLEE schneemann,
Up to and Including Her Limits, 10 June 1976. Foto: Terry Slotkin. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
RASTREANDO O TRABALHO DIVERSIFICADO, TRANSGRESSIVO E INTERDISCIPLINAR DE CAROLE SCHNEEMANN AO LONGO DE SEIS DÉCADAS, NOVA MOSTRA CELEBRA UMA ARTISTA RADICAL E PIONEIRA QUECONTINUASENDOUMÍCONEFEMINISTAEPONTO DE REFERÊNCIA PARA MUITOS ARTISTAS E PENSADORES CONTEMPORÂNEOS
POR DRIKA DE OLIVEIRA
A exposição , está aberta ao público até 8 de janeiro de 2023, na galeria de arte do , no Reino Unido. Desde setembro de 2022, a exposição apresenta uma retrospectiva de Schneemann, pertencente à primeira geração de mulheres artistas que militaram a favor da arte realizada por mulheres. Por meio de mais de 200 obras, entre pinturas, vídeos de performances solo e em grupo, esculturas, instalações multimídia, filmes, textos e, ainda, objetos e materiais de arquivo pessoais da artista, o público encontra alguns dos temas mais latentes em sua obra, como a subjetividade, a objetificação do corpo da mulher na sociedade e a expressão sexual feminina. Carolee Schneemann foi uma pioneira da performance feminista. Nascida na Pensilvânia, Estados Unidos, em 1939, estudou pintura na Universidade de Illinois, em Chicago, e, em 1961, mudou-se para a cidade de Nova York. Lá, ela se integrou à “vanguarda experimental”, assim como outros artistas expressionistas abstratos da segunda geração, como Jim Dine, Allan Kaprow e Claes Oldenburg. Tendo explorado múltiplas formas de arte como a pintura, a performance, o teatro e o cinema, por vezes misturando-as em obras híbridas, Schneemann se tornou uma das protagonistas da vanguarda do centro de Nova York.
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Meat Joy, 1964. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
Personae: J.T. and Three Kitchs, 1957.
À direita: Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
apresenta, já no seu primeiro espaço, algumas das pinturas de Schneemann como, (1957), (1957) e (1961). Em diversos períodos de sua trajetória, a artista disse se considerar sobretudo uma pintora. Apesar disso, essas pinturas do fim dos anos 1950 e início de 1960 ficaram bastante à margem de seus trabalhos mais conhecidos, com performance e cinema, embora os quadros sejam fundamentais para uma percepção mais ampla de sua obra. Ao observar nas telas os corpos que se formam e saltam de seus traços e cores, é possível perceber que ali talvez já
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estivessem anunciados o movimento, a materialidade do corpo presente das performances, as esculturas cinéticas e as instalações posteriores da artista. Em (1963), Schneemann colocou pela primeira vez seu próprio corpo dentro de uma obra. Por meio de 36 fotografias em preto e branco em que a artista aparece nua e pintada, utilizando diferentes objetos, como espelhos e cobras, ela incorporou a performance, a pintura e a fotografia em uma mesma obra. Em uma fala publicada no (Documentext, 1979), Schneemann afirmou: “em 1963, usar meu corpo como uma
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Body:
Eye
36 Transformative Actions for Camera, 1963. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
extensão de minhas pinturas e construções era desafiar e ameaçar as linhas de poder territoriais psíquicas pelas quais as mulheres eram admitidas no Art Stud Club”. Assim, ela esclareceu que, para serem admitidas, essas artistas deveriam funcionar dentro das tradições e dos caminhos abertos pelos homens. Pôr-se nua na própria obra era, então, romper com essa prática. Mais do que isso, era deslocar o jogo de olhares que, como aponta Laura Mulvey em , tradicionalmente objetifica o corpo feminino no sentido de torná-lo um corpo sem olhar próprio, construído somente para ser olhado.
Meat Joy, 1964. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
E assim ela o fez em diversos outros trabalhos. (1964), por exemplo, é uma performance em que mulheres e homens jovens e seminus interagem entre si utilizando carne animal, como a de galinhas e peixes crus, junto a outros elementos, como cordas e tintas. Os atores têm no rosto uma expressão leve e, às vezes, sorridente, seus corpos se entrelaçam; eles parecem brincar entre si. O título da performance sugere um duplo sentido sonoro: , que significa “alegria da carne”, e , que significa “encontre a alegria”. O curto-circuito fonético gera ainda um terceiro sentido, que não está escrito: o de um possível “encontro com a carne”, a sua própria carne e a do outro.
