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Capa: , Pinacoteca do Estado de São Paulo. © Marta Minujín 2023. Foto: Beto Assem.
12 ALLORA & CALZADILLA MARTA MINUJÍN 60 ANTONIO CANOVA 6 8 32 Agenda De Arte a Z 70 KEHINDE WILEY SIRON FRANCO 88 106 Resenhas
Tenentehar,Tupinambá,Krikati,Tembé, Krepun Katejê, Akroá Gamella, Kreniê, Tremembé, Anapuru Muypurá e Warao. Para proporcionar uma imersão ao público, a expografia traz instalações que reúnem instrumentos musicais, de caça, peças usadas em rituais de luto e
MARANHÃO: TERRA INDÍGENA •
CENTRO CULTURAL VALE
MARANHÃO • SÃO LUÍS
• 5/10/2023 A 17/2/2024
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GIRO NA CENA • A 15ª Grande Exposição de Arte Bunkyo deste ano, expõe mais de 268 obras de 220 artistas. A mostra também faz uma homenagem a Kenjiro Ikoma, artista que nasceu no Japão, na província de Mie-Ken, em 1948 e emigrou para o Brasil aos 25 anos. O evento acontece até 22 de outubro, na Sala de Exposições do Bunkyo, em São Paulo.
PELO MUNDO • Nova mostra de Van Gogh no Musée d’Orsay contará com cerca de 40 obras produzidas durante os últimos dois meses de vida do pintor, em 1890. Perto do final da exposição, a tecnologia por IA permite aos visitantes interagir com o artista, cuja manifestação digital aparece por meio de uma tela de vídeo e responde a perguntas do seu público em francês. As percepções de Van Gogh foram coletadas de muitas cartas que ele escreveu durante suavida.
CURIOSIDADES • A diretoria criativa da casademodaAlexanderMcQueenexpôs os têxteis monumentais de fibras da falecida artista polonesa Magdalena Abakanowicz, como cenografia de sua coleção primavera 2024, em Paris.
Algumas dessas formas gigantes que envolveram a passarela — e que a artista comparou a um “abrigo espiritual” — foram recentemente exibidas na Tate Modern, em Londres. Leia matéria com a artista na Dasartes nº 132.
de arte ,AZ
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PRÊMIOS • Atenção artistas do Brasil. O Prêmio Arte Laguna está com as inscrições abertas para a 18ª edição. Até 26 de outubro de 2023, artistas e designers de todo o mundo terão a oportunidade de se candidatar ao prestigiado concurso e os finalistas concorrerão ao prêmio de 10 mil euros, residências e terão suas obras expostas, a partir de março, no prestigiado espaço Arsenale Nord, em Veneza. Inscrições em www.dasartes.com.br
Contemporânea abre inscrições para artistas mineiros em sua terceira edição. O projeto acontece em formato de exposição, e a obra de cada artista selecionado por meio de convocatória estará exposta na Galeria Mama/Cadela, entreosdias23e26denovembro.Todas asobrasestarãoàvendanamostra,assim como outras obras que estarão à venda nositedaFLAC.Parainscrever-se,acesse www.dasartes.com.br
• DISSEMARGARETHMENEZES, a Ministra da Cultura, na cerimônia de inauguração do novo Museu de Mariana, em Minas Gerais, no último dia 28 de setembro. Afetado pelo rompimento de barragem em 2015, município busca estimular turismo e ampliar oportunidades de desenvolvimento.
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LIVros,
A publicação apresenta um panorama da trajetória de Nicolas Vlavianos, um dos principais nomes da escultura no Brasil. Sua obra é marcada por planos geométricos justapostos, assimétricos e irregulares e com frequência discute as relações entre ser humano e máquina. No conjunto de sua produção, permanece a tensão entre formaorgânicaeabstração.Juntoaolançamentodolivro, a MAB FAAP, em São Paulo, abre a mostra até 5 de novembro.
VLAVIANOS - A CONQUISTA DO ESPAÇO • Aut. Veronica Stigger • 100 páginas • J.J Carol Editora
Ross King revela os bastidores da criação de, entre outras obras primas, Olímpia, tela que integrará a mais aguardada exposição do Metropolitan de Nova York em 2023. Encarte de imagens traz obras emblemáticas não apenas de Meissonier e Manet, mas também de Delacroix, Cabanel, Monet, Degas e Whistler. Em , o historiador de arte conduz o leitor por cafés, ateliês e salões de uma cidade extremamente impactada pelo surgimento da fotografia e das ferrovias.
O JULGAMENTO DE PARIS • Aut. Ross King • Editora Record • 518 páginas • R$ 99,90
A artista francesa ORLAN, que possui o hábito de escrever todas as noites desde a adolescência, conta detalhes da sua vida, desde a infância, em um meio operário, até a atualidade, destacando aspectos da sua trajetória pessoal e profissional. Em , a artista manifesta seus amores, seus dissabores, seus traumas e sua vida de artista na cena francesa e internacional, na qual se aproximou de grandes nomes da arte.
ORLAN: STRIP-TEASE • Edições Sesc São Paulo • 380 páginas • R$ 72,00
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Sediments, 2007.
© Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
ALLORA CALZADILLA&
Alto Relevo
CALZADILLA
JENNIFER ALLORA E GUILLERMO CALZADILLA SÃO UMA
DUPLA DE ARTISTAS QUE VIVE E TRABALHA EM SAN JUAN, PORTO RICO. COM UMA ABORDAGEM ANCORADA NA PESQUISA DE CAMPO, BIBLIOGRÁFICA E DOCUMENTAL, O TRABALHO DELES INVESTIGA AS INTERSEÇÕES ENTRE
HISTÓRIA, POLÍTICA E CULTURA MATERIAL POR MEIO DO USO EXPANDIDO DE DIVERSOS MEIOS ARTÍSTICOS, COMO PERFORMANCE, ESCULTURA, SOM, VÍDEO E FOTOGRAFIA
POR INÊS GROSSO E PHILIPPE VERGNE
Desde o início da colaboração artística, em 1995, o trabalho da dupla Allora & Calzadilla tem sido apresentado em exposições individuais em alguns dos mais importantes museus do mundo. Em 2011, representaram os Estados Unidos na 54ª Bienal de Veneza comumprojeto ambicioso, ,que problematizava narrativas e símbolos da identidade nacional norte-americana em todas as suas dimensões: política, religiosa, desportiva e econômica. Cobrindo mais de duas décadas de sua trajetória, a mostra , na Fundação Serralves, reúne algumas peças emblemáticas,comoainstalaçãodoiníciodecarreira, (1998), um conjunto de 12 enormes paus de giz brancos instalados na entrada norte do Parque da Cidade, que convida os moradores e transeuntes a expressar ideias e interagir livremente. Outro exemplo, a série de trabalhos sobre Porto Rico, mais especificamente sobre Vieques, uma ilha porto-riquenha usada pela Marinha dos Estados Unidos como base de testes para bombas e mísseis. Esse é um projeto que originou filmes como (2004) e (2005), e foi, durante mais de uma década, um dos principais focos de pesquisa da dupla Allora & Calzadilla e uma contribuição decisiva para o debate sobre as relações entre as grandes potências mundiais e a história do Caribe. Os trabalhos escolhidos para essa exposição evidenciam a natureza interdisciplinar e colaborativa da sua prática, assim como alguns dos temas que atravessam toda a sua obra – o pensamento pós-colonial e decolonial, justiça ambiental e dívida ecológica, extinção de espécies e a história evolutiva da vida na Terra, as variáveis geopolíticas, ambientais e econômicas e recursos energéticos.
14 Manifest, 2017. ©
Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
Umimperativo antimonumentalé evidente em , uma das esculturas performativas mais icônicas dos artistas, originalmente encomendada para a 51ª Bienal de Veneza. A obra subverte a ideia do monumento histórico, e em particular das estátuas equestres que se podem ver nessa cidade italiana. Em vez de um cavalo de guerra, cuja envergadura procura espelharocorpoeretoebélicodohumano que o monta, os artistas convocaram seu monstruoso parente etimológico hipopótamo, ou “cavalo do rio”, das margens lamacentas. Em contraste com os materiaisnobreseduradourosdaescultura clássica, como o mármore ou o bronze, essa criatura ganha vida em uma substância assombrada pela decadência –a lama do rio –, tornando assim sua existência finita e vulnerável. Como um que irrompe pelo mundo humano, suscita um debate sobrearelaçãoentrecivilizaçãoebarbárie, e,emboraserecuseasetornarumespelho antropomórfico, a criatura não é misantrópica. Oferece seu grande corpo tosco e feculento como uma espécie de torre de vigia a partir da qual um “denunciante” humano pode, enquanto lê notícias sobre o mundo, fazer soar os alarmes da injustiça.
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HOPE HIPPO, 2005
Hope Hippo, 2005. ©
Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
18 Land mark (Footprints), 2001-2002 e Back Fire, 2004. ©
Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
LAND MARK (FOOTPRINTS), 2001-2002
Oprojetofotográfico ( )
é o resultado de uma série de ações que tiveram lugar em Vieques, Porto Rico, entre 2001 e 2002. Os artistas trabalharam em colaboração com vários grupos ativistas envolvidos em ações de protesto na problemática zona de teste de bombas da Marinha Americana. Inicialmente, o projeto consistiu em criar solas personalizadas que foram depois colocadas nos sapatos de pessoas envolvidas na campanha de recuperação de terras. Os sapatos foram usados em ações de desobediência civil e várias pessoas que reivindicavam o terreno entraram na zona de teste, deixando marcas da sua presença sob a forma de carimbos no solo. As imagens nas solas dos sapatos reproduziam territórios (geográficos, corporais, linguísticos) e criavam contrarrepresentações da função daquele local naquele momento, levantando questões sobre seus potenciais futuros.
BACK FIRE, 2004 é uma série de fotografias a cores de constelações, estrelas e galáxias, postas a arder em fogo a partir do seu verso. Essa ação gera um novo espaço, tanto do ponto de vista físico como fotográfico. O queimar da fotografia devolve uma imagem instável, refotografadaprecisamentenomomentode ignição. A objetividade do processo de combustão e a presença da mão criam um forte contraste com as representações de corpos cósmicos remotos, enquanto a fumaça que emerge do verso da imagem produz o efeito de nebulosas espaciais e, portanto, a ilusão de que galáxias e estrelas também estão se volatilizando.
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UNDER DISCUSSION, 2005
A ilha porto-riquenha de Vieques foi usada durante 60 anos como campo de treino da Marinha dos EUA, deixando sua paisagem marcada por crateras de bomba e seu ecossistema gravemente contaminado. Depois de uma campanha de desobediência civil, em 2003, ter conseguido expulsar os militares, o terreno foi classificado como Reserva Natural Federal, ignorando as reivindicações dos residentes da ilha para que passasse à gestão municipal. Esse conflito foi o pontode partida para (2005), um dos primeiros filmes dos artistas, no qual vemos uma mesa de reuniões “de pernas para o ar” que foi adaptada com o motor e o leme de um pequeno barco de pesca. A mesa é um símboloarquitetônicocomumusadono pensamentoliberalparaacomunicação simétrica e a resolução não violenta de conflitos. No entanto, acaba muitas vezes por não dar conta das desigualdades que estruturam os espaços de negociação. No vídeo, um ativista local usa a mesa motorizada para conduzir visitantes pela área de acesso restrito da ilha, marcando os antagonismos que assombram a pitoresca paisagem costeira e testemunhando a memória do Movimento dos Pescadores.
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Under Discussion, 2005. © Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
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Stop, Repair, Prepare: Variations on Ode to Joy for Prepared Piano, 2008. © Allora & Calzadilla. Cortesia Cortesia Castello di Rivoli Museo d'Arte.
STOP, REPAIR, PREPARE: VARIATIONS ON ODE TO JOY FOR PREPARED PIANO, 2008
Um buraco talhado no centro de um piano Bechstein do início do século 20 cria um vazio através do qual se ergue e move um pianista, enquanto este toca no instrumento o quarto andamento da Nona Sinfonia de Beethoven.Comumente conhecida por , esse célebre coro final há muito é invocado como representação musical da fraternidade humana e da irmandade universal em contextos ideologicamente tão dísparescomoaRevoluçãoCulturalChinesa; a Supremacia Branca, na Rodésia de Ian Smith, e o Terceiro Reich, entre muitos outros. Atualmente, é o hino oficial da União Europeia. Ampliando as noções de piano preparado e de pianista, o intérprete tem que alcançar o teclado e reposicionar seus dedos nas teclas do ponto de vista contrário ao habitual, deslocando ainda ocasionalmente o instrumento de modo a desenhar um caminho pelo espaço expositivo. Essa versão estruturalmente incompleta da (o buraco no piano torna impossíveis duas oitavas completas) cria variaçõesnasdimensõescorporaisesonoras da dinâmica músico/instrumento, na icônica melodia que é tocada e nas suas conotações pré-estabelecidas.
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Esta é uma série de esculturas que mostra bombas de gasolina de pedra fossilizadas, deixadas ao abandono. Esses objetos atestam a abundância orgânica da pré-história da Terra e as antigas formas de vida que, por terem sofrido processos anaeróbios de decomposição e transformação, fornecem o material hoje em dia utilizado para gerar energia. A representação da bomba de gasolina em estado de fossilização imagina como serão os vestígios materiais da atividade humana da nossa era geológica atual e reflete sobre qual será o legado da cultura humana na história do planeta.
PETRIFIED PETROL PUMP, 2010
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Petrified Petrol Pump, 2010. © Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
LIFESPAN, 2014
Em , três vocalistas interpretam uma composição de David Lang, assobiando e soprando para uma amostra de pedra do período Hadeano de quatro mil milhões de anos. A pedra, que está suspensa do teto, flutua à altura dos ombros dos , como se fosse um microfone ou outro instrumento vocal. Empurrando sutilmente a pedra como se fosse um pêndulo, a respiração dos cantores pode ser entendida como uma forma poética de erosão pelo vento, mas tambémcomoumcantoprimitivo.Aocolocarpelaprimeiravezemcontatohumano com essa amostra de pedra, a performance liga o momento presente ao da origem da Terra, uma época em que não havia seres vivos para testemunhar a transformação geológica do planeta.