Ainda nessa época, Schneemann fez (1964-1967), que é talvez um de seus trabalhos mais controversos. Nessa espécie de curta, em que a artista faz um registro doméstico de suas relações sexuais com o parceiro ao longo de algumas semanas, vemos uma abordagem expansiva e antipornográfica do sexo. A “fusão” dos corpos, implicada pelo ato sexual em si, acaba se estendendo à obra como um todo por meio da montagem, que funde diversos planos heterogêneos: janelas, praias, gatos, intervenções na película de acetato, mar, sobreposições, cores variadas – tudo em cortes rápidos, frenéticos. Sexo entre o casal, mas também entre as imagens. Sexo cósmico, que entrelaça o erótico e o doméstico, o corpo e o mundo. Tanto em quanto em , Carolee propôs a libertação dos corpos, aquilo que é, ao mesmo tempo, celebração e tarefa política. (1972), vide imagem de abertura, é uma de suas obras mais lúdicas. Schneemann se pendurou nua em uma corda e, com um instrumento de desenho na mão, ela rabiscou uma tela que a circunda enquanto se balança em movimentos circulares. Assim, ela cria uma tela tridimensional, uma espécie de fundo infinito flutuante e dinâmico, como em um sonho colorido de pintura. Ela se colocou nessa obra, como parte ativa dela, como seu centro dinâmico e pulsante. A libertação do corpo traz consigo a libertação da arte. Algumas feministas criticaram Carolee pela natureza do uso da nudez que ela fazia. Encaixando-se nos padrões eurocêntricos de beleza, sua nudez não necessariamente contestaria os desejos de olhar do patriarcado. Mas, para ela, tratava-se de um uso do corpo feminino que não passava por uma relação com o desejo masculino. É o que fica evidente na série (1969 e 1975), entrevistas de quatro mulheres em que a artista gerou tabelas sobre a experiência subjetiva do sexo para essas mulheres, contrapondo o conteúdo pessoal à forma tabelar da organizacionação ocidental e racionalista do patriarcado.
Fuses, 1964-1967. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
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Na performance (1995), Schneemann e outras sete mulheres nuas puxam de suas vaginas o “pergaminho interior”, enquanto leem o que nele está escrito: um diálogo entre Carolee e um artista homem, onde ficam evidentes os estereótipos machistas. Estereótipos contra os quais Schneemann e outras artistas feministas tinham que lidar diariamente. (1972) também é uma obra potente nesse sentido, tendo sido criada a partir do momento em que um parceiro manifestou nojo do sangue menstrual diretamente à artista. A obra é descrita pela artista como um calendário de sua interioridade. Carolee Schneemann também foi uma das primeiras artistas americanas a produzir obras de arte contra a Guerra do Vietnã. Ela abordou ainda a Guerra Civil Libanesa e os ataques do 11 de setembro em filmes e instalações multimídia. No curta-metragem (1962-1967), Schneemann utilizou imagens de arquivo de revistas e jornais estrangeiros, reunidas ao longo de cinco anos, registrando uma importante crítica à guerra. Já no curta (1983-2006), ela expôs imagens de aldeias palestinas e libanesas destruídas, além de registros de outros diversos desastres publicados em jornais, que a artista contrapõe com imagens coloridas de um Líbano bucólico.
Interior scroll – The cave, 1995. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
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Fur Wheel, 1962. À direita: Colorado House, 1962. © 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
São as imagens de que Schneemann apresenta na escultura cinética (1983), em que um esfregão motorizado cai batendo sobre um monitor de vídeo a cada quatro segundos.
Ao longo da exposição, mesmo quando não há vídeos, o público vê fotografias e artefatos usados nas performances que, de alguma maneira, trazem uma impressão material do movimento e da energia que está sempre presente em suas obras. Por meio desses objetos, é possível perceber como Schneemann documentava muito tudo o que fazia, como em um esforço bastante consciente de fixar sua própria existência, a de seu corpo e a de sua arte, em um mundo ainda carregado de resistências contra o trabalho de artistas mulheres.