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Lifespan, 2014. © Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
Entelechy, 2020. © Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
ENTELECHY, 2020
é uma escultura monumental em carvão moldada a partir de uma árvore derrubada por um raio. Allora & Calzadilla usaram uma espécie de pinheiro ( ) encontrada na floresta de Montignac, na França, a mesma floresta onde, em 1940, um grupo de adolescentes descobriu a agora famosa gruta de Lascaux, ao seguir o caminho das raízes arrancadas de uma árvore semelhante. Assim, uma caverna subterrânea contendo centenas de desenhospré-históricosemergiunomeiodoconflito geopolítico da Segunda Guerra Mundial. Neste trabalho, a única imagem de uma figura humana encontradanagrutadeLascaux–representandoum ser híbrido, entre humano e ave – se torna a base para a partitura que o compositor David Lang desenvolveu junto aos artistas. Allora & Calzadilla descrevem como “uma árvore de pura potencialidade, de luz solar do passado convertida em reserva de energia, à medida que as vozes humanas se misturam. Por meio de suas locuções enérgicas, os vocalistas parecem tentar atear a árvore sobre a qual cantam; mas nunca alcançam a imensidão dessa cena natural.”
GRAFT (TABEBUIA CHRYSANTHA), 2020, 2019, 2021
Em , milhares de flores aparecem como se um ventoastivesseespalhadopelochãodasváriassalas do museu. Fora do seu contexto habitual, as flores dispersas pelo interior sem qualquer árvore à vista podem nos levar a perguntar de onde elas teriam caído. Cada uma dessas flores artificiais foi moldada apartirdasfloresdasárvores , uma espécie de carvalho nativa do Caribe. As pétalas caídas pintadas à mão são reproduzidas em diferentes estados de decomposição: desde recémcaídas, e ainda aparentemente úmidas, até murchas e já escurecidas. alude às alterações ambientais desencadeadas pelos efeitos combinados da exploração colonial e da transformação climática global.
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Graft (Tabebuia chrysantha), 2019-2020-2021. © Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
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é a terceira de um conjunto de curtas-metragens feitas ao longo de uma década para abordar a complicada história de Vieques, a ilha usada comozonadetesteparabombas,queétemadeoutras obras descritas neste texto. Projetado em tamanho real, o vídeo sem som é composto por 19 segmentos, cada um sendo dividido em duas vistas panorâmicas de vários locais em Vieques, uma por cima da outra. A divisãohorizontaléentãoatravessadapordoismastros, alinhados como se fossem um objeto contínuo. Em cada segmento, um jovem se ergue para uma posição horizontal como se tivesse hasteado no mastro e, em um esforço intenso, se torna, durante breves instantes, uma bandeira não oficial – antes da persistência dar lugar à gravidade. O gesto serve para reenquadrar locais específicos de Vieques que foram importantes para a ocupação militar e as lutas subsequentes, mediante uma convenção semiótica enganosamente simples:acolocaçãodabandeiraameia-haste(umsinal de luto) ou hasteada até ao topo (condições “normais”). Em , o corpo individual substitui“literalmente”abandeira,obliterando-acomo lugar oficial para o corpo coletivo da nação.
HALF MAST/FULL MAST, 2010
29 ALLORA & CALZADILLA: ENTELECHY • MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE SERRALVES • PORTUGAL • 12/5 A 29/10/2023
Inês Grosso é escritora e curadora portuguesa radicada em Belo Horizonte e atua como curadora-chefe do Museu Serralves.
Half
Mast/Full Mast,
2010. ©
Allora & Calzadilla. Cortesia Lisson Gallery.
Philippe Vergne é um curador francês que é diretor do Museu de Arte Contemporânea de Serralves desde 2019.
Marta Minujín
Capa
Marta Minujín em seu ateliê na rue Delambre, Paris, com Colchones, seus primeiros colchões multicoloridos, 1963. © Marta Minujín Archieve.
PARA A ARTISTA MARTA MINUJÍN, O QUE INTERESSA SÃO AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA. POR ESSA RAZÃO, SUAS OBRAS DE ARTE SÃO ABERTAS (E, MUITAS VEZES, LÚDICAS), NAS QUAIS O VISITANTE É PROTAGONISTA
POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA
Pioneira nos campos que definem a instalação e a performance, Marta Minujín (Buenos Aires, 1943), é uma obra-viva. No auge dos seus 80 anos, com seus cabelos loiros, óculos escuros e roupas coloridas, é uma celebridade das artes visuais, com vigorosa prática de ateliê e presença nas redes sociais, onde seus projetos, ideias e aventuras cotidianas são compartilhados aos seus seguidores apaixonados.
E toda essa energia pode ser sentida (ou, melhor ainda, vivida), agora, nas salas da exposição recém-inaugurada na Pinacoteca, com curadoria de Ana Maria Maia. A mostra panorâmica, com 100 obras que vão de 1963 até criações pensadas no período da pandemia, dá um gostinho do percurso da artista que transita entre a pintura, a escultura, a performance e a ação urbana. De imediato, a mostra traz obras e recriações que esgarçam os limites do objeto artístico e se colocam à interação do público – o que dizer da grande instalação inflável e colorida, chamada , exposta no estacionamento da Pina Luz, que recebe o público? A obra já é um convite ao lúdico. Sim, Minujín brinca com a extravagância, com o acolhimento do corpo, com a comunicação midiática e, sobretudo, com os sentidos do visitante – a criação se dá ali (entre artista-obra-público).
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Marta Minujín
Escultura de los deseos, 2023 (Pinacoteca de São Paulo).
Foto: Andreas Sander. ©
Marta Minujín Archieve.
Colchón (Eróticos
en technicolor), 1964. © Marta Minujín Archieve.
A visualidade, as cores, as propostas e os efeitos dos trabalhos expostos ... enfim, tudo isso, pode ser conferido na visita à mostra, mas aqui cabe a abordagem de algo não tão aparente: a ação política. Afinal, quem é Marta Minujín? Como seus trabalhos se inscrevem na cena contemporânea e, sobretudo, por que essa exposição hoje? O que a mostra nos diz sobre a circulação e a internacionalização da arte latino-americana? A partir dessas perguntas, logo, vamos à missão.
Marta Inés Minujín estudou na Escola Superior de Belas Artes Manuel Belgrano e na Escola Nacional de Belas Artes Prilidiano Pueyrredón, em Buenos Aires. Expôs pela primeira vez aos 16 anos e, em 1961, fez sua primeira individual. À época, conseguiu uma bolsa de estudos em Paris, onde entrou em contato com o novorealismoe asideiasdocríticoPierre Restany.Naspropostas donovorealismo,acriaçãosesituanoespaçosocialeeconômico e pode influenciar as relações políticas; o processo criativo está envolto por diversas forças em conflito (economia, política e cultura). Assim, os novos realistas adotaram uma iconografia suportada pelos meios da comunicação de massa, pela publicidade e pelos resíduos do mundo industrial.
Nessa ocasião, Minujín incorporou materiais não usuais às suas telas – são embalagens, pedaços de papelão, tinta industrial, óculosdesol,botasedemaisobjetosqueconsideravapeculiares. Aos poucos, manipulou esses trabalhos, transformando-os em construções arquitetônicas – as chamadas , até suas primeiras estruturas com almofadas e colchões – esse último se tornoumotivorecorrentenoseurepertóriodesdedaí.Oprimeiro colchão que usou foi o da própria cama e, depois, semelhante ao que fazia com os papelões, arrastava os colchões que encontrava nas ruas para o seu ateliê. As experiências com o papelão e os colchões promoveram sua rápida assimilação nos círculos da vanguarda francesa.