Ela faleceu recentemente, em 2019. Ainda muito ativa aos quase 80 anos de idade, Carolee Schneemann recebeu, em 2017, o prêmio Leão de Ouro, na 57ª Bienal de Veneza, pelos seus 60 anos de carreira.
War Mop, 1983.
© 2022 Carolee Schneemann Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York / DACS, London.
Drika de Oliveira é chefe de coleções fílmicas na Cinemateca do MAM, Diretora de Fotografia e Pesquisadora Audiovisual.
CAROLEE SCHNEEMANN: BODY POLITICS • BARBICAN CENTRE • REINO UNIDO • 8/9/2022 A 8/1/2023
Sem título, 1983. Foto: © Chico da Silva.
CAPA
CHICO da silva,
EM EXIBIÇÃO NO MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO ESTÁ CHICO DA SILVA: CONEXÃO SAGRADA, VISÃO GLOBAL,APRIMEIRAMOSTRAINDIVIDUALDO ARTISTAEMUMMUSEUEM20ANOS.SUASPINTURAS VISIONÁRIAS DE CRIATURAS IMAGINÁRIAS EM AMBIENTES NATURAIS LUMINOSOS SÃO CONHECIDAS POR PARECEREM RESSOAR COM UMA CONEXÃOSAGRADACOMNOSSOAMADOPLANETA
POR SIMON WATSON
Exibida em dois dos espaços expositivos especiais do museu, a exposição é focada em imagens das criaturas características do artista, descritas como “visões vívidas e alucinatórias, enraizadas nas cosmologias amazônicas e variando de figuras folclóricas e espirituais a plantas e animais antropomórficos.” A galeria de entrada do museu apresenta uma instalação estilo salão de “piscina de imersão” com as pinturas de peixes do artista, sugerindo que os visitantes podem estar maravilhosamente imersos em algum tipo de aquário. A seguir, uma longa galeria com mais de sessenta pinturas em duas seções: uma de criaturas míticas, pássaros, e outra com criaturas aladas. Segue outra seção com pinturas exibidas publicamente pela primeira vez desde 1990, quando integraram a exposição , com curadoria de Roberto Galvão.
Sem título, 1983. Foto: © Chico da Silva.
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Em maio passado, enquanto fazia uma visita a galerias e museus, fui à MaPa Galeria, onde, nos fundos, avistei uma soberba pintura de Chico que passei a chamar de . Fiquei impressionado com a vibração da pintura. Embora feito décadas atrás, parece falar com força nestes tempos difíceis. Poucas horas depois do primeiro contato com aquela pintura, decidi criar uma exposição do trabalho do artista. Desde então, tenho me concentrado em posicionar a arte de Chico da Silva no contexto do sagrado, devido à interpretação envolvente e elevada do artista sobre as maravilhas naturais do nosso planeta. Além disso, queria que a exposição estreasse no Museu de Arte Sacra, que há muito é reconhecido pela dedicação e apresentação de obras sacras históricas, e tem uma coleção de arte e objetos de quatro séculos. Observar as pinturas radiantes de Chico da Silva através das lentes exclusivas do museu oferece ao público uma oportunidade especial de entender e apreciar as obras desse artista, que falam alegremente do espírito milagroso do mundo natural.
Sem título, 1970. Foto: © Chico da Silva.
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UMA VISÃO GLOBAL
Francisco da Silva (1910-1985), conhecido como Chico da Silva, foi um artista brasileiro de ascendência indígena. No final da adolescência, deixou a casa onde vivia no Acre, floresta amazônica e se mudou para Fortaleza, onde viveu o resto da vida. Desde pequeno, Chico pintava criaturas fantásticas nas paredes das casas dos pescadores. Foi na década de 1940 que o crítico de arte suíço Jean-Pierre Chabloz conheceu a obra visionária de Chico no Brasil; e foi Chabloz, um emigrado da Europa devastada pela guerra, quem primeiro apresentou Chico à pintura e ao papel. O crítico saudou as pinturas de Chico como pura manifestação da arte visual brasileira e, posteriormente, tornou-se um defensor das obras do artista.
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Sem título, 1983.