Nesse ambiente, Minujín produziu seu primeiro , 1963. A performance era a destruição de todas as suas peças criadas até aquele ano por seus amigos artistas (entre os quais Christo – sim, ele mesmo!). No terreno baldio, próximo ao seu ateliê, ela espalhou suas obras, soltou 500 pássaros e 100 coelhos e encharcou as obras de combustível para incendiá-las.
O evento foi conceitual, coletivo e participativo. Essa ação se tornou a virada na sua obra: do informalismo à experimentação.
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Geometria blanda, 2014. © Marta Minujín Archieve.
O pagamento da dívida externa argentina com milho, “o ouro latinoamericano”, 1985/2011. © Marta Minujín Archieve.
Ao lado dos , seus colchões multicoloridos persistiram e variaram entre a pintura, a escultura e a instalação. Graças a eles foi a Nova York, onde entrou em contato com a vanguarda local, realizando trabalhos ligados à teoria de Marshall McLuhan sobre como a tecnologia condiciona o comportamento das pessoas. Ela deu andamento à produção de e ambientes que colocam o visitante em situações inesperadas – ela quer retirar o espectador da sua posição confortavelmente passiva. Em 1970, ela participou de , exposição antológica de arte conceitual, organizada pelo MoMA.
Em Nova York, conheceu Andy Warhol, com quem, posteriormente, realizou
(1985),umaperformancequeenvolve arte e política e está na mostra na Pinacoteca. Nesse registro, dois ídolos da se unem na ironia: o milho, considerado o ouro da América, cancela a dívida econômica da Argentina. A ideia despertou reflexão, rememorou a história social, a política e a economia da Argentina,mastambémalatino-americana.
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El Obelisco de pan dulce, 1979. Abaixo: Book Partenon, 1983. © Marta Minujín Archieve.
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Não pensem que a mostra na Pinacoteca foi a primeira vez de Minujín no Brasil. Em 1977, a convite de Walter Zanini, então, diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, ela participou da mostra , com a performance , da fase chamada – as proposições dessa série lidavam com materiais e emblemas típicos da cultura latino-americana.
Porém, mesmo com todos esses intercâmbios internacionais, não se esqueçam: ela é argentina. Muitas das suas peças desmistificam os ícones portenhos. Por exemplo, (1979), instalação feita para a Feira das Nações que imita o Obelisco de Buenos Aires com pão, que depois foi distribuído ao público. Outra proposta, , feita em Medellín, em 1981, incendiou uma figura da lenda do tango.
UmadasobrasmaisrenomadasdeMinujínéo (1983), instalado no centro de Buenos Aires, para as efemérides ligadas ao retorno da democracia na Argentina. A obra pública reconstrói o templo da Acrópole de Atenas a partir de livros. A esta estrutura foram anexados mais de 20 mil livros, cobrindo as colunas, frisos e frontões do templo. Minujín escolheu títulos proibidos durante a ditadura militar portenha (1976-1983). A importância histórica dessa instalação lhe rendeu uma nova montagem em 2017, durante aDocumentadeKassel14,naAlemanha,dessavezcomlivros que foram proibidos ao longo da história.
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Marta Minujín na Pinacoteca de São Paulo. Foto: Beto Assem.
Pronto!Já conhecemos a artista.Restanos distinguir seu lugar na cena contemporânea. Para isso, é preciso entender os anos de 1960, como período de eclosão das ditaduras latino-americanas, censura, cerceamento de liberdades individuais e a arte sendo o elemento desagregador desse rígido contexto. Alguns historiadores afirmam “que as ditaduras tiveram que enfrentar a arte” e não o contrário. Mas,também,compreenderaabertura democrática e a inserção de uma nova ordem mundial a partir dos anos de 1990. Justamente, nessa década, historiadores, curadores e instituições iniciaram um processo de reexame da história e da produção da arte ocidental. A partir de um discurso plural, a arte latino-americana tem sido pensada não mais a partir da Europa ou dos EUA, mas por sua alteridade revolucionária – e, essa tem sido a principal diferença dos estudos e das práticas mais recentes. Críticos e curadores buscam fatores que diferenciam a arte latino-americana, tais como, a discussão sobre a política, o meio ambiente e o feminismo.
Consequentemente, nos últimos 30 anos, tem crescido o número de obras e de exposições de artistas latinoamericanos em instituições europeias e norte-americanas, assim como essas proposições têm se destacado nas grandes mostras, tais como, a Documenta de Kassel, a Bienal de Veneza, a Bienal de São Paulo, além da repercussão nas diversas feiras internacionais–essemovimentoé,sem dúvida, mais um fenômeno de “descoberta” (e, cá entre nós, a Pinacoteca sabe disso!).
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Exposição Menesunda Reloaded, no The New Museum, NY, 2019. © Marta Minujín Archieve.
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Galeria Mole, Pinacoteca de São Paulo, 2023. Foto: Levi Fanan. © Marta Minujín Archieve.
Dessa maneira, proposições artísticas que empregam o uso do corpo, da memória, dos eventos e das cores locais são evidenciadas: artistas, tais como Minujín, destacam-se porque procuram, por meio do trabalho, dar sentido à existência, seja a sua própria ou a da coletividade – ela descomplicou a arte conceitual. Desse modo, a atenção sobre sua produção e reconhecê-la como pioneira da instalação e da arte performática em nível internacional tem sido fundamental para a arte contemporânea em sua vertente latino-americana.
Nesse sentido, a trajetória de Marta Minujín é única: ela levou a arte contemporânea para as ruas, as praças, enfim, para uma diversidade de lugares públicoseprivados.Suasobrasdeaninhar, seus colchões coloridos oferecem a oportunidade para que qualquer pessoa (das mais simples às sofisticadas) experimente a arte.Lembre-se!Ela própria é obra-viva! E isso é ato político! Para ela, a arte não serve apenas para ser vista, mas para ser vivida. Suas propostas transcendem; vivem na memória coletiva do povo argentino (e, agora, também na dos brasileiros).
Alecsandra Matias de Oliveira é pósdoutorado em Artes Visuais (Unesp). Doutora em Artes Visuais (ECA USP). Mestrado em Comunicação (ECA USP). Professora do Celacc (ECA USP). Autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da resistência (MCSP, 2022).
MARTA MINUJÍN: AO VIVO • • PINACOTECA LUZ • SÃO PAULO • 29/7/2023 A 28/1/2024 49
ANTONIO CANOVA
Flashback
ANTONIO CANOVA
Study of a Boy, c. 1790–1800. © Museo Gypsotheca Antonio Canova, Possagno. Foto: Luigi Spina.
O ESCULTOR ITALIANO ANTONIO CANOVA DESLUMBROU O PÚBLICO COM SUAS SENSUAIS ESCULTURAS EM MÁRMORE SÓLIDO, COM CADA SUPERFÍCIE CINZELADA E POLIDA COM PERFEIÇÃO. MAS UM DOS SEGREDOS INICIAIS PARA O SEU SUCESSO FOI A DEVOÇÃO A UM MATERIAL COMPLETAMENTE DIFERENTE DO MÁRMORE – A ARGILA. AGRUPADAS POR TEMA – RETRATO, MITOLOGIA E RELIGIÃO –, SUAS OBRAS REVELAM UM LADO COMPLETAMENTE DIFERENTE DE SUA IDENTIDADE CRIATIVA
POR REDAÇÃO
Nascido em 1757, na cidade italiana de Possagno, Antonio Canova (1757-1822) se formou principalmente em Veneza. Rapidamente conquistou elogios por seus projetos inventivos e sua habilidade em esculpir em mármore. Aos 21 anos, já estava em Roma. Encantado com as muitas obras da escultura antigaqueencontroulá,foiinspiradoaseguirumnovocaminho para a arte. Não apenas abraçou o neoclassicismo – o retorno à beleza ideal e simplicidade da Grécia e Roma antigas –, mas também ofereceu sua própria interpretação. Seu estilo revolucionário se tornou a sensação em toda a Europa. Canova recebeu uma enxurrada de encomendas para estátuas de deusas esbeltas e heróis musculosos e trabalhou incansavelmente ao longo de três décadas para atender à demanda, produzindo uma escultura icônica após outra. Quando morreu, em 1822, nenhum artista na Europa havia alcançado maior celebridade ou riqueza.
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Hebe, c. 1816. © Courtesy of the Daniel Katz Gallery, London.
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RETRATOS ESCULTURAIS
A maneira certa de mostrar na Europa por volta de 1800 era ter o próprio retrato esculpido por Canova. Os ricos e poderosos, incluindoNapoleãoemembrosde suafamília, fizeram grandes esforços para garantir seus serviços e valorizavam os bustos e cabeças pela beleza e pela confiança que transmitiam. Cada retrato exigia horas de trabalho em argila: Canova começava criando modelos de esboço para estudar a pose, seja sentado ou em pé. Ele então produzia estudos de cabeça em tamanho real para compreender as características faciais e a expressão. Terminava com modelos cada vez maiores em argila, moldados em gesso e depois copiados em mármore.
Em , seria esta uma imagem que retrata alguém que Canova conheceu? A representação cuidadosa e realista do rosto do menino sugere que sim. As profundas rachaduras que cobrem a superfície lisa do busto ocorreram –inadvertidamente – durante o processo de cozimento. No entanto, elas acrescentam ao apelo da obra, enfatizando a fragilidade da juventude.
, uma escultura de uma pequena cabeça, é um dos primeiros modelos sobreviventes de Canova. É um estudo de personagem – um exercício para explorar a expressão facial. A testa franzida e a boca entreaberta transmitem sentimentos intensos: este homem está preocupado.
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Character Head, c. 1780. © Dino and Raffaello Tomasso.
Satyr and
Nymph (Cupid and
©
a
Psyche?), c. 1786–1787.
Museo Gypsotheca Antonio Canova, Possagno.
MITOS E LENDAS
A fama de Canova estava ligada à sua habilidadedereimaginarhistóriasfamosasda Grécia e de Roma Antiga e dar vida a esses mitos em reluzente mármore. A escultura é um exemplo perfeito. Concluída em 1816, ela representa uma das nove deusas,ou musas,da inspiraçãocriativa. Cada vez que Canova abordava um novo tema mitológico, ele recorria à argila, seu meio preferido para explorar ideias. Conseguia trabalhar rapidamente com argila, e era uma opção econômica. Sempre rigorosoemsuaabordagem,frequentemente produzia muitos modelos, um após o outro, até ter certeza de ter encontrado o melhor . Mas o uso da argila não se limitava a esboços. Continuava elaborando modelos cada vez mais refinados e maiores em argila, como fez com a escultura de Hebe. Uma das esculturas mais celebradas de Canova, (1812), retrata as três filhas de Zeus, entrelaçando os braços enquanto se voltam para dentro e se abraçam.ElassãoconhecidascomoasGraças porque concedem presentes à humanidade. As figuras, capturadas em um movimento de giro, parecem dançar. Canova refinou seu conceito. A Graça central é ladeada por suas parceiras. Envolvidas por braços sinuosos e uma faixa de vestimenta parecida com uma fita, o grupo é sereno, digno e bem acabado.
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The Three Graces, 1812. © Lyon MBA –
Photo Martial Couderette.
Head of Medusa, c. 1797–1800. ©
Gypsotheca
Museo
Antonio Canova. Foto: Luigi Spina.
Em ( , olhos vazios, boca entreaberta e bochechas entrelaças por cobras – esta cabeça decapitada pertence à Medusa. Canova criou esse modelo relativamente acabado para uma estátua monumental de mármore que estava esculpindo de Perseu, que seguraria a cabeça como uma espécie de troféu.
Na mitologia grega, Medusa era uma criatura com cabelos de serpente chamada Górgona. Seu olhar transformava qualquer pessoa que o encontrasse em pedra. Usando um escudo espelhado, Perseu conseguiu se aproximar de Medusa enquanto ela dormia e cortar sua cabeça. Ele a carregava como uma arma, usando-a para petrificar seus inimigos. Os esboços de retratam um episódio do final da Guerra de Troia. Após a queda da cidade de Troia, o espírito vingativo de Aquiles, um guerreiro grego morto em batalha, apareceu e exigiu a morte da princesa troiana Polixena. Seu filho Píladesfoiencarregadodaterríveltarefa. A princesa se ajoelha no túmulo de Aquiles e olha para cima, para seu assassino. Pílades parece hesitar com incerteza enquanto se depara com o ato violento que lhe foi acometido.
63 ” “
Pyrrhus Sacrificing Polyxena, c. 1798–1799. © Museo Gypsotheca Antonio Canova. Foto: Luigi Spina.
Pope Clement XIV, 1783.
© Museo Gypsotheca
Antonio Canova. Foto: Luigi Spina.
MONUMENTOS E FÉ
Devoto católico romano, Canova frequentemente esculpia temas religiosos, além de obras que celebravam o papado. Duas de suas esculturas mais complexas foram monumentos funerários dedicados aos papas – Clemente XIII e Clemente XIV. Esses monumentos luxuosos envolveram um planejamento extenso. Para enfrentar esse desafio, Canova trabalhou em suas ideias de em uma série de modelos de argila. Entre as obras mais tocantes de Canova em argila está uma história da Bíblia: Adão e Eva lamentando a morte de seu filho Abel. Olhe atentamente
Adam and Eve Mourning the Dead Abel, c. 1818–1822. © Governorate of the Vatican City State – Directorate of the Vatican Museums.
para o rosto de Adão, erguido para o céu,àesquerda.Canovatransformouum pedaço de argila crua em uma imagem de angústia – tudo em segundos, com seusdedosealgunsmovimentosdeuma ferramenta de modelagem de madeira. De acordo com um de seus amigos, Canova foi tomado por uma variedade de emoções – “com lágrimas, com felicidade e com convulsões gerais de seucorpo”–quandomodelavaemargila. Maria Madalena foi uma seguidora de Jesus que frequentemente era retratada em oração, arrependendo-se de pecados passados. Em 1791, Canova começou a planejar uma estátua dela para um cliente italiano – o mármore . Começou,
como era seu costume, com esboços rápidos. É grosseiro – pouco mais do que um amontoado de pedaços de argila com o rosto, as mãos e os pés mal indicados. E, mesmo assim, retratou uma mulher quase esmagada pelo peso de seu remorso. O gesso
, possivelmente feito como a segunda versão da escultura de mármore, está coberto de marcas de referência em metal. Elas serviram como guia para transferir a composição para o mármore, usando um sistema mecânico chamado apontamento.
Em seus anos posteriores, à medida que ele confrontava sua própria mortalidade, seus pensamentos se voltaram para um novo projeto: seu sepulcro, que ele estava construindo em sua cidade natal, no Norte da Itália. Enquanto planejava as decorações para ela, ele criou alguns de seus modelos de argila mais expressivos. Elescertamente incluemasérie que retrata Adão e Eva lamentando a morte do filho. No entanto, Canova faleceu em 1822, antes que qualquer um desses projetos pudesse ser produzido em mármore ou que a igreja pudesse ser concluída.