Foto: © Chico da Silva. “
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A vida de Chico foi uma complexa gangorra entre a fama internacional – ele foi celebrado na Bienal de Veneza de 1966 e desfrutou de inúmeras exposições no Brasil e na Europa – e a luta contra o alcoolismo e a instabilidade mental, que, a certa altura, exigiram uma longa hospitalização. Em seus últimos anos, Chico viveu à beira dos sem-teto. Faleceu em 1985, aos 75 anos, e nos anos que seguiram sua morte, o reconhecimento da sua importante produção artística caiu no esquecimento. Por muito tempo, suas pinturas, quando pensadas, foram denegridas como arte popular ingênua. No entanto, os tempos mudaram acentuadamente e, nos últimos anos, após uma pandemia global e o aumento da conscientização sobre as terríveis depredações do meio ambiente de nosso planeta, as criaturas visionárias do universo fantástico de Chico nos revelam o poder absoluto e a maravilha de nosso planeta — tanto a sua fauna como a sua flora.
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Sem título, 1970. Foto: © Chico da Silva.
UMA CONEXÃO SAGRADA
A mostra nos dá o imaginário de pássaros, peixes e dragões de Chico da Silva – criaturas quiméricas muitas vezes se devorando ou em posição de combate. Este é um universo composto por cenas que mesclam fábulas populares amazônicas e cosmologias do Norte e Nordeste do Brasil, representando um pleno florescimento do traço sofisticado e colorido vibrante do
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artista, que aludem ao espírito interior tanto das criaturas retratadas quanto de nós, espectadores humanos. Neste momento sombrio da história do nosso planeta, a arte visionária e humanista de Chico nos fala de forma pungente, direta e clara. Para o público do século 21 – especialmente para os jovens, cujo desafio ao longo da vida será curar um planeta ferido por seus antepassados –, a visão brilhante de Chico do mundo natural resplandece intensamente.
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Sem título, 1983. Foto: © Chico da Silva.
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Sem título, 1983.
Foto: © Chico da Silva.
As pinturas de Chico da Silva contam histórias mágicas com ressonância global – obras de arte poderosas que precisam ser vistas além das fronteiras do Brasil. No contexto de crises globais acumuladas sobre a devastação do planeta e o distanciamento emocional das almas humanas amortecidas por diversões digitais, o público de hoje anseia por arte visionária que ajude a lembrar a vitalidade sustentadora do mundo natural.
Simon Watson é um curador independente e educador artístico que atualmente divide seu tempo entre Nova York e São Paulo.
CHICO DA SILVA: CONEXÃO SAGRADA, VISÃO GLOBAL • MUSEU DE ARTE SACRA • SÃO PAULO • 12/11/2022 A 8/1/2023
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ANRI
ALTO relevo
No barragan no cry, 2002. Foto: © Anri Sala.
sala,
ANRI SALA E SEU TRABALHO MULTIMÍDIA, INCORPORANDO MÚSICA, CINEMA EXPANDIDO, PINTURA E A PRÓPRIA ARQUITETURA QUE CIRCUNDA ASINSTALAÇÕES,PARECEDOBRAREDISTENDERAFINA PELÍCULA ESPAÇO-TEMPORAL QUE CHAMAMOS “PRESENTE”,PORMEIODEUMAEXPERIÊNCIASINGULAR DA DURAÇÃO E DA MEMÓRIA
POR NICHOLAS ANDUEZA
ANRI SALA E A DURAÇÃO DO ESPAÇO
Até janeiro de 2023, a Pinault Collection dedica salas do museu da Bourse du Commerce, em Paris, à exposição (Um segundo de eternidade), juntando 18 artistas cujos trabalhos se debruçam sobre a possibilidade de gerar outros espaços-tempos no interior do museu. Apesar da rica variedade de peças e abordagens, este texto trata especificamente das obras de um desses 18: o albanês Anri Sala, que conclui a mostra. Anri já ganhou diversos prêmios internacionais de artes, incluindo o Prêmio de Jovem Artista na Bienal de Veneza, de 2001, e o último Vincent , concedido pelo Gemeentemuseum Den Haag, em 2014. Em 2013, ele representou a França na Bienal de Veneza, onde voltou a expor em 2017. Também participou das bienais de São Paulo (2010) e de Berlim (2006). Mais recentemente, fez exibições solo em diversos países, contando com Áustria, Estados Unidos, Espanha, Luxemburgo e Itália só nos últimos três anos. O artista emergiu do pós-guerra civil da Albânia (1997), sendo descoberto no mesmo ano pelo mundo da arte com , obra com a qual concluiu seus estudos de cinema em Paris, ao retomar e reconstituir uma entrevista concedida por sua própria mãe na década de 1970, traçando uma densa discussão sobre história, linguagem, memória e representação. Desde então, fixou a relevância de seu nome no cenário internacional da arte contemporânea.