69 CANOVA: SKETCHING IN CLAY NATIONAL GALLERY OF ART • WASHINGTON • EUA • 11/6 A 9/10/2023 ART INSTITUTE OF CHICAGO • EUA • 19/11/2023 A 18/3/2024
of the Penitent Magdalene, c. 1794–1809. © Museo Gypsotheca Antonio Canova. Foto: Luigi
Head
Do mundo
KEHINDE WILEY
KEHINDE WILEY DEDICOU SUA CARREIRA ARTÍSTICA A ELEVAR A BELEZA E O PODER DAS PESSOAS NEGRAS, EM PARTICULAR DOS JOVENS NEGROS, COMO REPRESENTAÇÕES DELE MESMO. NOS ÚLTIMOS VINTE ANOS, TEM RECEBIDO AMPLO RECONHECIMENTO POR PROJETAR SEUS TEMAS EM POSIÇÕES DE AUTORIDADE E GRAÇA, PINTANDO – E, RECENTEMENTE, ESCULPINDO – COMPOSIÇÕES INSPIRADAS POR RETRATOS FAMOSOS DO MUNDO OCIDENTAL
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Pág. anteriores: The Death of Hyacinth (Ndey Buri Mboup), 2022. Acima: Young Tarentine I (Babacar Mané), 2022. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
POR CLAUDIA SCHMUCKLI
As figuras de Wiley ocupam triunfalmente espaços culturais tradicionalmente reservados à realeza branca, ao clero ou à nobreza, enquanto ele questiona a exclusão de seus temas de tais representações históricas. Ao mesmo tempo, essas obras oferecem um comentário ácido sobre os atributos codificados e mercantilizados da masculinidade negra na sociedade ocidental, que exigem a repressão de qualquer tipo de vulnerabilidade humana.
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É essa vulnerabilidade que une os sujeitos – homens e mulheres negros – em sua nova mostra ( ).Nesse novo conjunto de obras, Wiley rejeita a linguagem heroica da retratística e sua insistência na verticalidade. Em vez disso, ele destaca o simbolismo da morte e do sacrifício representado pelo motivo artístico histórico da figura reclinada. Suas figuras negras na horizontal, frequentemente em estados ambíguos de dor, luto, sono ou morte, fazem referência a pinturas e esculturas icônicas do mundo ocidental de heróis caídos, amantes, mártires ou santos – evocando dor e êxtase, sofrimento e transcendência. Wiley também explora a tradição europeia de erotizar o corpo martirizado, começando pelo de Cristo, a fim de seduzir os espectadores à adoração e à reverência. Assim, ele conecta a dimensão épica e histórica da violência contra pessoas negras com o legado do sagrado
espetacularizado, chamando nossa atenção para uma realidade profundamente compreendida pelas pessoas negras, mas silenciada pelas forças socialmente dominantes por muito tempo. Essas pinturas e esculturas são uma expansão da série de 2008 – um grupodeobrasemgrandeescalainspiradasporseuencontrocom (1521-1522), do pintor alemão Hans Holbein, o Jovem. Criadas em meio à pandemia de COVID-19, ao assassinato de George Floyd e à ascensão global do movimento , as obras de Wiley marcam um importante retorno a esse tema. Coletivamente, elas se destacam como uma poderosa elegia às vítimas e aos sobreviventes da violência sistêmica, enquanto santificam a persistência da resistência negra contra o contínuo legado da supremacia branca.
Reclining Nude in Wooded Setting (Edidiong Ikobah), 2022. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
Femme piquée par un serpent (Mamadou Gueye), 2022. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
Kehinde Wiley concebeu esse conjunto de obras em Dakar, Senegal, onde passou a maior parte do tempo durante a pandemia. Devido à quarentena, o artista teve que abrir mão de seu processo habitual de selecionar modelos nas ruas. Em vez disso, trabalhou com artistas locais, amigos e a equipe do Black Rock, umprograma de residência que ele estabeleceu em Dakar, em 2019. Essas circunstâncias extraordinárias o levaram a revisitar , um conjunto de obras feitas em 2007-2009, que ele sentiu que nunca realizou seu potencial completo.
Durante esse período, quando muitas pessoas viram o mundo, principalmente, por meio de suas telas, a circulação de imagens facilitada pelas redes sociais estava
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mudando radicalmente a visibilidade da vida e da morte negras. Embora a fragilidade da vida negra e a abordagem de Wiley a isso já fossem anteriores às redes sociais, seu renovado foco na fragilidade negra é em parte uma resposta a essa maior capacidade dos outros verem seu trabalho com mais clareza.
A desconexão geográfica dos Estados Unidos também permitiu a ele ampliar a conversa além das preocupações nacionais. Esse contexto expandido é expresso em suas representações dos marcadores pessoais de seus modelos, especialmente suas roupas, joias e penteados. Muitas vezes indicativos de sua origem senegalesa, esses atributos compartilhados enfatizam a conexão das culturas negras em toda a diáspora e destacam a dimensão global da violência experimentada pelas comunidades marginalizadas de pessoas negras em todo o mundo.
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The Virgin Martyr St. Cecilia (Ndey Buri), 2022. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
Acima: Christian Martyr Tarcisius (El Hadji Malick Gueye), 2022.
Abaixo: Christian Martyr Tarcisius (El Hadji Malick Gueye), 2021.
© Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
A IMPORTÂNCIA DA ESCALA
Esta exposição contém algumas das obras menores e maiores de Kehinde Wiley, com algumas do tamanho de pinturas históricas e esculturas públicas. A pintura histórica é um tipo de pintura representacional tradicionalmente usada para comunicar os objetivos do Estado e do império. Sociedades modernas adotaram esse formato na forma de para servir aos propósitos do capitalismo. O uso estratégico de tal escala por Wiley aponta tanto para a exploração capitalista da cultura negra quanto confere a seus sujeitos uma sensibilidade épica geralmente ausente das representações da figura reclinada ou caída na arte ocidental.
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Em sua vulnerabilidade, suas esculturas invertem noções codificadas de negritude, especialmente no que diz respeito aos homens negros, cujas representações públicas muitas vezes se limitam a celebrações da excelência atlética ou condenações de comportamento antissocial. Os fundos e cenários florais de suas pinturas também fazem referência a associações igualmente estereotipadas, evocandoofeminino,odomésticoeoirracional–estaúltimacaracterísticaatribuída a muitos membros marginalizados da sociedade. Com elementos ornamentais invadindo as figuras, essas obras entrelaçam construtos sociais de raça e gênero, sugerindo que essas noções em si são irracionais e, portanto, desumanizantes.
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The Virgin Martyr St. Cecilia, 2021. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
A TRANSCENDÊNCIA DA LUZ
Na pintura ocidental, Deus é representado como luz. Banhando suas figuras em um brilho penetrante, o artista cita e subverte essa prática centenária, projetando suas figuras em um espaço de reverência historicamente reservado para Cristo, seus seguidores e, por extensão, para a branquitude. Reivindicando essa tradição pictórica para os sujeitos negros, Wiley desconstrói essa cadeia de associações. Ao fazer isso, ele expõe como equiparar a luz à divindade, atribui valor moral à cor e
revela um mecanismo-chave pelo qual o conceito de branquitude naturalizada emerge. Como meio de afirmar a santidade da vida, a luz de Wiley infunde suas figuras com um senso de êxtase sobrenatural que as permite transcender suas condições precárias e destaca sua beleza, dignidade e humanidade. A iluminação das esculturas independentes de Wiley cria um efeito semelhante: usando apenas refletores precisos que deixam o espaço ao redor das obras relativamente escuro, o artista dá a cada peça um senso de drama e que inspira reverência e admiração.