Transfigured Moth, 2015. Foto: © Anri Sala.
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Resting Spells, 2018. Fotos: © Anri Sala.
Os três meios principais em que caminham os trabalhos do artista são a música, o cinema e a arquitetura (ou o espaço). Por meio desses três, o artista cria outros modos de ouvir, ver e estar. Como em (2006), onde caminhões enfileirados em um estacionamento ao ar livre, por seu tamanho e organização espacial, afetam as frequências de rádio no carro e mudam espontaneamente a música tocada no automóvel – o vídeo de Sala capta audiovisualmente esse movimento sonoro-arquitetônico. Ou ainda como em (2010), em que o som de , tocado por uma máquina de música à manivela, faz vibrar todo um prédio colorido que amplifica a canção pelos arredores. Ou, enfim, como em (2008), no qual a tensão de um relacionamento heterossexual preenche um espaço percussivamente por meio dos sons de um kit de bateria, das tentativas de conversa por parte da mulher e de um – instrumento inventado pelo próprio Sala, em 2008, que se toca sozinho. Formado em cinema, seus vídeos
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Answer Me, 2008.
À esquerda: Le Clash, 2010. Fotos: © Anri Sala.
costumam ser mais narrativos e cinematográficos do que o que se costuma encontrar em museus – vide o brilhante (2005). E apesar de contar também com esculturas, pinturas e outros elementos, talvez a espinha dorsal de sua obra esteja mesmo nas relações entre som e imagem, som e espaço, som e memória/história.
Mas nenhuma das obras citadas anteriormente consta na mostra da deste ano. Ali, encontraremos, por exemplo, o trabalho pictórico (2018-22), onde Anri Sala pintou mapas distorcidos de países e os coloca em relação com ilustrações de peixes “exóticos” feitos por exploradores do século 19. A “arquitetura” da folha de papel, seu tamanho e forma de emoldurar representações, obriga os antigos exploradores e o próprio Sala a contorcerem suas ilustrações para que caibam na página. Assim, os dípticos acusam uma gama de tensões no interior do dispositivo ocidental da representação.
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À direita: Take over, 2017. 395 Days Without Red, 2011. Fotos: © Anri Sala.
Na mostra, encontraremos também (1999), vídeo em que Sala entrevistou dois homens, um ex-soldado apaixonado por peixes e um jovem viciado em planos da interação do primeiro com a fauna aquática de um aquário e planos das mãos ansiosas do outro, desenvolvem-se falas que nos levam a uma reflexão sobre a solidão no mundo contemporâneo.
Há ainda (2017), em que duas telas imensas mostram as mãos de pianistas que tocam músicas diferentes. Em uma delas, , na outra, . A letra desta última havia sido concebida em 1871 para ser cantada por sobre ; ganhando arranjo próprio apenas em 1888. Assim, são justapostos dois hinos políticos canônicos, revolucionários, que, no entanto, sofreram múltiplas transformações em seus sentidos ao longo da história – por exemplo, com o patriotismo da extrema direita francesa, ou com a queda do muro de Berlim. Já no auditório da uma obra: (2011). Também uma tela grande, posicionada no palco do auditório. O média metragem de ficção, de pouco mais de 40 minutos, leva-nos pelas ruas de Sarajevo, acompanhando uma musicista a pé, a caminho de um ensaio com a Orquestra Filarmônica da cidade. O espaço e a arquitetura da cidade, contudo, não são seguros, dado o contexto do cerco à capital da Bósnia – que historicamente durou quatro anos (1.395 dias). Nas encruzilhadas, portanto, é preciso passar correndo, pois há atiradores de elite posicionados. A tensão e as diferenças de ritmo na caminhada são acompanhadas pelo primeiro movimento da , de Tchaikovsky, – cantarolada pela protagonista e tocada, depois, pela orquestra reunida. A imagem manifesta os níveis social e subjetivo do conflito armado em planos abertos da cidade e da “heroína”, tanto quanto o som os manifesta por meio do som dos tiros e da obra do compositor russo.
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Time no longer, 2021. Fotos: © Anri Sala.