Youth Mourning, 2021. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
An Archeology of Silence,
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2021. © Courtesy of the Artist and Galerie Templon.
UMA ARQUEOLOGIA DO SILÊNCIO
Aobraquedátítuloàexposição, ,reformula a escultura de 2019, , que ele originalmente criou para a exposição na Times Square, em Nova York. Ambas as esculturas têm como base um monumento ao general do exército confederado James Ewell Brown Stuart, criado por Frederick Moynihan, em 1907. O monumento foi removido e armazenado em julho de 2020, após a renovada indignação pública pelo assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020.
Enquanto apresenta um cavaleiro negro orgulhosamente ereto sobre o cavalo do general, que Wiley copiou sem alterações, retrata uma figura caída. Essa escultura reverte radicalmente a iconografia tradicional do monumento equestre, que celebra a proeza militar como uma afirmação do poder do Estado. Como em grande parte de seu trabalho, Wiley subverte os legados de uma tradição histórica para deslocar o foco do opressor (o silenciador) para o oprimido (o silenciado) e centralizar as histórias globais das pessoas negras na vida e na morte.
O título da escultura, , faz referência a uma frase do filósofo francês Michel Foucault, que a usou para descrever a ação de tornar visível um fenômeno socialmente reprimido. Foucault vinculou isso à capacidade do artista de falar a verdade sem ser prejudicado. Historicamente, esse tipo de revelação da verdade também está associado à figura do bobo da corte ou bufão, cujo de , ou “loucura”, permitia-lhes criticar o poder onde outros não podiam. Ao citar Foucault, Wiley, que frequentemente se referiu a si mesmo como um trapaceiro, reafirma seu direito a esse papel e seu direito de usar a beleza subversiva de seu trabalho para combater as estruturas grotescas de poder que representam a verdadeira loucura deste mundo.
87 KEHINDE WILEY: AN ARCHEOLOGY OF SILENCE DE YOUNG MUSEUM • SAN FRANCISCO • EUA • 18/3 A 15/10/2023 MUSEUM OF FINE ARTS • HOUSTON • EUA • 19/11/2023 A 19/6/2024
Claudia Schmuckli é curadora de Arte Contemporânea dos Museus de Belas Artes de São Francisco.
Reflexo
Cosmos.
Foto: DelRe Stein VivaFoto. © Siron Franco.
Rainha na Intimidade.
Foto: © DelRe Stein VivaFoto. © Siron Franco.
AS OBRAS DE SIRON FRANCO SÃO, COM FREQUÊNCIA, COMPOSTAS A PARTIR DE MUITAS CAMADAS
CONSTRUÍDAS AO LONGO DO TEMPO, DE MODO QUE
O QUE VEMOS É APENAS A VERSÃO MAIS RECENTE DE UMA PINTURA. AO LONGO DE MAIS DE CINCO DÉCADAS,
O ARTISTA SE ENVOLVEU COM ALGUMAS DAS QUESTÕES
MAIS CANDENTES DA SOCIEDADE BRASILEIRA COMO
INJUSTIÇA, RACISMO, A IMPORTÂNCIA DAS CULTURAS
INDÍGENAS, ECOLOGIA E VIOLÊNCIA
POR SIRON FRANCO
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“Esta obra representa a falta de ar no período da ditadura militar brasileira, que estava extremamente violenta naquele momento. Eu me sentia totalmente sufocado. Naquela época, era necessário pintar e se expressar de maneira que os militares não percebessem o que estava sendo dito. Então, eu criei esse homem usando um escafandro, respirando apenas por uma mangueira por onde ele recebe o oxigênio, justamente para representar esse sufocamento. O fato de ele estar amarrado representa a falta de liberdade. Mas, quando expus a obra, os militares não entenderam a minha intenção. Eles achavam que eu não estava falando da revolução.”
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Argonauta, 1973. © Siron Franco.
Sem Título.
Foto: DelRe Stein VivaFoto. © Siron Franco.
“Esta obra é da série . Eu a chamei de onça “pintada”, justamente para fazer essa brincadeira entre o nome do animal e a pintura. É um trabalho bem gestual que remete à padronagem das onças. Quando você fica diante dessa tela, percebe que as manchas formam também outros animais: é o tempo que você der ao olho que vai lhe responder. As manchas vermelhas representam o sangue, a violência contra os bichos. Essa foi a última pele que eu fiz, em 2021. As outras peles dessa série têm números de calibres de armas, como 765, 38, 764, 44, 38 e 22.”
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Onça pintada, 2021. © Siron Franco.
Armadilha para capturar sonhos, 1998.
© Siron Franco.
“Eu tenho uma amiga muito ligada à questão dos sonhos edaastrologia.Emumatarde, eu estava na casa dela e observei alguns objetos pendurados. Perguntei o que eram, e ela me disse que eram armadilhas de capturar sonhos. Eu fiquei fascinado, porque já tinha feito muitos quadros com o título de “armadilhas”, usado devido aos animais
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capturados. Saí de lá e fiquei com aquilo na cabeça por um bom tempo. Depois, ela me disse que era mentira, que os objetos não tinham nome e ela tinha inventado aquela história na hora. Quando voltei para Goiânia, fiquei me lembrando dessa história e fiz esse trabalho, e nomeei de .”
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Ensaio Para Uma Dança Antiga. Foto: DelRe Stein VivaFoto. © Siron Franco.
“Esse quadro pertence a uma série chamada . Se juntar todas as peças que eu fiz para essa série, você ficará diante de um curral enorme. Nessa tela, em cada tronco do curral e no corpo do boi, há uma data de algum fato importante que aconteceu no Brasil ou em outros lugares do mundo. Por exemplo: no rabo do boi tem o ano 1964, que marca a triste história da ditadura militar. Na pintura, há também a data da Primeira Guerra Mundial e muitas outras fáceis de se identificar. E tudo isso com a representação do boi em partes. Sempre achei muito bonita (e também muito cruel) essa dissecação do boi, então, eu pintei exatamente como se divide cada tipo de carne, e em cada uma das partes coloquei uma data de algum acontecimento marcante.”
“ 102 ”
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Datas, 1989. © Siron Franco.
SIRON FRANCO: ARMADILHA PARA
CAPTURAR SONHOS • FAROL SANTANDER • PORTO ALEGRE • 16/8 A 22/10/2023
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3,
“Essa obra é toda embalada com arame farpado. Foi criada em um período em que houve muito conflito de terra em Goiânia. Os animais que faziam percursos de migração para acasalar, por exemplo, não podiam passar, porque os fazendeiros faziam cercas cada vez maiores, impedindo essa passagem. Então, eu fiz uma série que chamei de , com obras que contam com desenhos de animais aflitos tentando escapulir. Quando você está diante desse trabalho em específico, a primeira camada visível é a do arame farpado. E o arame fica em frente a uma coisa tão sutil que é a tela em si, um pano esticado que pode ser furado por qualquer coisa. A obra faz esse contraste entre a coisa agressiva e a tinta na superfície, criando aqueles animais.”