Mas o coração da mostra de Anri Sala no museu da é, de fato, (2021), vídeo exibido também em uma grande tela, acompanhado de som e efeitos luminosos. A curvatura do longo ecrã ao mesmo tempo acompanha e desafia as características arquitetônicas circulares da Rotunda, sala onde está o trabalho. Na imagem, feita de computação gráfica realista, vemos uma vitrola flutuando erraticamente em gravidade zero dentro de uma cabine espacial inabitada. Sua agulha volta e meia sai do disco que está sendo tocado, interrompendo a música constantemente. Assim, as notas tocadas por um clarinete solitário parecem se perder entre seus próprios ecos e os ruídos graves das vibrações da cabine estelar inóspita. Esses sons se espalham fisicamente pela Rotunda da , contaminando-a. O tamanho da tela nos impele a nos perdermos na imagem, experimentando-a não só com os olhos, mas de corpo inteiro. É como se o ecrã inventasse uma janela de ficção científica pósapocalíptica e pós-humana no meio da arquitetura classicista da sala. O contraste é gritante, transforma o espaço. A abóbada de vidro que cobre a sala deixa de ser um elemento clássico, ensaiando-se como mais uma janela da nave – e, de fato, é o céu que vemos através dela. Até mesmo a gravidade, se nos entregarmos à imagem por tempo suficiente, parece deixar de operar com rigidez. Dobrando o espaço em si mesmo, vibrando-o e esticando-o pela duração do vídeo, a obra forma um todo angustiante e inóspito, ativa a visão de uma distopia não só do futuro, mas do presente. Restos de uma humanidade já ida, cujas únicas revoluções que sobreviveram são as que o disco de vinil traça literalmente, em torno do próprio eixo.
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Time no longer, 2021. Fotos: © Anri Sala.
Anri Sala conta que o gatilho para que ele concebesse essa obra foi conhecer a trágica história de Ronald McNair, astronauta, físico e músico americano que planejava tocar um solo de saxofone em gravidade zero. Essa seria a primeira vez que uma música original seria gravada no espaço. Contudo, McNair era um dos tripulantes da , ônibus espacial que explodiu 73 segundos após ser lançado, em 1986, não deixando sobreviventes. Diante do desastre, e do próprio caráter trágico da história (que nunca volta), diante, enfim, de um desejo musical que não pôde se concretizar, Anri Sala não buscou reconstituir qual teria sido a música tocada por McNair, ele buscou, segundo palavras do próprio artista à jornalista Judith Benhamou, “qual é a música de uma intenção” não realizada. Assim, ele chegou a um movimento do , composto por Olivier Messiaen, em 1941, enquanto soldado francês aprisionado pelos nazistas. Intitulado , o trecho é um solo de clarinete. Interrompido múltiplas vezes pelo deslocamento da agulha de uma vitrola abandonada no espaço, esse solo, ou melhor, seus ecos e fantasmas, atravessam as paredes da Rotunda e os corpos de quem tenta ouvi-lo com visões do Apocalipse antropogênico. É um anticanto da sereia, uma “sirene”, que angustia em vez de maravilhar. Com as constantes telas imensas e os fartos sons, o caráter oceânico do audiovisual vem à tona. A duração da imagem se “especializa” pela simples imensidão do que vemos e as vibrações sonoras tomam conta do lugar, transformando-o também em outra forma de duração – pois a arquitetura que vibra passa a se mover, deixa de ser só espaço, torna-se também tempo, experiência, memória. É, de certa forma, o dispositivo arquitetônico dos cinemas e das salas de concertos recuperado de outro modo, trazido para o museu; inventando, ali, uma abertura, outro espaço possível.
Nicholas Andueza é editor assistente da revista Eco-Pós, assistente técnico da Cinemateca do MAM, pesquisador em cinema, montador audiovisual e câmera. Doutor em Comunicação pela UFRJ e em História pela Paris 1Panthéon Sorbonne.
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ANRI SALA: TIME NO LONGER • BOURSE DE COMMERCE • PARIS • 14/10/2022 A 16/1/2023
ALINEMOTTA
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REFLEXO
ALINE MOTTA TRABALHA COM FOTOGRAFIA, VÍDEO, INSTALAÇÃO, PERFORMANCE E ESCRITA, PRODUZINDO OBRAS QUE RECONFIGURAM MEMÓRIAS, EM UMA ABORDAGEM INTERSECCIONAL A RESPEITO DE QUESTÕESDEGÊNERO,RAÇAECLASSE.AARTISTAFALA EXCLUSIVAMENTE À DASARTES SOBRE SUA PRODUÇÃO ESUASOBRASEXPOSTASEMNOVAEXPOSIÇÃONOMASP
Filha natural, 2018/2019. (Frame). Série de Fotografias. Performance. Vídeo, tempo: 15'52". Fotos: © Aline Motta.
Se o mar tivesse varandas, 2017. (Frame) Série de Fotografias. Foto: © Aline Motta.
foi construído em torno de uma impossibilidade. Criando novos versos para um conhecido mote da quadra popular portuguesa, procurei subverter o sentido original. Assim, o trabalho deseja criar uma ponte de um extremo do Atlântico ao outro, entre o Brasil e o continente africano, à medida que as imagens dos meus familiares surgem por sobre as águas. Como um reflexo do inconsciente e de si mesmo, a água também é entendida como um veículo de histórias que muitas vezes estão ocultas, e precisam ser invocadas para se fazerem presentes. Ao banhar os retratos de meus antepassados em água, busca trazê-los de volta para seus lugares de origem, onde tudo começa e termina, em ciclos contínuos de renovação e transmutação.”
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Se o mar tivesse varandas, 2017. (Frame). Série de Fotografias. Foto: © Aline Motta.
“Este é um projeto sobre a vida. Se tudo que fazemos na vida é atravessar abismos, este projeto é sobre pontes. Pontes de palavras e imagens, pontes de busca por entendimento. Pontes sobre o Atlântico. É um projeto que fala sobre a minha família, mas poderia falar também da sua. A história se desenrola a partir de um segredo. Um segredo de avó para neta. O que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido na história de uma vida? Como curamos traumas pessoais, familiares e coletivos?
Instigada pela revelação de um segredo de família, parti em uma jornada à procura de vestígios de
seus antepassados. Viajei para áreas rurais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Portugal e Serra Leoa, pesquisando em arquivos públicos e privados e, ao mesmo tempo, criando uma contranarrativa do que geralmente se conta sobre a forma como as famílias brasileiras foram formadas. Com base nas minhas experiências pessoais, o trabalho pretende discutir questões como o racismo, as formas usuais de representação, a noção de pertencimento e identidade em uma sociedade que ainda tenta um ajuste de contas com sua história violenta e as noções românticas de sua louvada miscigenação.”
Pontes sobre abismos, 2017. (Frame). Série de Fotografias. Fotos: © Aline Motta.
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(Outros) Fundamentos, 2017-2019. (Frame). Série de Fotografias. Fotos: © Aline Motta.
(Outros) Fundamentos, 2017-2019. (Frame). Série de Fotografias. Fotos: © Aline Motta.
“O trabalho é uma animação construída a partir de formas sagradas milenares das escritas gráficas centro-africanas, neste caso, especialmente aquelas do povo , e também de seus desdobramentos diaspóricos afro-brasileiros expressos nos chamados “pontos riscados”. O trabalho tem como referência principal o símbolo mais sagrado das filosofias espirituais centro-africanas, chamado, no mundo , de , , ou simplesmente “cosmograma ”, como é conhecido no Ocidente.
A partir desse referencial simbólico sagrado, foi planejado para atuar como uma espécie de relógio que indica a “hora espiritual”, de acordo com o lugar de onde é acessado. Assim, as 24 horas do dia representam o ciclo da vida de nascimento (6 h), maturidade (meio-dia), velhice (18 h) e renascimento (meia-noite). Os “ponteiros”, marcadores da passagem do tempo, são clicáveis e oferecem
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Corpo celeste III / celestial body #3, 2020. Instalação em colaboração com Rafael Galante. Fotos: © Aline Motta.
mensagens ao visitante, tal qual um oráculo. Essas mensagens, que se relacionam ao ciclo da vida/hora do dia, são expressões filosóficas em linguagem proverbial traduzidos do para o português pelo filósofo, tradutor e músico Tiganá Santana, e provérbios traduzidos do para o português pelo pesquisador José Francisco Valente. De origem centro-africana, o Cosmograma é uma representação simbólica, síntese dos grandes ciclos da vida, do universo e do tempo. Ele é cortado horizontalmente pela Kalunga, uma linha que divide os mundos físico e espiritual, e também alude ao infinito da linha do horizonte no oceano, ponto de conexão entre esses mundos e as diferentes formas do ser/viver. O círculo do Cosmograma é simbolicamente dividido em quatro quadrantes por uma cruz, relacionando a passagem do tempo ao ciclo de vida dos seres, de maneira circular, transmutacional e inter-relacional.”