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Embalagem nº
1996. © Siron Franco.
Resenhas,
das
das
Paulo Desana.
Foto: Nailana Thiely.
POR MATTEO BERGAMINI
Foto: Nailana Thiely.
A época dos “pós”, de pós-verdade até pós-internet, carrega consigo a periculosidade do esquecimento identitário em favor de uma normalização dos demais caracteres que compõem a experiência da diversidade: esse sintoma afeta tanto as manifestações da vida cotidiana quanto as produções culturais, incluindo as artes visuais até – inúmeras vezes – lançá-las no buraco da homologação dos estilos e da linguagem para elas aderirem às leis do mercado global.
A primeira edição da Bienal das Amazônias, patente até o dia 5 de novembro, em Belém do Pará, driblou essa problemática de uma forma excelente: com mais de 120 artistas reunidos no espaço de uma antiga loja na área do comércio da capital paraense, a bienal é uma fotografia esplêndida das vivências do corpo artístico amazônico, esculpido pela multiplicidade de visões, tradições, situações.
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NouN e T2i.
profunda de um pensamento conectado com a natureza, com o ciclo das marés e, ao mesmo tempo, é um ditado popular: na área da Amazônia, as pessoas estão ‘de bubuia’, boiando nos pensamentos, naqueles devaneios que permitem ver as coisas com clareza. Trata-se de outra versão da , em francês”.
A Bienal das águas como imaginações e desejos chega após dois anos de estudos, viagens, encontros e conversas com os artistas dos países pan-amazônicos da área norte da América do Sul: Colômbia, Peru, Guiana Francesa, Venezuela, Bolívia, Suriname, além do Brasil, nos Estados abrangentes da floresta mais famosa e importante do mundo: Pará, Amapá, Rondônia, Acre, Mato Grosso e, obviamente, Amazonas. Contudo, o projeto geral demorou quase dez anos para vir à tona, sendo
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comoaáguaalinhaconfinse,contemporaneamente,quebraasfronteiras. Esse dualismo nos leva imediatamente a reparar em várias participações de artistas cujos trabalhos sempre trouxeram à luz questões conectadas aos atravessamentos, às hibridações e às miscigenações.
Adriana Varejão, a exemplo, é presente com a instalação (2003): uma folha de bananeira acolhe uma escultura vermelha representando um recém-nascido, correspondida pela oração “Ya pihi irakema”, em língua tupi: “A tua existência me atravessa, a tua presença me afeta”.
O simbolismo da folha como um embrulho, como abrigo para o sol e para as chuvas, e, também, como prato, é um atravessamento mesmo a providenciar fertilidade e cuidado.
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Adriana Varejão, Em segredo, 2003. Foto: Nailana Thiely.
A presença feminina na Bienal é alta, partindo mesmo pela curadoria composta – além de Vania – por Keyna Eleison, Flavya Mutran e Sandra Benites, e chegando ao número de artistas mulheres na mostra, compreendendo a linda homenagem à fotografa paraense Elza Lima e aos seus 40 anos de carreira documentando o Brasil inteiro e as áreas do Norte e Nordeste em específico.
Uma ocasião a mais para refletir sobre a sociedade matriarcal que sempre fez parte da comunidade amazônica, uma referência à relação estética e cultural entre as águas e os corpos que habitam esse território. De qualquer forma, fala ao mundo de um jeito bem claro, evitando se encarquilhar em políticas autorreferenciais – muito pelo contrário,
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construindo uma linguagem universal que perpassa as cores da pele, os estados, as origens: a maravilha dessa Bienal é oferecida por essa pluralidade extremamente visível que não para na sua autoafirmação; procuram-se diálogos, abrem-se perspectivas de compreensão à paisagem, até com pegadas irônicas – como acontece no trabalho de Mariano Klautau Filho.
Na série (2019-2023), o autor paraense espalha a paisagem dessa região brincando com as identificações que lhes reservamos: as fotos “amazônicas” de Mariano foram tiradas de Viena até a Baixa Califórnia, em lugares cuja identidade visual tem um apego com os da bacia florestal.
Elza Lima, Água Boa (Marajó), 2021. Foto: Nailana Thiely.
Keyla Sobral.
Foto: Nailana Thiely.
Bonikta, kurumin panankuera.
Foto: Nailana Thiely.
“As Amazonas se encontram em muitos lugares: são festas, rios, árvores, isolamento. Percebe-se uma visualização amazônica também nas cidades; vale lembrar Belém como ponto de passagem de vários grupos e etnias, os mesmos que trouxeram por aqui os ritmos da cúmbia, o merengue, a salsa. A história da Amazônia é a de intersecções: para além da imagem da mata intocada existe também uma Amazônia de influências, trasbordes em outros territórios, saberes partilhados”, salienta o artista.
Francelino Mesquita trabalha com a típica madeira paraense de miriti, construindo arquiteturas de barcos vítimas de naufrágios, tornando-as esculturas suspensas no ar, vivenciando o contraste entre a leveza da madeira e a severidade da ideia que reservamos às grandes empresas, tanto a fragilidade humana, quanto a dos nossos eternamente incertos recursos tecnológicos.
Marinaldo Santos nos oferece a possibilidade de descobrir a (2022), levando-nos a pensar no imenso céu da América do Sul como uma engenhoca divertida; Keila Sankofa, com sua instalação
(2022-2023), mistura o artesanato com a imagem de uma nova deusa; Paulo
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Mufarrej pinta uma
(2022-2023); o , (2023), de Denilson Baniwa, é uma parede de iscas artificiais que remete ao imaginário da pesca e ao fascínio que carregam consigo as armadilhas; Noemí Pérez com o seu (2023), foca na questão do desmatamento por meio de lindíssimos bordados sobre telas pintadas com carvão; Xadalu Tupã Jekupé formaliza os problemas da violência infantil pendurando roupas de crianças de aldeias em cercas de arame farpado na instalação (2017-2019).
Enfim, dois trabalhos pictóricos pondo a atenção sobre inúmeras questões que tudo tem a ver com a esfera política: nas pinturas de Rafael Prado, visualiza-se um retrato dos garimpeiros que buscaram o ouro na região da Serra Pelada-PA, compreendendo o hábito de tirar os próprios dentes para colocar dentadura de ouro. O garimpeiro de hoje, porém, tem os contornos de um divo do cinema, de uma personagem da TV: mais uma advertência em prestar atenção às imagens promulgadas pelas mídias.
Éder Oliveira multiplica a mesma personagem a interpretar papéis diferentes na mesma pintura: se torna fazendeiro, bandido, jogador, ativista, botando na mesa as multifacetadas questões que interessam as áreas rurais e as matas da Pan-Amazônia. A existência, mais uma vez, ultrapassa os territórios seguindo – como relata a curadora, Vânia – “Infindáveis narrativas que visibilizam o potencial político e cultural sem enrijecimentos dos modos de vida. As narrativas não são fantasiosas, são reais”.
Matteo Bergamini é jornalista, crítico e escritor especializado em Arte Contemporânea. Colabora com a revista italiana ArtsLife e com a portuguesa Umbigo Magazine.
BUBUIA: BIENAL DAS AMAZÔNIAS • BELÉM • PARÁ • 5/8 A 5/11/2023
119 Rafael Prado. Foto: Nailana Thiely.
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site www.dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil.
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