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"A partir de uma análise inédita de iconografia histórica e relatos orais da minha própria família, trouxe à tona hipóteses possíveis sobre as origens de minha tataravó. Há indícios de que ela tenha nascido por volta de 1855, em uma fazenda de café em Vassouras, zona rural do Rio de Janeiro, considerado o epicentro do escravismo brasileiro no século 19. Há alguns anos, tenho feito uma pesquisa profunda sobre as raízes da minha família. Nessa busca, muitas histórias vieram à tona. Esta é uma delas. Minha tataravó Francisca trabalhou como escravizada em uma fazenda de café em Vassouras-RJ. Eu fui até lá procurar por vestígios dela, mas encontrei apenas um possível atestado de óbito de alguém com o mesmo nome e idade aproximada que morreu na “Fazenda de Ubá”. Na fotografia estereoscópica, a noção de duplo faz com que o passado e o presente se choquem em uma mesma representação. Com essa ideia em vista, pergunto-me: o quanto de ficção existe em uma realidade? A Francisca desses documentos é mesmo minha tataravó? A minha bisavó e a avó de Claudia são muito parecidas fisicamente, então Claudia é minha parente? Quais arquiteturas permanecem de pé e quais desapareceram? Que estruturas de pensamento ainda são vigentes? São essas algumas das questões que trato nesta pesquisa. Além de uma instalação fotográfica, o trabalho conta com um livro de artista, série de fotografias, vídeo e performance. Principalmente no conjunto de fotografias, Cláudia desestabiliza as narrativas e representações usuais da iconografia brasileira do século 19, tomando para si o próprio visor, em um retorno cíclico e transcendente, mesmo que, ainda no Brasil de hoje, seja um gesto vindo de um futuro ficcional.”
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Filha natural, 2018/2019. (Frame). Série de Fotografias. Performance. Vídeo, tempo: 15'52". Fotos: © Aline Motta.
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SALA DE VÍDEO: ALINE MOTTA • MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO - MASP • 25/11/2022 A 22/01/2023
A pesquisadora e professora Alessandra Simões garante haver uma revolução em curso no campo das artes. E os fatos e tendências que apresenta em seu livro não deixam dúvida – em dez artigos, a autora nos ajuda a compreender o fenômeno da decolonialidade, destacando obras e artistas de grupos sociais historicamente minorizados que estão se tornando
A VIRADA DECOLONIAL NA ARTE BRASILEIRA
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Aut. Alessandra Simões Paiva • Editora Mireveja • 240 páginas • R$ 60
A galeria de design ETEL e a galeria de arte Almeida & Dale lançam o livro-tributo "entre(tempos): casa zalszupin", com coautoria da CEO da ETEL Lissa Carmona e do fotógrafo Ruy Teixeira. A publicação, em edição limitada, é uma homenagem ao primeiro ciclo de vida da Casa Museu, dedicada à memória e ao legado do arquiteto e designer Jorge Zalszupin. O livro pode ser encontrado em pré-venda na loja da ETEL e nas principais livrarias do país a partir do primeiro semestre de 2023.
ENTRE(TEMPOS): CASA ZALSZUPIN • Editora Act • 168 páginas • R$ 250,00
Dos três grandes artistas visuais que vieram para o Brasil no início do século 19, dois são bastante conhecidos –Rugendas e Debret – mas o terceiro, o artista Ender, só será realmente descoberto agora. O livro reune toda a produção de Ender em sua passagem pelo país, em que atuou como verdadeiro correspondente de viagem para a corte austríaca, além de óleos inéditos, técnica que ele raramente usava.
ENDER E O BRASIL • Aut. Julio Bandeira Capivara Editora • 728 páginas • R$ 195,00
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LIVros,
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasildesdeosanos1990.Em2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artesvisuaismaisvisitado doBrasil.
Paraficarpordentrodomundoda arte,sigaaDasartes. facebook.com/dasartes @revistadasartes
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